quarta-feira, 23 de março de 2016

A CRUZ DE CRISTO - MEDIDA DO MUNDO (II)


Assim como a doutrina da Cruz não se manifesta ostensivamente à superfície do mundo, mas é a verdadeira interpretação desse mundo, assim, quando é recebida por um coração fiel, permanece nele como um princípio vital, mas profundo e escondido. Os cristãos, nas palavras da Escritura, vivem da fé no Filho de Deus, que os amou e se entregou por eles (Gal 2, 20), mas não o alardeiam diante de todos, antes deixam os outros descobri-lo por si mesmos. O próprio Cristo ordenou aos seus discípulos que, quando jejuassem, ungissem a cabeça e lavassem o rosto (Mt 6, 17).

Por isso, os cristãos têm o dever de não se vangloriar, antes devem contentar-se com parecer exteriormente diferentes do que realmente são no seu íntimo. Devem mostrar um semblante alegre e controlar e regular os seus sentimentos, para que esses sentimentos não se desgastem na superfície, mas possam retirar-se para o fundo do coração, e ali viver. Por isso, Jesus Cristo, e este crucificado, é – como nos diz o Apóstolo – uma sabedoria escondida (I Cor 2, 2.7); escondida no mundo, que à primeira vista parece falar de uma doutrina enormemente diferente, e escondida na alma fiel, que – para as pessoas que não lhe estão próximas, ou para os conhecidos ocasionais – parece levar apenas uma vida ordinária, quando na realidade está secretamente em comunhão com Aquele que foi manifestado na carne (I Tim 3, 16), crucificado pela fraqueza (II Cor 13, 4), justificado no Espírito, visto pelos anjos e acolhido na glória (I Tim 3, 16).

Se é assim, a grande e tremenda doutrina da Cruz de Cristo, que agora celebramos, pode ser considerada apropriadamente, em linguagem figurada, o coração da religião. O coração costuma ser considerado a sede da vida; é o princípio do movimento, do calor e da atividade; dele parte o sangue até as extremidades do corpo e a ele retorna. Sustenta as forças e faculdades do homem; permite que o cérebro pense; e se for ferido, o homem morre. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor de Cristo é o princípio vital do qual vive o cristão, e sem ele não existe cristianismo.

Sem ela, não se pode sustentar de maneira proveitosa nenhuma outra doutrina; a Divindade de Cristo, ou a sua Humanidade, ou a Santíssima Trindade, ou o Juízo que há de vir, ou a Ressurreição dos mortos seriam crenças falsas, não a fé cristã, se não se aceitasse ao mesmo tempo a doutrina do sacrifício de Cristo. Por outro lado, aceitá-la pressupõe que se aceitem também as outras altas verdades do Evangelho: ela pressupõe a fé na verdadeira Divindade de Cristo, na sua verdadeira Encarnação e no estado pecaminoso do ser humano; e prepara o caminho para crer no sagrado Banquete Eucarístico, no qual Aquele que outrora foi crucificado é entregue sempre de novo às nossas almas e aos nossos corpos, real e verdadeiramente, no seu Corpo e no seu Sangue.

Mais ainda: o coração está escondido à vista e segura e cuidadosamente guardado; não é como o olho que, inserido na fronte, tudo controla e é visto por todos. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor não se destina a ser objeto de conversação, mas deve ser vivida; não se destina a ser enunciada irreverentemente, mas deve ser adorada em segredo; não se destina a ser usada como um instrumento necessário para a conversão dos maus ou para a satisfação dos raciocinadores deste mundo, mas deve ser apresentada aos dóceis e obedientes, às criancinhas que o mundo não corrompeu, aos aflitos que precisam de consolo, aos sinceros e honestos que buscam uma regra de vida, aos inocentes que precisam de advertência, e aos santos que merecem conhecê-la.

Farei mais uma observação para depois concluir. Não se deve presumir que o Evangelho seja uma religião triste porque a doutrina da Cruz nos entristece. O salmista diz: 'Os que semeiam entre lágrimas hão de colher com alegria' (Sl 125, 6); e Nosso Senhor também: 'Os que choram serão consolados' (Mt 5, 5). Que ninguém se afaste de nós com a impressão de que o Evangelho nos leva a ter uma visão sombria do mundo e da vida. Não há dúvida de que ele nos impede de alimentar uma visão superficial e de encontrar vãs alegrias transitórias naquilo que vemos; mas, se nos proíbe a alegria imediata, é apenas para nos dar uma alegria verdadeira e plena mais tarde.

O Evangelho proíbe-nos apenas começar pelo prazer. Diz-nos: 'se começares pelo prazer, terminarás na dor'. Convida-nos a começar pela Cruz de Cristo, e nessa Cruz encontraremos primeiro a tristeza, mas em breve a paz e o consolo que nascerão dessa tristeza. A Cruz há de conduzir-nos à contrição, ao arrependimento, à humilhação, à oração, ao jejum; haveremos de entristecer-nos pelos nossos pecados, haveremos de entristecer-nos com os sofrimentos de Cristo; mas toda essa tristeza resultará, ou melhor, será suportada com uma felicidade imensamente maior do que o prazer que o mundo tem a nos dar.

É claro que as mentes superficiais e mundanas não creem nisto, antes riem destas ideias, porque nunca saborearam a sua realidade e consideram tudo mera questão de palavras, palavras que as pessoas religiosas considerariam decoroso e conveniente usar, em que tentariam crer, nas quais pretenderiam levar outros a acreditar, mas que ninguém realmente sentiria. Isto é o que pensam; mas o nosso Salvador disse aos seus discípulos: 'Assim também vós, sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria' (Jo 16, 22) e também: 'Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como a dá o mundo' (Jo 14, 27). 

E ainda São Paulo: 'O homem carnal não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucura. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar; coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam' (I Cor 2, 14.9). Assim, a Cruz de Cristo, ao falar-nos tanto da nossa redenção como dos sofrimentos do Senhor, efetivamente nos fere – mas fere para curar.

Por isso mesmo, tudo o que é brilhante e belo, mesmo que se encontre apenas à superfície deste mundo, e ainda que não tenha substância e não possa ser apreciado convenientemente por si mesmo, é, no entanto, figura e promessa daquela verdadeira alegria que nasce da Redenção. É uma promessa antecipada do que há de ser: é uma sombra que gera esperança porque a sua substância há de vir, mas que não deve ser confundida precipitadamente com a própria substância. Este é o modo habitual como Deus lida conosco: envia misericordiosamente a sombra antes da substância, para que possamos consolar-nos com aquilo que há de ser antes mesmo que venha.

Assim, antes da sua Paixão, Nosso Senhor entrou triunfalmente em Jerusalém enquanto as multidões gritavam 'Hosana' e atapetavam o seu caminho com ramos de palmeira e com os seus mantos. Mas tudo não passava de uma encenação vã e oca, na qual o Senhor não podia encontrar alegria. Era uma sombra que não permaneceu, mas se esvaiu. Não podia ser mais que uma sombra, pois Cristo ainda não tinha sofrido a Paixão pela qual havia de forjar o seu verdadeiro triunfo. Não podia entrar na sua glória sem antes ter sofrido. Não podia desfrutar dessa aparência de glória sabendo que era irreal. Mas aquele primeiro triunfo vislumbrado era o anúncio e presságio da verdadeira vitória que havia de vir quando tivesse vencido o aguilhão da morte. Esse triunfo figurado é o que comemoramos no Domingo de Ramos, para alentar-nos no meio da tristeza da Semana Santa e para recordarmos a alegria verdadeira que virá com o Dia da Páscoa.

O mesmo se aplica a este mundo com todas as suas delícias, que são também desencantos. Não confiemos nele; não lhe entreguemos os nossos corações; não comecemos por ele. Comecemos pela fé; comecemos por Cristo; comecemos pela Cruz e pela humilhação a que ela conduz. Deixemo-nos atrair para Aquele que foi levantado, para que Ele possa dar-nos generosamente todas as coisas, juntamente consigo mesmo. Busquemos primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e então todas as coisas deste mundo nos serão acrescentadas (Mt 6, 33).

Só aqueles que começam pelo mundo que não se vê são capazes de desfrutar verdadeiramente deste mundo que se vê. Só quem primeiro se absteve dele pode alegrar-se nele. Só quem primeiro jejuou pode verdadeiramente banquetear-se. Só quem aprendeu a não abusar do mundo é capaz de usá-lo. E só quem o aceita como uma sombra da realidade vindoura e, por amor ao vindouro se desprende do presente, é que há de vir a herdá-lo.

(Sermão do Sexto Domingo da Quaresma - Parte II, pelo Cardeal John Henry Newman)