Nossos pais, Adão e Eva, desobedeceram o preceito de Deus e se rebelaram enganados por Satanás, que lhes disse: 'Tomai e comei e sereis como deuses'. O homem, quando peca, se rebela contra Deus e diz com as suas obras: Non serviam - Não servirei. Despreza a Deus, que é o seu Senhor e Pai. Deste desprezo se queixa muito sentidamente este bom Pai, dizendo por um profeta: 'criei filhos e os fiz crescer e eles me desprezaram' (Is 1,92).
... O corpo, mais ou menos cedo, morrerá, mas depois ressuscitará por Cristo, que ressuscitará tudo. A alma daquele que peca mortalmente sofre duas mortes: a primeira é a privação da graça e a segunda a privação da glória do céu, a condenação da pena e sepultura eterna do inferno; da primeira morte se pode ressuscitar pelos méritos de Jesus Cristo, mas da segunda não, porque in inferno nulla est redemptio - não existe nenhuma redenção no inferno.
Como Deus é tão bom, não quer a morte do pecador, mas que ressuscite da primeira morte; para isto e para que não caia na segunda morte, aí está o sacrifício. Quem oferece sacrifício coloca os seus pecados sobre a vítima e esta deve morrer ou ficar destruída por eles e depois o oferente deve comer da vítima para participar dos seus méritos: eis aqui o porquê da missa e comunhão. E o concílio de Trento deseja que em todas as missas os fiéis que a assistem nelas também comunguem.
O pecado é de uma malícia infinita pela razão do objeto ofendido, que é Deus e, por isso, só um Deus feito homem podia dar uma digna satisfação à divina justiça. Esta digna satisfação a deu Jesus Cristo uma vez no Calvário, morrendo em uma cruz por todos; mas depois é preciso que se faça em particular esta aplicação, como se faz na santa missa, segundo mandato de Jesus Cristo, dizendo: Hoc facite in meam commemorationem - fazei isto em minha memória. E como as pessoas irão se sucedendo e continuando até a consumação dos séculos, assim também continuará este sacrifício até a consumação dos séculos, segundo a promessa do mesmo Jesus Cristo com estas palavras: 'Eis que estarei convosco até a consumação dos séculos (Mt 28,20).
Por meio do que se disse até aqui, depreende-se quais as razões pelas quais se deve continuar este santo sacrifício da missa até o fim do mundo e a obrigação que têm os cristãos de assistir a ele a fim de participar dos seus méritos. Mas como de algum tempo para cá vejo que alguns cristãos facilmente se dispensam de assistir a missa, não obstante o preceito determinante da Igreja, nossa Mãe, me vejo na obrigação de explicar-lhe a razão; e o motivo é que o vírus protestante infiltrou no coração destas pessoas.
... Realmente não se é de estranhar isto, porque o protestantismo não foi nem é atualmente outra coisa que uma violenta explosão de todas as paixões rancorosas contra a Igreja católica, apostólica, romana e como os mistérios do amor não podem associar-se com os sistemas inventados pelo ódio, do mesmo modo o homem carnal não pode perceber nem entender as coisas espirituais; eis aqui por que razão os protestantes não têm missa e nem os filósofos carnais têm apreço por ela e, por fim, alguns cristãos já não assistem a santa missa porque são cristãos apenas carnais e contagiados pelos protestantes.
... Assistamos nós o santo sacrifício da missa, não só nos domingos e festas e dias de preceito, por ser um dever, mas também nos demais dias por devoção. Devemos oferecer este santo sacrifício a Deus não só para dar-lhe satisfação de nossas faltas, culpas e pecados, mas também em reconhecimento do seu supremo domínio sobre nós e em testemunho dos benefícios e graças que Ele nos dispensa continuamente, pois tudo o que temos dele recebemos; e em agradecimento por tantas graças recebidas, devemos assistir este sacrifício que o mesmo Jesus Cristo oferece ao eterno Pai por nós. Ele é a principal oferenda e a vítima oferecida. Jesus Cristo é o advogado que temos no céu com Deus Pai, que intercede por nós, como diz São João. E, além disso, o temos sobre o altar, sempre intercedendo por nós, como assegura São Paulo.
Certamente que não basta, nem é suficiente, cumprirmos, como bons cristãos, o mandato da assistência à santa missa e da comunhão nela para fazer-nos mais participantes dos méritos de Jesus Cristo; é, além disso, indispensável que sejamos sacerdotes ou sacrificadores, não só na missa, juntamente com Jesus Cristo, sacrificador invisível e o sacerdote, sacrificador visível, devemos oferecer-nos também a nós mesmos como vítimas para a glória de Deus e em satisfação das nossas culpas e pecados. Os maus não são contados por Deus como sacerdotes, nem seu sacrifício pode ser aceito e agradável, por não ser sacrifício de justiça, que é o único que pode ser aceito.
Este sacrifício que fazem de si os bons é muito agradável aos olhos de Deus e muito satisfatório por suas faltas e as da nação inteira, como se lê na sagrada Escritura. Disse um dos mártires macabeus: 'Eu entrego meu corpo e minha vida à morte. Sobre mim e meus irmãos se acalmará a justa indignação do Onipotente, que está irritado contra nossa nação' (2Mc 7,37‑38). E, com efeito, assim foi; por meio do sacrifício destes mártires, a ira se mudou em misericórdia: Ira enim Domini in misericordiam conversa est (2Mc 8,5).
Sobre aquelas palavras do Apóstolo aos colossenses: 'Eu que no presente me alegro por saber que padeço por vós e por saber que estou sofrendo em minha carne o que falta na paixão de Cristo em seus membros, sofrendo trabalhos em prol do seu corpo místico, que é a Igreja' (Col 1,24), dizem os expositores que os méritos de Jesus Cristo são de infinito valor em si mesmos e suficientes para redimir milhares de mundos; mas o eterno Pai não os aceitou senão com a condição de que os homens façam a sua parte nesta paixão para poder gozar do seu fruto; isto é, devemos cooperar ouvindo a santa missa, recebendo a sagrada comunhão, fazendo oração, sofrendo com mansidão e paciência as calúnias, penas e trabalhos, mortificando as paixões e sentidos e oferecer tudo a Deus.
Mas singularmente nas calamidades públicas, nas que padecem os inocentes o mesmo que os culpados, e talvez mais, se cumpre assim a condição e vontade do Pai celestial. Os culpados padecem como réus e, se depois deste castigo não se convertem, é para eles motivo de maior ruína e condenação. Mas os bons, sofrendo com paciência e resignação, se purificam ainda mais de suas imperfeições e crescem na virtude, de modo que se fazem mais agradáveis aos olhos de Deus e, com as suas penas bem sofridas, dão cumprimento ao que por decreto divino faltava à paixão de Jesus Cristo. Assim é como se acalma a divina justiça e se alcançam as divinas misericórdias. Em prova desta verdade basta ler as sagradas Escrituras e a história eclesiástica. Quantas vezes nações inteiras foram perdoadas pela penitência, paciência e oração dos bons! Quantos bens, graças e conversões não alcançaram as penas e o sangue dos mártires!
Na verdade, não seria contra a razão dizer que o inocente, o santo por excelência, padeça e morra para salvar os pecadores e que a multidão dos pecadores não sofra nada? Desta multidão de pecadores, uns são maus, perdidos e obstinados e outros são pecadores justificados ou que devem ser purificados. Padecer dos males não serve para acalmar e satisfazer a divina justiça, antes a provocam mais com as maldições e blasfêmias que os pecadores vomitam e com os pecados de toda sorte que cometem; mas os pecadores justificados, pela graça estão unidos a Deus, seus sofrimentos e méritos estão unidos com os de Jesus Cristo. Por isso, todos os bons são chamados às penas e sofrimentos, como diz São Paulo: 'que todos aqueles que querem viver piamente em Cristo Jesus padecerão perseguições, mais ou menos segundo seus progressos na perfeição' (2Tim 3,12). Isto diz Cornélio à Lápide, quando fala das penas de Maria Santíssima ao pé da cruz que, quanto mais santa é uma alma e mais perto de Cristo está, tanto mais Jesus Cristo lhe oferece o cálice da sua paixão.
Mas devemos nos animar muito por pensar que, se com Cristo padecemos sobre a terra, com Ele mesmo reinaremos no céu; e devem ser para nós de grande consolo aquelas palavras que o Arcanjo São Rafael disse a Tobias: 'Porque és agradável aos olhos de Deus, foi necessário que a tentação te provasse' (Tb 12,13). Alegremo-nos, pois, em meio às penas, ao ver que somos dignos de sofrer algo por amor divino, por nossos defeitos, para juntar méritos para o céu e para satisfazer pelas faltas, culpas e pecados dos nossos irmãos e poder assim alcançar para eles a misericórdia, a graça e a glória. Este é o sacrifício que de nós mesmos devemos oferecer ao eterno Pai, juntamente com os méritos de Jesus Cristo, de Maria Santíssima, dos santos do céu e dos justos da terra.
(Santo Antônio Maria Claret)