quarta-feira, 2 de agosto de 2023

SOBRE AS SECURAS E TENTAÇÕES ESPIRITUAIS

São Francisco de Sales nos diz que a verdadeira devoção e o verdadeiro amor de Deus não consistem em sentir consolações espirituais nos exercícios de piedade, mas em ter uma vontade resoluta de só querer e fazer aquilo que Deus quer. É só para este fim que devemos orar, comungar, praticar a mortificação e qualquer outra virtude que agrada a Deus, muito embora façamos isso sem satisfação alguma e no meio de mil tentações e aborrecimentos de espírito. 'Pelas securas e tentações' -  diz Santa Teresa - 'o Senhor experimenta os que o amam. Posto que a secura continue durante toda a vida, não deixe a alma de fazer oração; virá tempo em que será bem paga por tudo'.

Segundo o aviso dos mestres da vida espiritual devemos, no tempo da desolação, exercitar-nos principalmente em fazer atos de humildade e de resignação. Não há tempo mais próprio para conhecermos a nossa fraqueza e miséria como quando na oração estamos áridos, aborrecidos, distraídos e desgostosos, sem fervor sensível, mesmo sem desejo sensível de progredirmos no amor divino. Então a alma diz: 'Senhor, tende compaixão de mim! Vede como sou incapaz de fazer qualquer ato de virtude'. Ela deve também praticar a resignação e dizer: 'Meu Deus, deixai-me ficar nesta escuridão e aflição; seja sempre feita a vossa vontade! Não desejo consolações; basta-me estar aqui para vos agradar'. E assim ela deve perseverar na oração todo o tempo determinado.

A maior pena, porém, das almas amantes da oração, não é tanto a secura, como a escuridão, na qual a alma se vê privada de toda a boa vontade, e tentada contra a fé e contra a esperança. Eis porque nesse tempo a solidão lhe é um horror e a oração lhe parece um inferno. Então ela deve criar coragem e lembrar-se que esses temores de ter consentido na tentação ou na desconfiança, não são senão temores vãos e tormentos da alma, mas não atos da vontade e por isso são isentos de pecado.

No tempo da desolação e escuridão não quer a alma assegurar-se de que está na graça de Deus e isenta de pecado. Tu então queres saber e estar certo de que Deus te ama; mas Deus nesse tempo não o quer fazer conhecer. Quer que te apliques à humildade, à confiança na sua bondade, e à resignação à sua vontade. Tu então queres ver, e Deus não quer que vejas. A este respeito diz São Francisco de Sales que a resolução que tens (ao menos com uma ponta da vontade) de amar a Deus e de não lhe dar deliberadamente o menor desgosto, te afiança que estás na graça de Deus. Nesse tempo, abandona-te todo nos braços da misericórdia divina, protesta que não queres outra coisa senão Deus e sua santa vontade, e não temas. Ó quanto agradam a Deus os atos de confiança e de resignação feitos no meio dessas trevas pavorosas!

Santa Joana de Chantal sofreu por um espaço de 41 anos penas interiores, acompanhadas de tentações horrorosas e do temor de estar em pecado e abandonada por Deus. Pelo que dela dizia São Francisco de Sales, que a sua bendita alma era como um músico surdo, que canta bem, mas não pode gozar da voz, porque a não ouve.  A alma que é provada pelas securas, por mais densas que sejam no sangue de Jesus Cristo, resigne-se à vontade divina e diga: 'Ó Jesus, minha esperança e único amor da minha alma, eu não mereço as vossas consolações. Guarde-as para aqueles que Vos têm amado sempre; eu só mereci o inferno, abandonado para sempre de Vós e sem esperança de Vos poder ainda amar. Privai-me de todas as coisas, mas não de Vós. Amo-vos, miserável como sou. Jesus, meu Deus, eu vos amo sobre todas as coisas; consagro-me todo a Vós e não quero mais viver para mim mesmo. Dai-me força para vos ser sempre fiel. Ó Virgem Santíssima, esperança dos pecadores, tenho confiança na vossa intercessão; fazei que eu ame sempre o meu Deus, meu Criador e Redentor. 

(Excertos da obra 'Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano', de Santo Afonso Maria de Ligório)