quinta-feira, 10 de agosto de 2023

O NOSSO MAIOR INIMIGO

O que é mais importante do que saber que este nosso corpo é o maior opositor e inimigo que temos? Inimigo mortal, o maior traidor que jamais se viu, que anda buscando a morte, e morte eterna, a quem lhe dá de comer e tudo de que necessita; que por ter ele um pouco de prazer, não teme em nada ultrajar a Deus e jogar alma e corpo no inferno, para sempre... Quantas vezes vos tem posto no inferno esse vosso inimigo? Quantas vezes vos tem feito ofender a Infinita Bondade? De quantos bens espirituais vos há privado? Quantas vezes põe vossa salvação em perigo a cada hora? Pois quem não se indignará e tomará uma coragem santa contra quem tantos males lhe faz, de tantos bens lhe priva e em tantos perigos lhe põe a cada momento?

Se detestamos ao demônio e lhe temos por capital inimigo pela guerra e dano que que nos faz, maior inimigo é nossa carne, porque ela nos faz mais cruel e mais contínua guerra, e muito pouco poderiam os demônios, se não tivessem por eles esta carne e sensualidade para fazer-nos guerra com ela. Isto fazia aos santos ter este ódio e aborrecimento contra si mesmos; e daí nascia neles um espírito grande de mortificação e penitência para vingar-se deste seu inimigo, e trazê-lo sujeito e rendido, e andar sempre com temor de dar algum contento e conforto ao seu corpo, parecendo-lhes que isso era ajudar e dar armas a seu inimigo, para que obrasse brios e forças para lhes fazer mal.

Diz Santo Agostinho: 'Não ajudemos nem demos forças a nossa carne, para que não faça guerra contra o espírito' (De salutaribus monitis, c. 35), mas procuremos castigá-la e mortificá-la para que não se rebele, porque, como diz o Sábio (Pv 29, 21): 'aquele que delicadamente cria o seu servo desde sua primeira idade, depois o achará rebelde e contumaz'.

Andavam aqueles santos monges antigos com tão grande cuidado neste exercício, procurando mortificar e diminuir as forças a este inimigo, que quando outros meios não bastavam, realizavam trabalhos corporais muito excessivos para domar e quebrantar seu corpo, como conta Paládio de um monge que era muito fatigado de pensamentos de vaidade e soberba, e não podendo afastá-los de si, resolveu tomar uma pá e passar um grande montão de terra de uma parte a outra. Perguntavam-lhe: 'Que fazeis?' Ao que respondia: 'Atormento e fatigo a quem me fatiga e atormenta; vingo-me de meu inimigo'. O mesmo se diz de São Macário em sua Vida; e de São Doroteu conta-se que fazia grande penitência e afligia muito ao seu corpo e, uma vez, vendo-lhe outro tão torturado, disse-lhe: 'Por que atormentas tanto o teu corpo?' Respondeu: 'Porque mata ele a mim'.

O glorioso São Bernardo, incendido em um ódio e coragem santa contra seu corpo, como contra seu inimigo capital, dizia: 'Levante-se Deus em nossa ajuda, e seja destruído este inimigo, menosprezador de Deus, amador do mundo e de si mesmo, servo e escravo do demônio. Por certo, se tendes bom sentir, que digais comigo: Bem merece a morte! morra o traidor! coloquem-no no madeiro, crucifiquem-no!'. Pois com estes brios e zelos nós temos que empenhar, mortificando nossa carne e sujeitando-a para que não se rebele, e arraste após si o espírito e a razão e tanto mais que, vencido este inimigo, ficará também o demônio vencido. Assim como os demônios nos fazem guerra e nos procuram vencer por meio de nossa carne, assim nós havemos de fazer guerra aos demônios e vencê-los, mortificando-a e contradizendo-a.

Nota isto muito bem Santo Agostinho quando ratificando as palavras do Apóstolo: 'Não luto eu contra o demônio como quem dá golpes no ar e briga com fantasmas, porque isso é inútil, senão que castigo e mortifico minha carne, e procuro trazê-la sujeita e rendida (I Cor 9, 20), complementa: 'castigai vossa carne, mortificai as vossas paixões e más inclinações e, dessa maneira, vencereis os demônios, porque assim nos ensina o Apóstolo a pelejar contra eles'.

Como um capitão em combate põe na masmorra e deixa preso em ferros o mouro que tem cativo, para que não se levante contra ele e ajude os seus inimigos, façamos nós o mesmo, sujeitando e mortificando nossa carne, para que não se junte ao bando dos nossos inimigos.

(Excertos da obra 'Exercício de Perfeição e Virtudes Cristãs', do Pe. Alonso Rodríguez)