O DOGMA DO PURGATÓRIO - PRIMEIRA PARTE

 

Le Dogme du Purgatoire
illustré par des Faits et des Révélations Particulières

Capítulo Preliminar

Objetivo do livro. - A que classe de leitores se destina. - O que somos obrigados a acreditar, o que podemos acreditar piamente e o que somos livres para não acreditar. - Visões e aparições. - Credulidade cega e incredulidade exagerada.

O dogma do purgatório é muito esquecido pela maioria dos fiéis; a Igreja Padecente, onde estão tantos irmãos que ora precisam de ajuda e onde se deveria prever que também se pode estar em breve, parece-lhes algo estranha. Esse esquecimento, verdadeiramente deplorável, fez tremer São Francisco de Sales: 'Ai de mim! - disse este piedoso santo da Igreja -  'não nos lembramos o suficiente dos nossos queridos defuntos: a sua memória parece morrer com o som dos sinos'. A principal causa é a ignorância e a falta de fé: temos sobre o purgatório noções muito vagas e uma fé muito fraca. Devemos, portanto, olhar mais de perto essa vida além da sepultura, esse estado intermediário das almas justas e que ainda não são dignas de entrar na Jerusalém Celestial, a fim de obter noções mais sólidas e reavivar a nossa fé.

Este é o objetivo deste trabalho: nos propomos a fazê-lo, não para provar a existência do purgatório para mentes céticas; mas para torná-lo mais conhecido aos fiéis piedosos, que acreditam com fé divina neste dogma revelado por Deus. É a eles que este livro se dirige por princípio, a fim de dar-lhes uma ideia menos confusa do purgatório; diria uma ideia mais real do que normalmente se tem, projetando-se o máximo de luz possível sobre esta grande verdade da fé.

Para isso, temos três fontes de luz bastante distintas. Primeiro, a doutrina dogmática da Igreja; depois, a doutrina explicada pelos doutores da Igreja; terceiro, as revelações de santos e de aparições, que confirmam o ensino dos doutores da Igreja:

(i) a doutrina dogmática da Igreja sobre o purgatório compreende dois artigos que indicaremos a seguir no capítulo 3; esses dois artigos são de fé e devem ser acreditados por todo católico.

(ii) a doutrina de doutores e teólogos ou, de outra forma, seus pontos de vista e exortações sobre várias questões relativas ao purgatório (ver também a seguir, cap. III e seguintes) não devem ser incorporados como artigos de fé; podem ser passíveis de não aceitação sem capitulação da fé católica. No entanto, seria imprudente, até mesmo temerário, afastar-se deles, pois é inerente ao espírito da Igreja seguir as explanações comumente ensinadas pelos doutores da Igreja.

(iii) as revelações dos santos, também chamadas revelações particulares, não pertencem ao depósito da fé confiado por Jesus Cristo à sua Igreja; são fatos históricos baseados em testemunhos humanos. É permitido acreditar neles e a piedade encontra neles um alimento salutar. Também podemos não acreditar neles sem pecar contra a fé; mas, se foram autenticados pela Igreja, não podem ser rejeitados sem ofender a razão: porque a justa razão ordena a todo homem dar o devido assentimento à verdade, quando ela for suficientemente demonstrada.

Para lançar mais luz sobre este assunto, vamos primeiro explicar a natureza das revelações de que estamos falando. As revelações particulares são de dois tipos: uma consiste em visões, a outra em aparições. São chamadas particulares porque, ao contrário daquelas descritas na Sagrada Escritura, não fazem parte da doutrina revelada a todos os homens, e não são propostas pela Igreja para que sejam acreditadas como dogmas de fé.

As próprias visões constituem luzes subjetivas que Deus derrama na inteligência de uma criatura para descobrir os seus mistérios. Essas são as visões dos profetas, de São Paulo, de Santa Brígida e de muitos outros santos. As visões geralmente ocorrem em estado de êxtase: consistem em certos eventos extraordinários que se apresentam aos olhos da alma e que nem sempre devem ser considerados literalmente. Frequentemente, constituem mais figuras ou imagens simbólicas que representam, em escala proporcional à nossa compreensão, coisas que são puramente espirituais e das quais a linguagem humana é incapaz de expressar em medida adequada. 

As aparições ao contrário constituem, quase frequentemente, fenômenos objetivos, que têm um objeto externo real. Assim foi a aparição de Moisés e Elias no Tabor, a de Samuel evocada pela Pitonisa de Endor, a do anjo Rafael a Tobias, a de muitos outros anjos; enfim, estas são também as aparições de almas no purgatório. Que os espíritos dos mortos às vezes aparecem aos vivos é um fato que não pode ser negado. O Evangelho não evoca isso claramente? Quando Jesus ressuscitado apareceu pela primeira vez aos discípulos reunidos, eles pensaram que viam um espírito. O Salvador, em vez de dizer a eles que os espíritos não aparecem, lhes fala nos seguintes termos: 'Por que estais perturbados, e por que essas dúvidas nos vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo; apalpai e vede: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que tenho' (Lc 24, 38- 39).

As aparições das almas que estão no purgatório acontecem com frequência. Elas ocorrem em grande número na vida dos santos e, às vezes, até mesmo na vida de fiéis comuns. Reunimos e apresentamos ao leitor aqueles fatos que nos parecem mais adequados para instruí-lo ou edificá-lo. Mas - pode-se argumentar - estes fatos são historicamente verdadeiros? Nós escolhemos então os que foram mais comprovados¹. Mas se algum leitor não ficar convencido ou encarar com ceticismo alguns deles, pode desconsiderá-los sem problemas. Porém, no sentido de não se adentrar em uma severidade excessiva que beira a descrença, impõe-se ressaltar que, falando genericamente, aparições de almas do Purgatório ocorrem e isso não pode ser negado e nem mesmo que estas aparições não ocorram frequentemente. 

¹ É na vida dos santos, honrados como tais pela Igreja, bem como de outros ilustres servos de Deus, que reunimos a maioria dos fatos que citamos. O leitor que quiser verificar esses fatos e avaliá-los pelo seu valor justo, poderá, sem dificuldade, recorrer às primeiras fontes com o auxílio de nossas indicações. Se o relato for tirado da vida de um santo, indicamos o dia em que seu nome está marcado no martirológio, o que basta para se consultar a Acta Sanctorum. Se falarmos de qualquer outra pessoa venerável, como Pe. José de Anchieta², apóstolo do Brasil, cuja vida não está incluída nos volumes dos Bollandistas³, tivemos que recorrer a biografias ou obras específicas. Para os exemplos tomados da obra 'Merveilles Divines dans les Ames du Purgatoire', do Pe. Rossignoli, nos limitamos a mencionar o número indicado no 'Merveilles', uma vez que o autor indicou uma ou mais fontes de sua própria pesquisa.
² São José de Anchieta, canonizado em 03 de abril de 2014
³ associação de especialistas religiosos na elaboração da biografia dos santos (Acta Santorum)

'Esses tipos de aparições' - diz Ribet - 'não são raros'. Deus os permite para o alívio das almas, que vêm até nós para despertar a nossa compaixão, e também para nos fazer compreender quão terríveis são os rigores da sua justiça contra faltas que podemos considerar como insignificantes. São Gregório, em seus 'Diálogos', relata vários exemplos, cuja autenticidade plena podemos, é verdade, contestar, mas que, na boca do santo Doutor, pelo menos provam que ele acreditava na possibilidade e na existência real desses fatos. Muitos outros autores, não menos louváveis ​​do que São Gregório pela santidade e pela ciência, relatam fatos semelhantes. Além disso, histórias desse tipo abundam na vida dos santos: para se convencer disso, basta acessar as fichas da Acta Sanctorum (Ribet - La mystique divine, distinguée des contrefaçons diaboliques et des analogies humaines - Paris, Poussielgue).

A Igreja Padecente sempre implorou pelos sufrágios da Igreja na terra; e este convívio, marcado pela tristeza mas também eivado de instrução, constitui, por um lado, uma fonte inesgotável de alívio e, por outro, um poderoso estímulo à santidade. A visão do purgatório foi concedida a várias almas santificadas. Santa Catarina de Ricci descia ao purgatório em espírito todos os domingos à noite; Santa Lidwina, durante os seus êxtases, adentrou neste lugar de expiação e, conduzida por seu anjo da guarda, visitou as almas em seus tormentos. Um anjo conduziu também o bem aventurado Osanne de Mântua por esses abismos escuros. A bem aventurada Verônica de BinascoSanta Francisca de Roma e muitos outros receberam visões muito semelhantes, com as mesmas impressões de terror.

Mais frequentemente, são as próprias almas sofredoras que se dirigem aos vivos e clamam por sua intercessão. Várias apareceram assim à bem aventurada Margarida Maria Alacoque⁴ e a uma multidão de outras figuras sagradas. As almas dos defuntos imploravam frequentemente a piedade de Dênis, o Cartuxo. Um dia perguntamos a este grande servo de Deus quantas vezes essas pobres almas lhe apareceram? 'Oh, centenas e centenas de vezes!'- respondeu ele.

⁴ Santa Margarida Maria Alacoque, canonizada pelo papa Bento XV em 1920.

Santa Catarina de Sena, para poupar o seu pai das dores do purgatório, ofereceu-se à justiça divina para sofrer em seu lugar durante a vida. Deus atendeu a sua oferta e a infligiu desde então com dores excruciantes até a sua morte, e acolheu a alma do seu pai na glória. Em troca, essa alma abençoada frequentemente aparecia para a filha, para agradecê-la e para fazer a ela inúmeras revelações.

As almas do purgatório, quando aparecem aos vivos, sempre se apresentam numa atitude que excita a compaixão, às vezes com feições que tiveram em vida ou na morte, com rosto triste e olhares suplicantes, com roupas de luto, com expressão de extrema dor; às vezes, porém, como uma luz, uma nuvem, uma sombra ou alguma figura fantástica, acompanhada de um sinal ou de uma palavra que os permite reconhecer. Em outras ocasiões, elas indicam a sua presença por meio de gemidos, soluços, suspiros, respiração ofegante ou murmurações aflitivas. Frequentemente aparecem envolvidas por chamas. Quando falam, é para expressar o seu sofrimento, para deplorar as suas faltas passadas, para pedir sufrágios ou mesmo para reprovar aqueles que deveriam ajudá-los. 

'Outro tipo de revelação', acrescenta o mesmo autor, 'dá-se por meio de batidas invisíveis que os vivos percebem: batidas à porta, som de correntes, som de vozes. Esses fatos são demasiado frequentes para serem questionados: a única dificuldade é estabelecer a relação direta deles com o mundo da expiação. Mas quando tais manifestações ocorrem com a morte de pessoas que nos são queridas e então cessam, após serem feitas orações e reparações a Deus em nome delas, não nos parece razoável perceber por que estas almas nos dão a conhecer os seus sofrimentos?

Nestes vários fenômenos que acabamos de assinalar, reconheceremos a ação das pobres almas do purgatório. Mas há um caso em que a aparição deve ser considerada suspeita: é quando um pecador escandaloso, inesperadamente surpreendido pela morte, vem implorar as orações dos vivos para serem libertados do purgatório. O demônio está inclinado a nos fazer acreditar que uma alma pode viver na maior iniquidade até a morte e, ainda assim, escapar do inferno. Porém, mesmo nesses encontros, não é proibitivo imaginar que a alma que se manifesta se arrependeu retamente e que se encontra nas chamas da expiação temporária, nem, portanto, se deve deixar de orar por ela; mas é aconselhável atentar com a maior reserva sobre esses tipos de visões e sobre o crédito que elas possam ter (Ribet, Mystique Divine, tomo II, cap. X).

Os detalhes que acabamos de explicitar são suficientes para justificar aos olhos do leitor a citação dos fatos que encontrará no decorrer desta obra. Acrescentemos que o cristão deve ter cuidado para não ser muito incrédulo em fatos sobrenaturais, que estão relacionados com os dogmas de sua fé. São Paulo diz-nos que a caridade acredita em tudo (I Cor 13,7), isto é, como nos explicam os intérpretes, tudo o que se pode crer com prudência não pode ser prejudicial à nossa fé. 

Se é verdade que a prudência condena a credulidade cega e supersticiosa, também é verdade que devemos evitar outro excesso, aquele que o Salvador censura no apóstolo São Tomé: 'Creste, porque me viste. Felizes aqueles que creem sem ter visto! (Jo 20, 29) e ainda: 'Não sejas incrédulo, mas homem de fé' (Jo 20, 27). O teólogo que expõe dogmas da fé deve ser severo na escolha de suas provas; o historiador também deve proceder sob rigoroso espírito crítico na exposição dos fatos; mas o escritor asceta, quando cita exemplos e fatos para esclarecer as verdades e edificar os fiéis, não está sujeito a esse rigor estrito. Os luminares mais autorizados da Igreja, como São GregórioSão BernardoSão Francisco de SalesSanto Afonso de LigórioSão Belarmino e tantos outros, tão distintos pela sabedoria como pela piedade, ao escrever suas obras de excelência, nada sabiam dos requisitos formais dos nossos tempos - que, de forma alguma, constituem propriamente um progresso.

Com efeito, se o espírito dos nossos pais na fé era mais simples, qual a causa que fez desaparecer entre nós esta simplicidade de outrora? Não é esse o racionalismo protestante que contamina em grande escala os católicos de hoje? Não é esse raciocínio e espírito crítico que emergem da reforma luterana, propagada pelo filosofismo francês, que os faz considerar as coisas de Deus de uma forma completamente humana, e que os torna frios e alheios ao espírito de Deus? O venerável Louis de Blois, falando sobre as revelações recebidas por Santa Gertrudes, disse que 'Este livro contém tesouros. Homens orgulhosos e carnais' - acrescenta - 'que nada entendem do espírito de Deus, tratam os escritos da virgem Santa Gertrudes, de Santa Mechtilde, de Santa Hildegarda e outros como devaneios; porque ignoram com que familiaridade Deus se comunica às almas humildes, simples e amorosas; e como, nessas comunicações íntimas, Ele se deleita em iluminar essas almas com a pura luz da verdade, sem sombra de erros' (Louis de Blois, Epist. Ad Florentium).

Estas palavras de Louis de Blois são muito sérias. Não querendo incorrer na censura deste grande mestre da vida espiritual e buscando evitar a credulidade condenável, reunimos com certa liberdade os fatos que nos pareceram ser os mais autênticos e os mais instrutivos. Que possam aumentar em quem os lê a devoção aos fieis defuntos! E que possam imprimir profundamente nas suas almas o pensamento sagrado e salutar do purgatório!


Primeira Parte - O PURGATÓRIO, MISTÉRIO DE JUSTIÇA

Capítulo I

O Purgatório no Plano Divino

O Purgatório ocupa um lugar relevante na nossa santa religião: é uma das partes principais da obra de Jesus Cristo e desempenha um papel essencial no plano da salvação humana. Lembremos que a Santa Igreja de Deus, considerada como um todo, é composta por três parcelas distintas: a Igreja Militante, a Igreja Triunfante e a Igreja Padecente ou do Purgatório. Esta tríplice Igreja constitui o corpo místico de Jesus Cristo, e as almas do Purgatório não são menos membros dela do que os fieis na terra ou os eleitos no Céu. No Evangelho, a Igreja é normalmente chamada de Reino dos Céus; o Purgatório, assim como a Igreja celestial e a terrestre, constitui uma das províncias deste vasto reino.

As três Igrejas irmãs mantêm relações incessantes entre si, uma comunicação contínua que chamamos de Comunhão dos Santos. Essas relações não têm outro objetivo senão conduzir as almas à glória eterna, o termo final para o qual tendem todos os eleitos. As três Igrejas interagem mutuamente para povoar o Céu, a cidade permanente, a gloriosa Jerusalém. Qual é então o trabalho que nós, membros da Igreja Militante, devemos fazer pelas almas do Purgatório? Temos que aliviar os seus sofrimentos. Deus colocou em nossas mãos a chave desta misteriosa prisão: é a oração pelos mortos, é a devoção às almas do Purgatório.

Capítulo II

Oração pelos Mortos - Temor e Confiança

A oração pelos que partiram e os sacrifícios e os sufrágios pelos mortos fazem parte do culto cristão, e a devoção às almas no Purgatório é uma devoção que o Espírito Santo infunde com caridade nos corações dos fieis. É um pensamento sagrado e salutar - dizem as Sagradas Escrituras - orar pelos mortos para que sejam libertados dos seus pecados (II Mc 12, 46).

Para ser perfeita, a devoção às almas do Purgatório deve ser animada por um espírito de temor e um espírito de confiança. Por um lado, a santidade de Deus e e a sua justiça nos inspiram um temor salutar; por outro lado,  a sua infinita misericórdia nos dá uma confiança ilimitada.

Deus é a própria santidade, luz muito maior do que o sol, e sombra alguma de pecado pode perpassar diante de sua face. 'Os teus olhos são puros', diz o profeta, 'e não podes contemplar a iniquidade' (Hb 1, 13). Quando a iniquidade se manifesta nas criaturas, a santidade de Deus exige expiação e, uma vez aplicada com todo o rigor da justiça divina, é terrível. É por esta razão que a Escritura diz também: 'Santo e terrível é o seu nome' (Sl 110, 9), tal como se dissesse: a sua justiça é terrível porque a sua santidade é infinita.

A justiça de Deus é terrível e pune com extremo rigor até as faltas mais comezinhas. A razão é que essas faltas, fagulhas aos nossos olhos, não são de forma alguma assim diante de Deus. O menor pecado o afronta infinitamente e, por causa da santidade infinita que é ofendida, a menor transgressão assume proporções enormes e exige, portanto, uma enorme expiação. Isso explica a terrível severidade das dores da outra vida e nos deve fazer compenetrados de um santo temor de Deus.

Esse temor do Purgatório é um temor salutar; o seu efeito não é apenas nos animar com uma compaixão caritativa para com as pobres almas sofredoras, mas também com um zelo vigilante pelo nosso próprio bem-estar espiritual. Pense no fogo do Purgatório e você se esforçará para evitar o pecado ao máximo; pense no fogo do Purgatório e você praticará a penitência, de modo a satisfazer a Justiça Divina neste mundo e não no próximo.

No entanto, devemos evitar o temor excessivo e não perder a confiança. Não nos esqueçamos da  misericórdia de Deus, que não é menos infinita que a sua justiça: 'porque acima do céu se eleva a vossa misericórdia (Sl 107,5) e  ainda: 'O Senhor é clemente e compassivo, generoso e cheio de bondade (Sl 144,8).  Essa misericórdia inefável deve acalmar as nossas mais vivas apreensões e nos encher de santa confiança, segundo as palavras: in te Domine speravi non confundar in æternum - 'que em vós, Senhor, minha esperança não seja jamais confundida'  (Sl 70,1).

Se formos animados com este duplo sentimento, se a nossa confiança na misericórdia de Deus for igual ao temor que nos inspira a sua justiça, teremos o verdadeiro espírito de devoção às almas do Purgatório. Este duplo sentimento brota naturalmente do dogma do Purgatório bem entendido - um dogma que contém o duplo mistério da justiça e da misericórdia: da justiça que pune e da misericórdia que perdoa. É deste duplo ponto de vista que vamos considerar o Purgatório e ilustrar a sua doutrina.

Capítulo III

A Palavra Purgatório - Doutrina Católica - Questões Controversas

A palavra Purgatório é, às vezes, entendida como significando um lugar, comumente como um estado intermediário entre o Inferno e o Paraíso. É, propriamente falando, a condição das almas que, no momento da morte, estão em estado de graça, mas que não expiaram completamente as suas faltas e nem alcançaram o grau de pureza necessário para desfrutar a visão de Deus.

O Purgatório é, portanto, um estado transitório que termina em uma vida de felicidade eterna. Não é um lugar de provação, no qual um mérito pode ser ganho ou perdido, mas sim, um estado de expiação e reparação. A alma atingiu o fim de sua vida terrena, vida que era um tempo de provação, um tempo de mérito para a alma, um tempo de acolhida à misericórdia da parte de Deus. Uma vez expirado este tempo, nada mais que justiça se deve esperar de Deus, posto que a alma não pode ganhar nem perder mais méritos. Ela permanece no estado em que a morte a encontrou: se a encontrou no estado de graça santificante, ela está certa de nunca perder esse estado de felicidade e de chegar à posse eterna de Deus. No entanto, uma vez que ela está ainda sobrecarregada com certas dívidas de castigo temporal, ela deve satisfazer a Justiça Divina, submetendo-se ao rigor divino deste castigo.

Tal é o significado da palavra Purgatório e a condição das almas que ali se encontram. Sobre este assunto, a Igreja nos propõe duas verdades claramente definidas como dogmas de fé: primeiro, que existe um Purgatório; segundo, que as almas que estão no Purgatório podem ser assistidas pelos sufrágios dos fiéis, especialmente pelo Santo Sacrifício da Missa. Além destes dois pontos dogmáticos, há várias outras questões doutrinárias para as quais a Igreja não estabeleceu decisão final e que foram objeto de interpretações dos doutores da Igreja, que as responderam mais ou menos claramente. Essas questões se relacionam aos seguintes pontos: (i) o local do Purgatório; (ii)  a natureza dos sofrimentos; (iii) o número e as condições das almas que se encontram no Purgatório; (iv) a certeza que possuem da sua bem-aventurança; (v) a duração dos seus sofrimentos; (vi) a intervenção dos vivos em seu nome e a aplicação dos sufrágios da Igreja.

Capítulo IV

Lugar do Purgatório - Doutrina dos Teólogos - Catecismo do Concílio de Trento - São Tomás

Embora a fé nada nos diga de definitivo sobre a localização do Purgatório, a opinião mais comum, aquela que mais está de acordo com a linguagem das Escrituras e que é mais geralmente aceita entre os teólogos, é aquela que o situa nas entranhas da terra e não muito longe do Inferno dos réprobos. Os teólogos são quase unânimes, diz São Belarmino, em ensinar que o Purgatório, pelo menos o lugar de expiação por excelência, está situado no interior da terra e tanto as almas do Purgatório como as dos condenados encontram-se no mesmo espaço subterrâneo do abismo profundo que as Escrituras chamam de Inferno (De purgat. lib. 2. cap. 6).

Quando repetimos no Credo dos Apóstolos que, depois de sua morte, Jesus Cristo desceu ao Inferno - o nome Inferno, diz o Catecismo do Concílio de Trento (Catech. Rom., Cap. 6, § 1), compreende todos aqueles lugares secretos onde se encontram as almas que ainda não alcançaram a beatitude eterna. Mas essas prisões são de tipos diferentes. Uma delas é uma masmorra escura e sombria, onde os condenados são continuamente atormentados por espíritos malignos e por um fogo que nunca se apaga. Este lugar, que é o inferno propriamente dito, também é chamado de geena e abismo. Existe um outro Inferno, que retém o fogo do Purgatório. Ali as almas dos justos sofrem por um determinado tempo, para que possam ser inteiramente purificadas de suas faltas, para então ser acolhidas na pátria celestial, onde contaminação alguma pelo pecado pode entrar.

Um terceiro Inferno foi aquele no qual foram acolhidas as almas dos santos que morreram antes da vinda de Jesus Cristo, no qual desfrutaram de um repouso tranquilo e isento de dores, consolados e sustentados pela esperança de sua redenção. Elas eram aquelas almas santificadas que aguardavam Jesus Cristo no seio de Abraão, e que foram resgatadas quando Cristo desceu ao Inferno. Nosso Salvador infundiu de repente sobre elas uma luz muito brilhante, que os encheu de alegria infinita e deu-lhes a bem-aventurança beatífica, que é a visão de Deus. Cumpriu-se então a promessa de Jesus revelada ao bom ladrão: 'Hoje estarás comigo no Paraíso'.

'Uma opinião muito provável' - diz São Tomás - 'e que, aliás, é ratificada pelas palavras dos santos em revelações particulares, é que o Purgatório apresenta um duplo espaço de expiação. O primeiro está destinado às almas em geral e situa-se em profundezas maiores, próximo ao Inferno; o segundo abrange casos particulares, dos quais provêm as tantas aparições' (Suplemento, part iii, ques. ult.). O santo Doutor admite, portanto, como tantos outros que compartilham de suas opiniões que, às vezes, a Justiça Divina atribui um lugar especial de purificação a certas almas, e permite inclusive que elas apareçam para instruir os vivos ou para obter para as almas sofredoras os sufrágios de que precisam e, em outros casos, por outros desígnios da sabedoria e da misericórdia de Deus.

Essa é a visão geral sobre a localização do Purgatório. Visto que não estamos escrevendo um tratado contencioso, não adicionamos nem provas nem refutações; estas podem ser acessadas nas obras de autores como Suarez e Belarmino. Vamos nos atentar aqui à opinião sobre um inferno subterrâneo que nada tem a temer da ciência moderna pois uma ciência puramente natural é incompetente para resolver questões que pertencem, como esta, à ordem sobrenatural. Além disso, sabemos que os espíritos podem estar em um lugar ocupado por corpos, como se esses corpos não existissem. Qualquer que seja, então, o interior da terra, seja inteiramente de fogo como os geólogos defendem ser, seja em qualquer outro estado, não há nada que tal lugar não possa servir de permanência de espíritos, mesmo de espíritos revestidos com um corpo ressuscitado. O apóstolo São Paulo ensina-nos que o ar está repleto de uma multidão de espíritos malignos: 'temos de lutar ... contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares' (Ef 6,12). Por outro lado, sabemos que os anjos bons que nos protegem não são menos numerosos no mundo. Assim, se anjos e outros espíritos podem habitar a nossa atmosfera, sem que o mundo físico experimente qualquer variação, por que as almas dos mortos não poderiam habitar o seio da terra?

Capítulo V

Localização do Purgatório - Revelações dos Santos - Santa Teresa - São Luís Bertrand - Santa Maria Madalena de Pazzi

Santa Teresa tinha grande caridade para com as almas do Purgatório e as ajudava tanto quanto estava em seu alcance com as suas orações e boas obras. Em recompensa, Deus frequentemente mostrava a ela as almas que ela havia libertado; ela as via no momento de sua libertação do sofrimento e da sua entrada no céu. E, em geral, as almas saíam do seio da terra. 

'Recebi a notícia' - escreve ela - 'do falecimento de um religioso que havia sido o superior dessa província e depois de uma outra. Eu o conhecia e ele me prestou um grande serviço. Essa informação me causou grande inquietação. Embora este homem fosse louvável por muitas virtudes, fiquei apreensivo pela salvação de sua alma, porque ele havia ocupado o cargo de superior por um espaço de vinte anos, e sempre temo muito por aqueles que estão encarregados de cuidar das almas. Muito triste, fui a um oratório; ali invoquei nosso Divino Senhor para aplicar a este religioso o pouco bem que fizera durante a minha vida, e suprir o resto por seus infinitos méritos, a fim de que esta alma pudesse ser libertada do purgatório'.

'Enquanto eu implorava esta graça com todo o fervor de que era capaz, vi do meu lado direito esta alma sair das profundezas da terra e ascender ao céu em vórtices de alegria. Embora esse padre fosse avançado em anos, ele me pareceu com as feições de um homem que ainda não havia atingido a idade de trinta anos, e com um semblante resplandecente de luz. Esta visão, embora muito curta, deixou-me imersa em alegria e sem sombra de dúvida quanto à veracidade do que tinha visto. Como eu estava separada por uma grande distância do lugar onde esse servo de Deus havia terminado os seus dias, demorou algum tempo até que eu soubesse dos detalhes de sua morte edificante: todos aqueles que foram testemunhas disso não puderam olhar sem admiração como ele preservou a consciência até o último momento, as lágrimas que derramou e os sentimentos de humildade com os quais entregou s sua alma a Deus'.

'Um religioso da minha comunidade, um grande servo de Deus, estava morto há menos de dois dias. Estávamos rezando o Ofício dos Mortos para ele no coro; enquanto uma irmã fazia a leitura, eu estava de pé para rezar o versículo. Ao se chegar à metade da leitura, vi sair das profundezas da terra a alma deste religioso, como aquela de que acabei de falar, e ir para o céu'.

'Uma freira da minha comunidade, e uma grande serva de Deus, havia falecido há menos de dois dias. O Ofício dos mortos estava sendo celebrado para ela no coro: enquanto uma irmã fazia a leitura, eu ficava de pé para rezar o versículo. Na metade da leitura, vi a alma dessa religiosa sair, como aquela de quem acabei de falar, do fundo da terra e ir para o céu. Essa visão era puramente intelectual, enquanto a anterior se apresentou a mim sob a forma de imagens. Mas ambas me deixaram a alma com uma igual certeza'.

'Neste mesmo mosteiro, com a idade de dezoito ou vinte anos, acabara de falecer outra freira, verdadeiro modelo de fervor, perseverança e virtude. Sua vida tinha sido uma sequência de doenças e sofrimentos. sempre tolerados com paciência. Eu não tinha dúvidas de que, depois de ter vivido assim, ela não teria mais méritos do que precisava para estar isenta do Purgatório. No entanto, enquanto eu estava no serviço, antes de ser enterrada e cerca de quatro horas após sua morte, eu vi a sua alma também sair da terra e subir ao céu'. - É o que nos escreve Santa Teresa.

Um exemplo semelhante é relatado na vida de São Luís Bertrand, da Ordem de São Domingos. Esta leitura, escrita pelo Padre Antist, religioso da mesma ordem que conviveu com o santo, está inserida na Acta Sanctorum, no dia 10 de outubro: no ano de 1557, quando São Luís Bertrand residia no convento de Valência, a peste irrompeu nesta cidade. O terrível flagelo, em ondas sucessivas, ameaçava todos os habitantes e cada qual temeu pela sua vida. Um religioso da comunidade, Padre Clément Benet, desejando ardentemente preparar-se para a morte, fez uma confissão geral de toda a sua vida ao santo e, após a confissão, disse a ele: 'Padre, se agora for do agrado de Deus me chamar, eu haverei de voltar e tornar conhecido a você a minha condição na outra vida'. 

Ele morreu realmente pouco depois e, na noite seguinte, apareceu ao santo dizendo-lhe que ainda estava retido no Purgatório por algumas pequenas faltas ainda a expiar, implorando a sua recomendação à comunidade. O santo comunicou imediatamente este pedido ao Padre Prior, que se apressou em recomendar a alma do defunto às orações e súplicas por parte de todos os irmãos daquela congregação. Seis dias depois, um homem da cidade, que nada sabia do ocorrido no convento, vindo confessar-se ao padre Bertrand, revelou-lhe que 'a alma do padre Clément havia se manifestado a ele. Ele tinha visto a terra se abrir e a alma do falecido padre emergir dela toda gloriosa: parecia - acrescentou ele - como uma estrela resplandecente que se elevou no ar em direção ao céu'. 

Lemos na vida de Santa Madalena de Pazzi, escrita pelo seu confessor, o Padre Cépari da Companhia de Jesus, que esta serva de Deus foi testemunha da libertação de uma alma nas seguintes circunstâncias. Uma de suas religiosas já estava morta há algum tempo, quando a santa, encontrando-se em oração diante do Santíssimo Sacramento, viu a alma desta irmã emergindo da terra, mas ainda presa às prisões do Purgatório. Ela estava envolvida por um manto de chamas, abaixo do qual um vestido de alvura deslumbrante a protegia contra o calor muito forte do fogo; e ela permaneceu por uma hora inteira aos pés do altar, adorando, em indizível prostração, o Deus escondido sob as espécies eucarísticas. Essa hora de adoração, que Santa Madalena a viu fazer, foi a última de sua penitência; assim que esta hora expirou, sua alma se elevou e voou em direção ao céu.

Capítulo VI

Localização do Purgatório - Santa Francisca Romana - Santa Maria Madalena de Pazzi

Aprouve a Deus mostrar em espírito as moradas sombrias do Purgatório a algumas almas privilegiadas, que deviam revelar os seus tristes mistérios para a edificação dos fiéis. Dentre este número, encontra-se a ilustre Santa Francisca Romana, fundadora dos Oblatos, que morreu em Roma em 1440. Deus a favoreceu com grandes luzes sobre o estado das almas na outra vida. Ela viu o inferno e seus tormentos horríveis; viu também o interior do Purgatório e a misteriosa ordem - que dizia estabelecer uma hierarquia das expiações - que reina nesta porção da Igreja de Jesus Cristo.

Em obediência aos seus superiores, que se julgavam obrigados a impor-lhe esta obrigação, ela deu a conhecer tudo o que Deus lhe havia manifestado; e suas visões, escritas a pedido do venerável Cônego Matteotti, seu diretor espiritual, têm toda a autenticidade que se pode desejar em tais assuntos. Assim, a serva de Deus declarou que, após ter suportado com indizível horror a visão do Inferno, ela saiu daquele abismo e foi conduzida por seu guia celestial - o Arcanjo Rafael - para as regiões do Purgatório. Ali não reinava nem horror, nem desordem, nem desespero e nem escuridão eterna; ali a esperança divina difundia a sua luz e ela foi informada de que este lugar de purificação era também chamado de 'portal da esperança'. Ela viu que as almas sofriam cruelmente, mas os anjos as visitavam e as ajudavam em seus sofrimentos.

O purgatório - disse ela - é dividido em três partes distintas, que são as três grandes províncias daquele reino do sofrimento. Eles estão situados um abaixo do outro e ocupados por almas de diferentes ordens. Essas almas estão aprisionadas mais profundamente na medida em que estão mais conspurcadas e mais distantes do momento de sua libertação.

A região mais inferior é tomada por um fogo devorador, mas que não é escuro como o do inferno; é um vasto mar de fogo que projeta labaredas imensas. Inúmeras almas estão mergulhadas em suas profundezas: são aquelas que se tornaram culpadas de pecado mortal, devidamente confessados, mas que não foram expiados suficientemente em vida. A serva de Deus teve ciência então que, para cada pecado mortal perdoado, ainda faz-se necessário um período de expiação de sete anos. Este período não deve ser entendido como uma medida fixa, uma vez que os pecados mortais podem diferir enormemente, mas como um tempo médio de expiação. Embora as almas estejam envoltas nas mesmas chamas, seus sofrimentos não são os mesmos; estes diferem de acordo com o número e a natureza dos pecados de cada alma.

Neste Purgatório Inferior, a santa viu leigos e também pessoas consagradas a Deus. Os leigos eram aqueles que, depois de uma vida de pecado, tiveram a felicidade de se converterem sinceramente; as pessoas consagradas a Deus eram aquelas que não tinham vivido de acordo com a santidade do seu estado religioso. Nesse mesmo momento, ela viu descer a alma de um sacerdote que ela conhecia, mas cujo nome ela não revela. Ela observou que ele tinha o rosto coberto por um véu que escondia uma mancha - a mancha da sensualidade. Embora tivesse levado uma vida edificante, esse padre nem sempre mantivera uma rígida temperança e buscara com demasiada ansiedade as satisfações à mesa.

A santa foi levada então ao Purgatório Intermediário, destinado às almas que mereciam um castigo menos rigoroso. Ele tinha três compartimentos distintos; um parecia uma imensa masmorra de gelo, cujo frio era indescritivelmente intenso; o segundo, ao contrário, era como um enorme caldeirão de óleo fervente e piche; o terceiro tinha a aparência de um lago de metal líquido semelhante ao ouro ou a prata fundidos.

O Purgatório Superior - que a santa não descreve - é a morada temporária das almas que, tendo sido purificadas pelas dores dos sentidos, sofrem agora tão somente a dor da separação de Deus, à medida em que se aproximam do feliz momento de sua libertação.

Essa é, em substância, a visão de Santa Francisca Romana em relação ao Purgatório. O que se segue é um relato de Santa Madalena de Pazzi, uma carmelita florentina, como é relatado em sua vida pelo Padre Cepari. Ele dá uma imagem mais completa do Purgatório, enquanto a visão anterior apenas projetava os seus contornos.

Algum tempo antes de sua morte, que ocorreu em 1607, a serva de Deus, estando uma noite com várias outras religiosas no jardim do convento, foi arrebatada em êxtase e viu o Purgatório aberto diante dela. Ao mesmo tempo, como ela fez saber mais tarde, uma voz a convidou a visitar todas as prisões da Justiça Divina, e ver quão verdadeiramente dignas de compaixão são as almas ali aprisionadas.

Nesse momento, ela disse: 'Sim, irei'. Ela consentiu em empreender esta dolorosa jornada. Na verdade, ela caminhou por duas horas através do jardim, que era muito grande, parando de vez em quando. Cada vez que interrompia a sua caminhada, ela contemplava com atenção os sofrimentos que lhe eram mostrados. Ela então foi vista torcendo as mãos de compaixão, o seu rosto empalideceu, e o seu corpo curvou-se sob o peso do sofrimento diante do que se passava aos seus olhos.

Ela começou a chorar e a lamentar em alta voz: 'Misericórdia, meu Deus, misericórdia! Desce, ó Sangue Precioso, e livra essas almas de sua prisão. Pobres almas que sofrem tão cruelmente e, ainda assim, estão felizes e alegres. As masmorras dos mártires, em comparação a essas, eram jardins de deleite. No entanto, existem outras ainda mais profundas. Quão feliz eu deveria me considerar se não fosse obrigada a me adentrar nessas profundezas'.

Ela desceu, no entanto, porque foi forçada a continuar o seu caminho. Mas, depois de dar alguns passos, parou apavorada e, suspirando profundamente, gritou: 'Como? Religiosos estão também nesta morada sombria? Ó Bom Deus, como são atormentados! Ah, Senhor!'. Ela não explica a natureza destes sofrimentos; mas o horror que ela manifestava ao contemplá-los a fazia suspirar a cada passo. Ela passou dali para lugares menos sombrios. Eram masmorras de almas simples e de crianças nas quais a ignorância e a falta de razão atenuavam muitos defeitos. Seus tormentos pareciam-lhe muito mais suportáveis ​​do que os dos outros. Nada além de gelo e fogo estavam lá. Ela notou que as almas tinham consigo os seus anjos da guarda, que as fortificavam enormemente com a sua presença; mas ela viu também demônios cujas formas terríveis faziam aumentar os seus sofrimentos.

Avançando mais alguns passos, ela viu almas ainda mais infelizes e foi ouvida gritando: 'Ó quão horrível é este lugar; está cheio de demônios horríveis e tormentos incríveis! Quem, ó meu Deus, são as vítimas dessas torturas cruéis? Ai de mim! Elas estão sendo perfurados com espadas afiadas, sendo cortadas em pedaços!'. Ela recebeu como resposta que eram as almas cuja conduta havia sido marcada pela hipocrisia.

Avançando ainda um pouco, viu uma grande multidão de almas que estavam pisoteadas por assim dizer, e esmagadas por uma prensa; e compreendeu que eram as almas vitimadas pela impaciência e pela desobediência em vida. Enquanto as contemplava, seus olhares, seus suspiros e toda a atitude delas  expressavam compaixão e terror.

Um momento depois, a sua agitação aumentou e ela soltou um grito terrível. Era a masmorra das almas dos mentirosos que agora estava aberta diante dela. Depois de considerá-los com atenção, gritou em voz alta: 'Os mentirosos estão confinados em um lugar próximo ao inferno e os seus sofrimentos são particularmente intensos: chumbo derretido é derramado em suas bocas e eu os via queimar e, ao mesmo tempo, tremer de frio'.

Ela foi então para a prisão das almas que haviam pecado por fraqueza e foi ouvida a exclamar: 'Ai de mim! Pensei que te encontraria entre aqueles que pecaram por ignorância, mas estava enganada: você queima com um fogo mais intenso'. Mais adiante, ela percebeu almas que haviam se apegado demais aos bens deste mundo e pecaram por avareza: 'Que cegueira' - disse ela - 'para buscar avidamente uma fortuna perecível! Aqueles que antes as riquezas não podiam saciar o suficiente, estão aqui fartos de tormentos. Eles são fundidos como o metal na fornalha'. 

Dali ela passou para o lugar onde estavam aprisionadas as almas manchadas de impureza. Ela os viu em uma masmorra tão imunda e pestilenta que a visão lhe produziu náusea. Ela se afastou rapidamente daquele lugar repugnante. Vendo os ambiciosos e os orgulhosos, ela disse: 'Eis aqueles que desejavam brilhar diante dos homens; e que agora estão condenados a viver nesta obscuridade terrível!'. Então ela viu as almas que haviam sido culpadas de ingratidão para com Deus. Eles eram vítimas de tormentos indizíveis e, por assim dizer, afogadas em um lago de chumbo derretido, por terem, por sua ingratidão, secado a fonte de piedade.

Finalmente, em uma última masmorra, ela viu almas que não haviam sido entregues a nenhum vício em particular, mas que, por falta de vigilância adequada sobre si mesmas, cometeram todos os tipos de falhas triviais. Ela observou que essas almas participavam das punições de todos os vícios, em grau atenuado, porque as faltas cometidas apenas de vez em quando as tornavam menos culpadas do que as cometidas repetidamente pelo hábito.

Depois desta última estação, a santa deixou o jardim, implorando a Deus que nunca mais a fizesse testemunhar um espetáculo tão comovente, pois sentia que não tinha mais forças para suportá-lo. Seu êxtase ainda continuava e, conversando com Jesus, ela lhe disse: 'Diga-me, Senhor, qual foi o seu desígnio ao desvelar para mim aquelas terríveis prisões, das quais eu sabia tão pouco e compreendia ainda menos? Ah! Agora vejo: queria dar-me o conhecimento da Vossa santidade infinita e fazer-me detestar cada vez mais a menor mancha do pecado, que é tão abominável aos Vossos olhos'. 

Capítulo VII

Localização do Purgatório - Santa Liduína de Schiedam

Vamos narrar uma terceira visão relativa ao interior do Purgatório, a de Santa Liduína de Schiedam, falecida em 11 de abril de 1433, e cuja história, escrita por um sacerdote contemporâneo, tem a mais perfeita autenticidade. Esta admirável virgem, verdadeiro prodígio da paciência cristã, foi presa de todas as dores das mais cruéis doenças durante o período de trinta e oito anos. Seus sofrimentos tornaram o sono impossível para ela e, assim, passou longas noites em oração, e então, frequentemente envolta em êxtases, foi conduzida por seu anjo da guarda às misteriosas regiões do Purgatório. Lá ela viu moradias, prisões, masmorras diversas, uma mais sombria que a outra; ela conheceu, também, almas que ela conhecia, e ainda vislumbrou os seus diversos castigos.

Pode-se perguntar: 'qual foi a natureza dessas viagens de êxtase?' o que é difícil de explicar, mas podemos concluir de certas outras circunstâncias que havia mais realidade nelas do que podemos ser levados a acreditar. A santa prostrada e doente fazia viagens e peregrinações semelhantes na terra, aos lugares sagrados da Palestina, às igrejas de Roma e aos mosteiros das redondezas. Ela tinha um conhecimento exato dos lugares onde teria percorrido. Certa ocasião, um religioso do mosteiro de Santa Elisabeth, conversando com a santa, recebeu dela informações das celas, do oratório, do refeitório e da sua comunidade, com uma descrição tão exata e detalhada como se ela tivesse vivido a sua vida inteira ali. Tendo o religioso expressado a sua surpresa diante estes fatos, ela respondeu: 'Saiba, padre que eu que já visitei o seu mosteiro'.

Um infeliz pecador, enredado pelas corrupções do mundo, foi finalmente convertido. Graças às orações e exortações constantes de Liduína, fizera uma sincera confissão de todos os seus pecados e recebera a absolvição, mas teve pouco tempo para praticar a penitência, pois pouco depois morreu de peste. A santa ofereceu muitas orações e sofrimentos por sua alma; algum tempo depois, tendo sido levada por seu anjo da guarda ao Purgatório, ela desejou saber se ele ainda estava lá e em que condições. 'Ele está lá', disse o anjo, 'e sofre muito. Você estaria disposta a suportar um pouco de dor para diminuir a dele?' 'Certamente', respondeu ela, 'estou pronta para sofrer qualquer coisa para ajudá-lo'.

Instantaneamente, o seu anjo da guarda a conduziu a um lugar de terrível tortura. 'É esse, então o inferno, meu irmão?' perguntou a santa, tomada de grande horror. 'Não, irmã', respondeu o anjo, 'mas esta parte do Purgatório faz fronteira com o Inferno'. Olhando em volta por todos os lados, ela viu o que parecia ser uma imensa prisão, cercada por paredes de uma altura prodigiosa, cuja escuridão, associada às pedras monstruosas, lhe inspirou enorme horror. 

Aproximando-se deste recinto sombrio, ela ouviu um barulho ensurdecedor de vozes de desespero, gritos de fúria, de correntes e de instrumentos de tortura, e golpes violentos que os algozes desferiram sobre suas vítimas. Esse barulho era tal que todo o tumulto do mundo, de tempestades ou batalhas, não podia ser comparado a ele. 'O que seria então aquele lugar horrível?' perguntou Santa Liduína ao seu anjo protetor. 'Você deseja que eu lhe mostre para você?' 'Não, eu te imploro', disse ela, recuando de terror, 'o barulho que ouço é tão terrível que não posso mais suportá-lo; como, então, eu poderia suportar a visão daqueles horrores?' 

Continuando a sua misteriosa jornada, ela viu um anjo, envolto em tristeza, sentado na beira de um poço. 'Quem é aquele anjo?' perguntou ao seu guia. Ele respondeu: 'É o anjo da guarda do pecador em cujo destino você está interessado;  a sua alma encontra-se neste poço, onde há um Purgatório especial'. Diante essas palavras, Liduína lançou um olhar inquiridor para o seu anjo; ela desejava ver aquela alma que lhe era tão querida e se dedicar a libertá-la daquele terrível calabouço. O anjo, compreendendo o seu empenho pessoal, removeu a tampa do poço pelo seu poder e imediatamente um redemoinho de fogo escapou para fora, acompanhado de terríveis gritos de desespero.

'Você reconhece essa voz?' disse o anjo para ela. 'Ai de mim, sim!', respondeu a serva de Deus. 'Você deseja ver essa alma?' retrucou o anjo. Quando ela respondeu afirmativamente, o anjo chamou a alma pelo seu nome e, imediatamente, a santa viu elevar-se sobre a abertura do poço um espírito todo envolto em chamas, à forma de um metal incandescente, que disse a ela em voz quase inaudível: 'Ó Liduína, serva de Deus, o que me darás em meu favor para que eu possa contemplar a face do Altíssimo?' A visão desta alma, encarcerada num abismo de fogo, deu à nossa santa um tal choque que o cinto que ela usava ao redor do corpo partiu-se em dois e, não sendo mais capaz de suportar a visão, ela despertou repentinamente do seu êxtase.

As pessoas presentes, percebendo o seu estado, perguntaram-lhe a causa. 'Ai de mim!' ela respondeu, 'quão terríveis são as prisões do Purgatório! Foi para ajudar as almas que consenti em descer até lá. Sem esse motivo, ainda que o mundo inteiro fosse dado a mim, eu não sofreria o terror que aquele horrível espetáculo me inspirou'. Alguns dias depois, o mesmo anjo que ela vira tão abatido apareceu-lhe com um semblante alegre; ele disse a ela que a alma de seu protegido havia deixado o poço e passado para o purgatório comum. Esse alívio parcial não bastou à caridade de Liduína; ela continuou a rezar em intenção daquela pobre alma e a aplicar a ela os méritos dos seus sofrimentos, até o dia em que viu as portas do céu finalmente abertas para ela.

Capítulo VIII

Localização do Purgatório - São Gregório Magno:  o Diácono Paschasius e o Sacerdote de Centumcelle - O Beato Estêvão e o Religioso na Capela - Teóphile Renaud e a paciente de Dôle

Segundo Santo Tomás e outros doutores da Igreja, como visto previamente, em alguns casos particulares a justiça divina atribui um lugar especial na terra para a purificação de certas almas. Esse sentimento é confirmado por vários fatos; entre os quais citaremos em primeiro lugar dois deles relatados por São Gregório Magno em seus Diálogos: 'Quando eu era jovem e ainda leigo' - escreve o santo Papa - 'ouvi de anciãos bem informados como o diácono Paschasius havia aparecido a Germain, bispo de Cápua'. 

'Paschasius, diácono desta sé apostólica, de quem ainda temos excelentes livros sobre o Espírito Santo, era um homem de eminente santidade, devotado às obras de caridade, zeloso pela ajuda aos pobres e muito esquecido de si mesmo. Certa ocasião, teve início uma acirrada disputa envolvendo uma eleição de um pontífice. Paschasius, isolando-se da posição dos bispos, apoiou uma escolha diversa da aprovada pelo episcopado. Mas ele morreu em seguida, com fama de santidade, que Deus confirmou por um milagre: uma cura instantânea ocorreu no próprio dia do seu funeral, ao simples toque de sua dalmática'.

'Muito tempo depois, Germain, bispo de Cápua, foi enviado pelos médicos para se banhar nas termas de Sant-Angelo, em Abruzzo. Qual não foi o seu espanto em encontrar ali, empregado nos últimos serviços dos banhos, o mesmo diácono Paschasius! 'Estou expiando aqui', disse-lhe a aparição, 'pela culpa que tive em me aliar ao partido errado'. Peço-lhe, ore ao Senhor por mim: saberá que tem sido ouvido assim que deixar de me ver nestes lugares. Germain começou a orar pelo falecido e, depois de alguns dias, ao retornar, procurou em vão por Paschasius, que havia desaparecido. Ele teve que sofrer, acrescenta São Gregório, apenas um castigo temporário depois desta vida, porque pecou por ignorância e não por maldade'. 

O mesmo santo papa relata também sobre um sacerdote de Centumcelle, atual Cività-Vecchia, que também foi-se servir das águas termais. Um homem atendeu-o nas funções mais servis e humildes daquele ofício, por vários dias, sempre com extrema complacência e disposição. O bom sacerdote, pensando que deveria recompensar tanta consideração, levou dois pães abençoados e, depois do serviço do dia, ofereceu-os ao servo prestativo. Este último, com uma expressão triste, respondeu-lhe: 'Por que, padre, oferece-me estes pães? Eu não os posso comer. Eu, que me vês, fui o senhor deste lugar e, depois da minha morte, fui mandado de volta para cá para a expiação das minhas faltas, nesta condição em que me encontro. Se você me quer bem, ó oferece a mim o Pão da Eucaristia!'.

Com essas palavras, desapareceu repentinamente e aquele que o sacerdote pensava tratar-se de um servidor prestativo mostrou-se, ao desaparecer assim, ser tão somente um espírito. Durante uma semana inteira, o sacerdote entregou-se a exercícios de penitência e ofereceu todos os dias a Sagrada Hóstia nas intenções do falecido; retornando posteriormente às termas, já não mais o encontrou ali, concluindo, então, que ele havia sido libertado.

Parece que a justiça divina, às vezes, condena as almas a padecer os seus castigos no mesmo lugar onde cometeram as suas faltas. Lemos nas crônicas dos Frades Menores que o Beato Estêvão, religioso deste instituto, tinha uma devoção singular ao Santíssimo Sacramento, o que o fazia passar parte de suas noites em adoração. Em uma dessas circunstâncias, estando sozinho na capela em meio a escuridão, quebrada pela única luz de uma pequena lamparina, ele viu de repente um religioso num dos assentos, profundamente recolhido e com a cabeça totalmente encoberta pelo capuz. 

Estêvão se aproxima dele e pergunta se ele tem permissão para estar fora da cela naquele momento. 'Sou um religioso falecido' - o homem responde. 'É aqui que devo cumprir meu purgatório, de acordo com um julgamento da justiça de Deus, porque é aqui que pequei por mornidão e negligência no ofício divino. O Senhor permite que você conheça a minha condição, para que possa me ajudar com as suas orações'. Comovido diante estas palavras, o beato se ajoelhou imediatamente e começou a o hino De Profundis e outras orações, percebendo que, enquanto orava, o rosto do falecido expressava alegria. Várias vezes mais, nas noites seguintes, a aparição mostrou-se da mesma forma, cada vez mais feliz, à medida que se aproximava a sua libertação. Finalmente, depois de uma última oração do Beato Estêvão, o espírito levantou-se do seu assento, imerso em luz radiante, expressou sua gratidão ao beato e desapareceu na luz da glória.

O relato seguinte tem algo tão maravilhoso que ter-se-ia hesitação em reproduzi-lo, como disse o Cônego Postel, se não tivesse sido registrado em muitas obras, segundo o Pe. Théophile Renaud, teólogo e polemista do Século XVII, que o relata como um acontecimento ocorrido na sua época e quase sob os seus olhos. Padre Louvet acrescenta que o Vigário Geral do Arcebispado de Besançon, depois de examinar todos os detalhes, reconheceu a sua plena veracidade. 

No ano de 1629, em Dôle, região de Franche-ComptéHuguette Roy, uma mulher de meia-idade, ficou confinada de cama por causa de uma inflamação dos pulmões, que a fez temer por sua vida. O médico que a atendeu, optando por induzir uma sangria na paciente, cortou involuntariamente uma artéria do seu braço esquerdo, comprometendo o fluxo de sangue até às extremidades do seu membro. No dia seguinte, logo pela manhã, uma jovem toda vestida de branco adentra no seu quarto e pergunta à paciente, com uma atitude muito modesta, se ela aceita ser cuidada por ela. 

A paciente, feliz com a oferta, aceita de imediato e com grande prazer. Imediatamente a seguir, a estranha pôs-se a acender o fogo, conduziu gentilmente Huguette a deitar-se na cama e assim continuou a atendê-la e a servi-la como a enfermeira mais prestativa e devotada possível.. Coisa maravilhosa! O simples toque das mãos dessa estranha havia sido tão benéfico que a paciente ficara tão aliviada que até sentia estar já completamente curada. Ela queria saber detalhes daquela pessoa tão amável e quis interrogá-la, mas a estranha disse que precisava ir embora e que voltaria à noite.

Quando a visitante desconhecida retornou à noite, ela disse a Huguette Roy, sem maiores rodeios: 'Saiba, minha querida sobrinha, que eu sou a sua tia, Léonarde Collin, que morreu há dezessete anos, deixando para você uma pequena propriedade como herança. Graças à bondade divina, estou salva, e foi graças à bem aventurada Virgem Maria, por quem tive sempre grande devoção, que obteve para mim esta felicidade. Sem ela, eu estaria perdida. Quando a morte me atingiu de repente, eu estava em pecado mortal; mas a misericordiosa Virgem obteve para mim naquele momento um ato de contrição perfeita, salvando-me assim da condenação eterna. Desde então, estou no purgatório, e o Senhor permite que eu venha até aqui e complemente a minha expiação, ficando ao seu serviço por quarenta dias. No final deste tempo, estarei liberada dos meus sofrimentos e, por sua vez, você deverá ter a caridade de fazer três peregrinações em minha intenção a três santuários da Santíssima Virgem'. 

Huguette ficou atônita, sem saber o que pensar dessa linguagem, não podendo acreditar na realidade dessa aparição e, temendo alguma armadilha do espírito maligno, consultou o seu confessor, o padre Antoine Rolland, um jesuíta, que a aconselhou a ameaçar a desconhecida com os exorcismos da Igreja. Essa ameaça, entretanto, não a perturbou; ela disse calmamente que não temia as orações da Igreja: 'Eles não têm força' - acrescentou ela - 'exceto contra os demônios e os condenados, de forma alguma contra as almas predestinadas e a favor de Deus, como a minha'.

Huguette não se convenceu: 'Como' - disse ela à jovem - 'você pode ser minha tia Léonarde? Ela era velha e alquebrada, além de desagradável e um tanto caprichosa, enquanto você é jovem, gentil e atenciosa'. 'Ah! minha sobrinha' - respondeu a aparição - 'meu verdadeiro corpo está no túmulo, onde permanecerá até a ressurreição; aquele pelo qual você me vê é outro corpo, milagrosamente formado do ar, para me permitir falar com você, servi-la e obter os seus votos. Quanto ao meu caráter difícil e raivoso, dezessete anos de terrível sofrimento me ensinaram paciência e gentileza. Saiba além do mais que, no Purgatório, a pessoa é confirmada na graça, marcada com o selo dos eleitos e, portanto, isenta de todos os vícios'. 

Após tais explicações, a incredulidade não era mais possível. Huguette, ao mesmo tempo maravilhada e grata, recebeu com alegria os serviços que lhe foram prestados, durante os quarenta dias assinalados. Só ela podia ver e ouvir a falecida, que lhe aparecia em determinados momentos e depois desaparecia. Assim que as suas forças o permitiram, ela realizou piedosamente as peregrinações que lhe haviam sido solicitadas.

No final dos quarenta dias, as aparições cessaram. Léonarde apareceu uma última vez para anunciar sua libertação: ela estava então em um estado de glória incomparável, cintilando como uma estrela e trazendo no rosto a expressão da mais perfeita bem aventurança. Ela, por sua vez, expressou sua gratidão à sobrinha, prometeu rezar por ela e por toda a sua família, e se comprometeu a sempre lembrar a ela, em meio às dores da vida, a meta suprema de nossa existência, que é a salvação da nossa alma.

Capítulo IX

As Dores do Purgatório: sua Natureza e Rigor - Doutrina dos Teólogos: São Belarmino e São Francisco de Sales - Medo e Confiança

Existe no Purgatório, tal como no Inferno, uma dor dupla - a dor da perda e a dor dos sentidos. A dor da perda consiste em ser privado por algum tempo da vista de Deus, que é o Bem Supremo, fim beatífico para o qual foram feitas as nossas almas, assim como são os nossos olhos para a luz. É uma sede moral que atormenta a alma. A dor dos sentidos, ou sofrimento sensível, é a mesma que experimentamos em nossa carne. A sua natureza não se define pela fé, mas é opinião comum dos Doutores da Igreja que ela consiste em fogo e outras espécies de sofrimento. O fogo do Purgatório, dizem os Padres da Igreja, é o mesmo do inferno, de que fala o rico glutão: - quia crucior in hac flamma - 'eu sofro cruelmente nestas chamas'.

Quanto à gravidade dessas dores, uma vez que são infligidas pela Justiça Infinita, são proporcionais à natureza, gravidade e número dos pecados cometidos. Cada um recebe segundo as suas obras, cada um deve honrar-se das dívidas de que se vê acusado perante Deus. Porém, essas dívidas diferem muito em qualidade. Algumas, que se acumularam durante uma longa vida, atingiram os dez mil talentos do Evangelho, ou seja, os milhões e as dezenas de milhões; enquanto outras são reduzidas a poucos centavos, o resto insignificante daquilo que não foi devidamente expiado na terra. Segue-se disso que as almas passam por vários tipos de sofrimentos e que existem inúmeros graus de expiação no Purgatório, sendo que alguns são incomparavelmente mais severos do que outros. No entanto, falando em termos gerais, os Doutores da Igreja concordam em dizer que estas dores são insuportáveis. O mesmo fogo, diz São Gregório, atormenta os condenados e purifica os eleitos (salmo 37). 'Quase todos os teólogos' - diz São Belarmino - 'ensinam que os réprobos e as almas do Purgatório sofrem a ação do mesmo fogo' (De Purgat., i. 2, cap. 6).

Deve-se tomar como certeza - escreve o mesmo São Belarmino - que não há proporção entre os sofrimentos desta vida e aqueles do Purgatório (De Gemitu Columbae, lib. ii, cap. 9). Santo Agostinho declara precisamente o mesmo em seu comentário sobre o Salmo 31: 'Senhor' - ele diz - 'não me castigueis com vossa ira, e não me rejeiteis como aqueles a quem dissestes: vai para o fogo eterno; não me castigueis com vosso santo furor: purificai-me antes de tal maneira nesta vida que eu não precise ser purificado pelo fogo na próxima. Sim, temo aquele fogo que foi aceso para aqueles que serão salvos, é verdade, mas ainda assim salvos pelo fogo (1 Cor 3, 5). Sim, estes serão salvos, sem dúvida, após a provação pelo fogo, mas essa provação será terrível, esse tormento será mais insuportável do que todos os sofrimentos mais excruciantes deste mundo. 

Com base nas palavras de Santo Agostinho, e nas que São Gregório, o Venerável Beda, Santo Anselmo e São Bernardo falaram depois dele, São Tomás vai ainda mais longe, afirmando que a menor dor do Purgatório supera todos os sofrimentos desta vida, quaisquer que sejam eles. A dor, diz o beato Pedro Lefevre, é mais profunda e mais aguda quando ataca diretamente a alma e a mente do que quando afeta apenas o corpo. O corpo mortal e os próprios sentidos absorvem e interceptam uma parte da dor física e até mesmo moral (Sentim. Du B. Lefevre sur la Purg., Mess du S. Coeur, novembro de 1873). O autor da 'Imitação' explica essa doutrina por meio de uma frase bastante prática e marcante. Falando em geral dos sofrimentos da outra vida, diz ele: uma hora de tormento será mais terrível do que cem anos de rigorosa penitência nesta vida (Imitação de Cristo, lib. 1, cap. 24). Para provar esta doutrina, afirma-se que todas as almas do Purgatório sofrem a dor da perda e que essa dor supera todo o sofrimento mais agudo. 

Mas, para falar apenas da dor dos sentidos: sabemos que coisa terrível é o fogo, quão fraca é a chama que acendemos em nossas casas, e que dor é causada pela menor queimadura; quanto mais terrível deve ser aquele fogo que não é alimentado com lenha nem óleo, e que nunca pode ser extinto! Aceso pelo sopro de Deus para ser o instrumento da sua Justiça, ele apodera-se das almas e as atormenta com incomparável rigor. O que já dissemos, e o que ainda temos a dizer, está bem justificado para nos inspirar aquele temor salutar que nos foi recomendado por Jesus Cristo. 

Mas para evitar que alguns leitores, esquecidos da confiança cristã que deve moderar os nossos medos, não se entreguem a um temor excessivo, comparemos a doutrina anterior com a de um outro Doutor da Igreja, São Francisco de Sales, que apresenta as penas do purgatório temperadas pelas consolações que os acompanham. 'Podemos' - diz este santo e amável diretor de almas - 'extrair do pensamento do Purgatório mais consolo do que apreensão'. A maior parte dos que temem o Purgatório pensam muito mais em seus próprios interesses do que nos interesses da glória de Deus; isso procede do fato de que eles pensam apenas nos sofrimentos, sem considerar a paz e a felicidade que são desfrutadas pelas almas sagradas. É verdade que os tormentos são tão grandes que os sofrimentos mais agudos desta vida não se comparam a eles; mas a satisfação interior que existe é tal que nenhuma felicidade ou contentamento na terra pode igualá-la.

As almas estão em contínua união com Deus, estão perfeitamente resignadas à sua vontade, ou melhor, a sua vontade é tão transformada na própria vontade de Deus que não podem querer senão o que Deus quer; de modo que, se o Paraíso fosse aberto diante delas, eles se precipitariam no inferno em vez de se apresentarem diante de Deus com as manchas pelas quais se veem desfigurados. Elas se purificam de boa vontade e com amor, porque esta é a Vontade Divina.

As almas desejam permanecer ali no estado em que Deus quer e enquanto isso for do seu agrado. Elas não podem pecar, nem experimentar o menor sentimento de impaciência, nem cometer a menor imperfeição. Elas amam a Deus mais do que amam a si mesmos e mais do que todas as outras coisas; elas amam a Deus com um amor perfeito, puro e desinteressado. Estas almas são consoladas por anjos e têm a certeza da salvação eterna, estando plenos de uma esperança que nunca pode ser frustrada em suas expectativas. Sua angústia mais amarga é amenizada por uma certa paz profunda. É uma espécie do inferno quanto ao sofrimento; mas é o Paraíso no que diz respeito ao deleite infundido em seus corações pela caridade - caridade, mais forte que a morte e mais poderosa que o inferno; caridade iluminada por lâmpadas que são todas de fogo e chama (Cântico 8). 'Feliz estado' - complementa o santo bispo - 'mais desejável do que abominável, uma vez que suas chamas são chamas de amor e de caridade' (Esprit de Saint François de Sales, cap. 9, p. 16).

Tais são os ensinamentos dos Doutores da Igreja, dos quais se segue que, se as dores do Purgatório são rigorosas, não deixam de ser consoladoras. Ao impor a sua cruz sobre nós nesta vida, Deus derrama sobre ela a unção de sua graça; ao purificar as almas no Purgatório como o ouro no cadinho, Ele tempera as suas chamas com consolações inefáveis. Não devemos perder nunca de vista esse aspecto consolador, esse lado luminoso do quadro muitas vezes sombrio que estamos a examinar.

Capítulo X

Dores do Purgatório - Santa Catarina de Gênova - Santa Teresa - Padre Nieremberg -  A Dor da Perda 

Depois de termos ouvido os teólogos e os doutores da Igreja, ouçamos outros doutores: são santos que falam dos sofrimentos da outra vida e relatam o que Deus lhes deu a conhecer por comunicação sobrenatural. Santa Catarina de Gênova, em sua obra 'Tratado sobre o Purgatório' (cap. II, 8) diz: 'As almas suportam um tormento tão extremo que nenhuma língua pode descrevê-lo, nem o entendimento poderia conceber a menor noção disso, se Deus não o fizesse conhecido por uma graça particular'. 'Nenhuma língua' - acrescenta - 'pode expressar e nenhuma mente pode conceber qualquer ideia do que é o Purgatório. Quanto ao sofrimento, este é igual ao do Inferno'.

Santa Teresa, na obra 'Castelo da Alma', falando da dor da perda, assim se expressa: 'A dor da perda ou a privação da visão de Deus supera todos os sofrimentos mais lancinantes que podemos imaginar, porque as almas, impelidas em direção a Deus como para o centro de sua aspiração, são continuamente repelidas pela sua Justiça. Imagine-se um marinheiro naufragado que, depois de uma longa batalha contra as ondas, chega finalmente ao alcance da costa, apenas para se ver constantemente empurrado para trás por uma mão invisível. Que agonia torturante! No entanto, para as almas do Purgatório são mil vezes maiores!' (parte 6, cap. 11).

Padre Nieremberg, sacerdote da Companhia de Jesus e falecido em odor de santidade em Madri em 1658, relata um fato corrido em Treves e que foi reconhecido pelo Vigário Geral da diocese (de acordo com o padre Rossignolli em Merveilles, 69), como possuindo todas as características da verdade. Na Festa de Todos os Santos, uma jovem de rara piedade viu aparecer diante dela uma senhora conhecida que havia morrido algum tempo antes. A aparição estava vestida de branco, com um véu da mesma cor na cabeça, e segurando na mão um longo rosário, um símbolo da terna devoção que ela sempre professou em favor da Rainha dos Céus. Ela implorou a caridade de sua piedosa amiga, dizendo que tinha feito voto de que três missas fossem celebradas no altar da Virgem Maria e que, não tendo podido cumprir o seu voto, essa dívida aumentava seus sofrimentos. Ela então implorou que ela pagasse essa dívida em seu lugar. 

A jovem concedeu de bom grado a súplica que lhe fôra pedida e, depois de celebradas as três missas, a falecida apareceu de novo, exprimindo a sua alegria e gratidão. Ela sempre continuou a aparecer todos os meses de novembro, e quase sempre na igreja. Sua amiga a viu ali em adoração diante do Santíssimo Sacramento, dominada por um temor que nada pode dar ideia; ainda não podendo ver Deus face a face, ela parecia querer indenizar-se contemplando-o pelo menos sob as espécies eucarísticas. Durante o Santo Sacrifício da Missa, no momento da elevação, o seu rosto tornou-se tão radiante que parecia um serafim descido do céu. A jovem, cheia de admiração, declarou que nunca tinha visto algo tão bonito. 

Enquanto isso, o tempo passava e, não obstante as missas e orações oferecidas por ela, aquela alma sagrada permaneceu em seu exílio, longe dos Tabernáculos Eternos. No dia 3 de dezembro, festa de São Francisco Xavier, quando a sua protetora foi receber a comunhão na Igreja dos Jesuítas, a aparição a acompanhou até a Mesa Sagrada e ficou ao seu lado durante todo o tempo de ação de graças, como se para participar da a felicidade da Sagrada Comunhão e desfrutar da presença de Jesus Cristo. No dia 8 de dezembro, festa da Imaculada Conceição, ela retornou novamente, mas tão brilhante que a amiga não conseguia mais olhar para ela. Ela visivelmente se aproximava do prazo final de sua expiação. Finalmente, no dia 10 de dezembro, durante a Santa Missa, ela apareceu em um estado ainda mais maravilhoso. Depois de fazer uma profunda genuflexão diante do altar, ela agradeceu à piedosa menina por suas orações e subiu ao céu na companhia de seu anjo da guarda.

Algum tempo antes, esta alma sagrada havia feito saber que ela não havia sofrido nada mais do que a dor da perda ou da privação de Deus; mas ela acrescentou que essa privação lhe causou uma tortura intolerável. Esta revelação justifica as palavras de São Crisóstomo na sua 47ª Homilia: 'Imagina todos os tormentos do mundo e não encontrarás igual à privação da visão beatífica de Deus'.

Na verdade, a tortura da dor da perda, de que agora tratamos é, segundo todos os santos e todos os doutores da Igreja, muito mais aguda do que a dor dos sentidos. É verdade que, na vida presente, não podemos compreender isso, porque temos muito pouco conhecimento do Bem Soberano para o qual fomos criados; mas, na outra vida, aquele Bem inefável parece para as almas o que o pão é para o homem faminto ou a água cristalina para o que morre de sede, como a saúde é para o doente torturado pela longanimidade da doença; que faz excitar os seus desejos mais ardentes e que o atormentam sem nunca poder satisfazê-los.

Capítulo XI

A Dor do Sentido: Tormento do Fogo e Tormento do Frio - Venerável ​​Beda e a Ressurreição de Drithelm

Se a dor da perda não nos causa senão uma fraca impressão, é muito diferente em relação à dor dos sentidos; o tormento do fogo ou a tortura de um frio cortante e intenso apavoram a nossa sensibilidade. É por isso que a Divina Misericórdia, desejando despertar um santo temor em nossas almas, fala pouco da dor da perda, mas continuamente nos é mostrado o fogo, o frio e outros tormentos, que constituem a dor dos sentidos. Isso é o que vemos no Evangelho, e em revelações particulares, pelas quais Deus se grada em manifestar aos seus servos de vez em quando os mistérios da outra vida. Vamos mencionar uma dessas revelações. Em primeiro lugar, vejamos o que o piedoso e erudito Cardeal Belarmino cita do Venerável Beda

A Inglaterra foi testemunha em nossos dias, escreve Beda, de um prodígio singular, que pode ser comparado aos milagres dos primeiros tempos da Igreja. Para estimular os vivos a temer a morte da alma, Deus permitiu que um homem, depois de ter dormido o sono da morte, voltasse à vida e revelasse o que tinha visto no outro mundo. Os detalhes terríveis e inéditos que ele relata, e sua vida de extraordinária penitência, que correspondeu às suas palavras, produziram uma impressão viva em todo o país. Vou agora retomar as principais circunstâncias desta história. 

Havia em Northumberland um homem chamado Drithelm que, com a sua família, levava uma vida cristã. Ele adoeceu em com a sua enfermidade aumentando a cada dia, entrou em estado terminal e morreu, para grande desolação e tristeza de sua esposa e filhos. Velaram toda a noite em lágrimas diante dos seus restos mortais mas, no dia seguinte, antes do seu enterro, eles o viram de repente voltar à vida, levantar-se e colocar-se em uma postura sentada. Ao ver isso, foram tomados de tanto medo que todos fugiram, com exceção da esposa, que, tremendo, ficou sozinha com o marido ressuscitado. 

Ele a tranquilizou imediatamente: 'Não tema', disse ele, 'É Deus quem me restaura a vida. Ele deseja mostrar, na minha pessoa, um homem ressuscitado dos mortos. Ainda tenho muito tempo para viver nesta terra, mas a minha nova vida será muito diferente daquela que levei até agora'. Então, ele se levantou cheio de saúde, foi direto para a capela ou a igreja do lugar, e ali permaneceu muito tempo em oração. Ele voltou para casa apenas para se despedir daqueles que lhe eram queridos na terra, aos quais declarou que viveria apenas para se preparar para a morte, e os aconselhou a fazer o mesmo. 

Em seguida, dividiu a sua propriedade em três partes, dando uma para os seus filhos, outra para a sua esposa e reservou a terceira parte para dar em esmolas. Depois de ter distribuído tudo aos pobres e ficar reduzido à indigência extrema, foi bater à porta de um mosteiro e implorou ao abade do lugar que o recebesse como religioso penitente, que ele se tornaria o servo de todos os outros. O abade reservou-lhe uma cela isolada, a qual ocupou pelo resto de sua vida. Três exercícios dividiam o seu tempo - oração, o trabalho mais difícil e penitências extraordinárias. Os jejuns mais rigorosos ele considerava como nada. No inverno, ele mergulhava em água congelada e permanecia ali por horas e horas em oração, enquanto recitava todo o Saltério de Davi.

A vida mortificada de Drithelm, seus olhos sempre abaixados e até mesmo as suas feições indicavam uma alma atingida pelo medo dos julgamentos de Deus. Ele manteve um silêncio perpétuo mas, ao ser pressionado a relatar, para a edificação dos outros, o que Deus havia manifestado a ele após sua morte, ele assim descreveu sua visão:

'Ao deixar o meu corpo, fui recebido por uma pessoa benevolente, que me acolheu. Seu rosto estava brilhante e ele parecia rodeado de luz. Ele me levou a um grande vale profundo e de imensa extensão, que tinha fogo de um lado e era todo gelo e neve do outro; de um lado braseiros e caldeirões de fogo e, de outro, o frio mais intenso e o sopro de um vento glacial. Este vale misterioso estava cheio de inúmeras almas, que, sacudidas como por uma furiosa tempestade, eram jogadas de um lado para o outro. Quando não podiam mais suportar a violência do fogo, buscavam alívio em meio ao gelo e à neve mas, encontrando ali apenas uma nova tortura, lançavam-se novamente no meio das chamas.

Eu contemplei em estupor essas vicissitudes contínuas de tormentos horríveis e, até onde a minha vista podia se estender, não vi nada além de uma multidão de almas que sofriam sem ter repouso algum. Os aspectos delas me inspiraram medo. A princípio, pensei tratar-se do inferno, mas meu guia, que caminhava diante de mim, voltou-se para mim e disse: 'Não; este não é, como você pensa, o inferno dos réprobos. Você sabe' - continuou ele - 'que lugar é este?' 'Não', respondi. 'Saiba', ele resumiu, 'que este vale, onde você vê tanto fogo e tanto gelo, é o lugar onde permanecem as almas daqueles que, durante a vida, negligenciaram confessar os seus pecados, e que adiaram a sua conversão até o fim. Graças a uma misericórdia especial de Deus, eles tiveram a felicidade de se arrepender sinceramente antes da morte, de confessar e detestar os seus pecados. É por isso que eles não estão condenados, e no grande dia do julgamento entrarão no Reino dos Céus. Vários deles, entretanto, vão alcançar a sua libertação antes desse tempo final, pelos méritos de orações, esmolas e jejuns, oferecidos em seu favor pelos vivos, e especialmente, em virtude do Santo Sacrifício da Missa oferecido para o alívio de suas almas'.

Assim foi a descrição feita por Drithelm. Quando perguntado por que ele tratou seu corpo tão rudemente e por que havia mergulhado na água congelada, ele respondeu que tinha visto tormentos e frio de outro tipo. Quando os seus irmãos expressavam surpresa por ele poder suportar tais austeridades extraordinárias, ele respondia ter visto 'penitências muito mais excruciantes'. Até o dia em que aprouve a Deus chamá-lo para si em definitivo, não cessou de afligir o seu corpo e, ainda que alquebrado pela idade, nunca aceitava nenhum tipo de alívio.

Este evento produziu uma sensação profunda na Inglaterra; um grande número de pecadores, tocados pelas palavras de Drithelm e atingidos pela austeridade de sua vida, converteram-se sinceramente. Este fato, acrescenta Belarmino, parece-me de verdade incontestável, pois, além de estar conforme às palavras da Sagrada Escritura que diz que 'os mortos passam das águas da neve ao calor do fogo abrasador' (Jó, 24, 19), o Venerável Beda relata o fato como sendo recente e evento bem conhecido. Mais do que isso, seguiu-se ao mesmo a conversão de um grande número de pecadores, sinal da obra de Deus, que costuma fazer prodígios para produzir frutos nas almas.

Capítulo XII

Dores do Purgatório - Santa Cristina, a Admirável

O erudito e piedoso cardeal [Cardeal Belarmino, citado no capítulo anterior] passa então a relatar a história de Santa Cristina, a Admirável, que viveu na Bélgica no final do século XII e cujo corpo se conserva hoje em Sint-Truiden, na igreja dos Padres Redentoristas. A vida desta ilustre virgem foi, diz ele, escrita por Thomas de Cantimpré, religioso da Ordem de São Domingos, autor digno de crédito e contemporâneo da santa. O cardeal James de Vitry, no prefácio da Vida de Maria d'Ognies, fala de um grande número de mulheres santas e virgens ilustres; mas quem ele admira acima de todas as demais é Santa Cristina, de quem relata os feitos mais maravilhosos.

Esta serva de Deus, tendo passado os primeiros anos de sua vida em humildade e paciência, morreu com a idade de trinta e dois anos. Quando estava para ser enterrada, e o corpo já se encontrava na igreja repousando em caixão aberto, segundo o costume da época, ela se levantou cheia de vigor, deixando estupefata toda a cidade de Sint-Truiden, que tinha testemunhado essa maravilha. O espanto aumentou quando souberam, pela sua própria boca, o que lhe acontecera depois de sua morte. Vamos ouvir o seu próprio relato disso.

'Assim que a minha alma foi separada do meu corpo, ela foi recebida pelos anjos, que a conduziram a um lugar muito sombrio, inteiramente cheio de almas. Os tormentos que elas suportavam pareceram-me tão excessivos, que me é impossível dar qualquer ideia do seu rigor. Vi entre elas muitos de meus conhecidos e, profundamente tocada pela sua triste condição, perguntei que lugar era aquele, pois acreditava que fosse o Inferno. Meu guia me respondeu que era o Purgatório, onde eram punidos os pecadores que, antes da morte, se arrependeram de suas faltas, mas não haviam dado satisfação digna a Deus. Dali eu fui conduzida ao Inferno e lá também reconheci, entre os réprobos, alguns que eu havia conhecido anteriormente.

Os anjos então me transportaram para o Céu, até o trono da Divina Majestade. O Senhor me olhou com bons olhos e eu experimentei uma alegria extrema, porque pensei em obter a graça de morar eternamente com Ele. Mas meu Pai Celestial, vendo o que se passava em meu coração, disse-me estas palavras: 'Certamente, minha querida filha, um dia você estará comigo. Agora, porém, permito que você escolha, ou permanecer comigo daqui em diante ou retornar à Terra para cumprir uma missão de caridade e sofrimento. De modo a libertar das chamas do Purgatório aquelas almas que inspiraram tanto a sua compaixão, você deve sofrer por elas na terra; você deverá suportar grandes tormentos sem, no entanto, morrer pelos seus efeitos. E você não só aliviará os que partiram, mas o exemplo que dará aos vivos, e sua vida de sofrimento contínuo, levará pecadores a se converterem e a expiarem os seus crimes. Depois de ter terminado esta nova vida, você deverá retornar a mim sobrecarregada de méritos'. 

A estas palavras, vendo as grandes vantagens que me eram oferecidas pelas almas, respondi, sem hesitar, que voltaria à vida, e levantei-me no mesmo instante. É com este único objetivo, o alívio dos que partiram e a conversão dos pecadores, que voltei a este mundo. Portanto, não se espantem com as penitências que praticarei, nem com a vida que levarei daqui em diante, pois será tão extraordinária que nada parecido jamais foi visto'. 

Tudo isso foi relatado pela própria santa; vejamos agora o que o biógrafo acrescenta nos diversos capítulos de sua vida. 'Cristina começou imediatamente a obra para a qual fôra enviada por Deus. Renunciando a todos os confortos da vida, e reduzida à miséria extrema, viveu sem casa nem fogo, mais miserável que as aves do céu, que têm um ninho para as abrigar. Não satisfeita com essas privações, ela buscou avidamente tudo o que poderia causar sofrimento. Ela se jogou em fornos em chamas, e ali, sofrendo tão grande tortura que não pôde mais suportar, soltou os gritos mais terríveis. Ela permaneceu por um longo tempo no fogo, e ainda assim, ao sair, nenhum sinal de queimaduras foi encontrado em seu corpo. No inverno, quando o Meuse [rio que nasce na França e atravessa a Bélgica e a Holanda] estava congelado, ela mergulhava nele, permanecendo naquele rio congelado não apenas por horas e dias, mas por semanas inteiras, o tempo todo orando a Deus e implorando a sua misericórdia. Às vezes, enquanto rezava nas águas geladas, ela se deixava levar pela corrente até um moinho, cuja roda girava de uma maneira terrível de se ver, mas sem quebrar ou deslocar nenhum dos seus ossos. Em outras ocasiões, seguida por cães, que mordiam e rasgavam a sua carne, ela corria, atraindo-os para as moitas e entre os espinhos, até ficar coberta de sangue; no entanto, ao retornar, nenhuma ferida ou cicatriz era vista. 

Tais são as obras de admirável penitência descritas pelo autor da Vida de Santa Cristina. Este escritor era um bispo subordinado ao arcebispo de Cambray. 'E nós temos', diz Belarmino, 'motivos para crer em seu testemunho, pois ele tem por garantia outro grande autor, Tiago de Vitry, bispo e cardeal, e porque relata o que aconteceu em seu próprio tempo, e mesmo na província onde viveu. Além disso, os sofrimentos desta admirável virgem não foram ocultados. Todos puderam ver que ela estava no meio das chamas sem ser consumida e coberta de feridas, todas as quais desapareceram apenas momentos depois. Mas, mais do que isso, foi a vida maravilhosa que ela levou por quarenta e dois anos, depois que ela foi ressuscitada dos mortos, com Deus mostrando claramente que as maravilhas operadas nela foram pelas virtudes do Alto.

'Assim', argumenta Belarmino, 'Deus quis silenciar aqueles libertinos que fazem profissão aberta de não acreditar em nada, e que têm a audácia de perguntar com desprezo: 'Quem voltou do outro mundo? Quem já viu os tormentos do Inferno ou do Purgatório?' Eis aqui duas testemunhas confiáveis [Santa Cristina e Drithelm - ver capítulo anterior], que nos asseguram tê-los visto e que são terríveis. O que se segue, então, senão que os incrédulos são indesculpáveis, mas que aqueles que acreditam e, no entanto, negligenciam fazer penitência, não merecem ainda mais ser condenados?'

Capítulo XIII

Dores do Purgatório - Irmão Antônio Pereyra e a Venerável Ângela Tholomei

Aos dois fatos anteriores, adicionaremos um terceiro, retirado dos Anais da Companhia de Jesus. Falamos de um prodígio realizado na pessoa de Antônio Pereyra, Irmão Coadjutor daquela Companhia, falecido em odor de santidade no Colégio de Évora, em Portugal, a primeiro de agosto de 1645. Quarenta e seis anos antes, em 1599, cinco anos após a sua entrada no noviciado, este irmão foi atacado por uma doença mortal na ilha de São Miguel, do arquipélago dos Açores. Poucos momentos depois de ter recebido os últimos sacramentos, na presença de toda a comunidade que o assistia em sua agonia, pareceu exalar a alma e logo ficou frio como um cadáver. A aparência, embora quase imperceptível, de uma leve batida do coração, por si só os impediu de enterrá-lo imediatamente. Foi mantido, então, por três dias inteiros em seu leito de morte e já começava a demonstrar sinais óbvios de decomposição em seu corpo quando, de repente, no quarto dia, abriu os olhos, respirou e falou.

Foi obrigado, então,  por obediência, a relatar ao seu superior, padre Luís Pinheyro, tudo o que se passara com ele desde os últimos momentos terríveis de sua agonia. Apresentamos aqui um relato resumido, escrito de próprio punho: 'Eu vi primeiro', diz ele, 'do meu leito de morte o meu pai, Santo Inácio, acompanhado de vários de nossos Padres do Céu, que vinham visitar os seus filhos moribundos, em busca daqueles que julgavam dignos de serem oferecidos por ele e seus companheiros a Nosso Senhor. Quando ele se aproximou de mim, acreditei por um momento que me levaria, e meu coração estremeceu de alegria; mas logo ele me indicou aquilo de que devo me corrigir antes de obter tão grande felicidade'.

Então, por uma disposição misteriosa da Providência Divina, a alma do Irmão Pereyra separou-se momentaneamente de seu corpo e, imediatamente, ele viu uma trupe hedionda de demônios correndo em sua direção, enchendo-o de terror. No mesmo instante, o seu anjo da guarda e Santo Antônio de Pádua, seu conterrâneo e patrono, desceram do céu e puseram em fuga os inimigos, convidando-o para acompanhá-los para ver e saborear por um momento as alegrias e sofrimentos da eternidade.

'Levaram-me então por turnos', acrescenta, 'para um lugar de delícias, onde me mostraram uma coroa de glória incomparável, mas que eu ainda não tinha merecido; depois, à beira de um abismo, onde vi as almas réprobas caírem no fogo eterno, esmagadas como os grãos de trigo lançados sobre uma pedra de moinho que gira sem parar. O golfo infernal era como um daqueles fornos de cal onde, às vezes, as chamas são, por assim dizer, sufocadas pela massa de materiais jogados nelas, mas que apenas alimenta o fogo para que possa explodir com violência mais terrível'. Conduzido dali ao tribunal do Juiz Soberano, Antônio Pereyra viu-se condenado ao fogo do Purgatório; e nada, assegura-nos, pode dar uma ideia do que aí se sofre, nem do estado de agonia a que as almas estão reduzidas pelo desejo e pela postergação do deleite de se estar com Deus em sua sagrada presença. 

Quando, por ordem de Deus, sua alma reuniu-se novamente com o seu corpo, nem as torturas renovadas de sua doença impostas por seis meses inteiros à sua carne lacerada (e já incuravelmente contaminada com a corrupção de sua primeira morte), mesmo sob sofrimentos adicionais impostos a ferro e a fogo, e nem mesmo as terríveis penitências às quais se entregou desde então, tanto quanto a obediência assim o permitia, durante os quarenta e seis anos de sua vida restante, não foram capazes de aplacar a sua sede de sofrimento e expiação. 'Tudo isso', dizia, 'não é nada em comparação com o que a justiça e a infinita misericórdia de Deus me fizeram não apenas testemunhar, mas também suportar'.

Enfim, como autêntico selo sobre tantas maravilhas, o Irmão Pereyra desvelou detalhadamente ao seu superior os desígnios secretos da Providência quanto à futura restauração do reino de Portugal, mais de meio século antes disso acontecer. Mas podemos acrescentar, sem receio, que a maior garantia de todos esses prodígios era o surpreendente grau de santidade a que o irmão Pereyra não cessava de se elevar dia após dia.

Vamos relatar um exemplo similar que confirma em cada ponto o que acabamos de ler. Encontramos isso na vida da venerável serva de Deus, Angela Tholomei, uma freira dominicana. Ela foi ressuscitada dos mortos por seu próprio irmão, e deu um testemunho do rigor dos julgamentos de Deus exatamente conforme o precedente.

O Beato João Baptista Tholomei, cujas raras virtudes e o dom de milagres o colocaram nos nossos altares, tinha uma irmã, Ângela Tholomei, cujas virtudes heroicas foram também reconhecidas pela Igreja. Ela caiu gravemente doente, e seu santo irmão, por meio de fervorosa oração, implorou por sua cura. Nosso Senhor respondeu, como fizera anteriormente à irmã de Lázaro, que Ele não apenas curaria Ângela, mas faria mais: Ele a ressuscitaria dos mortos, para a glória de Deus e o bem das almas. Ela morreu, recomendando-se às orações de seu santo irmão. Enquanto estava sendo levada para o túmulo, o bem-aventurado João Baptista, em obediência, sem dúvida, a uma inspiração do Espírito Santo, aproximou-se do caixão e, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, ordenou que sua irmã se levantasse. Imediatamente ela acordou de um sono profundo e voltou à vida.

Aquela alma sagrada parecia tomada de terror e relatou coisas sobre a severidade dos julgamentos de Deus, que nos fazem estremecer. Ela começou, ao mesmo tempo, a levar uma vida que provava a verdade de suas palavras. Sua penitência foi terrível. Não contente com as práticas comuns dos santos, como jejum, vigílias de oração, usos de cilícios e vestimentas de auto-flagelação ou rigorosas penitências, ela se impôs a tortura de se lançar nas chamas e se contorcer nelas até que sua carne estivesse totalmente queimada. Seu corpo macerado tornou-se objeto de piedade e horror. Ela foi censurada e acusada de destruir, por seus excessos, a ideia do que seria a verdadeira penitência cristã. 

Ela, no entanto, continuou estes tormentos e se contentava em responder: 'Se vocês conhecessem os rigores dos julgamentos de Deus, não falariam assim. O que são estas minhas penitências insignificantes em comparação com os tormentos reservados na outra vida para aquelas infidelidades que tão facilmente nos permitimos neste mundo? O que elas são? O que elas são? Quem me dera as pudesse fazer cem vezes mais!' Não se trata aqui, como vimos, do rigor espantoso a que seriam submetidos os grandes pecadores convertidos pouco antes de morrer, mas dos castigos infligidos por Deus a uma religiosa fervorosa pelas suas menores faltas.

Capítulo XIV

Dores do Purgatório - Aparição de Foligno 
Os Religiosos Dominicanos de Zamora

O mesmo rigor é revelado em uma aparição mais recente, envolvendo uma religiosa falecida de vida exemplar, que deu a conhecer os seus sofrimentos de uma forma calculada para inspirar terror a todas as almas. O evento aconteceu em 16 de novembro de 1859 em Foligno, próximo a Assis, na Itália. Fez muito alarde na Itália e, além da marca visível que se viu, um inquérito feito de maneira adequada e pela autoridade competente o caracterizou como fato incontestável.

No convento dos Terciários Franciscanos de Foligno constava uma irmã chamada Teresa Gesta que, durante muitos anos, foi a encarregada das noviças e, ao mesmo tempo, responsável pela sacristia da comunidade. Ela nasceu em Bastia, na Córsega, em 1797 e entrou para o mosteiro no ano de 1826. Irmã Teresa foi um modelo de fervor e caridade. 'Não precisamos ficar surpresos', disse seu diretor, 'se Deus a glorificar por algum prodígio após sua morte'. Ela morreu repentinamente, em 4 de novembro de 1859, de um ataque de apoplexia.

Doze dias depois, no dia 16 de novembro, uma irmã chamada Anna Felicia, que a sucedeu no cargo, dirigiu-se à sacristia e nela já ia entrar, quando ouviu gemidos que pareciam vir do interior da sala. Com certo receio, apressou-se em abrir a porta, mas não havia ninguém. Mas novamente ela ouviu gemidos, e tão distintamente que, apesar de sua coragem habitual, sentiu-se dominada pelo medo. 'Jesus! Maria!" ela gritou, 'o que pode ser isso?' Ela não havia acabado de falar quando ouviu uma voz queixosa, acompanhada de um suspiro doloroso: 'Ó meu Deus, como eu sofro! Oh! Dio, che peno tanto!'

A irmã, estupefata, reconheceu imediatamente a voz da pobre Irmã Teresa. Em seguida, a sala se encheu de uma fumaça espessa e o espírito da Irmã Teresa apareceu, movendo-se em direção à porta e deslizando junto à parede. Tendo alcançado a porta, ela clamou em voz alta: 'Eis aqui uma prova da misericórdia de Deus'. Dizendo essas palavras, ela bateu no painel superior da porta e deixou ali a marca de sua mão direita, queimada na madeira como se fosse um ferro em brasa. E então desapareceu.

Irmã Anna Felicia ficou como que meio morta de susto. Ela explodiu em gritos de socorro. Uma de suas companheiras acorreu de imediato e, em seguida, toda a comunidade. Elas se comprimiam ao redor dela, surpresas pela presença de um forte odor de madeira queimada. Irmã Anna Felicia contou o que havia acontecido e mostrou-lhes a terrível impressão fixada à porta. Elas imediatamente reconheceram a mão da irmã Teresa, que era notavelmente pequena. Tomadas de pavor, rumaram em direção ao coro, onde passaram a noite em oração e penitência pelos falecidos e, na manhã seguinte, todas receberam a Sagrada Comunhão para o repouso da alma da irmã falecida. 

A notícia se espalhou fora dos muros do convento e muitas comunidades da cidade uniram as suas orações às dos franciscanos. Dois dias depois, em 18 de novembro, Irmã Anna Felicia, indo à noite para sua cela, ouviu ser chamada pelo nome outra vez e reconheceu imediatamente a voz da Irmã Teresa. No mesmo instante, um globo ou luz brilhante apareceu diante dela, iluminando sua cela com o brilho da luz do dia. Em seguida, ouviu Irmã Teresa pronunciar estas palavras com voz alegre e triunfante: 'Morri numa sexta-feira, dia da Paixão, e eis que, na sexta-feira, entro na glória eterna! Seja forte para carregar a sua cruz, seja corajosa para sofrer, ame a pobreza'. Em seguida, acrescentando afetuosamente 'Adieu, adieu, adieu!', ela se transfigurou e, como uma nuvem clara, branca e deslumbrante, elevou-se em direção ao Céu e desapareceu. 

Durante a investigação realizada imediatamente a seguir, em 23 de novembro, na presença de um grande número de testemunhas, foi aberto o túmulo da Irmã Teresa e constatou-se que a impressão na porta correspondia exatamente à mão da falecida. 'A porta, com a marca da mão queimada' - acrescenta monsenhor Segur - 'está preservada com grande veneração no convento. A madre abadessa, testemunha do fato, teve o prazer de me mostrar ela mesma'.

Desejando assegurar-me da perfeita exatidão desses detalhes relatados por monsenhor Segur, escrevi ao bispo de Foligno. Ele respondeu dando-me um relato circunstancial, perfeitamente de acordo com o exposto acima, e acompanhado por um fac-símile da marca milagrosa. Esta narrativa explica ainda a causa da terrível expiação a que foi submetida Irmã Teresa. Depois de dizer: '“Ah! quanto eu sofro! Oh! Dio, che peno tanto!' acrescentou que foi penalizada por ter, no exercício da função na sacristia, transgredido em alguns pontos a extrema pobreza prescrita pela Regra [justificativa, entretanto, de difícil entendimento no contexto dos fatos]. 

De qualquer forma, vemos que a Justiça Divina pune mais severamente as menores faltas. Pode-se perguntar aqui por que a aparição, ao fazer a marca misteriosa na porta, a chamou de 'prova da misericórdia de Deus'. É porque, ao nos dar um aviso desse tipo, Deus demonstra por nós uma grande misericórdia. Ele nos exorta, da maneira muito eficaz, a ajudar as pobres almas padecentes e a estar vigilantes em relação a nós mesmos.

Neste mesmo contexto, podemos relatar um caso semelhante ocorrido na Espanha, e que causou também grandes repercussões naquele país. Fernando de Castela assim o relata em sua História de São Domingos (Malvenda, Annal. Ord. Praedic.). Um religioso dominicano levou uma vida santa em seu convento em Zamora, cidade do reino de Leão. Ele estava unido pelos laços de uma piedosa amizade com um irmão franciscano como ele, homem de grande virtude. Um dia, conversando sobre o assunto da eternidade, prometeram mutuamente que, se fosse do agrado de Deus, o primeiro que morresse deveria aparecer ao outro para lhe dar conselhos salutares. 

O frade menor morreu primeiro; e um dia, enquanto seu amigo, o filho de São Domingos, preparava o refeitório, apareceu a ele. Depois de saudá-lo com respeito e carinho, disse-lhe que estava entre os eleitos mas que, antes de ser admitido no gozo da felicidade eterna, havia sofrido muito por uma infinidade de pequenas faltas das quais não havia se arrependido suficientemente durante a sua vida. 'Nada na terra', acrescentou ele, 'pode lhe ​​dar uma ideia dos tormentos que sofri, e dos quais Deus me permite lhe dar uma prova visível'. Dizendo essas palavras, ele colocou a mão direita sobre a mesa do refeitório, e a marca da sua mão ficou gravada na madeira carbonizada como se tivesse sido aplicada por um ferro em brasa.

Essa foi a lição que o fervoroso franciscano falecido deu ao seu amigo vivo. Foi de grande proveito não só para ele, mas para todos aqueles que viram a marca impressa na madeira queimada; tão profundamente significativa porque tornou-se um objeto de piedade que as pessoas vinham de todas as partes para contemplar. 'Ainda pode ser vista em Zamora', disse o padre Rossignoli (Mervelles, 28), 'na época em que escrevo [em meados do século XVIII]; para protegê-la, a marca foi coberta por uma folha de cobre. A mesa marcada foi preservada até o final do século XVIII, sendo então destruída, durante a época das revoluções, como tantos outros memoriais religiosos.

Capítulo XV

Dores do Purgatório - O Irmão de Santa Madalena de Pazzi - Stanislaus Chocosca - Beata Catarina de Racconigi

Santa Madalena de Pazzi, na sua célebre visão em que lhe foram mostradas as diferentes prisões do Purgatório, viu a alma do seu irmão, que morrera depois de ter levado uma vida cristã fervorosa. No entanto, esta alma foi detida em sofrimento por certas faltas, que não haviam sido suficientemente expiadas na terra. Esses - diz a santa - são os sofrimentos mais intoleráveis ​​e, no entanto, os que são suportados com mais alegria. Ah! Por que isso não é compreendido por aqueles que não têm coragem de carregar a sua cruz aqui embaixo? 

Afligida pelo espetáculo terrível que acabara de contemplar, a santa correu para junto da sua priora e, jogando-se de joelhos, gritou: 'Ó minha querida mãe, quão terríveis são as dores do purgatório! Eu nunca poderia ter acreditado nisso, se Deus não tivesse manifestado isso para mim. E, no entanto, não posso chamá-los de cruéis; em vez disso, são frutuosos pois que conduzem à felicidade inefável do Paraíso'. 

Para imprimir isso cada vez mais em nossas mentes, aprouve a Deus dar a certas pessoas santas uma pequena parte das dores da expiação, como que uma gota do cálice amargo que as pobres almas devem beber, uma centelha do fogo que as consomem. O historiador Bzovius, em sua História da Polônia, datada de 1598, relata um acontecimento milagroso ocorrido ao Venerável Estanislau Chocosca, um dos luminares da Ordem de São Domingos na Polônia (Rossign., Merv., 67). 

Um dia, enquanto este religioso, tomado de caridade para com os defuntos, recitava o Rosário, viu surgir diante dele uma alma toda envolta em chamas. Ao pedir-lhe que tivesse piedade dela e aliviasse os sofrimentos intoleráveis ​​que o fogo da Justiça Divina a fazia suportar, o santo homem perguntou-lhe se este fogo era mais doloroso do que o da terra. 'Ah!" - ela gritou - 'todos os fogos da terra comparados com o do Purgatório são como uma brisa refrescante' (Ignes alii levis aurce locum tenent si cum ardore meo comparentur). 

Stanislaus mal podia acreditar. 'Eu gostaria de ter uma prova' - disse então - 'Se Deus permitir, para o seu alívio e para o bem da minha alma, eu consinto em sofrer parte de suas dores'. 'Ai de mim! Você não poderia fazer isso. Saiba que nenhum ser humano poderia suportar tanto tormento e ainda viver. No entanto, Deus permitirá que você o possa sentir em um grau muito atenuado. Estenda sua mão'. Chocosca estendeu a mão e o falecido deixou cair sobre ela uma gota de suor, ou pelo menos de um líquido semelhante a isso. No mesmo instante, o religioso soltou um grito espantoso e caiu desmaiado no chão, tão intensa foi a sua dor. Seus irmãos acorreram em sua direção e apressaram-se em dar-lhe a assistência que a sua condição exigia. 

Quando restaurado à consciência, ele relatou o terrível acontecimento e do qual eles tinham uma prova visível. 'Ah! meus queridos padres' -  disse ele - 'se soubéssemos a severidade dos castigos divinos, nunca haveríamos de cometer pecado, nem deixaríamos de fazer penitências nesta vida, de modo a evitar a expiação na outra vida'. Stanislaus ficou confinado ao seu leito a partir daquele momento. Ele viveu mais um ano no mais cruel sofrimento causado por aquela terrível ferida; e então, pela última vez exortando os seus irmãos a se lembrarem dos rigores da Justiça Divina, ele dormiu pacificamente no Senhor. O historiador acrescenta que esse acontecimento reanimou o fervor em todos os mosteiros daquela província.

Lemos um fato semelhante na vida da bem-aventurada Catarina de Racconigi (Diario Dominicano, 4 de setembro; cf. Rossig., Merv., 63). Um dia, sofrendo tanto a ponto de precisar da ajuda de suas irmãs de religião, pensou nas almas do Purgatório e, para amenizar o calor de suas chamas, ofereceu a Deus o calor ardente de sua febre. Naquele momento, entrando em êxtase, foi conduzida em espírito ao lugar de expiação, onde viu as chamas e os braseiros nos quais as almas são purificadas sob grande tortura.

Enquanto contemplava, cheia de compaixão, este espetáculo comovente, ela ouviu uma voz que lhe disse: 'Catarina, para que possas obter o mais eficazmente a libertação dessas almas, deves participar, de alguma maneira, dos seus tormentos. Naquele instante, uma faísca se desprendeu do fogo e pousou em sua bochecha esquerda. As irmãs presentes viram a faísca nitidamente, e também viram com horror como o rosto da enferma ficou terrivelmente inchado. 

Ela passou vários dias neste estado e, como a Beata Catarina disse às suas irmãs, o sofrimento causado por aquela simples centelha superou em muito tudo o que ela havia suportado anteriormente nas doenças mais dolorosas. Até então, Catarina sempre se dedicara com caridade ao alívio das almas do Purgatório mas, a partir de então, redobrou o fervor e as austeridades para apressar a libertação delas, porque conhecia por experiência própria a grande necessidade que as almas padecentes tinham pelo seu auxílio.

Capítulo XVI

Dores do Purgatório - Santo Antonino e os religiosos enfermos - Um quarto de hora no Purgatório - Irmão Angelicus

O que nos mostra ainda mais o rigor do Purgatório é que o período de tempo mais curto ali parece ser de duração muito longa. Todos sabem que os dias de gozo passam rapidamente e parecem curtos, ao passo que o tempo que se passou no sofrimento nos parece muito longo. Ó como passam lentamente as horas da noite para os pobres enfermos, que as passam em meio à insônia e à dor. Podemos dizer que quanto mais intensa é a dor, um tempo de curta duração parece muito mais tempo. Essa regra nos fornece uma nova medida para se avaliar os sofrimentos do Purgatório.

Encontramos nos Anais dos Frades Menores, do ano de 1285, um fato que também é relatado por Santo Antonino em sua Summa (Parte 4, §4). Um homem religioso que sofreu, por muito tempo, uma doença dolorosa, permitiu-se ser vencido pelo desânimo e rogou a Deus que o permitisse morrer, para que pudesse ser libertado de suas dores. Ele não pensou que o prolongamento de sua doença fosse uma misericórdia de Deus, que desejava assim poupá-lo de sofrimentos mais severos. 

Em resposta à sua oração, Deus encarregou o seu anjo da guarda de oferecer a ele uma escolha entre morrer imediatamente e se submeter às dores do purgatório por três dias ou suportar a sua doença por mais um ano e então ir diretamente para o Céu. O enfermo, tendo a opção de escolher entre três dias no Purgatório e um ano de sofrimento na terra, não hesitou em escolher os três dias no Purgatório. Após um lapso de uma hora, o seu anjo foi visitá-lo em seus sofrimentos. Ao vê-lo, o pobre paciente queixou-se por estar ainda tanto tempo naqueles tormentos e acrescentou: 'a promessa é que eu ficaria aqui por apenas três dias'. 'Há quanto tempo' - perguntou o anjo - 'você acha que está aqui?' . 'No mínimo vários anos, quando deveriam ser apenas três dias'. 'Pois saiba' - disse o anjo - 'que você está aqui há apenas uma hora. A intensidade da dor faz você se enganar quanto ao tempo: um instante parece um dia e uma hora parece vários anos'. 'Ai de mim então' - disse ele com um suspiro - 'fui muito cego e imprudente na escolha que fiz. Reze a Deus, meu bom anjo, que me perdoe e que me permita voltar à terra. Estou pronto para sofrer as doenças mais dolorosas, não apenas por dois anos, mas o tempo que aprouver a Deus. E ainda que fossem muito mais anos de doenças terríveis, eu os prefiro a uma única hora neste lugar de sofrimentos inexprimíveis'.

O fato seguinte foi transcrito da obra de um piedoso autor citado pelo Padre Rossignoli (Merv 17). Dois religiosos, de virtudes muito elevadas, competiam entre si para levar uma vida santa. Um deles adoeceu e teve uma visão de que morreria em breve, que seria salvo e que permaneceria no purgatório apenas o tempo decorrido até se celebrar a primeira missa em intenção do repouso de sua alma. Cheio de alegria por estas revelações, apressou-se a comunicá-las ao bom amigo e rogou-lhe que não se atrasasse na celebração da missa que lhe abriria o Céu.

Ele morreu na manhã seguinte e seu companheiro não perdeu tempo em celebrar o Santo Sacrifício por intenção de sua alma. Depois da missa, enquanto fazia a sua ação de graças e continuava a rezar pelo amigo falecido, este lhe apareceu radiante de glória mas, em tom de queixa levemente complacente,  perguntou por que demorara tanto para celebrar a missa de que tanto precisava. 'Meu caríssimo irmão' -  respondeu o religioso, 'como assim, demorei? Não entendo o que você está me dizendo'. 'Como assim? Você me deixou sofrer no Purgatório, por mais de um ano, antes de oferecer a missa pelo repouso da minha alma...'.  'Não, meu querido irmão, celebrei a missa quase que imediatamente após a sua morte e certamente esse tempo não passou de um quarto de hora'. Olhando para ele com emoção, a alma abençoada então respondeu: 'Quão terríveis são essas dores expiatórias, pois me fizeram trocar alguns minutos como se fossem um ano... Sirva a Deus, meu querido irmão, com extrema fidelidade, para que possas evitar esses castigos. Até breve. Vou para o Céu, onde estaremos juntos um dia!'

Esta severidade da Justiça Divina, em relação às almas mais fervorosas, explica-se pela infinita santidade de Deus, que descobre manchas naquilo que nos parece mais puro. Os Anais da Ordem de São Francisco falam de um religioso cuja santidade eminente o levara a receber o sobrenome Angelicus (Chronique des Freres Min., P. 2, 1, 4. c. 8; cf. Rossign.). Morreu em odor de santidade no mosteiro dos Frades Menores de Paris, e um de seus irmãos religiosos, doutor em teologia, convenceu-se de que, depois de uma vida tão perfeita, havia ido direto para o céu e que não havia, portanto, necessidade de orações, sendo omitida desta forma a celebração das três missas de obrigação que, segundo o costume do mosteiro, deveriam ser oferecidas na intenção da alma de cada membro falecido.

Após alguns dias, enquanto caminhava e meditava em recolhimento, apareceu-lhe o falecido envolto em chamas e disse-lhe, com voz pungente: 'Querido amigo, imploro que tenha piedade de mim!'. 'Como? Irmão Angelicus, você precisa da minha ajuda?' 'Sim, estou retido na prisão de fogo do Purgatório, à espera dos frutos do Santo Sacrifício que devias ter oferecido três vezes por minha intenção'. "Amado irmão, pensei que você já estava na glória eterna; depois de uma vida tão fervorosa e exemplar como a sua, eu não poderia imaginar que restasse ainda alguma dívida a ser paga'. 'Ai de mim!' - respondeu o falecido: 'ninguém pode conceber com que severidade Deus julga e pune as suas criaturas. A sua infinita santidade descobre objeções em nossas melhores atitudes, e até as mínimas  imperfeições que o desagradam. E Ele exige que prestemos contas de tudo até o último centavo - Usque ad novissimium quadrantem'.

Capítulo XVII

Dores do Purgatório - Bem aventurada Quinziani  - O Imperador Maurício

Na vida da bem-aventurada Stephana Quinziani, freira dominicana (Auctore Franc. Seghizzo; cf. Merv., 42; Marchese, 2 de janeiro), é feita menção a uma irmã chamada Paula, que faleceu no convento de Mântua, após um longa vida de virtude eminente. O corpo foi levado para a igreja e exposto no coro diante os religiosos. Durante a recitação do ofício, a bem aventurada Quinziani ajoelhou-se próximo ao esquife, recomendando a Deus as almas das religiosas falecidas, que lhe eram muito queridas. 

De súbito, a falecida deixou cair o crucifixo que havia sido colocado entre as mãos e, estendendo o braço esquerdo, agarrou com força a mão direita da Irmã Quinziani, como o esforço final feito a  uma mão amiga de um pobre doente sob o ardor escaldante da febre. Assim permaneceu por um tempo considerável e então, removendo o braço, rearrumou-se outra vez no caixão. 

As religiosas, perplexas diante tal prodígio, pediram uma explicação à Irmã Quinziani. Ela respondeu então que, enquanto a falecida pressionava a sua mão, uma voz inarticulada havia falado ao fundo do seu coração, dizendo: 'Ajudai-me, querida irmã, socorrei-me na terrível tortura que sofro. Ó se conhecêsseis a severidade do Juiz que deseja todo o nosso amor, o grau de expiação que nos exige pelas menores faltas antes de nos admitir à recompensa! Se soubésseis o quão puros devemos ser para ver a face de Deus! Rezai, rezai e fazei penitência por mim, que não posso mais me ajudar!'. A bem aventurada Quinziani, tocada pela oração da amiga, impôs-se toda espécie de penitências e boas obras, até que soube, por uma nova revelação, que Irmã Paula havia sido libertada dos seus sofrimentos e entrado na glória eterna.

A conclusão natural que se segue dessas terríveis manifestações da Justiça Divina é que devemos nos apressar em dar satisfação por nossos pecados nesta vida. Certamente um criminoso condenado a ser queimado vivo não recusaria uma dor mais leve, se a escolha fosse sua. Suponha que lhe seja dito: 'Você pode livrar-se desse terrível castigo com a condição de jejuar por três dias a pão e água'; ele ousaria recusar? Aquele que porventura preferisse a tortura do fogo à penitência leve, não seria considerado alguém que teria perdido a razão? Assim, pois, preferir o fogo do Purgatório à penitência cristã é uma loucura infinitamente maior. 

imperador Maurício entendeu isso e agiu com sabedoria. A história relata que este príncipe, não obstante suas boas qualidades, que o tornaram querido por São Gregório Magno, já perto do final de seu reinado cometeu uma falta grave, a qual expiou por um arrependimento exemplar (Berault, Histoire Eccles., Ano 602). Tendo perdido uma batalha contra o Khan - rei dos Avari - ele se recusou a pagar o resgate dos prisioneiros, embora tenha sido pedido nesse intento um valor bastante baixo por cada um deles. Essa recusa mesquinha provocou no conquistador bárbaro uma ira tão violenta que ele ordenou imediatamente o massacre de todos os prisioneiros, cerca de doze mil soldados romanos. Caindo em si, o imperador reconheceu a sua culpa e a sentiu tão agudamente, que enviou dinheiro e oferendas para as principais igrejas e mosteiros, implorando a Deus a graça de puni-lo nesta vida e não na próxima. 

E as suas orações foram ouvidas. No ano de 602, o general Pierre - irmão do imperador - resolveu obrigar as suas tropas a passar o inverno na margem oposta do rio Danúbio, o que motivou um motim e a deposição do general, sendo proclamado em seguida como imperador, Focas, um simples centurião. A cidade imperial seguiu o exemplo do exército e o imperador Maurício foi obrigado então a fugir durante a noite, após ter sido privado de todas as honras da realeza, que agora serviam apenas para aumentar os seus temores. 

No entanto, foi reconhecido e preso, junto com a sua esposa, cinco de seus filhos e três filhas - ou seja, quase toda a sua família, exceção feita ao seu filho mais velho, que havia sido coroado como imperador e que, assim, escapou da morte. Maurício e seus cinco filhos foram massacrados impiedosamente perto da Calcedônia. A carnificina começou pela morte dos príncipes, que foram todos mortos diante dos olhos do infeliz pai, sem mesmo uma palavra dele de revolta contra Deus. Lembrando as dores do outro mundo, ele se considerou feliz por sofrer na vida presente, e durante todo o massacre ele não falou outras palavras senão as do salmista: 'Vós sois justo, ó Senhor, e Vosso julgamento é justo' (Salmo 118).

Capítulo XVIII

Dores do Purgatório - Santa Perpétua - Santa Gertrudes - Santa Catarina de Gênova - Irmão João de Via

Como já dissemos, a dor dos sentidos tem diferentes graus de intensidade: é menos terrível para aquelas almas que não têm pecados graves para expiar, ou que, já tendo cumprido a parte mais rigorosa de sua expiação, aproximam-se do momento de sua libertação. Muitas daquelas almas não sofrem mais do que a dor da perda, e até já começam a perceber os primeiros raios da glória celestial e a ter um antegozo da bem-aventurança.

Quando Santa Perpétua (Cf. Mar., eh. 7) viu o seu irmão mais novo Dinócrates no Purgatório, a criança não parecia ter sido submetida a nenhuma tortura cruel. A própria mártir escreve o relato dessa visão em sua prisão em Cartago, onde foi confinada pela fé em Cristo durante a perseguição sob Septimus Severus no ano de 205. O purgatório apareceu para ela sob a forma de um deserto árido, onde ela viu o seu irmão Dinócrates, que morrera aos sete anos. A criança tinha uma úlcera no rosto e, atormentado pela sede, tentava em vão beber das águas de uma fonte que estava diante dele, mas cuja borda era muito alta para se alcançar. 

A santa mártir compreendeu que o seu irmão estava no lugar de expiação e que implorava pela ajuda de suas orações. Ela então orou por ele e, três dias depois, em outra visão, viu o mesmo Dinócrates no meio de lindos jardins. Seu rosto era lindo, como o de um anjo; ele estava vestido com um manto brilhante; a beira da fonte estava abaixo dele, e ele bebia copiosamente daquelas águas refrescantes em uma taça de ouro. A santa então compreendeu que a alma de seu irmão mais novo agora desfrutava da bem-aventurança do Paraíso.

Lemos nas Revelações de Santa Gertrudes que uma jovem religiosa do seu convento, por quem nutria um amor especial pelas suas grandes virtudes, morreu nos mais belos sentimentos de piedade (Revelationes Gertrudiana ac Mechtildiana - Henri Oudin, Poitiers, 1875). Enquanto recomendava fervorosamente essa querida alma a Deus, ela ficou extasiada e teve uma visão. A irmã falecida foi mostrada a ela em pé diante do trono de Deus, rodeada por uma auréola brilhante e em ricas vestes. 

No entanto, ela parecia triste e preocupada; seus olhos estavam abaixados, como se ela tivesse vergonha de aparecer diante de Deus; parecia que ela queria fugir e se esconder. Gertrudes, muito surpresa, perguntou à Divina Esposa das Virgens a causa desta tristeza e constrangimento por parte de uma alma tão santa. 'Dulcíssimo Jesus' - ela exclamou - 'Por que a tua infinita bondade não convida a tua cônjuge a se aproximar de ti e a entrar na alegria do seu Senhor? Por que você a abandona assim, triste e receosa?'. Então Nosso Senhor, com um sorriso amoroso, fez um sinal para que aquela alma santa se aproximasse; mas ela, cada vez mais perturbada e após alguma hesitação e toda trêmula, retirou-se.

A essa visão, a santa dirigiu-se então diretamente à alma. 'O que minha filha! - disse à alma - 'você foge diante do Nosso Senhor que a chama? Você, que desejou tanto Jesus durante toda a sua vida, agora afasta-se quando Ele abre os braços para recebê-la?' 'Ah minha querida Mãe' - respondeu a alma - 'eu ainda não sou digna de comparecer perante o Cordeiro Imaculado. Ainda tenho algumas impurezas que contraí na terra. Para se aproximar do Sol da Justiça, é preciso ser tão puro quanto um raio de luz. Ainda não tenho aquele grau de pureza que Ele requer dos seus santos. Saiba que ainda que a porta do Céu fosse aberta para mim, eu não deveria ousar cruzar o limiar antes de estar totalmente purificada de todas as menores impurezas. Parece-me que o coro das virgens que rodeiam o Cordeiro me afastariam com repulsa e horror'. 'E, mesmo assim' - continuou a abadessa - 'vejo-te rodeada de luz e de glória!' 'O que você vê' - respondeu a alma - 'é apenas a orla da vestimenta da glória. Para usar este manto celestial, não devemos reter nem mesmo a sombra do pecado'.

Esta visão nos mostra uma alma muito perto da glória do Céu; mas a sua revelação sobre a santidade infinita de Deus foi de uma ordem muito diferente daquela que conhecemos. Este conhecimento pleno faz com que ela busque, como uma bênção, a expiação que sua condição requer para torná-la digna da visão do Deus três vezes santo. 

Este é exatamente o ensinamento de Santa Catarina de Gênova. Sabemos que esta santa recebeu uma luz particular de Deus sobre o estado das almas no Purgatório. Ela escreveu uma obra intitulada 'Um Tratado sobre o Purgatório', que goza de uma autoridade igual à das obras de Santa Teresa. No Capítulo VIII dessa obra, ela assim se expressa: 'O Senhor é misericordioso. Ele está diante de nós com os braços estendidos para nos receber em sua glória. Mas vejo também que a Essência Divina é de tal pureza que a alma, a menos que esteja absolutamente imaculada, não pode suportar esta visão. Se ela encontrar em si mesma o menor átomo de imperfeição, em vez de habitar com uma impureza na presença da Divina Majestade, ela preferiria mergulhar nas profundezas do Inferno. Encontrando no Purgatório um meio de apagar as suas impurezas, ela se lança ali prontamente e se considera feliz que, por meio de uma grande misericórdia de Deus, seja dada a ela um lugar onde possa se libertar dos obstáculos à felicidade suprema'.

A História da Ordem Seráfica (Parte 4., n. 7; cf. Merv., 83) faz menção a um santo religioso chamado Irmão João de Via, que morreu piedosamente em um mosteiro nas Ilhas Canárias. O seu enfermeiro, o Irmão Ascensão, estava na sua cela rezando e recomendando a Deus a alma dos defuntos, quando de repente viu diante de si um religioso da sua Ordem, mas que parecia transfigurado. Ele estava tão radiante que a cela se encheu de uma bela luz. O irmão, quase fora de si de espanto, não o reconheceu, mas aventurou-se a perguntar quem era e qual era o motivo da sua visita. 'Eu sou' - respondeu a aparição - 'o espírito do irmão João de Via. Agradeço-lhe as orações que elevou ao Céu em meu favor e venho pedir-lhe mais um ato de caridade'. 

'Saiba que, graças à misericórdia divina, estou no lugar da salvação, entre os predestinados para o Céu - a luz que me rodeia é uma prova disso. No entanto, ainda não sou digno de ver a face de Deus por causa de uma omissão que não foi expiada. Durante a minha vida mortal, omiti, por minha própria culpa, e por várias vezes, a recitação do Ofício dos Defuntos, conforme prescrito pela Regra. Rogo-te, meu querido irmão, pelo amor que tens a Jesus Cristo, que rezes esses ofícios de tal forma que a minha dívida seja paga e eu possa me deleitar da visão do meu Deus'. O Irmão Ascensão dirigiu-se de imediato ao seu superior e relatou o que havia acontecido, apressando-se a rezar os ofícios como solicitado. Então a alma do bem-aventurado Irmão João de Via apareceu novamente a ele mas, desta vez, mais brilhante do que antes, pois já estava na posse da felicidade eterna.

Capítulo XIX

Dores do Purgatório - Santa Madalena de Pazzi e Irmã Benedita - Santa Gertrudes - Bem Aventurada Margarida Maria e Madre de Montoux

Lemos na Vida de Santa Madalena de Pazzi que uma de suas irmãs, chamada Maria-Benedita, religiosa de virtudes eminentes, morreu em seus braços. Durante a sua agonia, a santa viu uma multidão de anjos que a rodeavam com cânticos de alegria, esperando que ela exalasse a alma para então ser conduzida por eles até à Jerusalém Celestial. No momento em que a religiosa expirou, a santa viu os anjos recolhendo a sua alma sob a forma de uma pomba com cabeça ornada em tons dourados e então a visão desapareceu. Três horas mais tarde, velando junto aos seus restos mortais, Santa Madalena teve conhecimento que a alma da falecida não estava no Paraíso e nem no Purgatório, mas em um lugar particular onde, sem sofrer nenhuma dor sensível, havia sido privada da visão de Deus.

No dia seguinte, enquanto se celebrava a missa em intenção pela alma de Maria-Benedita, durante a recitação do Sanctus, Madalena foi tomada novamente em êxtase e Deus lhe permitiu ver a entrada daquela alma virtuosa na glória divina. A santa ousou então perguntar ao nosso Salvador por que Ele não havia permitido a entrada imediata dessa alma querida à sua sagrada presença. E recebeu como resposta que, na sua enfermidade derradeira, a religiosa se mostrara muito sensível aos cuidados que lhe eram dispensados, o que perturbava a sua união habitual com Deus e a perfeita conformidade de sua alma com a Divina Vontade.

Voltemos então às Revelações de Santa Gertrudes, como mencionado previamente. Ali encontramos outro exemplo que mostra como, pelo menos para algumas almas, o sol da glória é precedido por um amanhecer que se irrompe gradualmente. Uma religiosa morreu na flor de sua idade nos braços do Senhor. Ela havia sido notável por uma terna devoção ao Santíssimo Sacramento. Depois de sua morte, Santa Gertrudes a viu, resplandecente de luz celestial, ajoelhada diante do Divino Mestre, cujas feridas glorificadas pareciam tochas acesas, das quais emanavam cinco raios flamejantes que transpassavam os cinco sentidos da falecida. Entretanto, o semblante dela era como que obscurecido por uma expressão de profunda tristeza. 'Senhor Jesus' - exclamou a santa - 'como pode a vossa serva ser assim iluminada por Vós e não experimentar a alegria perfeita?'

'Até agora' - respondeu o bom Mestre - 'essa vossa irmã tem sido digna de contemplar apenas a minha humanidade glorificada e de se deleitar diante às minhas cinco chagas, como recompensa pela sua terna devoção ao mistério da Sagrada Eucaristia; mas, a menos que numerosos sufrágios sejam oferecidos em seu favor, ela ainda não pode ser admitida à visão beatífica, por causa de alguns pequenos desvios cometidos por ela na observação de suas regras sagradas'. 

Concluamos o que dissemos sobre a natureza dessas dores com alguns detalhes que encontramos na Vida da bem aventurada Margarida Maria da Visitação. São excertos retirados das Memórias da Madre Greffier que, sabiamente hesitante a respeito das graças extraordinárias concedidas à Beata Irmã Margarida, somente reconheceu estes fatos como verdadeiros depois de mil provações. Madre Philiberte Emmanuel de Montoux, Superiora de Annecy, faleceu em 2 de fevereiro de 1683, após uma vida dedicada à edificação da sua ordem religiosa. Madre Greffier recomendou particularmente à Irmã Margarida que orasse na intenção da alma da irmã falecida. Depois de algum tempo, a Irmã Margarida comunicou à sua superiora que Nosso Senhor lhe havia dado a conhecer que a alma da Madre Philiberte lhe era muito querida, pelo amor e fidelidade prestados aos seus serviços e que uma grande recompensa a esperava no Céu, mas que isso se daria somente após o cumprimento da sua purificação no Purgatório.

A bem aventurada Irmã Margarida pôde ver a alma da falecida em seu lugar de expiação. Nosso Senhor lhe mostrou os sofrimentos impostos à alma da falecida e como esta ficava muito aliviada com os sufrágios e as boas obras que diariamente eram oferecidas em sua intenção por todas as religiosas da Ordem da Visitação. Durante a noite da Quinta-Feira Santa para a Sexta-Feira Santa, enquanto a Irmã Margarida ainda rezava por sua alma, o Senhor fez ver a ela a alma da falecida exposta sob o cálice contendo a Hóstia Sagrada no altar, indicando, assim, que ela havia sido contemplada com os méritos da sua agonia no Horto das Oliveiras. No domingo de Páscoa, que naquele ano ocorreu no dia 18 de abril, a Irmã Margarida viu a alma desfrutando do limiar, por assim dizer, da felicidade eterna, aspirando ansiosamente para ser admitida à visão e à posse de Deus. Finalmente, quinze dias depois, no domingo, 2 de maio e dia da festa do Bom Pastor, ela teve a visão da alma da falecida elevando-se docemente à glória eterna, cantando melodiosamente o cântico do Amor Divino.

Vejamos como a própria Beata Margarida relata esta última aparição, em uma carta dirigida no mesmo dia, 2 de maio de 1623, à Madre de Saumaise em Dijon: 'Viva Jesus para sempre! A minha alma está tomada de uma alegria tão grande que mal consigo contê-la dentro de mim. Permita-me, querida mãe, comunicá-la ao seu coração, que é um com o meu no de Nosso Senhor. Esta manhã, domingo do Bom Pastor, ao meu despertar, duas das minhas boas irmãs sofredoras vieram despedir-se de mim. Hoje o Supremo Pastor as recebeu em seu aprisco eterno com um milhão de outras almas. 

Ambas se uniram a essa multidão de almas bem aventuradas e partiram em meio a cânticos de alegria celestial. Uma é a boa Madre Philiberte Emmanuel de Montoux e a outra é a irmã Jeanne Catherine Gâcon. Uma repetia incessantemente estas palavras: 'O amor triunfa, o amor se alegra em Deus', enquanto a outra dizia: 'Bem aventurados os que morrem no Senhor e os religiosos que vivem e morrem na exata observância de suas regras'. Ambas queriam que eu dissesse a você que a morte pode separar as almas, mas nunca pode desuni-las. Se você soubesse como minha alma foi tomada de alegria! Enquanto eu falava com elas, eu as vi mergulhar suavemente na glória como alguém que submerge num vasto oceano. Elas pedem para você rezar, em ação de graças à Santíssima Trindade, um Laudate e três vezes Gloria Patri. Quando lhes pedi que intercedessem por nós, as suas últimas palavras foram que a ingratidão nunca entrou no Céu. 
Capítulo XIX

Dores do Purgatório - Santa Madalena de Pazzi e Irmã Benedita - Santa Gertrudes - Bem Aventurada Margarida Maria e Madre de Montoux

Lemos na Vida de Santa Madalena de Pazzi que uma de suas irmãs, chamada Maria-Benedita, religiosa de virtudes eminentes, morreu em seus braços. Durante a sua agonia, a santa viu uma multidão de anjos que a rodeavam com cânticos de alegria, esperando que ela exalasse a alma para então ser conduzida por eles até à Jerusalém Celestial. No momento em que a religiosa expirou, a santa viu os anjos recolhendo a sua alma sob a forma de uma pomba com cabeça ornada em tons dourados e então a visão desapareceu. Três horas mais tarde, velando junto aos seus restos mortais, Santa Madalena teve conhecimento que a alma da falecida não estava no Paraíso e nem no Purgatório, mas em um lugar particular onde, sem sofrer nenhuma dor sensível, havia sido privada da visão de Deus.

No dia seguinte, enquanto se celebrava a missa em intenção pela alma de Maria-Benedita, durante a recitação do Sanctus, Madalena foi tomada novamente em êxtase e Deus lhe permitiu ver a entrada daquela alma virtuosa na glória divina. A santa ousou então perguntar ao nosso Salvador por que Ele não havia permitido a entrada imediata dessa alma querida à sua sagrada presença. E recebeu como resposta que, na sua enfermidade derradeira, a religiosa se mostrara muito sensível aos cuidados que lhe eram dispensados, o que perturbava a sua união habitual com Deus e a perfeita conformidade de sua alma com a Divina Vontade.

Voltemos então às Revelações de Santa Gertrudes, como mencionado previamente. Ali encontramos outro exemplo que mostra como, pelo menos para algumas almas, o sol da glória é precedido por um amanhecer que se irrompe gradualmente. Uma religiosa morreu na flor de sua idade nos braços do Senhor. Ela havia sido notável por uma terna devoção ao Santíssimo Sacramento. Depois de sua morte, Santa Gertrudes a viu, resplandecente de luz celestial, ajoelhada diante do Divino Mestre, cujas feridas glorificadas pareciam tochas acesas, das quais emanavam cinco raios flamejantes que transpassavam os cinco sentidos da falecida. Entretanto, o semblante dela era como que obscurecido por uma expressão de profunda tristeza. 'Senhor Jesus' - exclamou a santa - 'como pode a vossa serva ser assim iluminada por Vós e não experimentar a alegria perfeita?'

'Até agora' - respondeu o bom Mestre - 'essa vossa irmã tem sido digna de contemplar apenas a minha humanidade glorificada e de se deleitar diante às minhas cinco chagas, como recompensa pela sua terna devoção ao mistério da Sagrada Eucaristia; mas, a menos que numerosos sufrágios sejam oferecidos em seu favor, ela ainda não pode ser admitida à visão beatífica, por causa de alguns pequenos desvios cometidos por ela na observação de suas regras sagradas'. 

Concluamos o que dissemos sobre a natureza dessas dores com alguns detalhes que encontramos na Vida da bem aventurada Margarida Maria da Visitação. São excertos retirados das Memórias da Madre Greffier que, sabiamente hesitante a respeito das graças extraordinárias concedidas à Beata Irmã Margarida, somente reconheceu estes fatos como verdadeiros depois de mil provações. Madre Philiberte Emmanuel de Montoux, Superiora de Annecy, faleceu em 2 de fevereiro de 1683, após uma vida dedicada à edificação da sua ordem religiosa. Madre Greffier recomendou particularmente à Irmã Margarida que orasse na intenção da alma da irmã falecida. Depois de algum tempo, a Irmã Margarida comunicou à sua superiora que Nosso Senhor lhe havia dado a conhecer que a alma da Madre Philiberte lhe era muito querida, pelo amor e fidelidade prestados aos seus serviços e que uma grande recompensa a esperava no Céu, mas que isso se daria somente após o cumprimento da sua purificação no Purgatório.

A bem aventurada Irmã Margarida pôde ver a alma da falecida em seu lugar de expiação. Nosso Senhor lhe mostrou os sofrimentos impostos à alma da falecida e como esta ficava muito aliviada com os sufrágios e as boas obras que diariamente eram oferecidas em sua intenção por todas as religiosas da Ordem da Visitação. Durante a noite da Quinta-Feira Santa para a Sexta-Feira Santa, enquanto a Irmã Margarida ainda rezava por sua alma, o Senhor fez ver a ela a alma da falecida exposta sob o cálice contendo a Hóstia Sagrada no altar, indicando, assim, que ela havia sido contemplada com os méritos da sua agonia no Horto das Oliveiras. No domingo de Páscoa, que naquele ano ocorreu no dia 18 de abril, a Irmã Margarida viu a alma desfrutando do limiar, por assim dizer, da felicidade eterna, aspirando ansiosamente para ser admitida à visão e à posse de Deus. Finalmente, quinze dias depois, no domingo, 2 de maio e dia da festa do Bom Pastor, ela teve a visão da alma da falecida elevando-se docemente à glória eterna, cantando melodiosamente o cântico do Amor Divino.

Vejamos como a própria Beata Margarida relata esta última aparição, em uma carta dirigida no mesmo dia, 2 de maio de 1623, à Madre de Saumaise em Dijon: 'Viva Jesus para sempre! A minha alma está tomada de uma alegria tão grande que mal consigo contê-la dentro de mim. Permita-me, querida mãe, comunicá-la ao seu coração, que é um com o meu no de Nosso Senhor. Esta manhã, domingo do Bom Pastor, ao meu despertar, duas das minhas boas irmãs sofredoras vieram despedir-se de mim. Hoje o Supremo Pastor as recebeu em seu aprisco eterno com um milhão de outras almas. 

Ambas se uniram a essa multidão de almas bem aventuradas e partiram em meio a cânticos de alegria celestial. Uma é a boa Madre Philiberte Emmanuel de Montoux e a outra é a irmã Jeanne Catherine Gâcon. Uma repetia incessantemente estas palavras: 'O amor triunfa, o amor se alegra em Deus', enquanto a outra dizia: 'Bem aventurados os que morrem no Senhor e os religiosos que vivem e morrem na exata observância de suas regras'. Ambas queriam que eu dissesse a você que a morte pode separar as almas, mas nunca pode desuni-las. Se você soubesse como minha alma foi tomada de alegria! Enquanto eu falava com elas, eu as vi mergulhar suavemente na glória como alguém que submerge num vasto oceano. Elas pedem para você rezar, em ação de graças à Santíssima Trindade, um Laudate e três vezes Gloria Patri. Quando lhes pedi que intercedessem por nós, as suas últimas palavras foram que a ingratidão nunca entrou no Céu. 

Capítulo XX

Diversidade das Dores - Rei Sancho e Rainha Guda - Santa Lidwina e a a Alma Transpassada - Santa Margarida Maria e o Leito de Fogo

Segundo os santos, existe uma grande diversidade nos tormentos das penas do Purgatório. Embora o fogo seja o principal instrumento de tormento, há também o tormento do frio, o tormento imposto aos membros e o tormento aplicado aos diferentes sentidos do corpo humano. Esta diversidade de sofrimentos parece corresponder à natureza dos pecados, cada um dos quais exige o seu próprio castigo, segundo estas palavras: Quia per quce peccat quis, per hcec et torquetur - 'Pelas mesmas coisas que se peca, se é atormentado' (Sb 11,17). Acolhe ser assim em relação aos castigos, uma vez que a mesma diversidade existe em relação á concessão das recompensas. No Céu cada um recebe segundo as suas obras e, como diz o Venerável Beda, cada um recebe a sua coroa e o seu manto de glória. Enquanto que, para o mártir, tem o esplendor da púrpura, para o confessor, possui o brilho de uma alvura deslumbrante.

O historiador João Vasquez, em crônica do ano 940, relata como Sancho, Rei de Leão, apareceu à Rainha Guda, sua esposa, e pela piedade dela, foi libertado do Purgatório. Sancho, que levara uma vida verdadeiramente cristã, foi envenenado por um de seus súditos. Após a sua morte, a Rainha Guda passou seu tempo orando e intercedendo por orações em intenção da alma do rei. Não contente por ter oferecido muitas missas nessa intenção, para que pudesse chorar e velar perto dos queridos restos mortais, a rainha tomou o véu no convento de Castela, onde o corpo de seu marido havia sido sepultado. Num sábado, enquanto rezava aos pés da Santíssima Virgem, recomendando-lhe a alma do seu falecido marido, Sancho apareceu-lhe - mas em que condições! Bom Deus! Ele estava vestido com roupas de luto e usava uma fileira dupla de correntes em brasa em volta da cintura. Depois de agradecer a sua piedosa viúva por seus sufrágios, ele a conjurou para continuar no seu trabalho de caridade. 'Ah! se você soubesse, Guda, o que eu sofro' - disse a ela - 'você faria ainda mais'. No abismo de graças da Divina Misericórdia, eu te conjuro: ajude-me, querida Guda; ajude-me, pois sou devorado por essas chamas'. 

A Rainha redobrou então as suas orações e boas obras; distribuiu esmolas entre os pobres, fez com que fossem celebradas missas em todas as partes do país e deu ao convento um magnífico ornamento para ser usado no altar. Ao final de quarenta dias, o rei lhe apareceu novamente. Ele havia sido aliviado do cinturão ardente e de todos os seus outros sofrimentos. No lugar de suas vestes de luto, usava agora um manto de alvura deslumbrante, adornado com o ornamento que Guda dera ao convento. 'Eis-me aqui, querida Guda' - disse ele - 'graças às suas orações, fui libertado de todos os meus sofrimentos. Que você seja abençoada para sempre. Persevere em sua santificação; medite frequentemente sobre a severidade das dores da outra vida e sobre as alegrias do Paraíso, onde estarei à sua espera'. Com essas palavras, desapareceu, deixando a piedosa Guda envolta em profunda consolação.

Um dia, uma mulher, bastante desconsolada, foi dizer a Santa Lidwina que havia perdido o irmão. 'Meu irmão acabou de falecer', disse ela, 'e venho recomendar a sua pobre alma à sua instituição de caridade. Ofereça a Deus por ele algumas orações e uma parte dos seus sofrimentos devidos à sua doença'.  A santa doente prometeu a ela de rezar pelo irmão e, algum tempo depois, em um de seus frequentes êxtases, foi conduzida por seu anjo da guarda às masmorras subterrâneas, onde viu com extrema compaixão os tormentos das pobres almas mergulhadas nas chamas. Uma delas em particular atraiu a sua atenção. Ela a viu atravessada por vergas de ferro. Seu anjo disse a ela que era a alma do irmão falecido da mulher que lhe havia pedido orações. 'Se você' - acrescentou o anjo - 'quiser pedir qualquer graça em seu favor, isto não será recusada a você'. 'Eu peço então' - respondeu - 'que ele seja libertado daqueles horríveis ferros que o transpassam'. Imediatamente ela os viu retirados do pobre sofredor, que então foi removido desta prisão especial e colocado naquela ocupada pelas almas que não haviam incorrido em nenhum tormento particular. 

A irmã do defunto retornou pouco depois junto a Santa Lidwina, que a fez conhecer a condição de seu irmão falecido e exortou-a a ajudá-lo, multiplicando as suas orações e esmolas pelo repouso de sua alma. Ela mesma ofereceu a Deus as suas súplicas e sofrimentos, até que finalmente a alma dele foi libertada (Vida de Santa Lidwina). 

Lemos na Vida da Bem-aventurada Margarida Maria que uma alma foi submetida em um leito de tormentos por causa da sua indolência durante a vida; ao mesmo tempo, foi submetida a um tormento particular em seu coração, por causa de certos sentimentos perversos e em sua língua, como punição por suas palavras pouco caridosas. Além disso, ela teve que suportar uma dor terrível de natureza totalmente diferente, causada nem pelo fogo nem pelo ferro, mas pela visão de uma alma condenada. 

Vejamos como a Beata Margarida* o descreve em seus escritos. 'Eu vi em um sonho' - diz ela - 'uma de nossas irmãs que havia morrido algum tempo antes. Ela me disse que sofreu muito no Purgatório, mas que Deus infligiu a ela um sofrimento que superava todas as outras dores, mostrando-lhe um de seus parentes próximos precipitado no Inferno. Com essas palavras, acordei e senti como se meu corpo estivesse machucado da cabeça aos pés, de forma que era com dificuldade que eu conseguia me mover. Como não devemos acreditar nos sonhos, não dei muita atenção a este, mas a alma da religiosa me forçou a considerá-lo apesar de tudo. A partir daquele momento, não me deu descanso e dizia-me incessantemente: 'Reze a Deus por mim; ofereça a Ele os seus sofrimentos unidos aos de Jesus Cristo, para aliviar os meus; me dê tudo o que você fizer até a primeira sexta-feira de maio, quando você, por favor, comungue em minha intenção'. Fiz assim, com a permissão da minha Superiora.

Nesse ínterim, a dor que essa alma sofredora me causou aumentou a tal ponto que não pude encontrar conforto nem repouso. A obediência obrigou-me a buscar um pouco de descanso em minha cama; mas mal havia repousado, ela pareceu aproximar-se de mim, dizendo: 'Você reclina-se à vontade em sua cama; olha aquela em que me deito e onde suporto sofrimentos intoleráveis'. ' Eu vi aquele leito de fogo e só de pensar nisso estremeço. A parte superior e inferior eram de pontas agudas e flamejantes que perfuravam a carne. Ela me disse então que isso se devia à sua preguiça e negligência na observância das regras. 'Meu coração está dilacerado' - ela continuou - 'e me causa os mais terríveis sofrimentos por meus pensamentos de desaprovação e crítica aos meus superiores. Minha língua é devorada por vermes e, por assim dizer, arrancada de minha boca continuamente, pelas palavras que proferi contra a caridade e minha pouca consideração pela regra do silêncio. Ah! Oxalá todas as almas consagradas a Deus me vissem nestes tormentos. Se eu pudesse mostrar a eles o que está preparado para aqueles que vivem negligentemente sua vocação, seu zelo e fervor seriam inteiramente renovados e eles evitariam aquelas faltas que agora me fazem sofrer tanto'.'

Diante dessa visão, derreti-me em lágrimas. 'Ai de mim!' - disse ela - 'um dia passado por toda a comunidade em observância exata iria curar minha boca ressecada; outro, vivido na prática da santa caridade, curaria minha língua; e um terceiro, passado sem qualquer murmúrio ou desaprovação aos superiores, curaria meu coração machucado; mas ninguém pensa em me aliviar'. Depois de ter oferecido a Comunhão que ela me pediu, ela me disse que os terríveis tormentos haviam diminuído muito, mas ela ainda tinha que permanecer muito tempo no Purgatório, condenada a sofrer as dores por aquelas almas que viveram mornas ao serviço de Deus. 'Quanto a mim' - acrescenta a bem-aventurada Margarida Maria - 'descobri que estava livre de meus sofrimentos que, como ela me havia dito, não diminuiriam a menos que ela própria fosse aliviada' (Languet, Vida da B. Margarida).

* canonizada em 13 de maio de 1920.

Capítulo XXI

Diversidade das Dores - Blasio Ressuscitado dos Mortos por São Bernardino - Venerável Francisca de Pamplona e as Penas do Fogo - São Corpreus e o Rei Malaquias 

O célebre Blasio Massei, ressuscitado dos mortos por São Bernardino de Sena, viu que havia uma grande diversidade nas penas do Purgatório. O relato desse milagre é transcrito detalhadamente na Acta Sanctorum. Pouco tempo depois da canonização de São Bernardino de Sena, morreu em Cássia, no reino de Nápoles, uma criança de onze anos, chamada Blasio Massei. Seus pais o inspiraram com a mesma devoção que eles próprios tinham para com este novo santo, e este não tardou em recompensá-los. 

No dia seguinte à sua morte, quando o corpo estava sendo levado para a sepultura, Blasio acordou como de um sono profundo e disse que São Bernardino o restaurou à vida, para relatar as maravilhas que o santo lhe havia mostrado no outro mundo. Podemos compreender facilmente a curiosidade que este evento produziu. Durante um mês inteiro, o jovem Blasio não fez outra coisa senão falar do que viu e responder às perguntas que lhe faziam os visitantes. Ele falava com a simplicidade de uma criança, mas ao mesmo tempo com uma precisão de expressão e um conhecimento das coisas da outra vida muito acima de sua idade.

No momento de sua morte, disse ele, São Bernardino apareceu-lhe e, tomando-o pela mão, lhe disse: 'Não tenha medo, mas preste muita atenção ao que vou lhe mostrar, para que se lembre, e depois seja capaz de relatá-lo'. Assim o santo conduziu o seu jovem protegido sucessivamente para as regiões do Inferno, do Purgatório e do Limbo e, finalmente, permitiu que ele pudesse ver também o Paraíso.

No Inferno, Blasio viu horrores indescritíveis e as diversas torturas pelas quais os orgulhosos, os avarentos, os impuros e outros pecadores são atormentados. Entre eles reconheceu vários que tinha conhecido em vida, e chegou a testemunhar a chegada ali de dois recém-falecidos, Buccerelli e Frascha. Este último foi condenado por ter mantido bens ilícitos em sua posse. O filho de Frascha, atingido por esta revelação como por um raio, e conhecendo bem a verdade destes fatos, apressou-se a fazer a restituição completa das posses e, não contente com este ato de justiça, para não se expor um dia a vir compartilhar a triste sorte do seu pai, distribuiu o resto de sua fortuna aos pobres e abraçou a vida monástica.

Conduzido então ao Purgatório, Blasio viu ali os mais terríveis tormentos, variados de acordo com os pecados dos que eram punidos. Ele reconheceu um grande número de almas, e várias imploraram-lhe para informar os seus pais e parentes sobre a sua condição de sofrimento, indicando inclusive os sufrágios e boas obras de que necessitavam. Quando interrogado sobre o estado de uma alma que partira, ele respondeu sem hesitação e deu os detalhes mais precisos. 'Seu pai' -  disse ele a um de seus visitantes - 'está no Purgatório desde aquele dia e ele cobrou de você que pagasse tal quantia em esmolas, que você se esqueceu de fazê-lo'. 'Seu irmão' - disse ele a outro 'pediu que você mandasse celebrar tantas missas como você havia concordado em fazer mas não cumpriu o seu compromisso; e tantas missas ainda precisam ser feitas nesta intenção'.

Blasio também falava do Paraíso, último lugar para onde fora levado; mas falava quase como São Paulo que, tendo sido arrebatado ao terceiro céu, se com o seu corpo ou sem o seu corpo que ele não reconhecia, ouviu palavras misteriosas que nenhuma língua mortal poderia repetir. O que mais chamou a atenção do menino foi a imensa multidão de anjos que rodeava o trono de Deus e a beleza incomparável da Bem Aventurada Virgem Maria, elevada acima de todos os coros de anjos.

A vida da Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento, religiosa de Pamplona (La Vie par le F. Joachim; cf. Merv., 26), apresenta vários fatos que mostram como as penas do Purgatório são inerentes às faltas a serem expiadas. Esta venerada serva de Deus tinha a comunicação mais íntima com as almas do Purgatório, de modo que estas vinham em grande número e tomavam a sua cela, esperando humildemente cada uma, por sua vez, para serem assistidas pelas suas orações. Frequentemente, para mais facilmente excitar a sua compaixão, elas apareciam ornadas com os instrumentos dos seus pecados, agora tornados instrumentos de sua tortura. Um dia ela viu um religioso rodeado por móveis muito caros, como quadros, poltronas, etc., envoltos em chamas. Ela havia recolhido essas coisas em sua cela, contrariando o voto de pobreza religiosa e, depois de sua morte, tornaram-se o seu tormento.

Um notário apareceu a ela um dia com todas as insígnias de sua profissão. Estando amontoadas ao seu redor, as chamas que saíam de lá causaram-lhe o mais intenso sofrimento. 'Usei esta caneta, esta tinta, este papel' - disse ele - 'para elaborar escrituras ilegais. Também tinha paixão pelo jogo e essas cartas que sou forçado a ter continuamente em minhas mãos constituem agora o meu castigo. Esta bolsa flamejante contém os meus ganhos ilegais e agora tenho de expiá-los'. De tudo isso devemos tirar grande e salutar instrução. As criaturas são dadas ao homem como um meio de servir a Deus; eles devem ser os instrumentos da virtude e das boas obras. Se ele abusar delas e torná-los instrumentos do pecado, é justo que se voltem contra elas e se tornem os instrumentos do seu castigo.

A Vida de São Corpreus, um bispo irlandês, que encontramos nos Bolandistas [Acta Sanctorum, publicada por esta comunidade de jesuítas desde 1643] em 6 de março, nos fornece outro exemplo do mesmo tipo. Um dia, enquanto este santo prelado estava em oração após o Ofício, ele viu aparecer diante dele um espectro horrível com semblante lívido, uma coleira de fogo em volta do pescoço e, sobre os ombros, um manto miserável todo em farrapos. 

'Quem é você?' - perguntou o santo, nem um pouco perturbado. 'Eu sou uma alma da outra vida'. 'E o que o trouxe à triste condição em que o vejo?' “Minhas faltas resultaram estes castigos sobre mim. Apesar da miséria a que agora me vejo reduzido, sou Malaquias, ex-rei da Irlanda. Nessa posição elevada, eu poderia ter feito muito bem e era meu dever fazê-lo. Eu negligenciei isso e, portanto, sou punido'. 'Você não fez penitência por suas faltas?' 'Não fiz penitência suficiente, e isso se deve à fraqueza culposa do meu confessor, a quem submeti aos meus caprichos, oferecendo-lhe um anel de ouro. É por isso que agora uso uma coleira de fogo em volta do pescoço'.  'Eu gostaria de saber' -  continuou o bispo, 'por que você está coberto com esses trapos?' 'É outro castigo. Eu não vesti o nu. Não ajudei os pobres com a caridade, o respeito e a liberalidade que se tornaram minha dignidade de rei e meu título de cristão. É por isso que você me vê vestido como pobre e coberto com estes andrajos'. A biografia acrescenta que São Corpreus, unido na sua comunidade em oração, ao cabo de seis meses obteve a mitigação do sofrimento e, um pouco mais tarde, a libertação total do rei Malaquias. 

Capítulo XXII

Duração do Purgatório - Posições dos Doutores da Igreja - São Berlamino - Estimativas do Padre Mumford

A fé não nos ensina a duração precisa das dores do Purgatório. Sabemos, de maneira geral, que estes tempos são medidos pela Justiça Divina e que são proporcionais ao número e à gravidade das faltas que ainda não foram expiadas. Deus pode, entretanto, sem prejuízo de sua Justiça, abreviar esses sofrimentos aumentando a sua intensidade; a Igreja Militante também pode obter a remissão das dores pelo Santo Sacrifício da Missa e por meio de outros sufrágios oferecidos pelos defuntos.

Segundo a opinião comum dos Doutores da Igreja, as dores expiatórias são de longa duração. 'Não há dúvida', diz São Belarmino (De Gemitu, lib. 2, c. 9), 'que as dores do Purgatório não se limitam a dez ou vinte anos mas que, em alguns casos, duram séculos inteiros. Mas, admitindo que a sua duração não exceda dez ou vinte anos, podemos considerar que seja nada suportar por dez ou vinte anos os mais excruciantes sofrimentos sem o mínimo alívio? Se um homem tivesse a garantia de que sofreria alguma dor violenta nos pés, na cabeça ou nos dentes pelo espaço de vinte anos, sem nunca poder dormir ou repousar o mínimo possível, não preferiria morrer mil vezes a viver um tal estado? E se a escolha fosse dada a ele entre isso e uma vida miserável e a perda de todos os seus bens temporais, hesitaria em fazer o sacrifício de sua fortuna para se livrar de tal tormento? Encontraremos então alguma dificuldade em abraçar o trabalho e a penitência para nos libertar dos sofrimentos do Purgatório? Teremos receio de praticar os exercícios mais dolorosos como vigílias, jejuns, esmolas, longas orações e, principalmente, contrição, acompanhados de suspiros e lágrimas?'

Essas palavras abrangem toda a doutrina dos santos e teólogos. O Padre Mumford, da Companhia de Jesus, em seu Tratado sobre a Caridade para com os Defuntos, baseia a longa duração do Purgatório em um cálculo de probabilidade, que daremos em substância. Ele parte do princípio de que, segundo as palavras do Espírito Santo, o justo cai sete vezes ao dia (Pv 24,16), ou seja, mesmo aqueles que se aplicam mais perfeitamente ao serviço de Deus, apesar de toda boa vontade, comete um grande número de faltas aos olhos infinitamente puros de Deus. Só temos que entrar em nossa própria consciência e então analisar, diante de Deus, os nossos pensamentos, nossas palavras e obras, para nos convencermos deste triste efeito da miséria humana. Ó como é fácil não ter respeito na oração, preferir nossa comodidade ao cumprimento do dever, pecar por vaidade, pela impaciência, pela sensualidade, por pensamentos e palavras pouco caridosos, por falta de conformidade com a vontade de Deus... O dia é longo; não é muito provável que até mesmo uma pessoa virtuosa pode cometer, não digo sete, mas vinte ou trinta deste tipo de faltas e imperfeições por dia?

Façamos então uma estimativa moderada e supor que se cometa cerca de dez faltas por dia; ao final de 365 dias, a soma será de 3.650 faltas. Vamos arredondar, para facilitar o cálculo, considerando 3.000 faltas por ano. Ao final de dez anos, serão 30.000 e, ao final de 20 anos, 60.000. Supondo que, dessas 60.000 faltas, tenham sido expiadas a metade por penitência e boas obras, ainda restarão 30.000 faltas para serem expiadas.

Continuemos a nossa hipótese: você morre após estes vinte anos de vida virtuosa e se coloca diante de Deus com uma dívida de 30.000 faltas, que você deve expiar no Purgatório. Quanto tempo você precisará para realizar essa expiação? Vamos supor que, em média, cada falta requeira uma hora de expiação. Esta medida é muito moderada, se julgarmos pelas revelações dos santos; mas, de qualquer forma, isso implica um purgatório de 30.000 horas. Agora você sabe quanto tempo essas 30.000 horas representam? Três anos, três meses e quinze dias. Assim, um bom cristão que zela por si mesmo, que se aplica à penitência e às boas obras, encontra-se sujeito por princípio a três anos, três meses e quinze dias de purgatório.

O cálculo anterior é baseado em uma estimativa tolerante ao extremo. Agora, se você estende a duração da dor e, em vez de uma hora, estima em um dia a expiação de cada falta; e se, em vez de não ter apenas pecados veniais, tem-se ainda perante Deus uma dívida resultante de pecados mortais, mais ou menos numerosos que anteriormente se cometeu; se for atribuído em média, como diz Santa Francisca Romana, sete anos para a expiação de cada pecado mortal, remido quanto à culpa, quem não vê que se chegaria a uma duração espantosa e que a expiação poderia facilmente prolongar-se por muitos anos e mesmo por séculos? Anos e séculos de tormentos! Ó se apenas pensarmos nisso, com que cuidado não iríamos evitar os menores defeitos e com que fervor não iríamos praticar penitências para dar satisfação a Deus neste mundo!

Capítulo XXIII

Duração do Purgatório - O Abade Cisterciense e o Papa Inocêncio III - João de Lierre - A irmã de São Vicente Ferrer

Na 'Vida de Santa Lutgarda', obra escrita pelo seu contemporâneo, Tomás de Cantimpre, é mencionado um religioso outrora fervoroso mas que, por excesso de zelo, foi condenado a quarenta anos do Purgatório. Este era um abade da Ordem Cisterciense, chamado Simão, que tinha por Santa Lutgarda grande veneração. A santa, por sua vez, seguiu de bom grado o seu conselho e, em consequência, formou-se entre eles uma espécie de amizade espiritual. Mas o abade, por sua vez, não era tão brando com os seus subordinados quanto era com a santa. 

Severo consigo mesmo, também foi severo em sua administração, e levou as suas exigências em matéria de disciplina até um rigor muito elevado, esquecendo a lição do Divino Mestre que nos ensina a ser mansos e humildes de coração. Tendo falecido, e enquanto Santa Lutgarda estava rezando fervorosamente e impondo a si penitências pelo repouso de sua alma, ele apareceu a ela e declarou que estava condenado a quarenta anos no Purgatório. Felizmente ele tinha em Lutgarda uma amiga generosa e poderosa. Ela redobrou as suas orações e austeridades e, tendo recebido de Deus a garantia de que a alma que partira logo seria libertada, a santa respondeu: 'Não cessarei de chorar; não deixarei de importunar a Vossa Misericórdia até vê-lo livre de suas dores'.

Uma vez que me referi a Santa Lutgarda, devo falar também da célebre aparição do Papa Inocêncio III? Reconheço que a leitura deste incidente me chocou, e gostaria de passá-lo olvidado pois relutei em pensar que um papa, e um papa assim, tivesse sido condenado a um Purgatório tão longo e terrível. Sabemos que Inocêncio III, que presidiu o célebre Concílio de Latrão em 1215, foi um dos maiores pontífices que já ocuparam a cátedra de São Pedro. Sua piedade e zelo o levaram a realizar grandes coisas da Igreja de Deus e da santa disciplina. Como, então, admitir que tal homem foi julgado com tanta severidade no Supremo Tribunal? Como conciliar esta revelação de Santa Lutgarda com a Divina Misericórdia? Quis, portanto, tratá-la como uma fantasia e procurei razões que apoiassem essa ideia. Mas descobri, pelo contrário, que a realidade desta aparição tem sido admitida pelos autores mais fidedignos, e nunca rejeitada por nenhum deles. Além disso, o biógrafo, Thomas de Cantimpre, é muito explícito e ao mesmo tempo muito reservado: 'Observe, leitor´' - escreve ele no final de sua narrativa - 'que foi da boca da própria piedosa Lutgarda que ouvi falar das faltas reveladas pelo defunto, e que omito aqui por respeito a tão grande papa'.

Além disso, considerando o evento em si, podemos encontrar alguma boa razão para questioná-lo? Não sabemos que Deus não faz distinção de pessoas – que até os papas aparecem diante do seu tribunal como os mais humildes dos fiéis – que todos os grandes e os humildes são iguais diante dele, e que cada um recebe de acordo com as suas obras? Não sabemos que aqueles que governam os outros têm uma grande responsabilidade e terão que prestar contas bastante severas? Judicium durissimum seu qui praesunt fiet – um julgamento mais severo será para aqueles que governam (Sb 6,6). É o Espírito Santo que o declara. Agora, Inocêncio III reinou por dezoito anos e durante os tempos mais turbulentos e, acrescentam os bolandistas, não está escrito que os julgamentos de Deus são inescrutáveis ​​e muitas vezes muito diferentes dos julgamentos dos homens? - Judicia tua abyssus multa (Sl 35,7). A realidade desta aparição não pode, então, ser razoavelmente questionada. Não vejo razão para omiti-la, visto que Deus não revela mistérios dessa natureza para nenhum outro propósito além de que eles sejam conhecidos para a edificação da sua Igreja.

O Papa Inocêncio III morreu em 16 de julho de 1216. No mesmo dia, apareceu a Santa Lutgarda em seu mosteiro em Aywieres, em Brabante. Surpresa ao ver o espectro envolto em chamas, ela perguntou quem seria e o que ele queria. 'Eu sou o Papa Inocêncio' - ele respondeu. 'Como é possível que você, nosso pai comum, esteja em tal estado?' 'É bem verdade: estou expiando três faltas que poderiam ter causado a minha perdição eterna. Graças à bem aventurada Virgem Maria, obtive o perdão, mas tenho que fazer expiação por eles. Infelizmente! Isto é terrível; e durará séculos se você não vier em meu auxílio. Em nome de Maria, que obteve para mim o favor de apelar para você, ajude-me'. Com essas palavras, desapareceu. Lutgarda anunciou a morte do papa às suas irmãs e todas juntas se dedicaram à oração e às obras penitenciais em favor da alma do augusto e venerado pontífice, cuja morte lhes foi confirmada algumas semanas depois por outra fonte.

Acrescentemos aqui um fato mais consolador, que encontramos na vida da mesma santa. Um pregador célebre, chamado John de Lierre, era um homem de grande piedade e bem conhecido da nossa santa. Ele havia feito um compromisso com ela, pelo qual mutuamente prometiam que aquele que morresse primeiro, com a permissão de Deus, deveria aparecer ao outro. João foi o primeiro a partir desta vida. Tendo empreendido uma viagem a Roma para tratar de certos assuntos de interesse dos religiosos, encontrou a morte entre os Alpes. 

Fiel à sua promessa, ele apareceu a Lutgarda no célebre claustro de Aywières. Ao vê-lo, a santa não teve a menor ideia de que ele estaria morto, e o convidou, de acordo com a Regra, a entrar no salão para que pudessem conversar. 'Não sou mais deste mundo' - respondeu ele - 'e venho aqui apenas em cumprimento da minha promessa.' Com essas palavras, Lutgarda caiu de joelhos e permaneceu por algum tempo bastante confusa. Então, erguendo os olhos para o seu abençoado amigo, perguntou: 'Por que você está vestido com tamanho esplendor? O que significa este manto triplo com o qual te vejo adornado'? 'A vestimenta branca' - respondeu ele - 'significa a pureza virginal, que sempre preservei; a túnica vermelha implica os trabalhos e sofrimentos que esgotaram prematuramente minhas forças e o manto azul, que cobre tudo, denota a perfeição da vida espiritual'. Ditas essas palavras, ele de repente deixou Lutgarda, que ficou dividida entre o arrependimento por ter perdido um amigo tão bom e a alegria que experimentara por causa de sua felicidade. 

São Vicente Ferrer, o célebre taumaturgo da Ordem de São Domingos, que pregou com tanta eloquência a grande verdade do Juízo de Deus, tinha uma irmã que não se comovia nem com as palavras e nem com o exemplo do seu santo irmão. Ela estava cheia do espírito do mundo, intoxicada com seus prazeres, e caminhou a passos rápidos em direção à sua eterna ruína. Entretanto, o santo rezou pela sua conversão, e sua oração foi finalmente respondida. A infeliz pecadora caiu mortalmente doente e, no momento da morte, voltando a si, fez a sua confissão com sincero arrependimento.

Alguns dias depois de sua morte, enquanto seu irmão celebrava o Santo Sacrifício, ela lhe apareceu no meio das chamas e presa dos mais intoleráveis ​​tormentos. 'Ai! meu querido irmão' - disse ela - 'estou condenada a sofrer esses tormentos até o dia do Juízo Final. Mesmo assim, você pode me ajudar. A eficácia do Santo Sacrifício é tão grande: ofereça para mim cerca de trinta missas, e assim posso esperar o resultado mais feliz'. O santo apressou-se a atender o seu pedido. Ele celebrou as trinta missas e, no trigésimo dia, viu sua irmã aparecer novamente cercada de anjos e subindo ao céu. Graças às virtudes do Sacrifício Divino, uma expiação de vários séculos foi reduzida a trinta dias.

Este exemplo nos mostra ao mesmo tempo que a duração das dores que uma alma pode incorrer e o poderoso efeito do Santo Sacrifício da Missa, quando Deus se agrada de aplicá-lo a uma alma. Mas esta aplicação, como todos os outros sufrágios, nem sempre se realiza ou, melhor dizendo, nem sempre se realiza na mesma plenitude.

Capítulo XXIV

Duração do Purgatório - O Duelista - Padre Schoofs e a Aparição em Antuérpia

O exemplo a seguir mostra não só a longa duração da punição infligida por certas faltas, mas também a dificuldade em declinar a Justiça Divina em favor daqueles que cometeram faltas dessa natureza. A história da Ordem da Visitação menciona, entre as primeiras religiosas daquele Instituto, Irmã Marie Denise, chamada no mundo Maria Marignat. Ela era muito caridosa e devotada às almas do Purgatório, e sentia-se particularmente atraída a recomendar a Deus, de maneira especial aqueles que haviam ocupado altas posições no mundo, pois sabia por experiência os perigos a que as suas posições os expunham. Um certo príncipe, cujo nome não é revelado, mas que se acredita pertencer à Casa da França, foi morto em um duelo, e Deus permitiu que ele aparecesse à irmã Denise para pedir-lhe a ajuda da qual tanto necessitava. Ele revelou então que não havia sido condenado, embora o seu crime merecesse condenação. Graças a um ato de contrição perfeita que fez no momento da morte, foi salvo; mas, como punição por sua vida e morte temerosas, havia sido condenado ao mais rigoroso castigo do Purgatório até o Dia do Juízo Final.

A irmã, tomada pela caridade e profundamente tocada pelo estado daquela alma, ofereceu-se generosamente como vítima de expiação em sua intenção. Mas é impossível dizer o que ela teve que sofrer por muitos anos em consequência desse ato heroico. O pobre príncipe não a deixou descansar e a fez participar de todos os seus tormentos. Ela completou o seu sacrifício pela morte; mas, antes de morrer, confidenciou à sua superiora que, em troca de tanta expiação, conseguira para o seu protegido a remissão de apenas algumas horas de sofrimento. 

Quando a superiora expressou o seu espanto com esse resultado, que lhe pareceu totalmente desproporcional a tudo que a irmã havia padecido, a irmã Denise respondeu: 'Ah! minha querida mãe, as horas do Purgatório não são computadas como as da Terra; anos de dor, cansaço, pobreza ou doença neste mundo não são nada comparados a uma hora de sofrimento do Purgatório. Já é muito que a Divina Misericórdia nos permita exercer qualquer influência sobre a sua justiça. Eu estou menos comovida pelo estado lamentável em que vi esta alma definhar do que pelo extraordinário retorno da graça que consumou a obra de sua salvação. O ato pelo qual o príncipe morreu merecia o inferno; um milhão de outros poderiam ter encontrado a sua perdição eterna no mesmo ato em que ele encontrou a sua salvação. Ele recobrou a consciência apenas por um instante, tempo suficiente para cooperar com aquele precioso movimento de graça que o dispôs a fazer um ato de contrição perfeita. Aquele momento abençoado me parece um excesso da bondade, clemência e amor infinito de Deus'. Assim falou a Irmã Denise; ela admirou ao mesmo tempo a severidade da Justiça de Deus e a sua Infinita Misericórdia. Tanto uma quanto a outra brilharam neste exemplo da maneira mais impressionante.

Continuando o assunto da longa duração do Purgatório, relataremos aqui um caso de ocorrência mais recente. O padre Philip Schoofs, da Companhia de Jesus, falecido em Fouvain em 1878, relatou o seguinte fato, ocorrido em Antuérpia durante os primeiros anos de seu ministério naquela cidade. Ele acabara de pregar uma missão e retornara ao Colégio de Notre Dame, então situado na Rue L'Empereur, quando lhe disseram que alguém o esperava no salão. Descendo imediatamente ao salão, encontrou ali dois jovens irmãos, acompanhados por uma criança pálida e doentia de cerca de dez anos.

'Padre' - dizia um deles - 'aqui está uma pobre criança que adotamos e que merece nossa proteção porque é boa e piedosa. Nós o alimentamos e o educamos e há mais de um ano que ele faz parte da nossa família, onde é feliz e goza de boa saúde. Nestas últimas semanas, no entanto, ele começou a ficar mais magro e a definhar, ficando no estado em que se vê agora'. E qual é a causa dessa mudança?' - perguntou o padre. 'É medo' - responderam - 'a criança é despertada todas as noites por aparições. Um homem, ele nos garante, apresenta-se diante dele e ele o vê tão distintamente quanto nos vê em plena luz do dia. Esta é a causa de seu contínuo medo e inquietação. Viemos, padre, pedir-lhe alguma solução'.

'Meus caros' - respondeu o padre Schoofs - 'em Deus há solução para todas as coisas. Comecem, ambos, fazendo uma boa confissão e comunhão, e implorem a Deus que os livre de todo mal, e nada temam. Quanto a você, meu filho, faça bem as suas orações e depois durma tão profundamente que nenhum fantasma possa acordá-lo'. Ele então os dispensou, dizendo-lhes que voltassem caso algo mais acontecesse. Duas semanas se passaram e eles voltaram novamente. 'Padre' - disseram eles - 'seguimos as suas orientações e, ainda assim, as aparições continuam como antes: a criança sempre vê o mesmo homem aparecer'. 'A partir desta noite' - disse o padre Schoofs - 'vigiem na porta do quarto da criança, providos de papel e tinta para escrever as respostas. Quando a criança avisá-lo da presença daquele homem perguntem, em nome de Deus, quem ele é, a hora de sua morte, onde ele viveu e por que ele voltou'.

No dia seguinte eles voltaram, trazendo o papel onde estavam escritas as respostas que haviam recebido. 'Vimos' - disseram eles - 'o homem que aparece para a criança'. Descreveram-no como um velho, do qual só podiam ver o busto, e ele usava um traje dos velhos tempos. Ele lhes disse o seu nome e a casa em que morava em Antuérpia. Morreu em 1636, seguira a profissão de banqueiro nessa mesma casa que, no seu tempo, compreendia ainda as duas casas que hoje se podem ver situadas à direita e à esquerda. Observemos aqui que alguns documentos que comprovam a exatidão dessas indicações foram descobertos nos arquivos da cidade de Antuérpia. Acrescentou que estava no Purgatório e que poucas orações haviam sido feitas por ele. Ele então implorou às pessoas da casa que oferecessem a Sagrada Comunhão por ele e, finalmente, pediu que uma peregrinação fosse feita a Notre Dame des Fievres e outra a Notre Dame de la Chapelle, em Bruxelas. 'Você fará bem em atender a todos esses pedidos' - disse o padre Schoofs - 'e se o espírito retornar, antes de falar com ele, exija que ele diga o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo'.

Eles realizaram as boas obras indicadas com toda piedade possível, e muitas conversões ocorreram. Quando tudo terminou, os jovens retornaram. 'Padre, ele rezou' - disseram eles ao padre Schoofs - 'com um tom de fé e piedade indescritíveis. Nunca ouvimos ninguém orar assim. Que reverência no Pai Nosso! Que amor na Ave Maria! Que fervor no Credo! Agora sabemos o que é orar. Então ele nos agradeceu por nossas orações; ele ficou muito aliviado e disse que teria sido libertado inteiramente se uma assistente em nossa loja não tivesse feito uma comunhão sacrílega. Nós relatamos essas palavras para a pessoa. Ela ficou pálida, reconheceu a sua culpa então, e correndo ao seu confessor, apressou-se a reparar o seu crime'.

'Desde aquele dia' - acrescenta o padre Schoofs - 'aquela casa nunca teve problemas. A família que a habita prosperou rapidamente e hoje é rica. Os dois irmãos continuaram a se comportar de maneira exemplar e irmã deles tornou-se religiosa em um convento, do qual atualmente é superiora'. Tudo nos leva a crer que a prosperidade daquela família foi fruto do socorro prestado à alma que partiu. Após dois séculos de punição, restava a esta alma apenas uma pequena parte da expiação e a realização de algumas boas obras que ele pediu. Quando isso se realizou, ele foi libertado e desejou mostrar a sua gratidão obtendo as bênçãos de Deus sobre os seus benfeitores.

Capítulo XXV

Duração do Purgatório - A Abadia de Latrobe - Cem Anos de Sofrimento por Retardar a Recepção dos Últimos Sacramentos

O seguinte incidente é relatado com autenticação de prova pelo jornal The Monde, no número de abril de 1860. Ocorreu na América, na Abadia dos Beneditinos, situada na aldeia de Latrobe. Uma série de aparições ocorreu durante o ano de 1859. A imprensa americana abordou o assunto e tratou essas graves questões com a sua habitual leviandade. Para acabar com o escândalo, o abade Wirnmer, superior da casa, dirigiu aos jornais a seguinte carta.

'O seguinte documento é uma verdadeira declaração do caso: Em nossa abadia de São Vicente, perto de Latrobe, em 10 de setembro de 1859, um noviço viu a aparição de um beneditino composto com traje completo de coro. Esta aparição se repetiu todos os dias, entre 18 de setembro e 19 de novembro, às onze horas, ao meio-dia ou às duas horas da manhã. Somente no dia 19 de novembro, o noviço interrogou o espírito, na presença de outro membro da comunidade, e perguntou o motivo dessas aparições. Ele respondeu que já havia padecido por setenta e sete anos no Purgatório por ter deixado de celebrar sete missas de obrigação; que ele já havia aparecido em ocasiões diferentes a outros sete beneditinos, mas que estes não lhe deram ouvidos, e que seria obrigado a efetuar outra aparição novamente, após onze anos, se o noviço não viesse em seu auxílio.

Finalmente, o espírito pediu que estas sete missas fossem celebradas na sua intenção; além disso, o noviço deveria permanecer em retiro por sete dias, manter silêncio absoluto e, durante trinta dias, recitar três vezes ao dia o salmo Miserere, com os pés descalços e os braços estendidos em forma de cruz. Todas estas condições foram cumpridas entre 20 de novembro e 25 de dezembro, e nesse dia, após a celebração da última missa, a aparição desapareceu.

Durante esse período o espírito manifestou-se várias vezes, exortando o noviço da maneira mais urgente a rezar pelas almas do Purgatório; pois - disse ele - elas sofrem terrivelmente e são extremamente gratos àqueles que cooperam com a sua libertação. Ele acrescentou - e isso é triste relatar - que, dos cinco sacerdotes que morreram em nossa abadia, nenhum ainda havia entrado no céu, e todos sofriam ainda no Purgatório. Eu não tiro nenhuma conclusão, mas esses são os fatos'. 

Esta conta, assinada pela mão do Abade Superior, é um documento histórico incontestável. Quanto à conclusão que o venerável prelado nos deixa tirar, é evidente. Vendo que um religioso está condenado ao Purgatório por setenta e sete anos, basta-nos aprender a necessidade de refletir sobre a duração do castigo futuro, tanto para sacerdotes e religiosos como para os fiéis comuns que vivem em meio à corrupção do mundo.

Uma causa muito frequente desta longa permanência do Purgatório é que muitos se privam de um grande meio estabelecido por Jesus Cristo para encurtá-lo, retardando, quando gravemente doentes, para receber os últimos sacramentos. Estes sacramentos, destinados a preparar as almas para a sua última viagem, a purificá-las dos restos do pecado e a poupá-las das penas da outra vida, exigem, para produzirem os seus efeitos, que o doente os receba com as devidas disposições. Ora, quanto mais são adiadas e as faculdades do doente se enfraquecem, mais defeituosas tornam-se essas disposições. O que eu disse? Muitas vezes acontece, em consequência desse atraso imprudente, é que o doente morra privado dessa ajuda absolutamente necessária. O resultado é que o falecido, desde que não condenado, é lançado nos abismos mais profundos do Purgatório e sobrecarregado com todo o peso de suas dívidas.

Miguel Alix nos fala de um eclesiástico que, em vez de receber prontamente a extrema unção e, com isso, dar um bom exemplo aos fiéis, foi culpado de negligência a esse respeito e foi punido com cem anos de Purgatório. Sabendo que estava gravemente doente e em perigo de morte, este pobre padre deveria ter dado a conhecer o seu estado e recorrer imediatamente aos socorros que a Mãe Igreja reserva aos seus filhos naquela hora suprema. Ele omitiu fazê-lo; ou por uma ilusão comum entre os doentes, ele não quis declarar a gravidade de sua situação ou porque estava sob a influência daquele preconceito fatal que faz com que os cristãos fracos adiem a recepção dos últimos sacramentos, ele não pediu nem pensou em recebê-los. 

Mas sabemos como a morte vem às escondidas; o infeliz adiou tanto que morreu sem ter tido tempo de receber o Viático ou a Extrema Unção. Agora, Deus se agradou de fazer uso desta circunstância para dar um grande aviso aos outros. O próprio falecido veio dar a conhecer a um irmão eclesiástico que estava condenado ao Purgatório por cem anos. 'Estou sendo assim punido' - disse ele - 'por ter demorado em receber a graça da última purificação. Se eu tivesse recebido os sacramentos como deveria ter feito, teria escapado da morte pela virtude da extrema unção e teria tido tempo para fazer penitência'. 

Capítulo XXVI

Duração do Purgatório - Venerável Catarina Paluzzi e a Irmã Bernardina - Irmãos Finetti e Rudolfini - São Pedro Claver e os Casos de Duas Almas

Citemos alguns outros exemplos que servirão para nos convencer ainda mais de quão longa é a duração dos sofrimentos do Purgatório. Veremos que a Justiça Divina é relativamente severa para com as almas chamadas à perfeição e que receberam muitas graças. Não diz Jesus Cristo no Evangelho: 'a quem muito é dado, muito será exigido; e que mais será pedido daquele a quem mais foi confiado?' (Lc 12,48).

Lemos na Vida da Venerável Catarina Paluzzi que uma santa religiosa, que morreu em seus braços, só foi admitida à beatitude eterna depois de passar um ano inteiro no Purgatório. Catarina Paluzzi levou uma vida santa na diocese de Nepi, na Itália, onde fundou um convento de dominicanos. Vivia com ela uma religiosa chamada Bernardina, também muito avançada nos caminhos da vida espiritual. Estas duas santas imitaram-se com fervor e ajudaram-se mutuamente a progredir cada vez mais na perfeição a que Deus as chamou.

O biógrafo da Venerável Catarina as compara a duas brasas vivas que comunicam calor entre si e a duas harpas afinadas que se harmonizaram em um hino perpétuo de amor à maior glória de Deus. Bernardina morreu depois de uma doença dolorosa, que suportou com paciência cristã. Quando estava prestes a expirar, ela disse a Catarina que não a esqueceria diante de Deus e que, se Deus assim o permitisse, voltaria a conversar com ela sobre assuntos espirituais que contribuíssem para a sua santificação.

Catarina orou muito pela alma da irmã religiosa e, ao mesmo tempo, implorou a Deus que permitisse que a sua alma pudesse aparecer a ela. Um ano inteiro se passou e a falecida não retornou. Finalmente, no aniversário da morte de Bernardina, estando Catarina em oração, viu um poço de onde saíam volumes de fumaça e chamas; então ela percebeu saindo do poço uma forma cercada de nuvens escuras. Aos poucos, esses vapores foram se dispersando e a aparição tornou-se radiante com um brilho extraordinário. Nessa gloriosa personagem, Catarina reconheceu Bernardina e correu em sua direção. 'É você, minha querida irmã?' - disse ela. 'Mas de onde você vem? O que significam este poço e esta fumaça ardente? Somente hoje termina o seu purgatório?'. 'Você está certa' - respondeu a alma - 'há um ano estou detida neste lugar de expiação, e hoje, finalmente, poderei entrar no Céu. Quanto a ti, persevere em seus santos exercícios: continue sendo caridosa e misericordiosa e você obterá misericórdia'.

O seguinte incidente pertence à história da Companhia de Jesus. Dois escolásticos ou jovens religiosos daquele Instituto, os Irmãos Finetti e Rudolfini, prosseguiram os seus estudos no Colégio Romano, no final do século XVI. Ambos eram modelos de piedade e regularidade, e ambos também haviam recebido uma advertência do Céu, que divulgaram, segundo a Regra, ao seu diretor espiritual. Deus lhes dera a conhecer a proximidade da morte e os sofrimentos que os esperava no Purgatório. Um ali iria permanecer por dois anos; o outro, por quatro anos. Eles morreram, de fato, um após o outro. Seus irmãos na religião imediatamente ofereceram as orações mais fervorosas e todos os tipos de penitências pelo descanso de suas almas. Eles sabiam que se a santidade de Deus impõe longas expiações aos seus eleitos, elas também podem ser abreviadas e inteiramente remidas pelos sufrágios dos vivos. Se Deus é severo para com aqueles que receberam muitos conhecimentos e graças, por outro lado Ele é muito indulgente para com os pobres e simples, desde que estes o sirvam com sinceridade e paciência.

São Pedro Claver, da Companhia de Jesus, Apóstolo dos Negros de Cartagena, soube do Purgatório de duas almas, que levaram vidas pobres e humildes sobre a terra; seus sofrimentos foram reduzidos a algumas horas. Encontramos o seguinte relato na vida deste grande servo de Deus. Ele havia persuadido uma mulher virtuosa, chamada Ângela, a receber em sua casa outra mulher chamada Úrsula, que havia perdido o uso de seus membros e estava coberta de feridas. Um dia, quando foi visitá-los, como fazia de vez em quando, para ouvir as suas confissões e levar-lhes algumas provisões, a caridosa anfitriã lhe disse com pesar que Úrsula estava à beira da morte. 'Não, não' - respondeu o sacerdote, consolando-a - 'ela ainda tem quatro dias de vida e não morrerá até sábado'. Quando chegou o sábado, ele rezou a missa por sua intenção, e saiu para prepará-la para a morte. Depois de algum tempo em oração, disse à anfitriã com ar de confiança: 'Consola-te, Deus ama Úrsula; ela morrerá hoje, mas ficará apenas três horas no Purgatório. Que ela se lembre de mim quando estiver com Deus, para que possa orar por mim e por aquela que até agora foi sua mãe'. Ela morreu ao meio-dia, e o cumprimento de uma parte da profecia deu grande razão para acreditar no cumprimento da outra.

Numa outra ocasião, tendo ido ouvir a confissão de uma pobre doente que costumava visitar, soube que ela estava morta. Os pais estavam muito angustiados e ele ficou também inconsolável, porque não acreditava que ela estivesse tão perto de seu fim e com a ideia de não ter podido ajudá-la em seus últimos momentos. Ajoelhando-se para rezar ao lado do cadáver, levantou-se de repente e com um semblante sereno disse: 'Tal morte é mais digna de nossa inveja do que de nossas lágrimas; esta alma está condenada ao Purgatório, mas apenas por vinte e quatro horas. Procuremos encurtar este tempo pelo fervor de nossas orações'.

Já foi dito o suficiente sobre a duração dos sofrimentos. Vemos que eles podem ser prolongados a um grau terrível; mesmo os sofrimentos mais curtos, ao considerarmos a sua gravidade, são longos. Procuremos abreviá-los para os outros e mitigá-los para nós mesmos, ou melhor ainda, preveni-los completamente. Agora vamos preveni-los removendo as causas. Quais são as causas? Qual é o cerne das penas de expiação no Purgatório?

Capítulo XXVII

As Causas dos Sofrimentos - Razão das Expiações do Purgatório - Ensinamentos de Suarez e de Santa Catarina de Gênova

Por que as almas devem sofrer antes de serem admitidas para ver Deus face a face? Qual é a razão, ou qual é a justificativa dessas expiações? O que tem o fogo do Purgatório para purificar, o que precisa ser consumido nele? São, dizem os Padres  da Igreja, as impurezas ou máculas devidas aos nossos pecados.

Mas o que se entende aqui por impurezas? De acordo com a maioria dos teólogos, não é a culpa do pecado, mas a dor ou a dívida da dor procedente do pecado. Para entender bem isso, devemos lembrar que o pecado produz um duplo efeito na alma, que chamamos de dívida (reatus) de culpa e dívida de dor; que torna a alma não apenas culpada, mas merecedora de dor ou castigo. Ainda que a culpa seja perdoada, acontece geralmente que a dor perdura, total ou parcialmente, e, portanto, deve ser suportada ou expiada nesta vida ou na vida futura.

As almas do Purgatório não detêm nenhuma dívida de culpa; a culpa venial que tinham no momento de sua morte desaparece na ordem da pura caridade com a qual estão plenamente infundidos na outra vida; o que ainda carregam consigo é a dívida dos sofrimentos que não foram expiados antes da morte. Esta dívida procede de todas as faltas cometidas durante a vida, especialmente aquelas devidas aos pecados mortais, remidos quanto à culpa por confissões sinceras, mas que deixaram de ser expiadas devidamente com frutos dignos de penitência exterior.

Tal é o ensinamento comum dos teólogos, que Suarez resume em seu Tratado sobre o Sacramento da Penitência: 'Concluímos então que todos os pecados veniais com que morre um justo são remidos da culpa, no momento em que a alma é separada do corpo, em virtude de um ato de amor a Deus, e a contrição perfeita que então excita por todas as suas faltas passadas. De fato, a alma neste momento conhece perfeitamente a sua condição e os pecados dos quais foi culpada diante de Deus; ao mesmo tempo, é dona de suas faculdades, para poder agir. Por outro lado, da parte de Deus, são dadas a ela as ajudas mais eficazes, para que aja segundo a medida da graça santificante que possui. Segue-se, então, que, nesta disposição perfeita, a alma age sem a menor hesitação. Volta-se diretamente para o seu Deus e encontra-se livre de todos os seus pecados veniais por um ato de soberana aversão ao pecado. Este ato universal e eficaz basta para a remissão de sua culpa. Toda mácula de culpa então desaparece; mas a dor continua a ser imposta e deve ser expiada, com todo o rigor e longa duração, pelo menos para aquelas almas que não são assistidas pelas intenções dos vivos. Eles não podem obter o menor alívio para si mesmas, porque o tempo do mérito já passou; elas não podem mais merecer, podem apenas sofrer e, assim, pagar à temível justiça de Deus tudo o que devem, até o último centavo - usque ad novissimum quadrantem (Mt 5, 26).

Essas dívidas de dor são restos de pecados e uma espécie de obstáculo, que lhes intercepta a visão de Deus e que impõe um freio à união da alma com o seu fim último. Uma vez que as almas do Purgatório estão livres da culpa do pecado - escreve Santa Catarina de Gênova -  não há outra barreira entre elas e sua união com Deus, a não ser os restos do pecado, os quais devem ser expiados. Estes obstáculos que sentem dentro de si fazem com que padeçam os tormentos dos condenados, dos quais falamos previamente, e retardam o momento no qual o instinto pelo qual são atraídas para Deus, quanto à sua soberana bem aventurança, atingirá a sua plena manifestação. 

As almas têm a plena percepção de quão graves são, diante de Deus, os menores resquícios dos pecados cometidos e que é, por necessidade de justiça, que estes devem ser pagos até a plena saciedade do seu instinto beatífico. Esta percepção faz incendiar dentro delas um fogo ardente e semelhante ao do inferno, com exceção da culpa do pecado.

Capítulo XXVIII

As Longas Penas de Expiação no Purgatório - Lord Stourton - Santa Lidwina e a Alma Tomada pelos Pecados da Luxúria

Dissemos que o valor total da dívida dos sofrimentos do Purgatório provém de todas as faltas não expiadas na terra, mas principalmente dos pecados mortais não remidos à sua culpa. Assim, aqueles homens que passam a vida inteira em estado habitual de pecado mortal e que atrasam a sua conversão até quase à morte, supondo que Deus lhes conceda essa graça excepcional, terão que sofrer os mais terríveis castigos. 

O exemplo de Lord Stourton dá-nos bons motivos para reflexão. Lord Stourton, um nobre inglês, era católico de coração mas, para manter a sua posição na corte, frequentava regularmente os ritos protestantes. Ele até acolheu um sacerdote católico em sua própria casa, ao preço dos maiores perigos, com o propósito de fazer uso do seu ministério para se reconciliar com Deus na hora de sua morte. Entretanto, ele sofreu um acidente repentino e, como muitas vezes acontece em tais casos, por um justo decreto de Deus, não teve tempo de realizar o seu desejo de conversão tardia. No entanto, a Divina Misericórdia, levando em consideração o que ele havia feito em favor da Igreja Católica tão perseguida na Inglaterra, concedeu-lhe a graça da contrição perfeita e, consequentemente, garantiu a sua salvação. Mas teve que pagar muito caro por sua negligência culposa. Anos se passaram. Sua viúva casou novamente e teve filhos. E é uma de suas filhas, Lady Arundel, que relata este fato como testemunha ocular:

'Um dia minha mãe pediu a F. Cornelius, um jesuíta de grande prestígio e que mais tarde morreu mártir (foi traído por um servo da família Arundel e executado em Dorchester em 1594), que rezasse uma missa em intenção da alma de Lord Stourton, seu primeiro marido. Ele assim o fez e, enquanto estava no altar, entre a Consagração e a Memento pelos mortos, parou por um longo tempo como se estivesse absorto em oração. Depois da missa, numa exortação que dirigiu aos presentes, contou-lhes uma visão que acabara de ter durante o Santo Sacrifício. Ele tinha visto uma imensa floresta que se estendia à sua frente, mas inteiramente em chamas, formando uma fornalha imensa. No meio dela, estava o nobre falecido, soltando gritos terríveis, lamentando a vida culpada que levara no mundo e na corte. Após ter feito uma confissão completa de suas faltas, o infeliz a terminou com estas palavras, que a Sagrada Escritura coloca na boca de Jó: 'Tem piedade de mim! Tenham piedade de mim, pelo menos vocês meus amigos, pois a mão do Senhor me tocou'. E então desapareceu. Enquanto relatava isso, F. Cornelius derramou muitas lágrimas, e todos nós, membros da família, ao número de vinte e quatro pessoas, choramos também. De repente, enquanto o padre ainda falava, percebemos na parede contra a qual o altar estava o que parecia ser o reflexo de brasas acesas'. Tal é o relato de DorothyLady Arundel, como pode ser lido na 'História da Inglaterra', por Daniel.

Santa Lidwina também viu no Purgatório uma alma que sofreu longas penas por pecados mortais não suficientemente expiados na terra. O incidente é assim relatado na vida da santa. Um homem que, por muito tempo foi escravo do demônio da impureza, finalmente teve a felicidade de se converter. Confessou os seus pecados com grande contrição, mas, impedido pela morte, não teve tempo de expiar com justa penitência seus numerosos pecados. Lidwina, que o conhecia bem, rezou muito pela sua alma. Doze anos depois de sua morte ela ainda continuava a rezar na sua intenção, quando, em um de seus êxtases, foi levada ao Purgatório por seu anjo guardião e então ouviu uma voz triste saindo de um poço profundo. 'É a alma daquele homem' - disse o anjo - 'por quem você tem rezado com tanto fervor e constância'. 

Ela ficou surpresa ao encontrá-lo nas profundezas do Purgatório doze anos após a sua morte. O anjo, vendo-a tão afetada, perguntou se ela estava disposta a sofrer algo em favor de sua libertação. 'De todo o meu coração' - respondeu a donzela caridosa. A partir desse momento, passou a sofrer novas dores e tormentos assustadores, que pareciam superar a força da resistência humana. No entanto, ela os suportou com tanta coragem, sustentada por uma caridade mais forte que a morte, que agradou a Deus enviar-lhe finalmente alívio. Ela então respirou como quem tivesse sido trazida novamente à vida e, ao mesmo tempo, viu aquela alma, pela qual tanto sofrera, sair do abismo, branca como a neve, e voar para o Céu. 

Capítulo XXIX

As Longas Penas de Expiação no Purgatório - Mundanismo - Santa Brígida: a Jovem Cortesã e o Soldado - Beata Maria Villani e a Senhora da Sociedade

As almas que se deixam deslumbrar pelas vaidades do mundo, ainda que tenham o privilégio de escapar da condenação, terão de sofrer terríveis castigos. Abramos as 'Revelações de Santa Brígida', tão apreciadas pela Igreja. Lemos no Livro Seis dessa obra que a santa se viu transportada em espírito para o Purgatório e que, entre outros, viu ali uma jovem de alta estirpe que outrora se havia abandonado aos luxos e vaidades do mundo. 

Essa alma infeliz contou-lhe a história de sua vida e o triste estado em que se encontrava então. 'Felizmente' - disse ela - 'antes da morte confessei os meus pecados com disposição para escapar do inferno, mas agora sofro aqui para expiar a vida mundana que minha mãe não me impediu de levar! Ai!' - acrescentou, com um suspiro - 'este rosto, que adorava ser maquiado e que procurava chamar a atenção de todos, agora é devorado por chamas por dentro e por fora, e essas chamas são tão violentas que a cada momento parece que vou morrer. Esses ombros, esses braços, que eu adorava ver admirados, estão cruelmente presos em correntes de ferro em brasa. Esses pés, outrora treinados para a dança, agora estão cercados de víboras que os rasgam com as suas presas e os sujam com seu lodo imundo; todos esses membros que adornei com joias, flores e diversos outros ornamentos são agora uma prisão da mais horrível tortura. Ó mãe, mãe! - ela gritou - 'quão culpada você foi em relação a mim! Foste tu que, por uma indulgência fatal, encorajastes o meu gosto pela ostentação e por gastos extravagantes; fostes tu que me levastes a teatros, festas e bailes, e àqueles encontros mundanos que são a ruína das almas... Se não incorri na condenação eterna foi porque uma graça especial da misericórdia de Deus tocou o meu coração com sincero arrependimento. Fiz uma boa confissão e assim fui libertada do Inferno, mas apenas para me ver precipitada nos mais horríveis tormentos do Purgatório'. 

Já observamos que o que se diz dos membros torturados não deve ser tomado literalmente, porque a alma está separada do corpo; mas Deus, suprindo a falta de órgãos corporais, faz a alma experimentar as sensações que acabamos de descrever. A biógrafa da santa conta-nos que esta relatou a visão a uma prima da falecida, igualmente dada às ilusões das vaidades mundanas. A prima ficou tão impressionada com as revelações que renunciou aos luxos e diversões perigosas deste mundo, dedicando-se o resto da sua vida à penitência em uma ordem religiosa austera.

A mesma Santa Brígida, em outro êxtase, viu o julgamento de um soldado que acabara de morrer. Viveu nos vícios muito comuns de sua profissão, e teria sido condenado ao inferno se a Santíssima Virgem, a quem sempre havia honrado, não o tivesse preservado dessa desgraça, obtendo para ele a graça de um arrependimento sincero. A santa o viu comparecer perante o tribunal de Deus e ser condenado a um longo Purgatório pelos pecados de todos os tipos que havia cometido. 'O castigo dos olhos' - disse o Juiz - 'será contemplar os objetos mais assustadores; a da língua, para ser perfurada com agulhas pontiagudas e atormentada pela sede; a do toque, ser mergulhada em um oceano de fogo'. E então a Santa Virgem intercedeu, obtendo para ele alguma mitigação do rigor da sentença.

Relatemos ainda outro exemplo dos castigos reservados aos mundanos no Purgatório, quando não foram, como o rico glutão do Evangelho, sepultados no Inferno. A Beata Maria Villani, religiosa dominicana, tinha uma viva devoção às santas almas, e muitas vezes acontecia que estas lhe apareciam, seja para lhe agradecer ou para implorar a ajuda de suas orações e boas obras. Um dia, enquanto orava por elas com grande fervor, foi transportada em espírito para a prisão de expiação. Entre as almas que ali sofriam, ela viu uma mais cruelmente atormentada que as outras, no meio de chamas que a envolviam inteiramente. 

Tocada de compaixão, a serva de Deus interrogou a alma. 'Estou aqui' - respondeu ela - 'há muito tempo, castigada por minha vaidade e minha extravagância escandalosa. Até agora não recebi o menor alívio. Enquanto eu estava na terra, totalmente ocupada com a minha aparência, meus prazeres e diversões mundanas, eu pensava muito pouco em meus deveres como cristã, e os cumpri apenas com grande relutância e de maneira preguiçosa. Meu único pensamento sério era promover os interesses mundanos da minha família. Veja agora como sou castigada: tudo isso não me vale agora nem um pensamento passageiro; meus pais, meus filhos, aqueles amigos com quem vivia intimamente – todos se esqueceram de mim'.

Maria Villani implorou a essa alma que lhe permitisse sentir algo do que sofria e lhe pareceu então que um dedo de fogo tocava sua testa, e a dor que ela experimentou instantaneamente fez com que o seu êxtase cessasse de imediato. A marca ficou e tão profunda e dolorosa permaneceu que, dois meses depois, ainda podia ser vista e fez a santa freira padecer os mais terríveis sofrimentos. Ela suportou essa dor em espírito de penitência, para o alívio da alma que lhe havia aparecido, a qual, algum tempo depois, retornou para lhe anunciar a sua libertação.

Capítulo XXX

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados da Juventude - Santa Catarina da Suécia e a Princesa Gida

São muitas as vezes que os cristãos não refletem suficientemente sobre a necessidade de se fazer penitência pelos pecados cometidos na juventude, os quais serão um dia expiados pela mais rigorosa penitência do Purgatório. Tal foi o caso da princesa Gida, nora de Santa Brígida, como lemos nas Vidas dos Santos - Vida de Santa Catarina (24 de março). Santa Brígida estava em Roma com a sua filha Catarina, quando esta foi privilegiada com uma aparição da alma de sua cunhada Gida, cuja morte então ignorava. 

Quando se encontrava em oração na antiga basílica de São Pedro, Catarina viu diante de si uma mulher vestida com uma túnica branca e um manto preto, que lhe veio pedir suas orações por uma pessoa falecida: 'É uma de suas conterrâneas' - acrescentou ela - 'e que precisa da sua ajuda'. 'Qual é o nome dela?' - perguntou a santa. 'É a princesa Gida da Suécia, a esposa do seu irmão Charles'. Catarina implorou então à aparição que a acompanhasse até sua mãe Brígida, para dar a ela estas tristes notícias. 'Estou encarregado de dar esta mensagem só para você' - disse a aparição - 'e não tenho permissão para fazer outras visitas, pois devo partir imediatamente. Você não tem motivos para duvidar da veracidade desse fato; em poucos dias deverá chegar um mensageiro da Suécia, trazendo a coroa de ouro da princesa Gida. Ela a legou a você por testamento, a fim de garantir a assistência de suas orações; mas estenda-lhe desde agora a sua ajuda caridosa, pois ela precisa muito e urgentemente das suas orações'. Com essas palavras, retirou-se. Catarina a teria seguido mas, embora os seus trajes a tivessem distinguido facilmente, ela não mais  se encontrava em lugar algum.

Surpreendida e abalada por este estranho acontecimento, Catarina apressou-se a regressar à casa da mãe e contar a ela tudo o que tinha acontecido. Santa Brígida respondeu com um sorriso: 'Foi a sua cunhada Gida que apareceu a você. Nosso Senhor teve a delicadeza de revelar isso para mim. A querida falecida morreu nos mais consoladores sentimentos de piedade; é por isso que obteve o favor de aparecer a você pedindo as suas orações. Ela tem ainda que expiar as inúmeras falhas de sua juventude. Vamos ambas fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para lhe dar alívio. A coroa de ouro que ela lhe enviou impõe esta obrigação a você'.

Poucas semanas depois, um emissário da corte do príncipe Charles chegou a Roma, carregando a coroa e crendo ser o primeiro a transmitir a notícia da morte da princesa Gida. A bela coroa foi vendida e o dinheiro arrecadado foi usado para a celebração de missas e outras boas obras em intenção do repouso da alma da falecida princesa.

Capítulo XXXI

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados de Escândalo - Padre Zucchi e a Noviça

Aqueles que tiveram a infelicidade de dar mau exemplo, ferir ou causar a perdição das almas pelo escândalo devem ter todo o cuidado de reparar tudo isso neste mundo, senão serão submetidos às mais terríveis expiações no outro. Não foi em vão que Jesus Cristo proclamou: 'Ai do mundo por causa dos escândalos! Ai daquele homem por quem o escândalo vem!' (Mt 18,7). Ouçamos o que o Padre Rossignoli relata em seu Merveilles du Purgatoire

Um pintor de grande maestria e vida exemplar havia feito uma pintura que não se conformava com as regras estritas da modéstia cristã. Era uma daquelas pinturas que, a pretexto de serem obras de arte, são mantidas sob as melhores famílias, e cuja mera visão causa a perda de tantas almas. A verdadeira arte é uma inspiração do Céu, que eleva a alma a Deus; a arte profana, que apela apenas aos sentidos, que não apresenta aos olhos senão as belezas da carne e do sangue, traduz apenas uma inspiração do espírito maligno; suas obras, por mais brilhantes que sejam, não são obras de arte, e este nome é falsamente atribuído a elas. São apenas as infames produções de uma imaginação corrupta.

O artista que mencionamos deixou-se enganar neste caso por um mau exemplo. Em seguida, porém, renunciando a esse estilo pernicioso, dedicou-se à produção de quadros religiosos ou daqueles que pelo menos eram perfeitamente irrepreensíveis. Uma vez realizando a pintura de um grande afresco para um convento dos carmelitas descalços, abateu-se sobre ele uma doença mortal. Sentindo-se prestes a morrer, solicitou ao prior que pudesse ser sepultado na igreja do mosteiro, legando àquela comunidade os seus ganhos, que ascendiam a uma soma considerável em dinheiro, exortando-lhes que fossem rezadas muitas missas para o repouso de sua alma. 

Morreu sob piedosos sentimentos e, após alguns dias, um religioso que havia permanecido no coro depois das Matinas, o viu aparecer em meio a chamas e suspirando de maneira lastimável: 'Como? - disse o religioso - 'como pode você estar padecendo tantas dores, depois de levar uma vida tão justa e morrer uma morte tão santa?' 'Ai!' - respondeu ele - 'tudo isso é por causa do quadro imodesto que pintei anos atrás. Quando compareci perante o tribunal do Juiz Soberano, uma multidão de acusadores veio depor contra mim. Eles declararam que tinham sido estimulados a pensamentos impróprios e maus desejos pela imagem que foi obra da minha mão. Por causa desses maus pensamentos, alguns estavam no Purgatório e outros no Inferno. Estes clamavam por vingança dizendo que, tendo sido esta a causa de sua perdição eterna, eu merecia, pelo menos, o mesmo castigo. Então a Santíssima Virgem e os santos que eu havia glorificado com meus quadros me defenderam. Eles representaram ao Juiz que aquela pintura infeliz tinha sido obra da minha juventude e da qual havia me arrependido; que eu a havia reparado depois com objetos religiosos que haviam sido fonte de edificação para as almas. Em consideração a essas e outras razões, o Juiz Soberano declarou que, por causa do meu arrependimento e das minhas boas obras, eu deveria estar isento de condenação; mas, ao mesmo tempo, Ele me condenou a essas chamas até que aquele quadro fosse queimado, para que não pudesse mais escandalizar ninguém'.

Então a aparição implorou aos religiosos do convento que tomassem as providências para que aquela pintura fosse destruída. 'Eu imploro' - acrescentou - 'procure em meu nome tal pessoa, proprietária do quadro; diga-lhe em que condições estou por ter cedido às suas insistências em pintá-lo e exorte-o a desfazer-se dele de pronto e ai dele se o recusar! Para provar que isso não é uma fantasia e para puni-lo pela sua própria culpa, diga-lhe que em breve perderá os seus dois filhos e, se ainda recusar a obedecer Àquele que nos criou, ele pagará por isso com uma morte prematura'.

O religioso não tardou em fazer o que a pobre alma havia pedido e foi ter com o dono do quadro. Este, ao ouvir essas coisas, pegou a pintura e a lançou no fogo. No entanto, como designado pelas palavras do falecido, ele perdeu os seus dois filhos em menos de um mês e passou o resto dos seus dias fazendo penitência, por ter encomendado e mantido por tanto tempo aquela pintura escandalosa em sua casa. Se tais são as consequências de um único quadro, qual será, então, o castigo dos escândalos ainda mais desastrosos induzidos por maus livros, notícias falseadas, ensinamentos perversos e conversas vulgares? Vae mundo a scandalis! Vae homini illi per quem scandalum venit! - 'Ai do mundo por causa dos escândalos! Ai daquele homem por quem vem o escândalo!' (Mt 18, 7).

O escândalo faz grandes estragos nas almas pela sedução da inocência. Ah! esses malditos sedutores! Eles prestarão a Deus uma terrível conta pelo sangue de suas vítimas. Lemos o seguinte na Vida do Pe. Nicolau Zucchi, escrita pelo Pe. Daniel Bartoli, da Companhia de Jesus. O santo e zeloso Pe. Zucchi, falecido em Roma, em 21 de maio de 1670, atraiu para uma vida de perfeição três jovens, que se consagraram a Deus no claustro. A mais nova delas, antes de deixar o mundo, recebera uma proposta de casamento de um jovem nobre. Após a sua entrada no noviciado, este homem, em vez de respeitar a sua santa vocação, continuou a dirigir-lhe cartas a quem desejava chamar de sua noiva, insistindo que ela deixasse - como dizia - o tedioso serviço a Deus para voltar a viver as alegrias da vida. O sacerdote,  encontrando-o um dia na rua, exortou-lhe que abandonasse tal conduta: 'Eu lhe asseguro' - disse ele - 'que em breve você irá comparecer perante o tribunal de Deus e, portanto, já é mais que tempo para se preparar para isso com sincera penitência'.

De fato, quinze dias depois, este jovem morreu de uma morte muito rápida, que lhe deixou pouco tempo para colocar em ordem os assuntos de sua consciência, de modo que havia tudo a temer por sua salvação. Uma noite, enquanto as três noviças estavam envolvidas em uma conversa religiosa, a mais jovem foi chamada a se dirigir até a sala de entrada, onde a esperava um homem encoberto por uma pesado casaco e que andava a passos largos pelo ambiente. 'Sim, senhor - ela disse - 'o senhor queria falar comigo?' O estranho, sem nada responder, aproximou-se dela e abriu o misterioso manto que o envolvia. A religiosa reconheceu de imediato e horrorizada de que se tratava do recém-falecido, que estava totalmente tomado por correntes de fogo que o prendiam pelo pescoço, pulsos, joelhos e tornozelos. 'Reze por mim!' - gritou ele, desaparecendo em seguida. Esta manifestação milagrosa mostrou que Deus teve misericórdia dele no último momento e que não foi condenado, mas que pagou caro por sua tentativa de sedução à jovem noviça com um terrível Purgatório.

Capítulo XXXII

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados de uma Vida de Prazer e de Conforto - Venerável Francisca de Pamplona e o Homem Mundano - Santa Elisabeth da Hungria e a Alma da sua Mãe 

Em nossos dias, há cristãos que são totalmente alheios à cruz e à mortificação de Jesus Cristo. Sua vida adocicada e sensual consiste apenas em uma sequência de prazeres; temem tudo o que é dado ao sacrifício; dificilmente observam as leis restritas do jejum e da abstinência prescritas pela Igreja. Uma vez que não se submetem a nenhuma penitência neste mundo, que reflitam sobre o que lhes será infligido no próximo. É certo que nesta vida mundana não fazem nada além de acumular dívidas. Como se omitem em fazer penitência, nenhuma parte da dívida é paga, e chega-se então a um montante assustador à imaginação. 

A venerável serva de Deus, Francisca de Pamplona, que foi favorecida com diversas visões do Purgatório, certa vez viu um homem mundano que, embora fosse um cristão razoavelmente bom, passou cinquenta e nove anos no Purgatório por causa da sua busca sempre por comodidade e conforto. Outro passou ali trinta e cinco anos pelo mesmo motivo; um terceiro, que tinha uma paixão muito forte pelo jogo, ficou detido nessa prisão por sessenta e quatro anos. Infelizmente esses cristãos imprudentes permitiram que as suas dívidas permanecessem diante de Deus e muitas delas, que poderiam tão facilmente ter pago por obras de penitência, tiveram que ser pagas depois por anos de tortura. 

Se Deus é severo para com os ricos e os que buscam prazeres do mundo, não o será menos para com os príncipes, magistrados, pais e para todos aqueles que têm o encargo das almas e autoridade sobre os outros. Um julgamento particularmente severo, diz Ele mesmo, será para aqueles que governam (Sb 6,6). Laurence Surius relata [na obra Merveilles já citada previamente] como uma ilustre rainha, após sua morte, deu testemunho dessa verdade. Na Vida de Santa Elisabeth, Duquesa da Turíngia, conta-se que esta serva de Deus perdeu a mãe, Gertrudes, Rainha da Hungria, por volta do ano 1220. Com o espírito de uma santa filha cristã, deu abundantes esmolas, redobrou-se em orações e mortificações e esgotou todos os recursos da sua caridade para o alívio dessa querida alma. Mas Deus revelou a ela que isso ainda não era o bastante. 

Uma noite, a  falecida apareceu para ela com um semblante triste e definhado; colocou-se de joelhos ao lado da cama e disse-lhe, chorando: 'Minha filha, você vê a seus pés a sua mãe sobrecarregada de sofrimento. Venho implorar-vos que multipliqueis os vossos sufrágios, para que a Divina Misericórdia me livre dos terríveis tormentos que padeço. Ó quão são dignos de pena aqueles que exercem autoridade sobre os outros... Expio agora as faltas que cometi no trono. Ó minha filha, rogo-te pelas dores que suportei ao trazer-te ao mundo, pelos cuidados e ansiedades que me custou a tua educação, conjuro-te a livrar-me dos meus tormentos'. Elizabeth, profundamente emocionada, levantou-se de imediato e fez, a partir de então, severas penitências físicas, implorando a Deus, entre lágrimas, que tivesse misericórdia da alma de sua mãe, Gertrudes, e que assim rezaria até obter a sua libertação. As suas orações foram ouvidas.

Observemos aqui que, no exemplo anterior, fala-se apenas do caso de uma rainha; quão mais severamente serão julgados e tratados os reis, os magistrados e todos os superiores cuja responsabilidade e influência sobre outros homens são muito maiores!

Capítulo XXXIII

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados da Tibieza - São Bernardo e o Monge de Claraval - Venerável Madre Inês e a Irmã de Haut Villars - Padre Surin e a Religiosa de Loudun

Os bons cristãos, sacerdotes e religiosos, que desejam servir a Deus de todo o coração, devem evitar as armadilhas da tibieza e da negligência. Deus quer ser servido com fervor; aqueles que são mornos e indiferentes tendem a suscitar o seu descontentamento e Ele chega mesmo a ameaçar com a sua maldição aqueles que realizam funções sagradas de maneira descuidada – isto é, Ele tende a punir com grande rigor no Purgatório toda negligência feita ao seu serviço.

Entre os discípulos de São Bernardo, que perfumaram o célebre vale de Claraval com o odor de sua santidade, houve um cuja negligência contrastava tristemente com o fervor dos seus irmãos. Apesar de seu duplo caráter de sacerdote e de religioso, ele deixou-se levar por um deplorável estado de tibieza. No momento da morte, chamado à presença de Deus, apresentou-se sem ter dado nenhum sinal de emenda.

Enquanto se celebrava a Missa de Réquiem, um venerável religioso de rara virtude logrou conhecer por uma luz interior que, embora o defunto não estivesse perdido eternamente, sua alma purgava numa terrível condição. Na noite seguinte, a alma lhe apareceu em uma condição triste e miserável. 'Ontem' - disse ele - 'você ficou sabendo do meu destino deplorável; venha ver agora as torturas a que estou condenado como punição por minha indesculpável tibieza'. Conduziu então o venerável até a beira de um poço muito grande e profundo, cheio de fumaça e de chamas. 'Eis aqui o lugar' - disse ele - 'onde os ministros da Justiça Divina têm ordens para me atormentar; não cessam de me fazer mergulhar nesse abismo e, quando me puxam, é apenas para me precipitar novamente nele, sem me dar qualquer momento de trégua ou de descanso'.

Na manhã seguinte, o religioso foi ao encontro de São Bernardo para lhe dar a conhecer a sua visão. O santo abade, que tivera uma visão semelhante, recebeu-a como uma advertência do céu à sua comunidade. Convocou um Capítulo [assembleia dos confrades] e, com os olhos lacrimejantes, relatou a dupla visão recebida, exortando os seus religiosos a socorrer em favor da alma do pobre irmão falecido por meio de sufrágios de caridade, e a aproveitar este triste exemplo para preservar o fervor e evitar a menor negligência nos serviços prestados a Deus.

O exemplo a seguir é relatado por M. de Lantages na Vida da Venerável Madre Inês de Langeac, uma religiosa dominicana. Enquanto esta serva de Deus estava um dia rezando no coro, uma religiosa, que ela não conhecia, apareceu de repente diante dela, miseravelmente vestida e com um semblante que expressava a mais profunda dor. Ela a olhou com grande espanto, perguntando-se quem poderia ser; quando então ouviu uma voz lhe dizer distintamente: 'Esta é a Irmã de Haut Villars'. A Irmã de Haut Villars tinha sido uma religiosa do mosteiro de Puy que havia falecido há cerca de dez anos. Embora a aparição não tivesse dito qualquer palavra, demonstrou claramente pelo seu semblante amargurado o quanto precisava de ajuda.

Madre Inês compreendeu isso perfeitamente e começou, a partir daquele dia, a oferecer as mais fervorosas orações pelo alívio desta alma. A alma da religiosa não se contentou com a primeira visita; continuou a aparecer pelo espaço de três semanas, quase em todos os lugares e em todos os momentos, especialmente depois da Sagrada Comunhão e das orações, manifestando sempre um grande sofrimento pela expressão dolorosa do seu semblante.

Inês, a conselho de seu confessor e sem mencionar a aparição, pediu a sua Superiora permitir que a comunidade pudesse oferecer orações particulares pelas almas do Purgatório, por intenção dela. Como, apesar dessas orações, as aparições continuaram, ela temeu muito por algum engano. Deus, no entanto, dignou-se a remover esse receio. Assim Ele fez saber à sua serva fiel, pela voz do seu anjo guardião, que a aparição se tratava realmente de uma alma do Purgatório, cujo sofrimento era resultado de sua negligência no serviço a Deus. A partir deste momento, as aparições cessaram e não se sabe exatamente quanto tempo aquela alma infeliz permaneceu ainda no Purgatório. 

Citemos outro exemplo, bem adequado para estimular o fervor dos fiéis. Uma santa religiosa chamada Maria da Encarnação, do convento das Ursulinas, em Loudun, apareceu algum tempo depois de sua morte à sua Superiora, uma mulher de inteligência e mérito, que descreveu os detalhes da aparição ao Padre Surin da Companhia de Jesus: 'No dia 6 de novembro' - escreveu ela - 'entre as três e as quatro horas da manhã, a Irmã Encarnação apareceu diante de mim, com uma expressão de doçura em seu rosto que parecia mais de debilidade do que de sofrimento, mas, ainda assim, percebi nela uma grande angústia.

A princípio, fiquei tomada de grande pavor mas, como não havia nada nela que inspirasse medo, recuperei a serenidade. Perguntei a ela então em qual estado ela se encontrava e se podíamos fazer algo em favor dela. Ela respondeu: 'Eu satisfaço a Justiça Divina no Purgatório'. Insisti que ela me dissesse o motivo pelo qual ainda estava detida lá. Então, com um suspiro profundo, respondeu: 'É por ter sido negligente em vários exercícios comuns; uma certa aquiescência pela qual me deixei levar pelo exemplo de religiosas tíbias; enfim, e principalmente, o hábito que eu tinha de reter em minha posse coisas das quais não tinha permissão para dispor e de usá-las para satisfazer as minhas necessidades e inclinações naturais. Ah! se os religiosos soubessem' - continuou a aparição - 'o mal que fazem às suas almas não se aplicarem à perfeição, e quão caro eles um dia expiarão as satisfações que se dão contra a luz de suas consciências, como seriam outros os seus esforços para fazer violência contra si mesmos! Deus vê as coisas diferentes de nós, seus julgamentos são outros'. 

Perguntei a ela novamente se poderíamos fazer alguma coisa para aliviar os seus sofrimentos. Ela me respondeu: 'Desejo ver e possuir a Deus, mas me contento em satisfazer a sua Justiça, desde que isto seja do seu agrado'. Pedi-lhe então que me dissesse se tinha sofrido muito. 'Minhas dores' - respondeu -'são incompreensíveis para aqueles que não as sentem'. Ao dizer essas palavras, aproximou-se do meu rosto para se despedir de mim. Parecia que eu estava sendo queimada por uma brasa de fogo ardente, embora o rosto dela não tivesse tocado o meu e o meu braço, que mal havia roçado o seu manto, foi queimado vivamente e me causou uma dor considerável'. Um mês depois, ela apareceu novamente à Superiora para anunciar a sua libertação.

Capítulo XXXIV

Razões da Expiação no Purgatório - Negligência na Sagrada Comunhão - Relato do Venerável Luís de Blois - Santa Madalena de Pazzi e os Tormentos da Alma em Adoração

À tibieza está associada a negligência na preparação para o Banquete Eucarístico. Se a Igreja chama incessantemente os seus filhos à Santa Mesa, se deseja que comunguem com frequência, quer sempre que o façam com aquele fervor e piedade que tão grande mistério exige. Toda negligência voluntária em uma ação tão santa é uma ofensa à Santidade de Jesus Cristo, uma ofensa que deve ser reparada por uma justa expiação. O Venerável Luís de Blois, em sua obra Miroir Spirituel, fala de uma grande serva de Deus que aprendera de maneira sobrenatural quão severamente essas faltas são punidas na outra vida. Ela recebeu a visita de uma alma do Purgatório implorando a sua ajuda em nome da amizade pela qual nutriram outrora. Ela havia suportado - revelou a alma - tormentos horríveis devido à negligência com que se preparava para a Sagrada Comunhão, durante os dias de sua peregrinação terrena. Ela não poderia ser libertada senão por uma fervorosa comunhão que compensaria a sua antiga tibieza. A amiga apressou-se a satisfazer o seu desejo, recebendo a Sagrada Comunhão com grande pureza de consciência e com toda a fé e devoção possível; e então ela pôde ver a santa alma aparecer, brilhante e com um esplendor incomparável, e então subir para o céu.

No ano de 1589, no mosteiro de Santa Maria dos Anjos, em Florença, morreu uma religiosa muito estimada por suas irmãs na religião, mas que logo apareceu a Santa Madalena de Pazzi para implorar a sua assistência no rigoroso Purgatório ao qual estava condenada. A santa estava em oração diante do Santíssimo Sacramento quando percebeu a alma da falecida ajoelhada no meio da igreja e em atitude de profunda adoração. Ela tinha ao seu redor um manto de chamas que parecia consumi-la, mas uma túnica branca que recobria o seu corpo a protegia parcialmente da ação do fogo. Muito espantada, Madalena quis saber o que isso significava, e teve como resposta que esta alma sofria assim por ter tido pouca devoção ao Augusto Sacramento do Altar. Não obstante as regras e costumes sagrados de sua Ordem, ela comungava poucas vezes e quase sempre com indiferença. Por isso, a Justiça Divina a havia condenado a vir todos os dias adorar o Santíssimo Sacramento e submeter-se ao suplício de fogo, aos pés de Jesus Cristo. No entanto, em recompensa por sua pureza virginal, representada pelo manto branco, o seu Esposo Divino havia mitigado muito os seus sofrimentos.

Tal foi a revelação que Deus fez à sua serva. Ela ficou profundamente sensibilizada e fez todos os esforços possíveis para ajudar a pobre alma por meio dos sufrágios ao seu alcance. Muitas vezes relatou esta aparição e dela fez referência constante para exortar as suas filhas espirituais ao zelo pela Sagrada Comunhão.

Capítulo XXXV

Razões da Expiação no Purgatório - Negligência na Oração - Venerável Inês de Langeac e Irmã Angelique - São Severino de Colônia - Venerável Francisca de Pamplona e os Sacerdotes - Padre Streit e sua única Falta

Devemos tratar as coisas sagradas de maneira santa. Toda irreverência nos exercícios religiosos é extremamente desagradável a Deus. Quando a Venerável Inês de Langeac, de quem já falamos, era prioresa do seu convento, ela recomendou expressamente às suas religiosas respeito e especial fervor em todas as suas relações com Deus, lembrando-lhes estas palavras da Sagrada Escritura: 'maldito aquele que faz o trabalho de Deus com negligência'. Uma certa irmã da comunidade chamada Angelique faleceu. A piedosa superiora estava rezando perto do seu túmulo, quando de repente viu a irmã falecida diante dela, vestida com o hábito religioso; ela sentiu ao mesmo tempo como se uma chama de fogo tocasse o seu rosto. Irmã Angelique agradeceu a ela por tê-la estimulado no fervor e, em particular, por tê-la feito repetir com frequência durante a vida estas palavras: maldito aquele que faz o trabalho de Deus com negligência. 'Continue, mãe' - acrescentou ela - 'a incitar as irmãs neste fervor; para que sirvam a Deus com a máxima diligência e amem a Deus de todo o coração e com todo o poder de sua alma. Se elas pudessem entender quão rigorosos são os tormentos do Purgatório, nunca seriam culpadas da menor negligência'.

A advertência anterior diz respeito de maneira especial aos sacerdotes, cujas relações com Deus são contínuas e mais sublimes. Lembrem-se, portanto, sempre e nunca se esqueçam disso, quer ofereçam a Deus o incenso da oração, quer distribuam os Tesouros Divinos dos sacramentos, quer no altar celebrem os mistérios do Corpo e Sangue de Jesus Cristo. Veja o que relata, por exemplo, São Pedro Damião em sua 14ª Carta a Desidério.

São Severino, Arcebispo de Colônia, edificou a sua igreja como exemplo de todas as virtudes. A sua vida apostólica e as suas grandes obras de de evangelização e proclamação do reino de Deus nas almas fizeram que merecesse as honras da canonização. No entanto, após a sua morte, ele apareceu a um dos cônegos de sua catedral para pedir orações. Este digno sacerdote, não sendo capaz de entender como um santo prelado - como sabia que Severino o era - precisaria obter orações na outra vida, ouviu o seguinte do falecido bispo: 'É verdade que Deus me deu a graça de servi-lo com todo o meu coração e trabalhar na sua vinha, mas muitas vezes o ofendi com a pressa com que recitei o Santo Ofício. As ocupações de cada dia absorviam tanto a minha atenção que, quando chegava a hora da oração, eu buscava me desincumbir desse grande dever sem a devida atenção e, muitas vezes, em horários diversos daqueles recomendados pela Santa Igreja. Assim agora estou expiando essas infidelidades, e Deus me permite vir até aqui e pedir as suas orações'. A biografia acrescenta que Severino permaneceu seis meses no Purgatório por estas faltas.

A Venerável Irmã Francisca de Pamplona, que também já mencionamos, viu um dia no Purgatório um pobre padre cujos dedos estavam carcomidos por terríveis úlceras. Foi assim castigado por ter feito o Sinal da Cruz no altar com demasiada leviandade e sem a necessária gravidade. Ela disse que, em geral, os padres permanecem no Purgatório por mais tempo do que os leigos e que a intensidade dos seus tormentos é proporcional à sua dignidade. Deus revelou a ela o destino de vários sacerdotes falecidos. Um deles teve que suportar quarenta anos de sofrimento por ter permitido, por sua negligência, que uma pessoa morresse sem os sacramentos; outro ali permaneceu quarenta e cinco anos por ter desempenhado com certa leviandade as sublimes funções do seu ministério. Um bispo, cuja liberalidade o levou a ser nomeado esmoler [um capelão encarregado de distribuir dinheiro aos pobres], ficou detido ali por cinco anos por ter ansiado por tal dignidade; outro, não tão caridoso, foi purgado por quarenta anos pelo mesmo motivo.

Deus quer que o sirvamos com todo o nosso coração e que evitemos, na medida em que a fragilidade da natureza humana assim o permita, até as menores imperfeições; mas o cuidado de agradá-lo e o temor de desagradá-lo devem ser acompanhados por uma humilde confiança em sua misericórdia. Jesus Cristo nos admoestou a ouvir aqueles a quem Ele designou para serem os nossos guias espirituais como nós o ouviríamos e a seguir o conselho do nosso superior ou confessor com perfeita confiança. Assim, um temor excessivo é uma ofensa à sua misericórdia.

Em 12 de novembro de 1643, padre Philip Streit, da Companhia de Jesus, religioso de grande santidade, faleceu no Noviciado de Brünn, na Boêmia. Todos os dias ele fazia o seu exame de consciência com o maior cuidado e assim adquiriu uma grande pureza de alma. Algumas horas depois de sua morte, ele apareceu glorioso para um dos Padres de sua Ordem, o Venerável Martin Strzeda. 'Uma única falta' - disse ele - 'ainda me impede de ir para o Céu e me detém por oito horas no Purgatório; é a de não ter confiado suficientemente nas palavras do meu superior que, nos últimos momentos da minha vida, esforçou-se por acalmar-me um pequeno problema de consciência. Eu deveria ter considerado as suas palavras como a voz do próprio Deus'.

Capítulo XXXVI

Razões da Expiação no Purgatório - Mortificação dos Sentidos - A visão do Padre Francisco de Aix - Mortificação da Língua e o Célebre Durand

Os cristãos que desejam escapar dos rigores do Purgatório devem amar a mortificação do seu Divino Mestre e ter cuidado para não serem membros transigentes sob uma Cabeça coroada de espinhos. Em 10 de fevereiro de 1656, na província de Lyon, faleceu o padre Francisco de Aix, da Companhia de Jesus, para uma vida melhor. Ele levou todas as virtudes de um religioso a um elevado grau de perfeição. Possuído por uma profunda veneração à Santíssima Trindade, teve por particular intenção em todas as suas orações e mortificações honrar este Augusto Mistério; abraçar de preferência os trabalhos pelos quais os outros mostravam menos inclinação tinha um encanto especial para ele. Frequentemente visitava o Santíssimo Sacramento, mesmo durante a noite, e nunca saía da porta de seu quarto sem ir rezar ao pé do altar. Suas penitências, um tanto excessivas, deram a ele a alcunha de homem das dores. A alguém que o aconselhou a moderação, ele respondeu: 'O dia que eu deixasse passar sem derramar algumas gotas do meu sangue para oferecer ao meu Deus seria para mim a mais dolorosa e severa mortificação. Assim, já que não posso esperar sofrer o martírio por amor de Jesus Cristo, pelo menos terei alguma participação em seus sofrimentos'.

Outro religioso, Irmão Coadjutor da mesma Ordem, não imitou o exemplo deste bom padre. Ele tinha pouco amor pela mortificação e, ao contrário, buscava mais a comodidade e o conforto, bem como tudo o que pudesse agradar os sentidos. Este irmão, alguns dias depois de sua morte, apareceu ao padre d'Aix, envolvido por um cilício tenebroso e sofrendo grandes tormentos, como castigo pelas faltas de sensualidade que havia cometido em vida. Ele implorou a ajuda de suas orações e logo em seguida desapareceu.

Outra falta contra a qual devemos nos proteger, porque nela caímos muito facilmente, é a não mortificação da língua. Ó como é fácil errar nas palavras! Quão raro é falar por muito tempo sem ofender a mansidão, a humildade, a sinceridade ou a caridade cristã! Mesmo pessoas piedosas estão frequentemente sujeitas a esse defeito; quando escapam de todas as outras armadilhas do demônio, deixam-se levar, diz São Jerônimo, nesta última armadilha – a calúnia. 

Ouçamos o que é relatado por Vincent de Beauvais. Quando o célebre Durand que, no século XI, resplandeceu a Ordem de São Domingos, era ainda um simples religioso, mostrou-se um modelo de regularidade e fervor; mas ele tinha um defeito. A sua vivacidade era uma predisposição a falar muito; gostava excessivamente de expressões espirituosas, muitas vezes à custa da caridade. Hugh, seu abade, alertou isso ao seu conhecimento, prevendo mesmo que, se não se corrigisse dessa falta, certamente teria que expiá-la no Purgatório. Durand não deu importância suficiente a esse conselho e continuou a se dedicar, sem muita restrição, aos distúrbios da língua. Após sua morte, a previsão do abade Hugh foi cumprida. Durand apareceu a um religioso, um de seus amigos, implorando-lhe que o ajudasse com suas orações, porque ele foi terrivelmente punido pela não mortificação de sua língua. Em consequência desta aparição, os membros da comunidade decidiram por unanimidade em observar estrito silêncio por oito dias, e praticar outras boas obras para o repouso do falecido. Esses exercícios de caridade produziram seu efeito; algum tempo depois Durand apareceu novamente, mas agora para anunciar a sua libertação.

Capítulo XXXVII

Razões da Expiação no Purgatório - Intemperança da Língua - O Religioso Dominicano - Irmãs Gertrudes e Margarida - São Hugo de Cluny e o Infrator da Regra do Silêncio 

Acabamos de ver como a imoderação no uso das palavras é expiada no Purgatório. Padre P. Rossignoli fala de um religioso dominicano que incorreu nos castigos da Justiça Divina por falta semelhante. Este religioso, um pregador cheio de zelo, uma glória para sua Ordem, apareceu depois de sua morte a um de seus irmãos em Colônia. Ele estava vestido com vestes magníficas, usando uma coroa de ouro na cabeça, mas sua língua estava terrivelmente atormentada. Esses ornamentos representavam a recompensa de seu zelo pelas almas e a sua perfeita observância em todos os pontos de sua Regra. No entanto, sua língua foi torturada porque ele não havia sido suficientemente cauteloso em suas palavras, e sua língua nem sempre moldavam os lábios sagrados de um padre e de um religioso.

O exemplo a seguir é extraído de Cesarius. Num mosteiro da Ordem de Citeaux, diz este autor, viviam duas jovens religiosas, chamadas Gertrudes e Margarida. A primeira, embora virtuosa, não cuidou suficientemente de sua língua; ela frequentemente se permitia transgredir a regra do silêncio prescrita, às vezes até em coro, antes e depois do canto do Ofício. Em vez de se recolher com a reverência devida àquele lugar santo, dirigia palavras inúteis à irmã, que se colocava ao lado dela, de modo que, além de sua violação da regra do silêncio e sua falta de piedade, ela foi objeto de desvirtuação para a sua Irmã de Ordem. 

Ela morreu ainda jovem. Pouco tempo depois de sua morte, a Irmã Margarida dirigiu-se ao coro e viu de repente a Irmã Gertrudes chegar e ocupar o mesmo assento que ocupava em vida. Muda de espanto, a irmã chegou quase a desmaiar diante essa visão. Quando se recuperou suficientemente, foi contar à Superiora o que acabara de ver. Esta admoestou-lhe a não preocupar-se em demasia e que, caso a falecida aparecesse outra vez, perguntasse a ela, em nome de Deus, o motivo de sua aparição.

No dia seguinte, a falecida reapareceu da mesma forma e, seguindo a orientação da Superiora, a de acordo com a ordem da prioresa, a Irmã Margarida lhe perguntou: 'Minha querida Irmã Gertrudes, de onde você vem e o que você quer?'. 'Venho' - disse ela- 'para satisfazer a Justiça de Deus neste lugar onde pequei. Foi aqui, neste santo santuário, que ofendi a Deus com palavras inúteis e contrárias ao respeito religioso, para desonra de muitos e pelo escândalo que vos dei em particular. Ah se você soubesse' - acrescentou ela - 'o quanto sofro! Sou devorada pelas chamas e, em particular, a minha língua é terrivelmente atormentada'. Ela desapareceu em seguida, depois de ter pedido orações em sua intenção.

Quando São Hugo, que sucedeu a Santo Odilo em 1049, governava o fervoroso mosteiro de Cluny, um de seus religiosos, que havia sido descuidado na observância da regra do silêncio, tendo falecido, apareceu ao santo abade para pedir a ajuda de seu orações. Sua boca estava cheia de úlceras terríveis, como castigo imposto ás suas muitas palavras vãs. São Hugo estabeleceu então sete dias de silêncio à sua comunidade, que foram passados ​​em recolhimento e oração. Então o falecido reapareceu, livre de suas úlceras e com semblante radiante, testemunhando a sua gratidão pelo socorro caridoso que recebera dos seus irmãos. Se tal é o castigo das palavras vãs, qual não deveria ser o das palavras mais passíveis de recriminação?

Capítulo XXXVIII

Razões da Expiação no Purgatório - Faltas em Matéria de Justiça - Padre D'Espinoza e a Bolsa para Pagamentos - Santa Margarida de Cortona e os Dois Mercadores Assassinados

Uma multidão de revelações nos mostra que Deus castiga com rigor implacável todos os pecados contrários à Justiça e à Caridade e que, em questões de Justiça, Ele parece exigir que a reparação seja feita antes que a pena seja remitida; assim como, na Igreja Militante, os seus ministros devem exigir a restituição de modo a remir a culpa, de acordo com o axioma que 'sem restituição, não há remissão'.

Padre P. Rossignoli nos fala de um religioso de sua Ordem, chamado Augustin d'Espinoza, cuja vida santa consistia em uma ato contínuo de devoção às almas do Purgatório. Um homem rico que se confessou com ele, tendo morrido sem ter regulado suficientemente os seus negócios, apareceu-lhe de certa vez, perguntando-lhe primeiro se o conhecia. 'Certamente' - respondeu o religioso - 'Eu administrei o Sacramento da Penitência a você alguns dias antes da sua morte'. 'Pois você deve saber, então' - acrescentou a alma - 'que venho à sua presença por uma graça especial de Deus, para conjurá-lo a apaziguar a sua Justiça e fazer por mim o que não posso mais fazer por mim mesmo. Por favor, você pode me seguir?'

O sacerdote foi primeiro informar ao seu superior o que estava sendo pedido a ele e também para pedir permissão para seguir o estranho visitante. Obtida a permissão para sair do convento, saiu e seguiu a aparição, que, sem pronunciar uma única palavra, o conduziu a uma das pontes da cidade. Ali pediu ao sacerdote que o esperasse um pouco, desaparecendo por um momento e retornando depois com uma bolsa de dinheiro, entregando-a ao sacerdote para a carregasse, e voltaram ambos para o convento. Então, o falecido deu-lhe um bilhete escrito e mostrou-lhe o dinheiro. 'Tudo isso' - disse ele - 'está à sua disposição. Tenha a caridade de tomá-lo para pagar os meus credores, cujos nomes estão escritos neste papel, com o valor devido a cada um. Utilize o valor remanescente para fazer boas obras ao seu critério, para o descanso de minha alma'. E, com essas palavras, desapareceu.

Mal haviam transcorrido oito dias quando o padre d'Espinoza recebeu outra visita da mesma alma. Ele agradeceu ao sacerdote toda a sua dedicação: 'Graças à exatidão caritativa com que pagaste as dívidas que deixei na terra, graças também às santas missas que celebraste por mim, estou livre de todos os os meus sofrimentos e sou agora admitido na bem-aventurança eterna'.

Encontramos um exemplo desta mesma natureza na Vida da Beata [Santa] Margarida de Cortona. Esta ilustre penitente também se distinguiu pela caridade para com as almas que partiram. Elas apareceram para ela em grande número, para implorar a sua ajuda e sufrágios. Um dia, entre outros, viu-se diante de dois viajantes, que lhe suplicaram que os ajudasse a reparar as injustiças deixadas em sua conta. 'Somos dois mercadores' - disseram a ela - 'que foram assassinados na estrada por bandidos. Não podíamos confessar ou receber a absolvição; mas pela misericórdia de nosso Divino Salvador e de Sua Santa Mãe, tivemos tempo de fazer um ato de contrição perfeita e fomos salvos. Mas os nossos tormentos no Purgatório são terríveis porque, no exercício da nossa profissão, cometemos muitas injustiças. Até que esses atos sejam reparados, não podemos ter repouso e nem alívio. É por isso que te rogamos, serva de Deus, que possas ir ao encontro de nossos parentes e herdeiros, para adverti-los a fazer a restituição o mais rápido possível de todo o dinheiro que adquirimos injustamente'. Forneceram em seguida todas as informações necessárias sobre estes herdeiros e desapareceram. 

Capítulo XXXIX

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados Contra a Caridade - Santa Margarida Maria e as Duas Pessoas Nobres no Purgatório - Visão de Almas de Religiosas no Purgatório

Já dissemos que a Justiça Divina é extremamente severa em relação aos pecados contra a caridade. A caridade é, de fato, a virtude mais cara ao Coração de nosso Divino Mestre, a qual recomenda aos seus discípulos como aquela que deve distingui-los aos olhos dos homens. Por isso, Ele diz que 'todos os homens saberão que vocês são meus discípulos, se vocês amarem uns aos outros' (Jo 13,35). Não é, pois, surpreendente que a aspereza para com o próximo, e todas as outras faltas contra a caridade sejam punidas severamente na outra vida.

Disso temos várias provas, tiradas da Vida da Beata Margarida Maria. 'Soube pela irmã Margarida' - diz Madre Greffier em suas Memórias - 'que ela um dia ela rezou em intenção de duas pessoas de alta posição no mundo que haviam acabado de falecer. Ela viu ambos no Purgatório. A primeira foi condenada por vários anos aos sofrimentos, apesar do grande número de missas que foram celebradas por ela. Todas essas orações e sufrágios foram aplicados pela Justiça Divina às almas pertencentes a algumas das famílias dos seus súditos, que foram prejudicadas por causa de suas injustiças e falta de caridade. Como nada foi deixado para aqueles pobres, que lhes permitissem fazer orações por eles após a sua morte, Deus os compensou da maneira que relatamos. A outra ficou no Purgatório por tantos dias quantos anos viveu nesta terra. Nosso Senhor deu a conhecer à Irmã Margarida que, entre as boas obras que esta pessoa tinha feito, especial consideração havia sido dada à caridade com que tinha suportado as faltas do próximo, bem como os esforços que tinha feito para superar os desgostos que isso lhe causara. 

Em outra ocasião, Nosso Senhor mostrou à Beata Margarida um grande número de almas de religiosas no Purgatório que, por não terem servido com zelo às suas superioras durante a vida ou porque tiveram algum desentendimento com elas, foram severamente punidas e privadas, após a morte, do auxílio da Santíssima Virgem e dos santos, e também das visitas dos seus anjos da guarda. Várias dessas almas estavam destinadas a permanecer por muito tempo sob chamas terríveis. Algumas delas não tinham nenhum outro sinal de sua predestinação além de não odiarem a Deus. Outras, que viveram sua vida religiosa, mas que durante a vida mostraram pouca caridade para com as suas irmãs, foram privadas dos sufrágios oferecidos em sua intenção e não receberam assistência alguma.

Acrescentemos ainda mais um extrato das Memórias da Madre Greffier: 'Enquanto Irmã Margarida estava orando por duas religiosas falecidas, suas almas lhe foram mostradas nas prisões da Justiça Divina, onde uma sofria incomparavelmente mais do que o outra. A primeira lamentava muito que, por suas faltas contra a caridade mútua e a santa amizade que deveria permanecer nas comunidades religiosas, ela havia sido privada, entre outras punições, dos sufrágios que lhe eram oferecidos pela comunidade. Ela recebeu alívio apenas pelas orações de três ou quatro pessoas da mesma comunidade, por quem teve menos afeição e inclinação durante a sua vida. Essa alma sofredora também se recriminava pela excessiva facilidade com que havia recebido dispensas das regras e dos exercícios da comunidade. Finalmente, ela deplorava o cuidado que havia devotado na terra para obter para seu corpo tantos confortos e comodidades. Depois deu ainda a conhecer à nossa querida Irmã que, como castigo por três faltas, ficou à mercê de três ataques violentos do demônio durante a sua última agonia, o que quase a fez acreditar-se perdida e a ponto de cair em desespero mas que, pela intercessão da Santíssima Virgem, a quem sempre tivera grande devoção durante a sua vida, ela tinha sido arrebatada por três vezes das garras do inimigo'.

Capítulo XL

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados Contra a Caridade e o Respeito ao Próximo - São Luís Bertrand e o Jovem Religioso - Padre Nieremberg - Santa Margarida e o Religioso Beneditino 

A verdadeira caridade é humilde e indulgente para com os outros, respeitando-os como se fossem seus superiores. As suas palavras são sempre amigas e cheias de consideração pelos outros, não tendo nada de amargura ou de frieza, nada de desprezo, porque deve nascer de um coração manso e humilde como o de Jesus. Ela também evita cuidadosamente tudo o que poderia perturbar a unidade; ela toma todos os meios, faz todos os sacrifícios para efetuar uma reconciliação, de acordo com as palavras de nosso Divino Mestre: 'se você oferecer sua oferta no altar, e lá você se lembrar de que seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe sua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-se com teu irmão, e depois, vindo, oferecerás a tua oferta' (Mt 5, 23).

Um religioso que feriu a caridade em relação a São Luís Bertrand recebeu um terrível castigo após a morte. Ele foi lançado no fogo do Purgatório e que teve de suportar esse sofrimento até satisfazer a Justiça Divina; mais ainda, não poderia ser admitido na morada dos eleitos até que tivesse realizado um ato de reparação exterior, que deveria servir de exemplo para os vivos. O fato é assim relatado na vida desse santo.

Quando São Luís Bertrand, da Ordem de São Domingos, residia no convento de Valência, havia na comunidade um jovem religioso que dava demasiada importância à ciência profana. Sem dúvida, as letras e a erudição têm seu valor mas, como declara o Espírito Santo, devem ceder ao temor de Deus e à ciência dos santos: scientiam sed non est super timentem Deum - nenhuma ciência é tão grande quanto aquele que teme o Senhor (Eclo 25,13). Esta ciência dos santos, que a Sabedoria Eterna veio nos ensinar, consiste na humildade e na caridade. O jovem religioso de quem falamos, embora pouco avançado na ciência divina, permitiu-se repreender o padre Bertrand por seu pouco conhecimento e disse-lhe: 'Vê-se, padre, que você não é muito instruído!' 'Irmão' - respondeu o santo com firmeza mansa - 'Lúcifer era muito instruído e ainda assim se condenou'.

O irmão que cometeu esta falta não pensou em repará-la. Não obstante, não era um mau religioso e, algum tempo depois adoecendo gravemente, recebeu os últimos sacramentos com muito boa disposição e expirou pacificamente no Senhor. Decorreu um tempo considerável e Bertrand foi nomeado prior. Um dia, tendo permanecido no coro depois das matinas, o defunto apareceu-lhe envolto em chamas e, prostrando-se humildemente diante dele, disse: 'Padre, perdoe-me as palavras ofensivas que um dia eu lhe dirigi. Deus não permitirá que eu veja o seu rosto até que você tenha perdoado a minha culpa e rezado a Santa Missa em minha intenção'. O santo o perdoou de bom grado e, na manhã seguinte, celebrou a missa pelo descanso de sua alma. Na noite seguinte, estando novamente no coro, viu reaparecer o irmão falecido, agora radiante de glória e se elevando ao Céu.

Padre Eusébio Nieremberg, religioso da Companhia de Jesus, autor do belo livro Diferença entre Tempo e Eternidade, residiu no Colégio de Madri, onde morreu em odor de santidade em 1658. Este servo de Deus, que era singularmente devoto pelas almas do Purgatório, estava um dia rezando na igreja do colégio por um padre recém-falecido. O falecido, que por muito tempo havia sido professor de teologia, provou ser um religioso tão bom quanto um teólogo erudito; ele havia se distinguido por sua grande devoção à Santíssima Virgem, mas um vício havia se insinuado entre suas virtudes – ele não era caridoso em suas palavras e frequentemente falava das faltas de seu próximo. 

No momento em que o padre Nieremberg estava reverenciando a sua alma a Deus, este religioso apareceu e revelou-lhe o estado de sua alma. Ele tinha sido condenado a terríveis tormentos por ter falado frequentemente contra a caridade. Sua língua, instrumento de sua culpa, foi torturada por um fogo devorador. A Santíssima Virgem, em recompensa da terna devoção que ele tinha por ela, obteve permissão para que ele viesse pedir orações e, ao mesmo tempo, servir de exemplo para os outros, para que aprendessem a ser cautelosos em todas as suas palavras. Padre Nieremberg, após ter feito muitas orações e penitências por ele, logrou finalmente obter a sua libertação. 

O religioso que se faz menção na vida da bem-aventurada Margarida Maria, pelo qual aquela serva de Deus teve que sofrer tão terrivelmente durante três meses, entre outras faltas, foi punido também pelos seus pecados contra a caridade. Assim foi relatada essa revelação. A bem-aventurada Margarida Maria, estando um dia diante do Santíssimo Sacramento, viu-se de repente diante de um homem totalmente envolto em chamas, cujo fogo era tão intenso que lhe pareceu prestes a consumi-la também. O estado lastimável em que se encontrava esta pobre alma a fez cair em lágrimas. O homem era um religioso beneditino do mosteiro de Cluny, a quem ela havia se confessado no passado, com um grande bem à sua alma, ordenando-lhe que recebesse a Sagrada Comunhão. Em compensação por esse serviço, Deus permitiu que a sua alma pudesse dirigir-se à Margarida, para assim obter algum alívio para os seus sofrimentos.

A pobre alma implorou então que tudo que ela fizesse ou sofresse durante três meses fosse aplicado em sua intenção. Após pedir a devida permissão, ela assim o prometeu. Ele revelou então que a causa principal do seu grande sofrimento foi de ter sempre buscado os seus próprios interesses e não a glória de Deus e o bem das almas, dando assim demasiada importância à sua reputação. A segunda causa teria sido a sua falta de caridade para com os seus irmãos. A terceira, a afeição natural por criaturas a quem, por fraqueza, se rendera e às quais dera provas desta predileção em suas orientações espirituais, o que - acrescentou - teriam em muito desagradado a Deus.

É difícil dizer tudo o que a serva de Deus sofreu durante os três meses seguintes. O falecido nunca a deixou, sempre postado ao seu lado e envolto em chamas que a consumiam em dores excruciantes, que a faziam chorar sem cessar. A sua superiora, movida pela compaixão, ordenou-lhe penitências e disciplinas severas, porque a dor e o sofrimento destas coisas muito a aliviavam. Os tormentos - ela dizia - que a santidade de Deus lhe imprimia eram absolutamente insuportáveis. E eram apenas uma amostra do sofrimento suportado pelas pobres almas do Purgatório.

Capítulo XLI

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados Contra o Abuso da Graça - Santa Madalena de Pazzi e a Religiosa em Expiação por Abuso da Graça - Santa Margarida Maria e as Três Almas do Purgatório 

Há uma outra desordem na alma que Deus pune severamente no Purgatório, a saber, o abuso da graça. Por isso se entende a negligência em corresponder às ajudas que Deus nos dá e aos convites que Ele nos impõe à prática da virtude para a santificação de nossas almas. Esta graça que Ele nos oferece é um dom precioso, que não podemos jogar fora; é a semente da salvação e do mérito, que não se pode deixar improdutiva. Ora, esta falta é cometida quando não respondemos com generosidade ao convite divino. Recebo de Deus o meio de dar esmolas; uma voz interior me convida a fazê-lo. Mas fecho o meu coração ou a dou com mão avarenta; isso é um abuso da graça. Posso assistir a missa, ouvir o sermão ou frequentar os sacramentos; uma voz interior me incita a ir, mas não vou por frouxidão, isso é um abuso da graça. Uma pessoa religiosa deve ser obediente, humilde, mortificada e devotada aos seus deveres. Deus exige isso e lhe dá esta graça em virtude de sua vocação. Mas quando ela não se aplica a isso e não se esforça para superar a si mesma, a fim de cooperar com a assistência que Deus lhe dá; isso é um abuso da graça.

Este pecado, como dissemos, é severamente punido no Purgatório. Santa Madalena de Pazzi relata que uma das suas irmãs religiosas teve muito que sofrer depois da morte por não ter correspondido à graça por três vezes. Num certo dia de festa, sentiu-se inclinada a fazer um pouco de trabalho de pouca monta; tratava-se de uma simples peça de bordado, mas que não era absolutamente necessária e que poderia ter sido adiada convenientemente para outro momento. A inspiração da graça a alertara para se abster disso, por respeito à santidade do dia, mas ela preferiu satisfazer o desejo natural que tinha de fazer o trabalho, sob o pretexto de que era algo leve. Numa segunda ocasião, tendo notado que um ponto relevante de discussão havia passado desapercebido - e cuja menção às suas superioras teria resultado em um grande bem à comunidade - omitiu-se por mencioná-lo. A inspiração da graça a motivou para realizar esse ato de caridade, mas o respeito humano o impediu de fazê-lo. Uma terceira falta foi um apego desregulado aos seus que estavam no mundo. Como esposa de Jesus Cristo, devia todos os seus afetos a este divino Esposo; mas ela compartilhava seu coração por se importar muito com os membros de sua família. Embora pressentisse que a sua conduta a esse respeito era equivocada, ela não obedeceu ao movimento da graça e não trabalhou fervorosamente para se corrigir nesse sentido.

Quando esta irmã, aliás muito edificante, veio a falecer, Santa Madalena de Pazzi rezou em sua intenção com o seu habitual fervor. Dezesseis dias depois, ela se apresentou diante à santa, anunciando a sua libertação. Como Madalena estava espantada por ela ter estado tanto tempo em tormento, a alma revelou a ela que teve que expiar pelo abuso de graça nos três casos mencionados e acrescentou que essas faltas a teriam mantido por muito mais tempo em expiação se Deus não tivesse considerado aspectos mais positivos da sua conduta; assim, Ele abreviara suas sentenças por causa de fidelidade da alma ao cumprimento da regra, das suas boas intenções e dos frutos da sua caridade para com suas outras irmãs.

Aqueles que tiveram mais graças neste mundo e mais meios para quitar as suas dívidas espirituais serão tratados no Purgatório com menos indulgência do que outros que tiveram menos facilidade para as satisfazer durante a vida. Santa Margarida Maria, ao ser informada da morte de três pessoas recentemente falecidas, sendo duas freiras e um secular, começou imediatamente a rezar pelo descanso eterno de suas almas. Era o primeiro dia do ano. Nosso Senhor, tocado por sua caridade e usando uma inefável familiaridade, condescendeu em aparecer a ela; e, mostrando-lhes as almas dos três falecidos nas prisões de fogo onde sofriam, lhe disse: 'Minha filha, como um presente de Ano Novo, concedo-lhe a graça da libertação de uma dessas três almas, e deixo que você faça a escolha; qual delas você quer que seja libertada?' A santa respondeu então: 'Quem sou eu, Senhor, para designar aquela que merece a Vossa consolação? Façais Vós mesmo essa escolha!' Então Nosso Senhor libertou o secular, dizendo que tinha menos dificuldade em ver as religiosas sofrerem, porque elas teriam tido mais meios de expiar os seus pecados em vida.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

(Fim da Primeira Parte)