segunda-feira, 30 de setembro de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XI)

 

56. Há um tipo de orgulho que é ainda mais abominável aos olhos de Deus do que qualquer outro, e é aquele - como diz a Sagrada Escritura - que pertence mais especialmente aos pobres. 'O pobre que se ensoberbece, minha alma odeia' [Eclo 25,4]. Se o orgulho de quem é rico em méritos, talentos e virtudes - tesouros mais preciosos para a alma - é desagradável a Deus, mais desagradável ainda será para Ele em quem não tem esses mesmos motivos de orgulho, mas que, pelo contrário, teria todas as razões para ser humilde. E este, receio, é o orgulho de que sou culpado.

Sou pobre de alma, sem virtude nem mérito, cheio de iniquidade e malícia, e, no entanto, me estimo e amo tanto a minha própria estima que fico perturbado se os outros não me estimam também. Sou verdadeiramente uma criatura pobre, orgulhosa e miserável; e quanto maior é a minha pobreza, mais o meu orgulho é detestável aos olhos de Deus. Tudo isto resulta de não conhecer a mim próprio. Concedei, ó meu Deus, que eu possa dizer como o profeta: 'Eu sou o homem que vê a minha pobreza' [Lm 3,1]. Fazei-me conhecer, Senhor, a minha própria miséria, que de mim mesmo nada sou, nada sei, nada possuo senão os meus pecados, e nada mereço senão o inferno. Recebi de Vós muitas graças, luzes e inspirações, e muita ajuda, e no entanto com que ingratidão respondi à vossa infinita bondade! Quem mais pecador, quem mais ingrato e quem mais perverso do que eu? Quanto mais fizestes por mim, tanto mais humilde devo ser, pois terei de te prestar contas rigorosas de todos os vossos benefícios: 'E a quem muito for dado, muito será pedido' [Lc 12,48]. E, no entanto, quanto maior é a vossa bondade, maior tem sido o meu orgulho. Coro de vergonha, e é o conhecimento do meu orgulho que me obriga agora a ser humilde.

57. É mais fácil ser humilde na adversidade do que na prosperidade, e é impossível dizer o quanto a felicidade temporal influencia o homem a ser orgulhoso. 'Dos sofrimentos dos mortais não participam' [Sl 72,5], assim o Profeta-Rei fala dos pecadores, e acrescenta: 'Por isso a soberba os prendeu' [Sl 72,6]. A adversidade contrabalança o nosso amor-próprio e impede o seu crescimento, pois, por um lado, dá-nos a conhecer as nossas fragilidades, tanto mais quando é inesperada e dolorosa, e, por outro lado, obriga-nos a voltar os nossos pensamentos para Deus, a implorar a sua misericórdia e a humilharmo-nos sob a sua mão, como fez o profeta: 'Na minha aflição invoquei o Senhor' [Sl 17,7] e 'E como um triste, assim me humilhei' [cf Sl 34, 13-14]. Portanto, se não soubermos suportar as tribulações com alegria, pelo menos suportemo-las com paciência e humildade.

Ó como são preciosas essas humilhações pelas quais adquirimos e aprendemos a exercitar a humildade! É então que devemos exclamar com o salmista: 'na sepultura, acaso há de se falar no seu amor? [Sl 88,11] ou então, como o rei Nabucodonosor quando, caindo em si, humildemente exclamou: 'Por isso, agora louvo, engrandeço e glorifico o Rei dos Céus, porque Ele é capaz de humilhar os que andam na soberba' [Dn 4,34]. As aflições não faltam neste vale de lágrimas, mas são poucos os que sabem usá-las como meio de se tornarem humildes. Concedei, ó meu Deus, a vossa misericórdia, para que eu possa estar entre esses poucos!

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

domingo, 29 de setembro de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

    

'A lei do Senhor Deus é perfeita, alegria ao coração' (Sl 18)

Primeira Leitura (Nm 11,25-29) - Segunda Leitura (Tg 5,1-6) -  Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48)

  29/09/2024 - VIGÉSIMO SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

44. A SANTIFICAÇÃO EXIGE O ÓDIO AO PECADO

Naqueles dias, nos caminhos da Galileia, os discípulos de Jesus ainda se tomavam como os únicos arautos da Verdade e discutiam à qual deles esta primazia haveria de se elevar mais alto, pois viviam ainda reféns de uma perspectiva puramente humana do reino prometido por Jesus. Atento às murmurações deles, o Senhor vai condenar o pecado do orgulho ao lhes assegurar que o maior de todos é o que serve a todos (Mc 9, 35) para, em seguida, os exortar que, no caminho da santificação, o amor a Deus implica um ódio extremado ao pecado, a todo tipo de pecado.

Esta firme exortação tem origem na pergunta de João: 'Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue' (Mc 9, 38), cuja ação é imediatamente contestada por Jesus, pois não havia sido movida pela caridade, mas por meros ciúmes da concessão de dons sobrenaturais a quem não era do restrito círculo fechado dos discípulos do Senhor: 'Quem não é contra nós é a nosso favor' (Mc 9, 40). Não deve haver limites ou impedimentos para os mistérios da Graça, quando o bem é feito compartilhado com o autor da Vida: 'quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa' (Mc 9, 41).

E, de forma oposta, Jesus condena aquele que, por malícia, se conspurca na obstinação do pecado, consumindo a graça na lama do escândalo, expondo-se e expondo a muitos no caminho da ruína espiritual de suas almas, no caminho do inferno. Quanto a este, a admoestação de Jesus é severa: 'melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço' (Mc 9, 42). A gravidade do pecado do escândalo - por ações, por exemplos, por palavras - está em que, muito além de provocar a perda da inocência alheia ou propagar blasfêmias, é que, ao conduzir à perda das almas, é um pecado que simula, em sua essência, a ação do próprio demônio.

Jesus exorta, então, se cumprir, em tudo e para todos, a santificação em plenitude, traduzida na observância radical aos seus Mandamentos. Isso implica não ceder ao pecado sob concessão alguma e não afrontar a graça divina por nenhum propósito humano. A verdadeira santificação exige, portanto, vigilância extrema, oração constante e fuga da ocasião de pecado por todos os meios disponíveis, pelos mais extremos possíveis: 'Se tua mão te leva a pecar, corta-a! É melhor entrar na Vida sem uma das mãos, do que, tendo as duas, ir para o inferno, para o fogo que nunca se apaga. Se teu pé te leva a pecar, corta-o! É melhor entrar na Vida sem um dos pés, do que, tendo os dois, ser jogado no inferno. Se teu olho te leva a pecar, arranca-o! É melhor entrar no Reino de Deus com um olho só, do que, tendo os dois, ser jogado no inferno, onde o verme deles não morre, e o fogo não se apaga' (Mc 9, 43.45.47-48).

29 DE SETEMBRO - SÃO MIGUEL ARCANJO

    

(São Miguel com elmo e armadura medieval - Catedral de Bruxelas)

'Houve uma batalha no Céu: Miguel e os seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com os seus Anjos, mas foi derrotado e não se encontrou mais um lugar para eles no Céu' (Ap 12, 7-8).

'Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande Príncipe, constituído defensor dos filhos do seu povo e será tempo de angústia como jamais houve' (Dn 12, 1).

Assim como Lúcifer é o chefe dos demônios, Miguel é o maior dentre os anjos, Príncipe das milícias celestes, protetor da Santa Igreja e da humanidade contra as forças do inferno. Assim, a designação de arcanjo (oitavo coro dos anjos) tem sentido genérico e nominativo, pois certamente São Miguel, sendo o primeiro dentre os Anjos, é o maior dos serafins. Dentre os vários santuários destinados à devoção ao Arcanjo São Miguel, Príncipe das milícias celestes, destaca-se aquele localizado no Monte Saint Michel na França, cuja foto constitui a abertura e o símbolo deste blog.

(Santuário de São Miguel - Monte Saint Michel/França)

São Miguel, rogai por nós!
Intercedei a Deus por nós!

sábado, 28 de setembro de 2024

AS CINCO IDOLATRIAS MODERNAS


Foi então que soou no céu a trombeta da cólera divina, que ninguém deixou de ouvir; e o Homem Moderno, que havia caído em cinco idolatrias e cinco desobediências, está agora condenado a ser provado e purificado por cinco castigos e cinco penitências:

Idolatria da Ciência, com a qual quis fazer outra Torre de Babel que chegasse até ao céu; e a ciência está neste momento ocupada em construir aviões, bombas e armas de longo alcance para destruir casas, cidades e fábricas.

Idolatria da Liberdade, com a qual quis fazer de cada homem um pequeno e caprichoso tiranete; e eis o momento em que o mundo está cheio de despotismo, e os próprios povos pedem mãos de ferro para sair da confusão que criou esta liberdade insana.

Idolatria do Progresso, com a qual acreditaram que, em pouco tempo, ter-se-iaum Paraíso Terrestre; e eis que o Progresso é o Bezerro de Ouro que mergulha os homens na miséria, na escravidão, no ódio, na mentira e na morte.

Idolatria da Carne, à qual se pediu o céu e as delícias do Éden; e a carne do homem despida, exibida, mimada e adorada, está a ser destroçada, dilacerada e amontoada como esterco nos campos de batalha.

Idolatria do Prazer, com a qual se quer fazer do mundo um carnaval perpétuo e converter os homens em crianças agitadas e irresponsáveis; e o prazer criou um mundo de enfermidades, dolências e torturas, que fazem desesperar todas as faculdades de medicina.

(Excertos da obra 'Cristo vuelve o no vuelve?', do Pe. Leonardo Castellani)

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

GALERIA DE ARTE SACRA (XXXIX)

'O Retorno do Calvário' é uma obra do pintor inglês Herbert Gustave Schmalz (1856 - 1935). A pintura retrata um crepúsculo já dominado pelas sombras da noite. Eis o tempo dos homens: a Paixão de Cristo está consumada e seu corpo está confinado por uma pedra no sepulcro novo. Três cruzes solitárias (no alto à direita da pintura) modelam agora o cenário do Calvário. A 'volta para casa' ainda é parte integrante da Paixão, porque o triunfo da ressurreição é ainda uma perspectiva.

Todo o cenário contribui para um jogo contínuo de confrontos: luzes e sombras, a escadaria e a parte baixa da cidade, o distanciamento do Calvário diante a perspectiva ainda indefinida do triunfo da ressurreição. Cinco personagens - 1 homem e 4 mulheres - vivenciando uma elevação de graças e dores muito acima das mazelas do mundo lá embaixo, percorrem lentamente os degraus de uma escadaria.

Eis o homem: João, o discípulo amado que ampara e sustenta a Maria, Mãe do Crucificado. O seu olhar está fixado na visão do Calvário e é quase possível transcrever seu pensamento de agora, demarcado a ferro e a fogo pelas palavras finais de Jesus: 'Eis aí tua mãe'. Maria avança em desolação completa, cada passo agora é abandono e resignação completa: 'Vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede: há dor como a minha dor? (Lm 1,12).

Há outras Marias neste grupo que amparam e acompanham a Virgem Maria. A mulher ruiva que a consola diretamente com João é Maria Madalena ou Maria de Magdala, que vai se tornar a primeira testemunha da ressurreição. Maria, mulher de Cleófas ou mãe de Tiago (Menor) é provavelmente a mulher que, mais atrás, tem o olhar dirigido às solitárias cruzes que encimam o Calvário. E a mulher atrás dela, com o rosto envolto pelas mãos, é provavelmente Salomé, 'a mãe de Tiago e João, filhos de Zebedeu'. As duas mulheres que, mais tarde, iriam juntas para comprar aromas para ungir o Corpo de Jesus. Ou, sob outro ponto de vista, podemos inverter a identificação de ambas na pintura.

Mas alguém vislumbrou uma outra interpretação criativa para esta pintura que me agrada muitíssimo mais. Aquelas duas figuras mais atrás - uma que obscurece a própria visão e outra que volve seu olhar ao drama da Paixão, ambas aturdidas, ambas profundamente abaladas - somos nós, eu e você, quaisquer um de nós. Reflexos de nós mesmos, personagens reais ou projetados de quem, no tempo dos homens e na eternidade de Deus, seremos igualmente um dia - todos - testemunhas da Paixão. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

INSENSATEZ E PRESUNÇÃO

 

1. Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outros por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo. Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus, que ajuda os humildes e abate os presunçosos.

2. Se tens riquezas, não te glories delas, nem dos amigos, por serem poderosos, senão em Deus, que dá tudo, além de tudo, deseja dar-se a si mesmo. Não te desvaneças com a airosidade ou formosura de teu corpo, que com pequena enfermidade se quebranta e desfigura. Não te orgulhes de tua habilidade ou de teu talento, para que não desagrades a Deus, de quem é todo bem natural que tiveres.

3. Não te reputes melhor que os outros para não seres considerado pior por Deus, que conhece tudo que há no homem. Não te ensoberbeças pelas boas obras, porque os juízos dos homens são muito diferentes dos de Deus, a quem não raro desagrada o que aos homens apraz. Se em ti houver algum bem, pensa que ainda melhores são os outros, para assim te conservares na humildade. Nenhum mal te fará se te julgares inferior a todos; muito, porém, se a qualquer pessoa te preferires. De contínua paz goza o humilde; no coração do soberbo, porém, reinam inveja e iras sem conta.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXIX)

Capítulo LXXXIX

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - A Mulher Napolitana e o Bilhete Misterioso

Para provar que as almas do Purgatório demonstram a sua gratidão até por favores temporais, o Padre Rossignoli relata um fato ocorrido em Nápoles, que tem alguma semelhança com o que acabamos de ler. Se não é dado a todos oferecer a Deus as abundantes esmolas de Judas Machabeus, que enviou doze mil dracmas a Jerusalém para sacrifícios e orações em favor dos mortos, são muito poucos os que não podem ao menos fazer a oferta da pobre viúva do Evangelho, que foi elogiada pelo próprio Salvador. Ela havia dado apenas dois cêntimos, mas, disse Jesus: 'todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, de sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento' (Mc 12, 44).  

Este exemplo comovente foi imitado por uma humilde mulher napolitana, que tinha a maior dificuldade em prover as necessidades da sua família. Os recursos da casa dependiam dos ganhos diários do marido, que todas as noites trazia para casa o fruto do seu trabalho. Infelizmente, um dia esse pobre pai foi preso por dívidas, de modo que a responsabilidade de sustentar a família recaiu sobre a infeliz mãe, que não possuía nada além de sua confiança em Deus. Com fé, ela implorou à Providência Divina que viesse em seu auxílio e, especialmente, para que livrasse o seu marido que definhava na prisão apenas por causa de sua pobreza.

Dirigiu-se então a um cavalheiro rico e benevolente e, contando-lhe a triste história dos seus infortúnios, suplicou-lhe com lágrimas que a ajudasse. Deus permitiu que ela recebesse dele apenas uma esmola insignificante, no valor de uma moeda equivalente a apenas dez cêntimos. Profundamente aflita, entrou numa igreja para implorar ao Deus dos indigentes que a socorresse na sua aflição, pois nada tinha a esperar na terra. Estava absorta em orações e lágrimas quando, por inspiração, sem dúvida, do seu bom anjo da guarda, lhe ocorreu interceder pelas almas santas em seu favor, pois tinha ouvido falar muito dos seus sofrimentos e da sua gratidão para com aqueles que as ajudam. Cheia de confiança, dirigiu-se à sacristia, ofereceu aquela simples moeda e perguntou a um sacerdote se seria possível celebrar uma missa pelos defuntos. O bom padre, que lá se encontrava, apressou-se a subir ao altar para rezar a missa nessa intenção, enquanto a pobre mulher, prostrada em recolhimento, assistia o Santo Sacrifício, oferecendo as suas orações pelos defuntos.

Regressou à casa muito consolada, como se tivesse recebido a certeza de que Deus tinha ouvido a sua oração. Quando percorria as ruas populosas de Nápoles, foi abordada por um ancião, que lhe perguntou de onde vinha e para onde ia. A infeliz mulher explicou-lhe a sua aflição e o uso que tinha feito da pequena esmola que recebera. O velho pareceu profundamente sensibilizado com a sua miséria, disse-lhe algumas palavras de encorajamento e deu-lhe um bilhete fechado num envelope, mandando que o entregasse a um certo senhor em particular, deixando-a em seguida.

A mulher apressou-se a procurar o tal senhor e a entregar a ele o bilhete recebido. Este, ao abrir o envelope, foi tomado de espanto e intensa comoção, pois reconheceu imediatamnete a letra do seu pai, falecido há algum tempo. 'Onde arranjaste esta carta?' - exclamou ele, completamente atordoado. 'Senhor' - respondeu a boa mulher - 'foi um ancião que me abordou na rua. Falei-lhe da minha aflição e ele mandou-me entregar-lhe este bilhete em seu nome. O seu semblante assemelha-se muito ao retrato que o senhor tem sobre a porta'. Cada vez mais impressionado por estas circunstâncias, o cavalheiro pegou de novo o bilhete e o leu em voz alta: 'Meu filho, o teu pai acaba de sair do Purgatório, graças a uma missa que a portadora deste recado mandou celebrar esta manhã. Ela está em situação muito aflita e eu a recomendo aos seus cuidados'. 

Leu e releu aquelas linhas, traçadas por aquela mão que lhe era tão cara, por um pai que agora estava entre os eleitos. Lágrimas de alegria corriam-lhe pelas faces quando se voltou para a mulher. 'Pobre mulher' - disse ele - 'com a tua esmola insignificante, asseguraste a felicidade eterna daquele que me deu a vida. Por minha vez, assegurarei a tua felicidade temporal. Tomo a meu cargo suprir a partir de agora todas as tuas necessidades e as de toda a tua família'. Que alegria para aquele senhor! Que alegria para aquela pobre mulher! É difícil dizer de que lado encontrava-se a maior felicidade. O que é mais importante e mais fácil é ver a instrução que se pode tirar desse fato: ele nos ensina que o menor ato de caridade para com os membros da Igreja Sofredora é precioso aos olhos de Deus e atrai sobre nós milagres de misericórdia.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog

terça-feira, 24 de setembro de 2024

GLÓRIAS DE MARIA: NOSSA SENHORA DAS MERCÊS

 


Na coroa de glórias dadas à Nossa Senhora, a Virgem das Mercês é celebrada em 24 de setembro. Mercês significa 'graças', 'favores', 'bênçãos' mas, acima de tudo, 'misericórdia'. A devoção teve origem na Espanha, durante a dura perseguição e prisão imposta aos cristãos numa Europa então invadida pelos mouros.

Na noite de primeiro para 2 de agosto de 1218, Nossa Senhora se manifestou em sonho para São Pedro Nolasco, para São Raimundo de Peñaforte,  seu confessor, e para o rei Dom Jaime I de Aragão, dando-se a conhecer com o título de Mercês, e pedindo a fundação de uma ordem religiosa para o resgate dos cristãos cativos dos mouros. A ordem religiosa dos Mercedários foi, então, fundada em 10 de agosto de 1218, em Barcelona, na Espanha, tendo São Pedro Nolasco como primeiro diretor geral. A devoção logo se difundiu por toda a Europa e chegou ao Brasil, pelas mãos dos frades mercedários, dando origem a várias confrarias no país. Em 1696, o Papa Inocêncio XII estendeu a festa de Nossa Senhora das Mercês para toda a Igreja estabelecendo a data de 24 de setembro para a sua celebração.


Oração a Nossa Senhora das Mercês

Virgem Maria, Mãe das Mercês,
com humildade acorremos a Vós,
certos de que não nos abandonais
por causa de nossas limitações e faltas.
Animados pelo vosso amor de Mãe,
oferecemo-vos nosso corpo para que o purifiqueis,
nossa alma para que a santifiqueis,
o que somos e o que temos, consagrando tudo a Vós.
Amparai, protegei, bendizei e guardai
sob a vossa maternal bondade a todos
e a cada um dos membros desta família
que se consagra totalmente a Vós.
Ó Maria, Mãe e Senhora nossa das Mercês,
apresentai-nos ao vosso Filho Jesus,
para que, por vosso intermédio
alcancemos, na terra, a sua Graça
e depois a vida eterna.
Amém!

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

ÀS TRÊS HORAS DA TARDE...


Do diário de Santa Faustina:

1320. Às três horas da tarde, implora a minha misericórdia especialmente pelos pecadores e, ao menos por um breve momento, reflete sobre a minha Paixão, especialmente sobre o abandono em que me encontrei no momento da agonia. Essa é a Hora da grande misericórdia para o mundo inteiro. Permitirei que penetres na minha tristeza mortal. Nessa hora nada negarei à alma que me pedir pela Minha Paixão...

1572. Lembro-te, minha filha, que todas as vezes que ouvires o relógio bater três horas da tarde, deves mergulhar toda na minha misericórdia, adorando-a e glorificando-a. Implora a onipotência dela em favor do mundo inteiro e especialmente dos pobres pecadores, porque nesse momento foi largamente aberta para toda alma. Nessa hora conseguirás tudo para ti e para os outros. Nessa hora realizou-se a graça para o mundo inteiro: a misericórdia venceu a justiça. Minha filha, procura rezar, nessa hora, a via-sacra, na medida em que te permitirem os teus deveres, e, se não puderes fazer a via-sacra, entra, ao menos por um momento, na capela e adora o meu Coração, que está cheio de misericórdia no Santíssimo Sacramento. Se não puderes ir à capela, recolhe-te em oração onde estiveres, ainda que seja por um breve momento. Exijo honra à minha misericórdia de toda criatura, mas de ti em primeiro lugar, porque te dei a conhecer mais profundamente esse mistério.


Faça isso. Tenha tal devoção como hábito diário. Em qualquer lugar, em qualquer dia, em quaisquer circunstâncias. Pela memória, pela repetição cotidiana do ato, por um alarme do celular. Todos os dias, às três horas da tarde. Por instantes de meditação sobre a Paixão de Cristo que valem uma eternidade. Por aquele Sangue, por aquela Cruz, por aquele Calvário, por Jesus Crucificado. Na oração apenas muda, apenas no pensamento, implora a misericórdia infinita daquele Coração. Por você, pela sua família, pelos seus entes queridos vivos ou mortos, pela humanidade, pela Igreja, pela salvação das almas. Nem um milagre poderá fazer mais pela sua alma.

domingo, 22 de setembro de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

   

'É o Senhor quem sustenta minha vida!' (Sl 53)

Primeira Leitura (Sb 2,12.17-20) - Segunda Leitura (Tg 3,16-4,3) -  Evangelho (Mc 9,30-37)

  22/09/2024 - VIGÉSIMO QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

43. O MAIOR DE TODOS É O QUE SERVE A TODOS


'Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más' (Tg 3, 16). Com efeito, toda sorte de males advém da inveja e das paixões desregradas do homem, que se pauta em ter cada vez mais e invejar no outro tudo aquilo que ainda não se tem. Não é esse o caminho da graça, nem a via da santidade. Jesus, no evangelho deste domingo, vai mostrar aos seus discípulos que a primazia da alma é forjada no cadinho da humildade.

Após a extraordinária experiência no Monte Tabor, Jesus seguia agora, rodeado apenas pelos seus discípulos e, mais uma vez, lhes anunciara o mistério de sua Paixão e Ressurreição: 'O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará' (Mc 9, 31). Mas os apóstolos ainda estavam demasiado presos à ideia de um reino terreno, pautado por poderes mundanos. E era a ambição de um poder maior em relação aos demais o que minava os sentimentos daqueles homens nos caminhos da Galileia.

Jesus vai interpelá-los sobre as murmurações de uns e outros pelo caminho; e o silêncio da resposta é o testemunho de que haviam estado até então submissos aos grilhões da inveja e das rivalidades. Estremecidos os corações diante da Verdade, são todos acolhidos na misericórdia do Bom Pastor que lhes revela: 'Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!' (Mc 9, 35). A primazia da graça é o serviço do bem desprovido de honras e vaidades humanas: o maior de todos é o que serve a todos; a humildade é a virtude que eleva o homem às vias mais plenas da santidade!

E, para ilustrar a dimensão da verdadeira humildade, Jesus a insere no contexto sublime da inocência pura de uma criança: 'Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou' (Mc 9, 37). Possuir uma inocência infantil é possuir a própria sabedoria de Deus, pois nela não prospera as ambições, nem a inveja, nem as rivalidades, nem as desordens ou qualquer espécie de obras más e porque 'a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento' (Tg 3, 17).

sábado, 21 de setembro de 2024

O VERDADEIRO LIVRO DA VIDA ETERNA


O SERVO: Senhor, creio que ninguém sabe realmente quantos benefícios podem ser emanados da Vossa Paixão, e quão imensos são os frutos que nela se podem encontrar, desde que alguém estiver disposto a dedicar-lhe espaço e tempo.

Que caminho seguro é o da vossa paixão, que conduz o homem pelo caminho da verdade até ao cume mais alto de toda a perfeição!

Como tinhas razão, bendito Paulo, luz exaltada entre todas as estrelas do céu, quando falaste! Tu, embora arrebatado às alturas e mergulhado nos mistérios ocultos da divindade nua, a ponto de ouvires palavras misteriosas, que nenhum homem pode pronunciar (2 Cor 12,4), abraçaste acima de tudo a paixão amantíssima de Cristo com tal amor e doçura de coração que não hesitaste em dizer: 'Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado' (1 Cor 2, 2).

Bendito és tu também entre todos os doutores, doce Bernardo, cuja alma foi admiravelmente iluminada pelos raios do Verbo Eterno, pois com a doce eloquência que brotava da exuberância do teu coração, pregaste e exaltaste a paixão da humanidade de Cristo, dizendo entre outras coisas: ' Irmãos, desde o início da minha conversão e como acervo dos méritos que sabia faltar-me, procurei juntar e colocar no meu peito este pequeno feixe feito de todas as angústias e amarguras do meu Senhor. Chamei sabedoria à meditação destas coisas; nelas descobri a perfeição da justiça, a plenitude da ciência, as riquezas da salvação e o tesouro dos méritos. Delas me vem a bebida salutar da amargura e o doce bálsamo da consolação. Sustentam-me na adversidade, e na prosperidade, refreiam-me; oferecem àquele que percorre a estrada real entre a alegria e a tristeza da vida presente, um guia seguro, afastando os males que o ameaçam...'

Sabedoria Eterna, de tudo o que foi dito deduzo facilmente que quem deseja grandes recompensas, a salvação eterna, uma ciência excelente e uma sabedoria superior, e quer gozar de uma alma equilibrada na adversidade e na prosperidade e estar completamente seguro contra todo o mal, deve trazer-Vos, ó meu Senhor Crucificado, diante dos olhos da sua alma onde quer que vá.

SABEDORIA ETERNA: Não penses que compreendeste a utilidade e as recompensas que isto traz. Acredita em mim, a lembrança contínua da minha amabilíssima paixão transforma um ignorante em um médico muito sábio. E não é de admirar, porque a minha Paixão é, em si mesma, um livro de vida onde tudo se encontra. Três vezes e quatro vezes bem-aventurado aquele que a tem sempre diante dos olhos e se dedica a ela! Que sabedoria e graça, que consolação e doçura, que superação de todos os vícios e que sentido da minha presença contínua ele pode obter! Escutai um exemplo disso:

Há muitos anos, um irmão pregador, no início de sua conversão, sofria horrivelmente de uma melancolia desordenada, que às vezes o incomodava tanto que só quem a tivesse experimentado poderia compreendê-la. Uma vez, sentado na sua cela depois do jantar, estava tão oprimido por esta tentação que não tinha vontade de estudar, de rezar, de fazer nada de bom, e permanecia triste na sua cela, com as mãos cruzadas no regaço, como se quisesse ao menos manter a sua cela em louvor do seu Senhor, pois sentia-se completamente incapaz de fazer qualquer outro exercício espiritual. Neste estado, privado de qualquer consolação, parecia-lhe ouvir uma voz que lhe dizia: 'Por que estás aqui sentado? Levanta-te e lembra-te de tudo o que sofri: então esquecerás toda a tua aflição'. Levantou-se imediatamente (porque compreendeu que a voz vinha do Céu) e começou a meditar na Paixão do Senhor Jesus, e sentiu-se tão liberto do seu sofrimento que nunca mais experimentou nada de semelhante.

O SERVO: Eterna Sabedoria, Vós que conheceis todos os corações, sabeis, sem dúvida, que não há nada mais desejável para mim do que sentir a Vossa mais amarga paixão com mais veemência do que os outros homens, e de tal modo que dos meus olhos corra noite e dia uma fonte de lágrimas. E por isso me queixo amargamente a Vós, porque a Vossa Paixão não pode penetrar a cada momento profundamente na minha alma e não posso meditá-la com tanta devoção como Vós mereceis, amadíssimo Senhor. Ensinai-me como me devo comportar.

ETERNA SABEDORIA: A meditação da minha Paixão não deve ser supérflua, mas deve ser feita com amor íntimo do coração e com reflexão sincera. Caso contrário, o coração não sentirá mais devoção do que o paladar sente por um alimento doce, mas não mastigado. E se, apesar de recordares a angústia e a dor inefáveis que ela me causou, não conseguires recordar a minha paixão com os olhos umedecidos, fá-lo ao menos com um espírito alegre pelos imensos bens que dela recebes. Se também não o podes fazer, se não podes meditá-la nem com alegria nem com lágrimas, então medita-a com o coração seco em louvor de Mim, porque assim me fazes um dom mais agradável do que se te derretesses todo por causa das lágrimas e da doçura, pois assim ages por amor à virtude e não em busca de ti mesmo.

E para que a minha Paixão penetre cada vez mais profundamente no teu coração, ouve o que te vou dizer. Se um grande pecador tiver de cumprir na fornalha ardente do terrível Purgatório as penas que aqui não pagou, tudo o que tiver de pagar pode ser expiado e apagado pela memória da minha Paixão. E, na verdade, essa pobre alma poderá refugiar-se e agarrar-se de tal modo ao ilustre tesouro da minha Paixão que, mesmo que tenha de sofrer mil anos os tormentos do Purgatório, num instante ficará livre de todas as culpas e penas e, saindo do Purgatório, voará livre para o Céu.

O SERVO: Senhor, mostrai-me como isto pode ser; como eu gostaria de conquistar assim o tesouro da vossa Paixão!

SABEDORIA ETERNA: Isso deve ser feito da seguinte forma:

1. com o coração contrito, que o homem examine e pese com seriedade e frequência a gravidade e a quantidade de seus grandes pecados, pois com eles ofendeu tão irreverentemente os olhos de seu Pai celeste.

2. Em seguida, que ele considere suas obras de penitência como nada, pois elas são apenas uma gota no oceano em comparação com os seus pecados.

3. Que considere a admirável imensidão da minha Expiação, pois uma pequena gota do precioso sangue que corre abundantemente pelo meu corpo bastaria para apagar os pecados de mil mundos; embora se beneficie tanto da minha Expiação quanto se conforme a mim por compaixão.

4. Finalmente, ele deve humilde e sinceramente submergir e fixar a pequenez de sua expiação na infinitude da minha.

Em suma, nem os matemáticos, nem os sábios, nem todos os mestres juntos são capazes de enumerar a imensidão dos bens que ficam escondidos na meditação assídua da minha Paixão.

O SERVO: Assim sendo, Senhor, peço-Vos que ponhais fim a tudo o que me tem afastado de Vós e me introduzais profundamente nas riquezas ocultas da Vossa amadíssima Paixão.

(Excertos da obra 'O Livro da Sabedoria Eterna', do Beato Henrique Suso)

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

TESOURO DE EXEMPLOS (371/375)

 

371. ENORME PERDA

Nero, antes de ser imperador, numa noite de jogo perdeu um milhão de sestércios. Sua mãe mandou por sobre uma mesa uma quantia igual em moedas e disse-lhe: 'Vê o que perdeste, o que te custou uma só noite de jogo!' Ao ver aquilo, Nero concebeu grande horror àquela espécie de jogo.

372. A MÃO COM QUE JURARA

Rodolfo da Suécia jurara fidelidade ao imperador Henrique IV. Rebelou-se, violando o seu juramento, e na batalha de Merseburgo sofreu a amputação da mão direita por parte de Godofredo de Bouillon. Rodolfo, agonizando, contemplava a mão truncada e exclamou: 'E' a mão com que eu tinha jurado fidelidade ao meu imperador!'

373. MARTÍRIO DE SÃO CANUTO

São Canuto, rei da Dinamarca, ordenara que em seu reino se pagasse o dízimo à Igreja, como era de justiça. Um tal Blancon excitou o povo, o qual, indignado contra o soberano, deu-lhe morte cruel. Deus enviou sobre a Dinamarca uma terrível carestia, enquanto que nos povos vizinhos havia abundância de tudo. Êsse castigo não cessou enquanto o povo não reconheceu o seu crime e pediu perdão a Deus.

374. NÃO MURMURAR

Santo Agostinho não admitia que, em sua presença, se murmurasse ou ofendesse a honra do próximo. Razão por que mandou por sobre a sua mesa esta inscrição: 'A esta mesa não se assente quem fala mal do ausente'.

375. NÃO TINHA O NECESSÁRIO

Apresentou-se ao missionário um velho chinês, que lhe pediu que mandasse construir uma igreja em sua vila. Respondeu-lhe o missionário que não era possível por não dispor dos meios necessários.
➖ Eu vos ajudarei - disse o chinês.
➖ Sim; mas seriam necessários cerca de dois mil escudos - respondeu o missionário ao ver a aparência tão pobre de seu interlocutor.
➖Eu os tenho e estão à vossa disposição - disse o velho - porque há quarenta anos que penso na necessidade de uma igreja e, gastando apenas o necessário, para comer e vestir, consegui economizar essa soma. Um belíssimo exemplo de um pagão convertido.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXVII) - AS GENEALOGIAS BÍBLICAS


A pré-história do Gênesis narra pouquíssimos episódios anteriores a Abraão; destes, o dilúvio constitui o ponto central. Para preencher as duas lacunas existentes entre os primeiros homens e o dilúvio, e depois entre este evento e Abraão, o autor sagrado cita duas genealogias. A primeira, desde o primeiro homem (Adão) até o símbolo da humanidade renovada (Noé), conta dez nomes. A segunda, desde Sem, filho de Noé, até Abraão, tronco principal da comunidade hebraica, conta outros dez nomes (Gn 5,1-32; 11,10-32). Tudo isto tem, certamente algo de convencional e lançou os estudiosos à pesquisa de qual fosse o critério dos antigos ao tecer tais genealogias. Tais pesquisas permitem-nos chegar às seguintes conclusões:

1. A genealogia é um gênero literário que tem a finalidade de documentar a pertinência de um indivíduo a um determinado grupo familiar. Sua importância é máxima nas sociedades de estrutura patriarcal, porque é pela genealogia que o indivíduo recebe os seus direitos. Enquanto, nas sociedades mais complexas, como as atuais, o indivíduo tem determinados direitos por ser cidadão de um determinado estado, na patriarcal - como aquela dos pastores nômades — o indivíduo tem, pelo contrário, seus direitos certos enquanto filho ou descendente de um determinado trono. Daí a necessidade de um documento, oral ou escrito, que faça conhecer-lhe a genealogia.

2. Em tal documento genealógico podiam faltar elos intermediários para fins de brevidade e praticidade. Este fato é muito bem caracterizado. São Mateus (Mt 1,8), na genealogia de Jesus escreve: 'Jorão gerou Ozias'; ora, entre Jorão e Ozias acham-se omitidos os reis Ocozias, Joás e Amasias (cf Reis 9, 16; 11, 2-21; 14, 1). O tempo que os hebreus permaneceram no Egito, segundo o Êxodo (Ex 12, 40) foi de 430 anos; pois bem, na genealogia de Moisés, dada pelo mesmo livro (Ex 6,14-), entre Levi, entrado no Egito com seu pai Jacó, e Moisés, o condutor dos israelitas que saíam do Egito, há apenas dois elos intermediários: Levi, Cahat, Amram, Moisés. E assim poderiam ser citados muitos outros exemplos semelhantes a este.

3. A omissão de nomes podia provir do propósito de se obter números simbólicos - como as três séries de 14 nomes na genealogia de Jesus em Mateus (Mt 1,17) - ou números, de outro modo, capazes de se fixar de memória.

4. A palavra gerar, em genealogia, é de significado quase tão amplo quanto a palavra filho, que indica uma pertinência genealógica ainda que muito remota (como o Messias filho de Davi) e, algumas vezes, apenas de direito. Há realmente eqüivalência entre geração e transmissão de direitos. Assim, na genealogia de Jesus, São Mateus escreve: 'Salatiel gerou Zorobabel', concordando com o fato de ser Zorobabel chamado, em outro lugar da Bíblia (Ag 1,1), filho de Salatiel. Mas, na realidade, sabemos de 1 Crônicas (1 Cr 3,19) que Zorobabel é filho de Fadaías, irmão de Salatiel.

5. A genealogia pode ter sido usada para resumir um período histórico, como por exemplo, as genealogias apresentadas no início das 1 Crônicas e no Evangelho de São Mateus; mas não pode absolutamente servir para criar uma cronologia.

Considerando esclarecidos estes pontos, ao examinar as duas genealogias dos patriarcas, anterior e posterior ao dilúvio, devemos concluir que:

1. O autor evidentemente pretende demonstrar, pelas duas genealogias, que Noé é o herdeiro legítimo das promessas feitas a Adão e dos seus ditamess humanos e, pela mesma razão que Abraão, além de ser herdeiro das promessas precedentes, é herdeiro das bênçãos dadas a Sem.

Para este fim, segundo alguns intérpretes, não teria sido necessário nem conhecer as duas séries de nomes pela Revelação, nem entrar a fundo no valor objetivo de tais documentos, mas teria bastado ao autor sagrado introduzir, imutadas, as sequências genealógicas transmitidas pela tradição e, provavelmente já escritas (cf Gn 5,1: 'este é o livro das gerações de Adão...'). Isto é, tratar-se-ia de uma citação , não implícita mas, certamente, explicita, que citaria documentos então conhecidos de todos.

Que o autor não tenha pretendido assumir a responsabilidade dos números indicadores das idades dos Patriarcas ante e pós-diluvianos concluir-se-ia do fato que, enquanto nestas duas listas genealógicas considera comum o gerar em idade pluricentenária, logo depois, na história de Abraão, sublinha insistentemente (Gn 17,17; 18,1) o caráter milagroso do nascimento de Isaac de um pai centenário e de uma mãe nonagenária.

2. O número das gerações - 10 antes do dilúvio e 10 depois do dilúvio - faz pensar numa simplificação sistemática: 10 são os dedos da mão, e 10 é a base do sistema decimal: é muito conveniente pois para fixação da memória. Além disto, desde o inicio do segundo milênio, mesmo os súmeros registraram, pelo menos segundo alguns recenseamentos, os nomes de dez soberanos que precederam o dilúvio.

3. A introdução de números simbólicos em algumas genealogias faz-nos supor que mesmo os outros dados que indicam as idades dos Patriarcas das duas séries, correspondem a um cálculo não objetivo, porém artificioso ou simbólico. A idade de Enoque (365 anos como os dias de um ano solar) e de Lameque (777 anos) dão algum indicio a respeito. Assim, a soma dos anos de vida dos Patriarcas desde Sem a Lameque (Abraão está fora da série) dá 2996, o que, com a única diferença de uma unidade, é igual a (300 x 9) + (30 x 9) + (3 x 9) e que resulta 333 anos em média para cada um. Um processo como este para atingir a um total intencional encontra-se nas várias sequências babilônicas dos dez reis antidiluvianos que reinam cada um dez milhares de anos. 

Note-se, além disso, que entre os samaritanos, os números destas genealogias são diferentes dos retirados do texto hebraico comum e da versão latina de São Jerônimo e exibem sinais evidentes de uma adaptação artificiosa. Esta constatação confirma a hipótese de que, entre os hebreus, aqueles números não tivessem um valor exato mas, por outro lado, demonstra também que eles não foram fielmente transmitidos de maneira que, certamente, é impossível basear-nos sobre eles para descobrir o principio artístico ou simbólico que presidia a sua escolha Com isto não se pretende negar que aqueles antigos, em circunstâncias particularmente favoráveis, pudessem ter vida longa, porém apenas realçar que os números do texto bíblico satisfazem provavelmente a critérios que nos escapam e que, portanto, não nos é possível tirar conclusões exatas concernentes à longevidade dos Patriarcas. Pode além disso acontecer, como se disse acima, que o autor sagrado tenha incluído em seu relato as duas genealogias apenas como citações, sem se comprometer em um juízo sobre as minúcias, apenas com a intenção de preencher 1acunas no fio histórico de sua narrativa.

4. O fato de Set ter a uma determinada idade gerado Enos (Gn 5,6) pode significar simplesmente que Set, numa determinada idade, gerou um filho de quem, depois de uma linha genealógica mais ou menos longa, nasceu Enos. O mesmo se pode dizer dos outros nomes. Nesta hipótese, os 10 nomes seriam tão somente os 10 nomes mais relevantes de uam série muito longa e não necessàriamente linear.

5. Em conclusão, as duas sequências genealógicas resumem dois períodos pré-históricos, mas não nos podem servir para fixar a duração de tais períodos e tampouco, consequentemente, a antiguidade do gênero humano. Sobre a antiguidade do homem, a Bíblia não nos favorece nenhuma conclusão.

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Verdadeiramente, há grande recompensa em guardar os teus mandamentos. E não apenas o primeiro e máximo mandamento é de proveito para quem obedece, e não para Deus que ordena; mas também todos os outros aperfeiçoam, ornam, instruem, ilustram aquele que obedece e, por fim, o tornam bom e feliz. Se és sensato entende que foste criado para a glória de Deus e tua salvação eterna. É este o teu fim, este o centro da tua alma, este o tesouro do teu coração. Se chegares a este fim, serás feliz; se nele falhares, serás infeliz. Por conseguinte, tem por verdadeiro bem aquilo que te leva ao teu fim; e por mal, o que te separa deste fim. Prosperidade e adversidade, riqueza e indigência, saúde e doença, honras e vexames, vida e morte, nem uma delas o sábio procura por si mesmo e nem delas foge. Mas se concorrem para a glória de Deus e tua eterna felicidade, são boas e desejáveis; se as impedem, são más; e deve-se fugir delas'.

(São Roberto Belarmino)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

POEMAS PARA REZAR (LVI)

 

NO MEIO DE MUITOS CAMINHOS

No meio de um caminho / havia um homem caído / Muitos passaram ao largo / sem socorrer o ferido / mas o bom samaritano / cuidou do desconhecido / curou-o, pagou seu repouso/ resgatou quem estava perdido...

No meio de nossos caminhos / há tantas pessoas perdidas / tantos homens que precisam/ de curar suas feridas / e tantas pessoas que passam / fingindo-se desapercebidas/ passam também pelo mundo/ deixando para trás suas vidas...

Que eu não seja águas passadas / que não mais movem moinhos / e possa levar minha presença / a tantos que andam sozinhos / e semear ainda a caridade / por entre tantos espinhos / que eu possa ser samaritano / no meio de muitos caminhos...

(Arcos de Pilares)

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

PROFECIAS CATÓLICAS (III)

👉 São Pio X (século XX): 'Vi um dos meus sucessores fugindo por cima dos corpos de muitos dos seus irmãos. Encontrará refúgio disfarçado em algum lugar e, depois de um curto período, terá uma morte cruel. A atual maldade do mundo é apenas o começo das iniquidades que devem ocorrer antes do fim do mundo'.

👉 Pio XII (século XX): 'Acreditamos que a hora atual é uma fase terrível dos acontecimentos preditos por Jesus Cristo. Parece que as trevas estão prestes a dominar o mundo e a humanidade será refém de uma crise suprema'.

Comentários: Depois de citar explicitamente São Pio X e Pio XII, o papa João XXIII apresentou palavras francamente contrastantes na abertura do Concílio Vaticano II: 'Sentimo-nos obrigados a discordar dos profetas da escuridão, que estão sempre a prever desastres, como se o fim do mundo estivesse próximo. Na ordem atual das coisas, a Divina Providência conduz a humanidade a uma nova ordem das relações humanas que, por esforço próprio dos homens e mesmo para além das suas próprias expectativas, se orientam para a realização dos superiores e inescrutáveis desígnios de Deus. E tudo, mesmo as diferenças humanas, conduz ao bem maior da Igreja'.

Com base nesta declaração, não podemos deixar de observar que João XXIII discordou de São Pio X e Pio XII, bem como de todas as almas santas que receberam revelações privadas anteriores. Além disso, deveríamos acreditar então que os esforços dos homens levarão, automaticamente, por assim dizer, ao cumprimento dos desígnios de Deus, mesmo que os esforços dos homens atuais não sejam visivelmente dirigidos para a maior glória de Deus. Não posso deixar de recordar uma das teses mais queridas de Teilhard de Chardin (cujos livros foram condenados pelo Santo Ofício), que equiparava o progresso humano (tecnológico ou outro) ao desenvolvimento espiritual. A última frase da passagem acima agrava ainda mais este pedaço de humanismo teilhardiano ao afirmar que mesmo as diferenças conduzem ao bem maior da Igreja. Permita-me sugerir que, desde 1962, quando este discurso foi proferido, as crescentes diferenças no seio da Igreja Católica não parecem ter feito muito bem! Karl Marx ensinou que os conflitos e as divergências funcionam sempre para o bem da causa em causa, mas não estávamos preparados para ouvir isto da boca de um papa. No entanto, para fazer justiça ao bom Papa João XXIII, devo acrescentar que este discurso de abertura foi escrito para ele pelo então Cardeal Montini.

👉 Bispo Christianos Ageda (século XII): 'No século XX, haverá guerras e conflitos que durarão muito tempo; províncias inteiras serão esvaziadas dos seus habitantes, e reinos inteiros serão lançados no caos. Em muitos lugares a terra ficará sem cultivo e haverá grandes massacres dos membros das classes mais altas. A mão direita do mundo temerá a esquerda, e o norte prevalecerá sobre o sul'.

👉 Abade Joaquim Merlin (século XIII): 'Depois de muitos e longos sofrimentos suportados pelos cristãos, e depois de uma grande efusão de sangue inocente, o Senhor dará paz e felicidade às nações desoladas. Um papa notável estará sentado no trono pontifício sob a proteção especial dos anjos. Santo e cheio de doçura, ele há de desfazer todos os erros; recuperará o Estado da Igreja e reunirá os poderes temporais exilados. Será venerado por todos e recuperará o Reino de Jerusalém. Reunirá as Igrejas do Oriente e do Ocidente. A santidade deste Pontífice benéfico será tão grande que os mais altos potentados se curvarão na sua presença. Todos os homens voltarão à Igreja primitiva, e haverá um só Pastor, uma só Lei, um só Mestre - humilde, modesto e temente a Deus. Antes de se estabelecer firme e solidamente na Santa Sé, porém, haverá inúmeras guerras e conflitos violentos durante os quais o Trono sagrado será abalado. Mas, pelo favor da misericórdia divina, movida pelas orações dos fiéis, tudo correrá tão bem que eles poderão cantar hinos de ação de graças à glória do Senhor. Para obter estes felizes resultados, tendo necessidade de um poderoso auxílio temporal, o Santo Pontífice pedirá a colaboração do generoso Rei da França'.

Comentários: Todas estas referências a reis, tronos e reinos pode parecer tão irremediavelmente desatualizada que o leitor pode sentir-se tentado a rejeitar todas estas profecias como fantasias. Eu o sei bem; todos nós fomos educados na convicção de que as formas populares de governo são sinônimo de progresso, e que a democracia e o progresso são inseparáveis. Por conseguinte, com base nestas premissas, pensa-se que um regresso a formas de governo não populares significa necessariamente um regresso à Idade das Trevas. Mas não devemos ser demasiado otimistas na nossa avaliação do mundo moderno. A história das civilizações passadas mostra que os governos têm sido, na sua maioria, não-populares, e ninguém negará que algumas das civilizações extintas atingiram, de fato, padrões muito elevados...  Ao rever as civilizações passadas num livro anterior que publiquei em língua francesa, dei provas de que esses períodos gozavam de uma estabilidade comparativa. Houve guerras, é certo, mas essas guerras não envolviam toda a nação e todo o povo, como acontece atualmente, mas apenas os exércitos regulares de soldados profissionais. De fato, foi Napoleão I quem primeiro introduziu o recrutamento obrigatório em grande escala, obrigando assim as outras nações europeias a seguirem o exemplo. Assim, o mito da 'soberania popular' deu rapidamente lugar à verdadeira maldição do envolvimento popular na guerra. A história mostra ainda que os períodos de governos populares foram também períodos de decadência e degenerescência e que acabaram, no caos e na anarquia, como as brilhantes civilizações que acabei de referir. Estas são lições que não devemos esquecer; e, se não as esquecermos, talvez nos ajudem a reavaliar o valor dos ensinamentos que nos foram transmitidos nos nossos tempos de escola sobre o 'progresso' moderno - ensinamentos que seguem fielmente a cartilha de uma certa filosofia judaico-maçônica.

Agora, o ponto que eu gostaria de salientar é o seguinte: a catástrofe que se aproxima será de tal magnitude que toda a nossa civilização seria destruída se não fosse a presença da Igreja. É a Igreja que salvará a civilização. E a totalidade dos erros da nossa era moderna será exposta e rejeitada por aqueles que sobreviverem, o que explica o súbito retorno a formas não-populares de governo.

👉 João de Vatiguerro (século XIII): 'Os saques, a pilhagem e a devastação dessa cidade famosíssima que é a capital e o fascínio da França terão lugar quando a Igreja e o mundo estiverem gravemente perturbados. O papa mudará de residência e a Igreja não será defendida durante vinte e cinco meses ou mais, porque, durante todo esse tempo, não haverá papa em Roma, nem imperador e nem governante na França. Mas, depois disso, um jovem príncipe cativo recuperará a Coroa dos Lírios e estenderá os seus domínios por todo o mundo. Depois de muitas tribulações, será eleito um papa entre os que sobreviveram às perseguições. Com a sua santidade, ele reformará o clero e o mundo inteiro venerará a Igreja pela sua santidade, virtude e perfeição'

Comentários: Esta é a primeira de muitas referências à destruição de Paris, que terá lugar num período em que a Igreja e o mundo estarão em caos profundo. Esta é também a primeira de muitas referências ao exílio do papa e à desocupação da Santa Sé. A França estará envolvida com uma guerra civil assassina, mas será salva pelo Príncipe - o futuro Grande Rei.

Aqui uma palavra de cautela: embora o Príncipe seja coroado Rei de França, e embora se diga 'que estenderá os seus domínios por todo o mundo', isto não deve ser entendido como significando que a França conquistará o mundo inteiro - e isso por duas razões diferentes: primeiro, porque este Rei será também coroado Rei de outros países europeus (e pode inclusive não ser francês). Será, de fato, Imperador da Europa, e é como tal que estenderá os seus domínios por todo o mundo. Segundo, porque 'por todo o mundo' não significa 'pelo mundo inteiro'. Seria estranho supor que um imperador europeu quisesse dominar todos os povos da Europa, África, América e Austrália. Significa, na verdade, que ele dominará e guiará várias nações em certas partes do mundo e que exercerá forte influência sobre as outras.

(Excertos da obra 'Catholic Prophecy: The Coming Chastisement', de Yves Durant)

domingo, 15 de setembro de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Andarei na presença de Deus, junto a Ele, na terra dos vivos' (Sl 114)

Primeira Leitura (Is 50,5-9a) - Segunda Leitura (Tg 2,14-18) -  Evangelho (Mc 8,27-35)

  15/09/2024 - VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

42. 'E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?'


Num dado dia, na 'região da Cesareia de Felipe' (Mc 8, 27), Jesus revelou a seus discípulos a sua própria identidade divina e o legado da Cruz. Neste tesouro das grandes revelações divinas, o apóstolo Pedro será exposto a duas manifestações bastante distintas, fruto das próprias contradições humanas: num primeiro momento, dá um testemunho extraordinário de fé; num segundo momento, entretanto, é incapaz de entender a dimensão salvífica dAquele que acabara de saudar como o Messias Prometido.

Nesta ocasião, as mensagens e as pregações públicas de Jesus estavam consolidadas; os milagres e os poderes sobrenaturais do Senhor eram de conhecimento generalizado no mundo hebraico; multidões acorriam para ver e ouvir o Mestre, dominados pela falsa expectativa de encontrar um personagem mítico e um Messias dominador do mundo. Então, Jesus indaga aos seus discípulos: 'Quem dizem os homens que eu sou?' (Mc 8, 28) e, logo em seguida, 'E vós, quem dizeis que eu sou?' (Mc 8, 29). Se os homens do mundo o tomam por João Batista, por Elias ou por um dos antigos profetas, a resposta de Pedro é um primado de confissão de fé, transcrita pelo mais sintético dos evangelistas: 'Tu és o Messias' (Mc 7, 32).

Jesus é o Cristo de Deus e o seu reino não é deste mundo. Ante a confissão de Pedro, Jesus revela a sua origem e a sua missão e faz o primeiro anúncio de sua Paixão, Morte e Ressurreição: 'o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias' (Mc 8, 31). E, diante da incompreensão dos apóstolos expressa na repreensão pública de Pedro, dá o testemunho da cruz pela privação do mundo: 'Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la' (Mc 8, 34 - 35).

Sim, Jesus Cristo é o Messias, o Filho de Deus Vivo: Deus feito homem na eternidade de Deus. Mas a missão salvífica de Jesus há de passar não por um triunfo de epopeias mundanas, mas por um tributo de Paixão, Morte e Ressurreição; não pelo manejo da espada ou por eventos feitos de glórias humanas, mas pela humildade, perseverança e um legado de Cruz. Eis aí o legado definitivo de Jesus aos homens de sempre: a Cruz de Cristo é o caminho da salvação e da vida eterna. Tomar esta cruz, não apenas hoje ou em momentos específicos de grandes sofrimentos em nossas vidas, mas sim, todos os dias, a cada passo, em cada caminho, é a certeza de encontrá-lo na glória e da plenitude das bem-aventuranças. A Cruz de Cristo é a Porta do Céu.

sábado, 14 de setembro de 2024

14 DE SETEMBRO - EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ

  

'Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim' (Jo 12, 32)

A festa da Exaltação da Santa Cruz tem origem na descoberta do Sagrado Lenho por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, e na dedicação de duas basílicas construídas por ele, uma no Calvário e outra no Santo Sepulcro, dedicação esta realizada no dia 14 de setembro do ano de 335. No ano de 629, a celebração tomou grande vulto com a restituição da Santa Cruz pelo imperador Heráclio, retomada dos persas que a haviam furtado. Levada às costas pelo próprio imperador, de Tiberíades até Jerusalém, a Santa Cruz foi entregue, então, ao Patriarca Zacarias de Jerusalém.

O imperador Constantino e sua mãe, Santa Helena, veneram a Santa Cruz 

Conta-se, então, que o imperador Heráclio, coberto de ornamentos de ouro e pedrarias, não conseguia passar com a cruz pela porta que conduzia até o Calvário; quanto mais se esforçava nesse sentido, mais parecia ficar retido no mesmo lugar. Zacarias, diante desse fato, ponderou ao imperador que a sua ornamentação luxuosa não refletia a humildade de Cristo. Despojado, então, da vestimenta, e com pés descalços, o imperador completou sem dificuldades o trajeto final, encimando no lugar próprio a Cruz no Calvário, de onde tinha sido retirada pelos persas.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo converteu a Cruz de um objeto de infâmia e repulsa na glória maior da fé cristã. A Festa da Exaltação da Cruz celebra, portanto, o triunfo de Jesus Cristo sobre o mundo e a imprimação do Evangelho no coração de toda a humanidade.

SALVE CRUX SANCTA

Salve, crux sancta, salve mundi gloria,
vera spes nostra, vera ferens gaudia,
signum salutis, salus in periculis,
vitale lignum vitam portans omnium.

Te adorandam, te crucem vivificam,
in te redempti, dulce decus sæculi,
semper laudamus, semper tibi canimus,
per lignum servi, per te, lignum, liberi.

Originale crimen necans in cruce
nos a privatis, Christe, munda maculis, 
humanitatem miseratus fragilem 
per crucem sanctam lapsis dona veniam.

Protege salva benedic sanctifica 
populum cunctum crucis per signaculum, 
morbos averte corporis et animae 
hoc contra signum nullum stet periculum.

Sit Deo Patri laus in cruce filii 
sit coequalis laus sancto spiritui, 
civibus summis gaudium et angelis 
honor sit mundo crucis exaltatio. Amen.


Salve Santa Cruz, salve ó glória do mundo, nossa verdadeira esperança que traz verdadeira alegria, sinal da salvação, proteção nos perigos, árvore viva que suporta a vida de todos nós. 

Nós vos adoramos, em vós nos vivificamos; por vós redimidos, no esplendor perene dos séculos, vos saudamos e louvamos para todo o sempre, escravos pelo lenho e, por vós, ó Lenho, libertados.

Vós que vencestes o pecado original na cruz, livrai-nos, ó Cristo, de nossas próprias culpas, tende piedade da nossa miséria humana e, pela Santa Cruz, perdoai os que caíram.  

Protegei, salvai, abençoai e santificai todo o vosso povo pelo Sinal da Cruz, protegei-nos contra todo o mal do corpo e da alma e que perigo algum prevaleça diante este Sinal.

Louvado seja Deus Pai na Cruz do seu Filho! Louvor igual seja dado ao Espírito Santo! Que a Exaltação da Cruz seja a suprema alegria dos eleitos e dos anjos no Céu e um esplendor de glória para o mundo. Amém.
(tradução do autor do blog)