sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

31 DE JANEIRO - SÃO JOÃO BOSCO

 

Filho de uma humilde família de camponeses, São João (Melchior) Bosco nasceu em Colle dos Becchi, localidade próxima a Castelnuovo de Asti em 16 de agosto de 1815. Órfão de pai aos dois anos, viveu de ofícios diversos na pobreza da infância e da juventude, até ser ordenado sacerdote em 5 de junho de 1841, com a missão apostólica de servir, educar e catequizar os jovens, o que fez com extremado zelo e santificação durante toda a sua vida.

Em 1846, fundou o Oratório de São Francisco de Sales em Turim, dando início à sua obra prodigiosa, arregimentando colaboradores e filhos, aos quais chamava de salesianos, em meio a um intenso e profícuo apostolado. Em 1859, fundou  a Congregação Salesiana e, em 1872, com a ajuda de Santa Maria Domingas Mazzarello, fundou o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora para a educação da juventude feminina. Em 1875, enviou a primeira turma de seus missionários para a América do Sul. No Brasil, as primeiras casas salesianas foram o Colégio Santa Rosa em Niterói e o Liceu Coração de Jesus em São Paulo. 

Faleceu a 31 de janeiro de 1888 em Turim, aos 72 anos, deixando como herança cristã a Congregação Religiosa Salesiana espalhada por diversos países da Europa e das Américas. O Papa Pio XI, que o conheceu e gozou da sua amizade, canonizou-o na Páscoa de 1934. Popularizado como 'Dom Bosco', foi aclamado pelo Papa João Paulo II como 'pai e mestre da juventude' e se tornaram lendários os seus sonhos proféticos (exemplo abaixo), que ele narrava em suas pregações aos jovens salesianos.

A BIGORNA E O MARTELO

Em 20 de agosto de 1862, depois de rezadas as orações da noite e de dar alguns avisos relacionados com a ordem da casa, Dom Bosco disse: 'Quero contar-lhes um sonho que tive faz algumas noites'.

Sonhei que estava em companhia de todos os jovens em Castelnuovo do Asti, na casa de meu irmão. Enquanto todos faziam recreio, dirigiu-se a mim um desconhecido e convidou-me a acompanhá-lo. Segui-o e ele me conduziu a um prado próximo ao pátio e ali indicou-me, entre a erva, uma enorme serpente de sete ou oito metros de comprimento e grossura extraordinária. Horrorizado ao contemplá-la, quis fugir.

— 'Não, não' — disse-me meu acompanhante — 'não fujas; vem comigo'.
 'Ah!' — exclamei — 'não sou tão néscio para me expor a um tal perigo'.
— 'Então' — continuou meu acompanhante —'aguarda aqui'.
E, em seguida, foi em busca de uma corda e com ela na mão voltou novamente junto a mim e disse-me:
— 'Tome esta corda por uma ponta e agarre-a bem; eu agarrarei o outro extremo e por-me-ei na parte oposta e, assim, a manteremos suspensa sobre a serpente'.
— 'E depois?'
— 'Depois a deixaremos cair sobre a espinha dorsal'.
— 'Ah! não; por caridade. Pois ai de nós se o fizermos! A serpente saltará enfurecida e nos despedaçará'.
— 'Não, não; confie em mim' — acrescentou o desconhecido —'eu sei o que faço'.
— 'De maneira nenhuma; não quero fazer uma experiência que pode-me custar a vida'.

E já me dispunha a fugir, quando o homem insistiu de novo, assegurando-me que não havia nada que temer; e tanto me disse que fiquei onde estava, disposto a fazer o que me dizia. Ele, entretanto, passou do outro lado do monstro, levantou a corda e com ela deu uma chicotada sobre o lombo do animal. A serpente deu um salto voltando a cabeça para trás para morder ao objeto que a tinha ferido, mas em lugar de cravar os dentes na corda, ficou enlaçada nela mediante um nó corrediço. Então o desconhecido gritou-me:

— 'Agarre bem a corda, agarre-a bem, que não se lhe escape'.

E correu a uma pereira que havia ali perto e atou a seu tronco o extremo que tinha na mão; correu depois para mim, agarrou a outra ponta e foi amarrá-la à grade de uma janela. Enquanto isso, a serpente agitava-se, movia-se em espirais e dava tais golpes com a cabeça e com sua calda no chão, que suas carnes rompiam-se saltando em pedaços a grande distancia. Assim continuou enquanto teve vida; e, uma vez morta, só ficou dela o esqueleto descascado e sem carne. Então, aquele mesmo homem desatou a corda da árvore e da janela, recolheu-a, formou com ela um novelo e disse-me:

— 'Presta atenção!'

Colocou a corda em uma caixa, fechou-a e depois de uns momentos a abriu. Os jovens tinham-se ajuntado ao ao meu redor. Olhamos o interior da caixa e ficamos maravilhados. A corda estava disposta de tal maneira, que formava as palavras: Ave Maria!

— 'Mas como é possível?' — disse — 'Você colocou a corda na caixa e agora ela aparece dessa maneira!'.

— 'Olhe' — disse ele — 'a serpente representa o demônio e a corda é a Ave Maria, ou melhor, o Santo Rosário, que é uma série de Ave Marias com a qual e com as quais se pode derrubar, vencer e destruir todos os demônios do inferno.

Enquanto falávamos sobre o significado da corda e da serpente, voltei-me para trás e vi alguns jovens que, agarrando os pedaços da carne da serpente, os comiam. Então gritei-lhes imediatamente:

— 'Mas o que é o que fazem? Estão loucos? Não sabem que essa carne é venenosa e que far-lhes-á muito dano?'

'Não, não' — respondiam-me os jovens — 'a carne está muito boa'.

Mas, depois de havê-la comido, caíam ao chão, inchavam-se e tornavam-se duros como uma pedra. Eu não podia ficar em paz porque, apesar daquele espetáculo, cada vez era maior o número de jovens que comiam aquelas carnes. Eu gritava a um e a outro; dava bofetadas a este, um murro naquele, tentando impedir que comessem; mas era inútil. Aqui caía um, enquanto que lá começava a comer outro. Então chamei os clérigos em meu auxílio e disse-lhes que se mesclassem entre os jovens e se organizassem de maneira que ninguém comesse aquela carne. Minha ordem não teve o efeito desejado, pois alguns dos clérigos começaram também a comer as carnes da serpente, caindo ao chão como os outros. Eu estava fora de mim quando vi a meu redor um grande número de moços estendidos pelo chão no mais miserável dos estados. Voltei-me, então, para desconhecido e disse-lhe:

— 'Mas o que quer dizer isto? Estes jovens sabem que esta carne ocasiona-lhes a morte e, contudo, a comem. Qual é a causa?'

Ele respondeu-me: ' Já sabes que animalis homo non percipit ea quae Dei sunt: Alguns homens não percebem as coisas que são de Deus'.

— 'Mas não há remédio para que estes jovens voltem em si?'

— 'Sim, há'.

— 'E qual seria?'

— 'Não há outro que não seja pela bigorna e pelo martelo'.

— 'Bigorna? Martelo? E como terei que empregá-los?'

— 'Terás que submeter os jovens à ação de ambos estes instrumentos'.

— 'Como? Acaso devo colocá-los sobre a bigorna e golpeá-los com o martelo?'

Então meu companheiro me esclareceu, dizendo:

— 'O martelo significa a Confissão e a bigorna, a Comunhão; é necessário fazer uso destes dois meios'.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CARTA À JUVENTUDE


A primeira artimanha do demônio consiste em persuadi-los de que o serviço de Deus exige uma vida triste, sem nenhum divertimento ou prazer. Mas isto não é verdade, meus caros jovens. Eu vou lhes indicar um plano de vida cristã que poderá mantê-los alegres e contentes, fazendo-os conhecer quais são os verdadeiros divertimentos e prazeres para que vocês possam exclamar como o santo profeta Davi: 'Sirvamos ao Senhor na santa alegria'.

A segunda artimanha do demônio consiste em fazê-los conceber a falsa esperança de uma longa vida que permite converter-se na velhice ou na hora da morte. Prestem atenção, meus caros jovens, muitos se deixaram prender por esta mentira. Quem nos garante que chegaremos à velhice? Mas a vida e a morte estão entre as mãos de Deus que dispõe de tudo a seu bel-prazer.

E mesmo se Deus lhes concedesse uma longa vida, escutai, entretanto, sua advertência: 'o caminho do homem começa na juventude, ele o segue na velhice até a morte'. Ou seja, se jovens começamos uma vida exemplar, seremos exemplares na idade adulta, nossa morte será santa e nos fará entrar na felicidade eterna. Se, pelo contrário, os vícios começam a nos dominar desde a juventude, é muito provável que eles nos manterão em escravidão por toda a nossa vida, até a morte. Triste prelúdio a uma eternidade terrível.

Para que esta infelicidade não lhes aconteça, eu lhes apresento um método de vida alegre e fácil, mas que lhes bastará para se tornarem a consolação de seus pais, a honra de pátria de vocês, bom cidadãos da terra, em seguida felizes habitantes do céu... Meus caros jovens, eu os amo de todo o meu coração e basta-me que vocês sejam jovens para que eu os ame extraordinariamente. Eu lhes garanto que vocês encontrarão livros que lhes foram dirigidos pelas pessoas mais virtuosas e sábias em muitos pontos, mas, dificilmente, vocês poderão encontrar alguém que os ame mais do que eu, em Jesus Cristo, e lhes deseja mais a felicidade.

Conservem no coração o tesouro da virtude porque, possuindo-o, vocês têm tudo, mas se o perderem, tornar-se-ão os homens mais infelizes do mundo. Que o Senhor esteja sempre com vocês e que Ele lhes conceda seguir os simples conselhos presentes, para que possam aumentar a glória de Deus e obter a salvação da alma, fim supremo para o qual fomos criados. Que o Céu lhes dê longos anos de vida feliz e que o santo temor de Deus seja sempre a grande riqueza que os cumule de bens celestes aqui e por toda a eternidade. Vivam contentes e que o Senhor esteja com vocês.

(São João Bosco) 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

BREVIÁRIO DIGITAL - ILUSTRAÇÕES DE DORÉ (VIII)

PARTE VIII (1Sm 6 - 2Sm 21)

  [Os betsamitas que segavam o trigo veem o retorno da Arca do Senhor (I Sm 6,13)]

  [Samuel testemunha Saul como futuro chefe do povo de Israel (I Sm 9,17)]


 [Morte de Agag, rei de Amalec (I Sm 15,33)]


  [Davi decepa a cabeça de Golias, o gigante filisteu (I Sm 17,51)]


  [A tentativa de Saul matar Davi com uma lança (I Sm 18,11)]


  [A fuga de Davi por uma janela de sua casa (I Sm 19,12)]


  [Jônatas permite a fuga de Davi (I Sm 20,42)]


  [Discurso de Davi ao rei Saul (I Sm 24,9-16)]


 [Saul e a necromante de Endor (I Sm 28,11)]


  [Morte de Saul prostrando-se sobre uma espada (I Sm 31,4)]


  [Combate entre os doze homens de Benjamin e os doze homens de Davi (II Sm 2,15-16)]


   [Davi tomando Rabá, cidade dos amonitas (II Sm 12,27)]


   [A morte de Absalão, preso nos galhos de uma árvore (II Sm 18,9-15)]


    [Davi recebe a notícia e lamenta a morte de Absalão (II Sm 18,32)]


[Resfa, filha de Aías, protege os corpos dos sete martirizados (II Sm 21,10)]


[Abisaí mata o filisteu e salva Davi da morte (II Sm 21,17)]

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

DEUS SABE O QUE FAZ

Deus criou-me para lhe prestar um serviço específico: Ele me confiou uma obra que não confiou a outro. Tenho a minha missão que posso nunca conhecer nesta vida, mas saberei na próxima. De alguma forma sou necessário para os seus propósitos, tão necessário no meu lugar como um Arcanjo no dele... tenho uma parte nesta grande obra. 

Sou o elo de uma corrente, um vínculo de conexão entre pessoas. Ele não me criou para nada. Vou fazer o bem, vou fazer a sua obra. Serei um anjo de paz, um pregador da verdade na minha própria casa, mesmo sem pretensão, se eu guardar os seus mandamentos e o servir na minha vocação.

Por isso vou confiar nEle. Onde e como eu estiver, nunca poderei ser rejeitado. Se estou doente, a minha doença pode servi-lo; na confusão, a minha confusão pode servi-lo; se eu estou triste, a minha tristeza pode servi-lo. 

A minha doença, confusão ou tristeza podem ser causas necessárias para algum grande fim, que está muito além de nós. Ele não faz nada em vão; Ele pode prolongar a minha vida ou pode abreviá-la; Ele sabe o que está a fazer. Ele pode tirar-me amigos, pode enviar-me para o meio de estranhos, pode me fazer sentir desolado, fazer o meu espírito submergir, esconder o futuro de mim, ainda assim Ele sabe o que está a fazer.

(Excertos da obra 'Meditações e Devoções', do Cardeal Newman)

domingo, 26 de janeiro de 2020

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS


'O povo que andava na escuridão viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu. Fizeste crescer a alegria, e aumentaste a felicidade; todos se regozijam em tua presença como alegres ceifeiros na colheita, ou como exaltados guerreiros ao dividirem os despojos' (Is 9, 1-2)

sábado, 25 de janeiro de 2020

VÍDEOS CATÓLICOS: SEJA LOUVADO O SANTÍSSIMO!

John Henry NEWMAN, cardeal inglês do século XIX canonizado pelo Papa Francisco em 13 de outubro do ano passado, é autor de inúmeras orações e hinos, sendo um dos mais belos o Praise to the Holiest in the Height! 



PRAISE TO THE HOLIEST IN THE HEIGHT!

Praise to the Holiest in the height,
And in the depth be praise:
In all His words most wonderful;
Most sure in all His ways.

 O loving wisdom of our God,
When all was sin and shame,
He, the last Adam, to the fight
And to the rescue came.

O wisest love! that flesh and blood
Which did in Adam fail,
Should strive afresh against the foe,
Should strive and should prevail.

And that a higher gift than grace
Should flesh and blood refine,
God’s presence, and His very self
And essence all-divine.

O generous love! that He, who smote
In man for man the foe,
The double agony in man
For man should undergo.

And in the garden secretly,
And on the cross on high,
Should teach His brethren, and inspire
To suffer and to die.

Praise to the Holiest in the height,
And in the depth be praise:
In all His words most wonderful;
Most sure in all His ways.

(Cardeal Newman)


SEJA LOUVADO O SANTÍSSIMO NAS ALTURAS!

Seja louvado o Santíssimo nas alturas,
e seja louvado no abismo:
Em todas as suas palavras, o mais maravilhoso;
o mais seguro em todos os seus caminhos.

  Ó sabedoria amorosa de nosso Deus,
Quando tudo era pecado e vergonha,
Ele, o segundo Adão, veio
para lutar e nos resgatar.

Ó amor de sabedoria! A mesma carne e sangue
que fracassaram em Adão,
refazem-se agora contra o inimigo,
refazem-se agora para prevalecer.

E dádiva maior que a graça
refaz-se em nova carne e sangue,
a própria presença de Deus 
se manifesta pela essência toda divina.

Ó amor generoso! Ele, que feriu,
Do homem para o homem, o inimigo,
A dupla agonia no homem
que o homem deveria sofrer*.

Seja no escondimento do Horto,
ou no mais alto da Cruz,
para ensinar e inspirar os seus Filhos
para sofrer e, por amor, morrer.

Seja louvado o Santíssimo nas alturas,
e seja louvado no abismo:
Em todas as suas palavras, o mais maravilhoso;
o mais seguro em todos os seus caminhos.

* estrofe de tradução e entendimento difíceis: a 'dupla agonia' pode referir-se ao embate do primeiro homem (humanidade perfeita de Cristo) contra o segundo homem (humanidade decaída pela natureza humana), para vencer a ação contínua do inimigo que, prevalecendo sobre Adão, foi derrotado por Cristo ('Ele, que feriu o inimigo').

(tradução do autor do blog)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

SOBRE A VIRTUDE DA DEVOÇÃO

A viva e verdadeira devoção pressupõe o amor de Deus, mas não um amor qualquer porque, quando o amor divino embeleza as nossas almas, ele se chama graça, o que nos torna agradáveis à majestade divina; e quando nos dá força para fazer o bem, é chamado de caridade; mas, quando se atinge um tal grau de perfeição, que não consiste apenas em fazer o bem, mas fazê-lo com cuidado, com frequência e com prontidão, então se chama devoção. 

Em suma, a devoção consiste em uma combinação de agilidade e vivacidade espirituais, por meio das quais a caridade faz as suas obras em nós, ou nós por meio dela, prontamente e calorosamente. Assim, para se ser devoto, além da caridade, requer-se uma grande diligência e presteza dos atos dessa virtude. E desde que a devoção constitui um excelente grau de caridade, que não só nos torna pronta, ativa e diligentemente a fazer cumprir a estrita observância dos mandamentos de Deus, como também nos incentiva a fazer, com afeto e prontidão, todas as boas ações que podemos, não apenas as que nos foram impostas, como também aquelas meramente aconselhadas ou inspiradas.

A caridade e a devoção se distinguem entre si como a chama e o fogo; sendo a caridade um fogo espiritual, quando bem incendiada se chama devoção, de forma que a devoção nada acrescenta ao fogo da caridade, a não ser como chama que faz a caridade tornar-se alerta, ativa e diligente, não apenas para se resguardar em nós os mandamentos de Deus, mas também na boa prática dos conselhos e inspirações celestiais.

Pela manifestação do Espírito Santo, seja na vida de todos os santos como pelo próprio exemplo da vida de Nosso Senhor, nos é assegurado que a prática da devoção pressupõe uma vida serena, feliz e tranquila. Mas o mundo não vê a devoção como sendo interior e feliz, nem torna a sua prática e as suas ações como sendo agradáveis, serenas e fáceis.

A devoção é o verdadeiro açúcar espiritual que lima as asperezas das mortificações e o perigo de se perder o fruto das consolações, que desfaz a tristeza do pobre e a ansiedade dos ricos, que dissipa a desolação dos oprimidos e a a insolência dos afortunados, que repele a melancolia aos solitários e a dissipação dos que vivem socialmente, que atua como fogo no inverno e suave orvalho no verão, que ensina a viver na abundância ou na pobreza, que nos eleva igualmente diante das honras ou dos desprezos do mundo, que nos torna propícios tanto nos momentos de dor como de serenidade, que nos consola sempre com suave resignação. 

A devoção é a doçura de todas as doçuras e a rainha das virtudes porque é a perfeição da caridade. Se a caridade é o leite, a devoção é o creme de leite; se a caridade é a planta, a devoção é a flor; se a caridade é uma pedra preciosa, a devoção é o brilho que dela emana; se a caridade é um bálsamo perfeito, a devoção é o seu aroma especial: um odor de suavidade que conforta os homens e regozija os anjos.

(Excertos da obra 'Introdução à Vida Devota' - Cap. I e II - de São Francisco de Sales, adaptação do texto pelo autor do blog)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O SINAL DA CRUZ (IV)


In hoc Signo vinces - 'Por este Sinal vencerás'

IV

A segunda razão do Sinal da Cruz ter sido dado aos homens é a de nos tirarmos da ignorância, pois é um livro sagrado que nos instrui. Todas as ciências, teologia, filosofia, sociologia, política, história, estão reduzidas nestas três palavras: 'criação, redenção, glorificação' — de modo insubstituível, são para o gênero humano mais necessárias que o pão para nutrir-se e mais que o ar para respirar. Só elas bastam para orientar a vida inteira. Orientam as alegrias, as tristezas, os pensamentos, as palavras, as ações, os sentimentos. Sendo assim, a simples razão diz que Deus devia estabelecer um meio fácil, permanente e universal que desse a todos este conhecimento fundamental. Não devia, porém, dá-lo de uma só vez e de passagem; devia renová-lo constantemente, assim como se renova a cada instante o ar que respiramos. 

Que sábio se encarregaria deste ensino indispensável? São Paulo, Santo Agostinho, São Tomás? Ou outro gênio qualquer do Oriente ou do Ocidente? Não. Estes morreram; e seria necessário algo que não morresse. Estes habitaram um lugar determinado e seria necessário algo que estivesse em toda a parte. Estes falaram línguas que nem todos compreendem e seria necessário algo que falasse uma língua inteligível a todos. O que seria pois este algo? É o Sinal da Cruz. Ele e só ele satisfaz a todas as condições exigidas: não morre: está em toda a parte e é por todos entendido. Um instante lhe basta para dar uma lição, como lhe basta um instante para todos o compreenderem.

Mas seria verdade que o Sinal da Cruz repete e ensina como convém as três grandes palavras: 'criação, redenção, glorificação'? Sim. E não só as repete e ensina, mas explica-as com uma autoridade, profundidade e lucidez que só a ele pertencem. Repete-as com autoridade porque, sendo divino em sua origem, vem do próprio Deus. Repete-as com profundidade e lucidez porque se explica nos termos seguintes:

Quando levas a mão à tua fronte, dizendo — 'Em Nome' — o Sinal da Cruz te ensina a indivisível Unidade da Essência Divina. Dizendo — 'do Pai' — novo e imenso raio de luz penetra na tua inteligência. O Sinal da Cruz te diz que há um Ser, Pai de todos os Pais, princípio eterno da existência de todas as criaturas, celestes e terrestres, visíveis e invisíveis. Dizendo  — 'e do Filho' — o Sinal te diz que o Pai dos Pais tem um Filho semelhante a Ele. Fazendo-te levar a mão ao peito, quando assim o pronuncias, ele te diz que este Filho eterno de Deus se fez Homem no seio de uma Virgem para resgatar a humanidade. 'E do Espírito Santo' — esta palavra completa o ensino do Sinal da Cruz. Tu sabes agora que há um Deus, Uno na essência e Trino em Pessoas. Se a Primeira Pessoa necessariamente é Poder, a segunda é necessariamente a Sabedoria e a terceira é necessariamente o Amor. Este amor, completando a obra do Pai Criador e do Filho Redentor, santifica o homem e o conduz à glória. Pronunciando o nome do Espírito Santo, tens formada a Cruz e não só conheces o Redentor, mas também o instrumento da Redenção. 

Será possível ensinar com tão poucas palavras, com mais eloquência e em linguagem mais inteligível, os três grandes dogmas: — 'criação, redenção, glorificação' — eixos do mundo moral e princípios geradores da inteligência humana? Ser criado, ser remido, ser destinado à glória eterna, eis o princípio e todo o futuro do homem. Graças ao uso tão frequente do Sinal da Cruz em todas as classes da sociedade, tanto nas cidades e como nas aldeias, o mundo católico dos primeiros séculos e da Idade Média conservou, em grau até então desconhecido, o conhecimento da Ciência Divina, mãe de todas as ciências e mestra da vida.

O mundo moderno abandonou o Sinal da Cruz e, desde esse tempo, não mais teve a seu lado um Monitor que lhe avivasse, a cada instante, os três grandes dogmas indispensáveis à vida moral. Por isso, ao olvidar o Sinal da Cruz, 'criação, redenção, glorificação', essas três Verdades fundamentais são para ele como se não existissem. O mundo de hoje só conhece e adora o deus-eu, o deus-comércio, o deus-dinheiro, o deus-ventre, o deus-prazer ou a deusa-indústria, a deusa-política e a deusa-volúpia. Por serem meios de satisfazer a todos os seus maus desejos, ele conhece e adora as ciências da matéria: — a química, a física, a mecânica, a dinâmica, os sulfatos, os nitratos e os carbonatos. Eis aqui as divindades destes séculos e o seu culto.

Eis aqui a teologia, a filosofia, a política, a moral, a vida do mundo moderno, com seus egoísmos e vícios! Progredindo assim, breve estará bem a par dos contemporâneos de Noé, destinados a morrer nas águas do dilúvio. Para aqueles também consistia-lhes toda a ciência em conhecer e adorar os deuses do mundo moderno: comer, beber, edificar, comprar, vender e casar cada um, a si e aos outros, animados de todas estas más tendências que não faltam ao mundo atual! 

O Sinal da Cruz é um livro que nos educa e nos eleva. Sob tal ponto de vista, podes agora julgar se era sem razão que nossos pais constantemente faziam o Sinal da Cruz. E se deve à ignorância, uma ignorância muito deplorável do mundo atual, o abandono do Sinal da Cruz. Qual é esta ignorância? A chamada 'indigência do espírito', que procede da fraqueza em praticar a virtude e repelir o mal. E por que existe tal fraqueza? Porque o homem atual despreza os meios de obter a graça e de torná-la eficaz. O primeiro, o mais pronto, o mais comum e o mais fácil destes meios é a oração. E, de todas as orações, a mais fácil, a mais pronta, a mais comum e talvez, a mais poderosa, é o Sinal da Cruz.

(Excertos adaptados da obra 'O Sinal da Cruz', do Monsenhor Gaume, 1862)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (XLV)

XXIX

DA NECESSIDADE, NATUREZA E EFEITOS DO SACRAMENTO DA CONFIRMAÇÃO: INSTRUÇÃO QUE REQUER E OBRIGAÇÕES QUE IMPÕE

É suficiente a graça do batismo para levar em tudo vida digna de Jesus Cristo?
Não, Senhor; porque a graça do batismo é graça inicial ou de principiantes, se assim é lícito falar; comunica-nos a vida de Cristo, porém, não o vigor para crescermos e desenvolvermo-nos até à plenitude (LXV, 1; LXXII, 7, ad 1)*.

Que graças produzem tais resultados?
As da Confirmação e Eucaristia (LXV, 1).

Que entendeis por Confirmação?
O sacramento da Nova Lei, destinado a conferir a graça, em virtude da qual medra e se desenvolve o ser sobrenatural recebido no batismo (LXXII, 1).

Em que consiste?
Em ungir, em forma de cruz, com o crisma bento a fronte do confirmando, enquanto o ministro pronuncia estas palavras: 'Assinalo-te com o sinal da cruz e confirmo-te com o Crisma da salvação, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém' (LXXII, 2, 4, 9).

Que simboliza o Crisma empregado como matéria neste sacramento?
A plenitude da graça do Espírito Santo que conduz o cristão à vida perfeita para que, com a prática das virtudes, difunda, ao redor de si, o odor de Cristo. Por isso o Crisma está composto de azeite de oliveira, símbolo da graça, e da planta aromática por excelência, o bálsamo (LXXII, 2).

Que manifestações compreende a forma deste sacramento ou as palavras que o ministro pronuncia?
São três: nomeia-se a Santíssima Trindade, para dar a entender que ali está a fonte e manancial de toda a graça; diz-se: 'Eu te confirmo com o Crisma da salvação', para indicar que o efeito deste sacramento é conferir fortaleza e vigor, e imprime-se na fronte do confirmando o sinal da cruz, porque ele, instrumento do triunfo do nosso comandante e Rei, há de ser a bandeira, a divisa e o distintivo do soldado de Cristo, aprestado para os grandes combates da vida cristã (LXXII, 4) .

Logo, o sacramento da Confirmação é o sacramento da virilidade cristã, o que transforma o cristão menino em cristão homem, capaz de lutar e vencer os inimigos exteriores do nome de Cristo?
Sim, Senhor; e, por isso, o administra ordinariamente o bispo, a quem, por virtude do cargo, está encarregado tudo o que é perfeito na Igreja (LXXII, 11).

Se o sacramento da Confirmação é o que acabais de dizer, que necessidade têm os confirmados de ter padrinhos?
Porque, em toda milícia bem organizada, deve-se ter instrutores encarregados de adestrar os recrutas nas artes da milícia e da guerra (LXXII, 10).

Logo, têm os padrinhos da Confirmação dever estrito de velar pelos recém confirmados e iniciá-los nos caminhos e dificuldades da vida cristã?
Certamente que sim e seria muito de desejar que, na prática, tivessem cuidado mais exato de tão sagrada obrigação e a cumprissem melhor.

Imprime caráter este sacramento?
Sim, Senhor; e por isso não pode repetir-se (LXXII, 5).

Se alguém o receber sem as disposições convenientes, pode alcançar mais tarde os seus efeitos?
Sim, Senhor, porque, permanecendo o caráter, se logrará o fruto quando a alma ficar livre de obstáculos. Pela mesma razão, devemos revigorar a graça, própria deste sacramento, que é a graça de fortaleza espiritual, exercitando-nos com frequência em combater os inimigos da nossa fé.

Logo, este sacramento tem especial importância para os que vivem entre povos hostis à vida e nome cristãos?
Sim, Senhor; porque eles, mais que ninguém, necessitam de valor e fortaleza de ânimo para se manter fieis e para se  defender das arremetidas e ciladas de quantos os desprezam ou perseguem.

Que considerações deve fazer o cristão para não esmorecer e conservar o vigor adquirido na Confirmação?
Todo aquele que teve a ventura de receber este sacramento, e com ele a plenitude dos dons do Espírito Santo, deve ter sempre presente que leva gravada na alma com caracteres indeléveis, a insígnia gloriosa de soldado de Cristo e que, assim, como o ardor bélico e a fidelidade à bandeira são as primeiras e mais formosas virtudes militares, assim também não há qualificativo mais odioso e envilecedor que a nota de covarde, aplicada a quem com ela desonra o uniforme de combatente.

Se tais são as obrigações que impõe este sacramento, deverá exigir-se do confirmando sólida instrução em matéria de fé e práticas cristãs?
Sim, Senhor. Na verdade, deve possuir o suficiente, não só para ordenar e dirigir a sua vida privada, mas também para defender o seu credo e a sua moral contra os assaltos de quem as combate (LXX, II, 4 ad 3).

XXX

QUAL DOS SACRAMENTOS REQUER  INSTRUÇÃO RELIGIOSA MAIS SÓLIDA, O DA CONFIRMAÇÃO OU O DA EUCARISTIA?

Há outro sacramento para cuja recepção se necessita de um conhecimento bastante completo dos mistérios da fé?

Sim, Senhor; o da Eucaristia e, se bem que o ensino religioso começa antes de receber o batismo quando os catecúmenos são adultos e como nos países cristãos se administra comumente o batismo em muito tenra idade, não surge a obrigação de instruí-los até à época da Confirmação ou a de receber a Eucaristia, suposto o sacramento da Penitência.

Qual dos dois requer maior instrução, o da Confirmação ou o da Eucaristia?
Ambos requerem a mesma instrução sólida, se o confirmando está na idade em que já obriga o preceito de receber a Eucaristia. Porém, como pode suceder, e de fato ocorre na prática, que muitos recebem antes da Confirmação a Eucaristia, podemos assentar como regra geral que o segundo não requer preparação catequética tão completa como o primeiro, porque o confirmado deve, como temos dito, possuir um cabedal de conhecimentos religiosos suficientes para poder resistir às argúcias dos seus inimigos. Não se esqueça, apesar disso que, depois de receber um ou ambos os sacramentos, está obrigado o cristão a continuar estudando com ardor e diligência os mistérios da nossa santa religião.

XXXI

DO SACRAMENTO DA EUCARISTIA

Que entendeis por sacramento da Eucaristia?
Um sacramento admirável e misterioso em que, sob as aparências ou espécies de pão e vinho, se dá em alimento o corpo e em bebida o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, ali realmente presente em forma sacramental, no mesmo estado de vítima imolada como esteve no Calvário (LXXIII - LXXXIII).

É necessário este sacramento para nos salvarmos?
Sim, Senhor; porque simboliza e leva ao extremo a unidade da Igreja, corpo místico de Jesus Cristo, à qual forçosamente hão de pertencer quantos hajam de entrar reino uno dos céus. Porém, tenha-se presente que para conseguir este efeito, basta que o homem tenha pessoal e real intenção de receber o sacramento ou, pelo menos, a tenha habitual, como a têm os meninos, comunicada pela Igreja o batismo (LXXIII, 3).

Que nomes tem a Eucaristia?
Considerada como recordação da paixão do nosso Divino Redentor, chama-se Sacrifício, visto como  aquela imolação foi o sacrifício por excelência; enquanto realiza a unidade de seu corpo místico, que é a Igreja, tem o nome de Comunhão; o de Viático, como prenda da glória futura e o de Eucaristia ou Boa Graça, porque contém realmente Jesus Cristo, fonte e origem de todas as graças (LXXIII, 4).

Quando foi instituído?
Na tarde da Quinta-Feira Santa, véspera do dia da Paixão, para consolar os homens e compensar a ausência de Cristo, prestes a voltar para os céus, cumprida na terra a sua missão; para fazer compreender o enlace íntimo deste sacramento com a paixão do Redentor, única origem da graça, e para promover o seu culto, escolhendo para instituí-lo aquelas memoráveis e soleníssimas circunstâncias (LXXIII, 5).

Teve, na antiga lei, figuras que de uma maneira especialíssima o simbolizavam?
Sim, Senhor; como sacramento ou sinal externo, foi prefigurado no pão e vinho do sacrifício de Melquisedeque; enquanto contém realmente o corpo de Cristo, pelos sacrifícios do Antigo Testamento e, em especial, pelo mais solene de todos, a expiação; como manjar espiritual, pelo maná, e em todos os conceitos, pelo cordeiro pascal que, depois de imolado, se comia com pão ázimo e cujo sangue protegia contra as iras do anjo exterminador (LXXIII, 6).

XXXII

MATÉRIA E FORMA DO SACRAMENTO DA EUCARISTIA: TRANSUBSTANCIAÇÃO, PRESENÇA REAL E ACIDENTES EUCARÍSTICOS

Qual é a matéria do Sacramento da Eucaristia?
Pão de trigo e vinho de uva (LXXIV, 1, 2).

Que sucede na matéria no momento da consagração?
A substância do pão deixa de ser pão e a do vinho deixa de ser vinho (LXXIV, 2).

Em que se convertem as substâncias do pão e do vinho?
A do pão, no Corpo de Jesus Cristo e a do vinho, no seu Sangue (LXXV, 3, 4).

Que nome tem esta conversão ou troca?
O nome de Transubstanciação (LXXV, 4).

Que expressa a palavra transubstanciação?
A conversão de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo e de toda a substância do vinho na substância do seu Sangue.

Quem é capaz de efetuar tão estupenda transformação?
Só a Onipotência Divina (Ibid).

Converte-se no Corpo e Sangue de Cristo somente a substância ou tudo o que existe no pão e no vinho?
Somente a substância, permanecendo sem alteração os acidentes (LXXV, 2 ad3).

Que entendeis quando afirmais que permanecem os acidentes?
Que continuam, no mesmo estado, a extensão ou quantidade, a figura, a cor, o gosto, a resistência e as mais propriedades ou entidades sensíveis, por meio das quais temos o conhecimento do pão e vinho, antes da consagração.

Por que não se transformam também os acidentes?
Porque são necessários para se manter e assegurar a presença sacramental de Jesus Cristo (Summa contra gentes, livro IV cap. LXIII).

Que aconteceria se os acidentes se transformassem em Corpo e Sangue de Cristo?
Que o que foi pão e vinho desapareceria absoluta e totalmente (Ibid).

Que se segue, pelo contrário, com a permanência das espécies sacramentais?
Que, ligados a elas, mediante as suas respectivas substâncias, estão o Corpo e Sangue de Cristo do mesmo modo como o estavam as substâncias do pão e vinho, de sorte que, assim como antes da transubstanciação, ao tocar os acidentes, tínhamos nas mãos as substâncias do pão e do vinho temos, depois da transubstanciação, o Corpo e o Sangue de Cristo (Ibid).

O que há sob as espécies depois da consagração é identicamente o mesmo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Sim, Senhor (LXXV, 1).

Acha-se Jesus Cristo inteiro e completo no sacramento da Eucaristia?
Sim, Senhor; porque, se bem que sob as espécies do pão, em virtude das palavras sacramentais, só está o Corpo e sob as do vinho, o Sangue, por concomitância e já porque é impossível separar na sua humanidade os dois elementos, como foram separados na cruz, onde quer que esteja o corpo, ali está o sangue e a alma e onde se ache o sangue, o acompanham a alma e o corpo. Quanto à divindade não há dificuldades, pois nunca, nem mesmo durante a morte do Redentor, se separou a pessoa divina de cada um dos componentes de sua humanidade (LXXVI, 1, 3).

Está Jesus Cristo inteiro em cada parte das espécies sacramentais?
Enquanto as espécies permanecem indivisas, está completo em todo o Sacramento e quando se fracionam, está tantas vezes inteiro e completo, quantas partes se hajam feito (LXXVI, 3).

É possível ver, tocar ou de algum modo chegar ao Corpo de Jesus Cristo no estado sacramental?
Não, Senhor; porque aquelas espécies acessórias aos nossos sentidos não são acidentes do Corpo de Cristo, único meio de chegar à sua substância (LXXV, 4-8).

Que se deduz desta verdade?
Que as espécies sacramentais o encerram como prisioneiro, e por sua vez o protegem, de sorte que, quando algum desalmado intente enfurecer-se contra o Corpo de Cristo, só consegue profanar o Sacramento.

São inalteráveis as espécies sacramentais depois da consagração?
Não, Senhor; decompõem-se e transformam-se depois de poucos momentos de ingeridas como alimento, e também se corrompem abandonadas por muito tempo à ação dos agentes atmosféricos (LXXVII, 4).

Que sucede quando as espécies deixam de ser os acidentes do pão e do vinho consagrados?
Que no mesmo instante cessa a presença eucarística de Jesus Cristo, pelo fato de desaparecer o motivo que o retinha enlaçado aos acidentes e, mediante os acidentes, ao lugar por eles ocupado (LXXVI, 6 ad 3).

Logo, a presença eucarística de Jesus Cristo num lugar depende exclusivamente da consagração e da permanência dos mesmos acidentes do pão e do vinho consagrados?
Sim, Senhor; visto que a razão de tal presença não pode advir das mudanças operadas no Corpo impassível de Cristo, mas no pão e no vinho (Ibid).

Como se faz a consagração?
Pronunciando, com as devidas condições, a forma da Consagração (LXXVIII).

Qual é esta forma?
Para consagrar o pão: 'Isto é o meu Corpo'. Para consagrar o vinho: 'Este é o Cálice do meu Sangue, o Sangue do novo e eterno testamento, que por vós e por muitos será derramado em remissão dos pecados'.

referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

'O TEU ROSTO, SENHOR, EU PROCURO!'

E agora, ó homem apequenado, foge um momento às tuas ocupações, esconde-te um pouco dos teus pensamentos tumultuosos. Atira agora fora os teus pesados cuidados e deixa para depois os teus laboriosos trabalhos. Reserva um pouco de tempo para Deus e repousa nEle por instantes. 'Entra na cela' da tua alma, expulsa tudo, exceto Deus e o que te ajuda a procurá-lo; 'fechada a porta', procura-o! Diz agora, 'ó meu coração'; diz agora a Deus: 'busco o teu rosto, o Teu rosto, Senhor, eu procuro'.

E agora, pois, tu Senhor meu Deus, ensina o meu coração onde e como te procurar, onde e como te encontrar. Ó Senhor, se tu não estás aqui, onde te buscarei, ausente? E se tu estás em toda a parte, porque não te vejo eu presente? Mas certamente tu habitas a luz inacessível. E onde está a tal luz inacessível? Ou de que modo acederei a essa luz inacessível? Ou quem me conduzirá e introduzirá nela, para que nela te veja? Porque sinais, enfim, porque forma, te buscarei? Nunca te vi, Senhor meu Deus, não conheço a tua face. Que fará, Senhor altíssimo, que fará este teu longínquo exilado? Que fará o teu servidor, ansioso do teu amor e atirado para longe da tua face? 

Que deseja muito ver-te, mas a tua face está demasiadamente afastada dele. Deseja muito alcançar-te, mas inacessível é a tua habitação. Deseja vivamente encontrar-te, mas não sabe o teu lugar. Dispõe-se a procurar-te, mas ignora o teu rosto. Senhor, tu és o meu Deus, tu és o meu Senhor e nunca te vi! Tu me criaste e recriaste, e todos os meus bens me dispensaste e ainda não te conheço! Numa palavra: fui feito para te ver e ainda não fiz aquilo para que fui feito. Ó mísera sorte a do homem desde que perdeu aquilo para que foi feito! Ó dura queda e funesta aquela! Ai! o que perdeu e o que encontrou? O que lhe fugiu e o que lhe restou? 

Perdeu a felicidade para a qual foi feito e encontrou a miséria para o que não foi feito. Fugiu-lhe aquilo sem o qual é de todo infeliz e ficou aquilo que, por si, é apenas desprezível. Então, 'o homem que comia o pão dos anjos' agora tem fome; agora, come 'o pão das dores' que então desconhecia. Ai! luto comum dos homens, pranto universal dos filhos de Adão! Ele arrotava de saciedade e nós suspiramos de fome. Ele vivia na abundância e nós mendigamos. Ele vivia em plena felicidade e, miseravelmente, tudo abandonou; nós, infelizmente, carecemos e, miseravelmente, desejamos e, ai, quão vazios permanecemos. 

Por que não guardou, para nós, quando o podia facilmente, aquilo de que nos encontramos tão gravemente carentes? Por que nos ocultou assim a luz e nos lançou nas trevas? Sim, por que nos furtou a vida e infligiu a morte? Acabrunhados de penas, de onde fomos expulsos e para onde fomos atirados! De onde fomos precipitados e onde estamos atracados! Da terra natal para o exílio, da visão de Deus para a nossa cegueira. Da fecundidade da imortalidade para a amargura e o horror da morte. Ó desgraçada mudança! De tão grande bem para tão grande mal! Grave dano, grave dor, grave tudo! 

Infeliz de mim, um entre os outros exilados filhos de Eva afastados de Deus, o que empreendi e o que consegui acabar? Para onde tendia e onde cheguei? A que aspirava e em que situação suspiro? 'Procurei os bens e eis a perturbação!'. Tendia para Deus e caí sobre mim mesmo. Procurava o repouso no meu retiro e encontrei a tribulação e a dor no meu íntimo. Queria rir com a alegria da minha mente e sou forçado a rugir pelo gemido do meu coração. Esperava a alegria e eis que os suspiros se tornam mais densos. E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, tu nos esquecerás? Até quando afastarás de nós a tua face? Quando nos olharás e nos ouvirás? Quando iluminarás os nossos olhos e nos mostrarás a tua face? Quando te oferecerás a nós? 

Olha-nos, Senhor, escuta-nos, ilumina-nos, mostra-te tu próprio a nós! Oferece-te a nós outra vez para que bem estejamos, nós que, sem ti, tão mal estamos. Tem piedade dos nossos trabalhos e dos nossos esforços para te alcançar, nós que nada somos capazes sem ti. Ajuda-nos. Que eu não desespere suspirando, suplico-te, Senhor, mas que respire esperando. O meu coração tornou-se amargo pela sua desolação. Suplico-te, Senhor: adoça-o com a tua consolação. Na minha fome comecei a procurar-te. Suplico-te, Senhor: que eu não acabe em jejum de ti. Faminto, aproximei-me; que eu não me vá embora insaciado. 

Pobre, vim ao rico; miserável, ao misericordioso: que eu não volte sem nada e desprezado. E se suspiro antes de comer, concede ao menos que eu coma depois dos suspiros. Ó Senhor, curvado, não posso senão olhar para baixo; levanta-me para que eu possa tender para o alto. As minhas iniquidades subiram mais alto que a minha cabeça, envolvem-me e sobrecarregam-me como um pesado fardo. Liberta-me, descarrega-me, para que o sorvedouro delas não aperte a sua boca sobre mim. Que me seja permitido levantar os olhos para a tua luz, pelo menos de longe, pelo menos das profundezas. 

Ensina-me a procurar-te e mostra-te àquele que te procura, porque não te posso procurar se tu não me ensinas, nem encontrar-te se não te mostras. Que te busque desejando e te deseje buscando. Que te encontre amando e te ame encontrando. Confesso, Senhor, e te dou graças porque criastes em mim esta tua imagem para que, de ti lembrada, pense em ti e te ame. Mas está tão corrompida pela ação dos vícios, tão ofuscada pelo fumo dos pecados, que não pode fazer aquilo para o que foi feita se tu a não renovas e reformas. Não me atrevo, Senhor, a penetrar na tua altura , porque não lhe comparo, de modo nenhum, a minha inteligência. Mas desejo reconhecer um pouco a tua Verdade, que o meu coração crê e ama. Na verdade, não procuro antes compreender para crer, mas creio para compreender. Pois também creio nisto: se não acreditar, não compreenderei.

(Excertos da obra Proslogion seu Alloquium de Dei existentia, de Santo Anselmo)