quinta-feira, 9 de março de 2017

CONTRIÇÃO E PENITÊNCIA

... O mais grave é que, encontrando-nos neste estado [de pecado], não pensamos na deformidade da nossa alma nem nos damos conta do seu aspecto horrível. Quando te sentas numa barbearia para cortar o cabelo, imediatamente tomas na mão um espelho e olhas e voltas a olhar como vai ficando o corte e perguntas aos presentes e ao próprio barbeiro se ficou bem o topete da frente. E, mesmo que já sejas um velho, muitas vezes não te envergonhas da mania de imitar a gente jovem. Mas de que a nossa alma esteja deformada, e até de que tenha assumido o aspecto de uma fera [...], nem sequer nos damos conta. 

No entanto, também aqui dispomos de um espelho espiritual, muito melhor e mais proveitoso que o outro material. Este espelho não somente põe diante de nós a nossa deformidade, mas até, se o quisermos, pode transformá-la em beleza incomparável. Este espelho é a memória dos homens santos, as histórias da sua vida bem-aventurada, a lição das Escrituras, as leis que por Deus nos foram dadas. Se alguma vez decidires olhar para as imagens desses santos, não somente verás a deformidade da tua própria alma, mas, assim que a vires, não precisarás de mais nada para libertar-te dessa fealdade. Tão proveitoso é para nós esse espelho e com tal facilidade realiza a transformação. (Homilias sobre São Mateus, 4, 9)

Não são somente as feridas do corpo que produzem a morte, se não forem tratadas, mas as da alma também. No entanto, chegamos a tal ponto de insensatez que cuidamos, sim, com todo o empenho, das feridas do corpo, mas não fazemos o menor caso das da alma. No corpo, é natural que nos sobrevenham muitas doenças incuráveis; no entanto, nem por isso desesperamos e, apesar de os médicos nos dizerem e repetirem que para tal doença não há remédio nem medicamento que a faça desaparecer, insistimos uma e outra vez e lhes pedimos que pelo menos pensem em alguma coisa que a alivie. 

No caso da alma, porém, para a qual não existe doença incurável, pois a alma não está submetida à necessidade ou fatalidade da natureza; no caso da alma, digo, descuidamos as doenças e desesperamos da sua cura, como se se tratasse de achaques alheios. Onde a natureza das doenças poderia levar-nos a desesperar, pomos todo o nosso cuidado, como se tivéssemos mil esperanças de saúde; onde não há motivo para o desalento, desistimos e nos descuidamos, como se estivéssemos desesperados. A tal ponto atribuímos mais importância ao corpo que à alma!

Na verdade, por este caminho, nem o corpo poderemos salvar. Aquele que descuida o principal e põe todo o seu empenho no secundário, destrói e perde um e outro. Aquele que guarda a devida ordem, ao salvar e cuidar do principal, mesmo que descuide o secundário, ao salvar o primeiro salva também o segundo. É o que Cristo nos quis dar a entender quando disse: 'Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode lançar a alma e o corpo no inferno' (Mt 10,28) (Exortação 1 a Teodoro, 15). Mais do que o próprio pecado, o que irrita e ofende a Deus é que os pecadores não sintam dor alguma dos seus pecados (Homilias sobre São Mateus, 14, 4).

Imaginemos alguém repleto de toda a maldade, que tenha cometido todos os crimes que o excluem do reino dos céus. Não o imaginemos entre aqueles que permanecem entre os infiéis a vida inteira, mas entre os fiéis, entre aqueles que primeiro agradaram a Deus, mas que depois se fizeram fornicadores, adúlteros, moles, ladrões, bêbados, invertidos, maldizentes ou blasfemos, ou cometeram outros pecados semelhantes a estes. Pois bem, nem mesmo a um pecador destes consentiria eu que desesperasse, mesmo que tivesse chegado à extrema velhice com toda essa carga de pecados. 

Se a ira de Deus fosse uma paixão, o pecador teria razão para desesperar de poder apagar um incêndio alimentado por ele próprio com pecados tão grandes. Mas não! A divindade é alheia à paixão e, quando castiga e se vinga, não o faz por ira, mas por sua imensa solicitude e amor. Portanto, é preciso ter bom ânimo e confiar no poder da penitência. Não basta retirar a flecha do corpo; também é preciso curar a chaga produzida pela flecha. Coisa semelhante acontece na alma: depois de ter recebido o perdão dos pecados, tem de curar por meio da penitência a chaga que ficou (Homilias sobre São Mateus, 3, 5).

(Da antologia de São João Crisóstomo)