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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (II)

 

PARTE I - SOBRE A MORTE

II. Sobre os Ataques de Satanás na Hora da Morte

Embora a morte seja em si mesma muito amarga, sua amargura é ainda mais intensificada pela lembrança vívida dos pecados de nossa vida passada, pelo pensamento do julgamento que está por vir, da eternidade que temos diante de nós e pelos ataques de Satanás. Essas quatro coisas enchem a alma de tal terror que ela inevitavelmente se desesperaria, a menos que fosse fortalecida pela ajuda de Deus. Vamos entrar em algumas explicações sobre cada uma dessas quatro coisas e também indicar alguns meios de combater os medos que elas inspiram.

Com relação aos ataques de Satanás, saiba que o Deus totalmente justo permite que ele tenha grande poder para nos atacar na hora da morte; não para nossa perdição, mas para nossa provação. Antes de expirar, o cristão ainda tem que provar que nada pode fazê-lo abandonar seu Deus. Por essa razão, o inimigo maligno emprega todo o poder que recebeu e usa todas as suas forças contra o homem quando ele está morrendo, na esperança de fazê-lo pecar e empurrá-lo para o inferno. Durante toda a nossa vida, ele nos ataca ferozmente e não negligencia nenhum meio pelo qual possa nos enganar. Mas todas essas perseguições não se comparam ao ataque final com o qual ele se esforça para nos vencer no fim. Então ele se enfurece no limite, como um leão rugindo, procurando quem possa devorar.

Isso aprendemos na seguinte passagem do Apocalipse: 'Ai da terra e do mar, porque o diabo desceu a vós, tendo grande ira, sabendo que tem pouco tempo' (Ap 12,12). Essas palavras têm uma aplicação especial para os moribundos, contra os quais o diabo concebe uma grande ira e a quem ele faz todos os esforços para seduzir. Pois ele sabe muito bem que, se não os colocar sob seu poder agora, nunca mais terá a chance de fazê-lo. Ouça o que São Gregório diz sobre esse ponto: 'Considerem bem como é terrível a hora da morte e como será assustadora a lembrança de nossas más ações naquele momento. Pois os espíritos das trevas recordarão todo o mal que nos fizeram e nos lembrarão dos pecados que cometemos por sua instigação. Eles não irão apenas ao leito de morte dos ímpios, mas estarão presentes com os eleitos, esforçando-se para descobrir algo pecaminoso de que possam acusá-los. Ai de nós! Como será para nós, mortais infelizes, naquela hora, e o que poderemos dizer em nossa defesa, vendo quantos são os pecados que nos serão imputados? O que poderemos responder aos nossos adversários, quando eles colocarem todos os nossos pecados diante de nós, com o objetivo de nos levar ao desespero?'

Os espíritos malignos tentarão sua infeliz vítima no momento da morte em vários pontos, mas especialmente no que diz respeito aos pecados em que ela mais frequentemente caiu. Se durante sua vida ela nutriu ódio por alguém, eles conjurarão diante de seus olhos moribundos a imagem dessa pessoa, relembrando tudo o que ela fez para prejudicá-la, a fim de reavivar a chama do ódio contra esse inimigo ou acendê-la novamente. Ou, se alguém transgrediu contra a pureza, eles lhe mostrarão o cúmplice de seu pecado e se esforçarão para despertar a paixão culpada que sentia por essa pessoa. Se ele foi atormentado por dúvidas sobre a fé, eles lhe lembrarão o artigo de crença que ele tinha dificuldade em aceitar, representando-o como falso. Se um homem tem tendência à pusilanimidade, os espíritos malignos a incentivarão nela, para que possam roubar-lhe a esperança da salvação. O homem que pecou por orgulho e se gabou de suas boas obras, procurarão enganar com bajulação, assegurando-lhe que ele está em alta graça com Deus e que tudo o que fez não pode deixar de garantir-lhe um lugar no céu. Novamente, se durante sua vida um homem cedeu à impaciência, permitindo-se ficar zangado e irritado com cada ninharia, eles fazem com que sua doença pareça mais incômoda para ele, para que se torne impaciente e se rebele contra Deus por ter lhe enviado uma doença tão dolorosa.

Ou, se ele foi indiferente e pouco devoto, sem fervor na oração ou assiduidade em seus exercícios religiosos, eles tentarão manter em sua alma esse estado de apatia, sugerindo-lhe que sua fraqueza física é grande demais para permitir que ele se junte às orações que seus familiares fazem por ele. Finalmente, eles tentarão aqueles que levaram uma vida ímpia e repetidamente caíram em pecado mortal, levando-os ao desespero, representando suas transgressões como sendo tão grandes que estão além do perdão. Em uma palavra, os espíritos do mal atacam os mortais no momento da morte com mais ferocidade em seu ponto mais vulnerável, assim como um general habilidoso atacará uma fortaleza pelo lado onde percebe que as muralhas são mais fracas.

Mas os demônios nem sempre se limitam a tentar o homem em relação às suas principais falhas e defeitos predominantes; frequentemente o tentam a cometer pecados dos quais ele até então não era culpado. Pois esses inimigos astutos não poupam esforços para enganar os moribundos e, se falham de uma maneira, tentam ter sucesso de outra. Essas tentações não são de caráter comum. Às vezes são tão violentas que é impossível para os mortais fracos resistir a elas sem ajuda sobrenatural. Se tudo o que alguém em boa saúde pode fazer é resistir aos ataques do demônio, e mesmo assim muitas vezes é vencido por eles, quão difícil deve ser para alguém enfraquecido pela doença lutar contra inimigos tão poderosos!

Sobre este ponto, um escritor piedoso disse: 'A menos que o moribundo, antes de sua última doença, tenha se armado contra esses ataques e se acostumado a lutar contra seus adversários espirituais, ele tem poucas chances de prevalecer contra eles no momento da morte. Se o fizer, será apenas com a ajuda do Deus Todo-Poderoso, de Nossa Senhora, de seu anjo da guarda ou de um dos santos. Pois nosso Deus misericordioso e seus anjos e santos abençoados não abandonam o cristão na hora de sua maior necessidade; eles correm em seu auxílio, isto é, desde que ele seja digno de sua ajuda'. A fim de se preparar antes da última doença para combater essas tentações, é aconselhável recitar com a devida devoção a seguinte oração.

ORAÇÃO

Ó Jesus, compassivo Redentor da humanidade, recordando a tripla tentação que sofrestes do inimigo maligno vos  rogo, pela vossa gloriosa vitória sobre ele, que estejais ao meu lado no meu último conflito e me fortaleceis contra todas as suas tentações. Sei que, com minhas próprias forças, não posso lutar contra um inimigo tão poderoso e certamente serei vencido, a menos que Vós e vossos santos abençoados, me concedais a ajuda oportuna. Portanto, imploro sinceramente o vosso auxílio e a dos vossos santos, e proponho armar-me da melhor maneira possível com a vossa graça, para enfrentar as tentações que me aguardam. Prometo pois, diante de Vós, dos santos anjos e dos santos abençoados, que nunca me exporei voluntariamente a qualquer tentação, seja ela de que natureza for, mas com a ajuda da vossa graça, hei de combatê-las com todas as minhas forças. Amém.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (I)


PARTE I - SOBRE A MORTE

I. Sobre os Terrores da Morte

Parece-me desnecessário falar muito sobre os terrores da morte. O assunto já foi suficientemente abordado por vários escritores; além disso, todos sabem e sentem por si mesmos que a vida é doce e a morte é amarga. Por mais velho que seja um homem, por mais debilitada que seja sua saúde, por mais miseráveis que sejam suas circunstâncias, a ideia da morte é sempre desagradável. Há três razões principais pelas quais todas as pessoas sensatas temem tanto a morte:

Primeiro, porque o amor pela vida e o medo da morte são inerentes à natureza humana. Segundo, porque todo ser racional está bem ciente de que a morte é amarga e que a separação da alma e do corpo não pode ocorrer sem um sofrimento inexprimível. Terceiro, porque ninguém sabe para onde irá após a morte, ou como será seu julgamento no Dia do Juízo Final.

Será bom explicar a segunda e a terceira dessas razões de forma mais completa, a fim de que, por um lado, aqueles que levam uma vida descuidada possam talvez despertar para o medo da morte e aprender a evitar o pecado e, por outro, para que cada um de nós seja alertado a se preparar para a morte, para que não sejamos surpreendidos por ela sem estar preparados. Todos recuam instintivamente diante da morte, porque ela é amarga e dolorosa e além da percepção para a natureza humana. 

A alma do homem está sujeita a muitas ansiedades, apreensões e tristezas, e o corpo está sujeito a dores e doenças de todos os tipos, mas nenhuma dessas dores pode ser comparada à agonia da morte. Um homem que perde seu bom nome e seus bens sente uma dor aguda, mas não morre por causa disso. Todo sofrimento e doença, toda dor e angústia, por mais terríveis que sejam, são menos amargos do que a morte. Por isso, vemos a morte como um monarca poderoso, o mais cruel, o mais implacável, o mais formidável inimigo da humanidade. Observe um homem lutando contra a morte e você verá como o tirano domina, desfigura e prostra sua vítima. Agora, por que a morte é algo tão difícil, tão terrível?

É porque a alma tem que se separar do corpo. O corpo e a alma foram criados um para o outro, e sua união é tão íntima que a separação entre eles parece quase impossível. Eles suportariam quase tudo em vez de serem separados. A alma tem medo do futuro e da terra desconhecida para onde está indo. O corpo está consciente de que, assim que a alma se afastar dele, se tornará presa dos vermes. Consequentemente, a alma não suporta deixar o corpo, nem o corpo se separar da alma. O corpo e a alma desejam que sua união permaneça intacta e que juntos desfrutem das alegrias da vida.

Em uma de suas epístolas a Santo Agostinho, São Cirilo, bispo de Jerusalém, relata o que lhe foi dito por um homem que havia ressuscitado dos mortos. Entre outras coisas, ele disse: 'O momento em que minha alma deixou meu corpo foi de uma dor e angústia tão terríveis que ninguém pode imaginar a angústia que eu então suportei. Se todos os sofrimentos e dores concebíveis fossem reunidos, eles seriam nada em comparação com a tortura que eu sofri na separação da alma e do corpo'. E para enfatizar suas palavras, ele acrescentou, dirigindo-se a São Cirilo: 'Tu sabes que tens uma alma, mas não sabes o que ela é. Tu sabes que existem seres chamados anjos, mas és ignorante quanto à sua natureza. Tu também sabes que existe um Deus, mas não consegues compreender o seu ser. Assim é com tudo o que não tem forma corpórea; nossa compreensão não consegue captar essas coisas. Da mesma forma, é impossível para ti compreender como eu pude sofrer uma agonia tão intensa em um breve momento'. E se algumas pessoas aparentemente partem de forma muito pacífica, isso é porque a natureza, exausta pelo sofrimento, já não tem forças para lutar contra a morte.

Sabemos, pelo testemunho do próprio Nosso Redentor, que nenhuma agonia se compara à agonia da morte. Embora ao longo de toda a sua dolorosa Paixão Ele tenha sido torturado de forma terrível, todo o martírio que Ele suportou não se compara ao que Ele sofreu no momento da sua morte. Isso é o que deduzimos dos Evangelhos. Em nenhum lugar encontramos que, em qualquer período da sua vida, a grandeza das dores que Ele suportou tenha arrancado de Nosso Senhor um grito de angústia. Mas quando chegou o momento de Ele expirar, e a mão implacável da morte rasgou o seu Coração, lemos que Ele gritou em alta voz e entregou o espírito. Portanto, é evidente que em nenhum momento da Paixão Cristo sofreu tão intensamente como na separação mais dolorosa da sua alma sagrada do seu corpo abençoado.

Para que a humanidade pudesse, pelo menos em certa medida, compreender quão terrível foi a morte que Cristo morreu por nós, Ele determinou que, ao morrermos, provássemos um pouco da amargura da sua morte e experimentássemos a verdade das seguintes palavras do Papa São Gregório: 'O conflito de Cristo com a morte representou nosso último conflito, ensinando-nos que a agonia da morte é a agonia mais intensa que o homem já sentiu ou jamais sentirá. É vontade de Deus que o homem sofra tão intensamente no fim de sua vida, para que possamos reconhecer e apreciar a magnitude do amor de Cristo por nós, o benefício inestimável que Ele nos conferiu ao suportar a morte por nossa causa. Pois teria sido impossível para o homem conhecer plenamente o amor infinito de Deus, a menos que ele também tivesse bebido, em certa medida, do cálice amargo que Cristo bebeu'.

Nesta passagem dos escritos do santo Papa Gregório, somos ensinados que Cristo ordenou que todos os homens, na hora de sua dissolução, sofressem as mesmas dores que Cristo sofreu por nós em sua última agonia, a fim de que pudessem adquirir algum conhecimento, por sua própria experiência, da natureza terrível da morte que Ele suportou por nós e do grande preço que Ele pagou pelo nosso resgate. Quão dolorosa, quão terrível, quão horrível será a morte para nós, se a nossa morte se assemelhar, em qualquer grau que seja, à morte agonizante de Cristo!

Que conflito severo está diante de nós, pobres mortais! Que tormentos nos aguardam em nossa última hora! Quase nos sentimos inclinados a pensar que teria sido preferível nunca ter nascido, a nascer para sofrer tal angústia. Mas é assim que o Céu deve ser conquistado e somente por esta porta estreita podemos entrar no Paraíso. Portanto, ó cristão, aceite o seu destino com alegria e tome a firme resolução de suportar sem reclamar a amargura da morte. Pois é um grande mérito entregar a vida que todo homem ama tanto e submeter-se com mente pronta e disposta às dores da morte. E com o objetivo de encorajá-lo a ganhar méritos em seus últimos momentos, deixe-me aconselhá-lo a tomar a seguinte decisão de sofrer a morte com coragem.

RESOLUÇÃO

Ó Deus de toda justiça, que determinaste que, desde a queda de nossos primeiros pais, todos os homens morressem, e também que fosse o destino de muitos entre nós provar em sua morte algo das dores que o teu Filho suportou na hora da sua morte, eu me submeto de boa vontade a este teu severo decreto. Embora a vida seja doce para mim e a morte pareça muito amarga, ainda assim, por obediência a Ti, aceito voluntariamente a morte com todas as suas dores e estou pronto para entregar minha alma quando, onde e da maneira que for do agrado da Divina Providência. E uma vez que fizeste a morte tão amarga para o homem, a fim de que pudéssemos sentir, em certa medida, por nossa própria experiência, quão dolorosa foi a morte que o teu amado Filho sofreu por nossa causa, aceito de bom grado a pena da morte, para que, pelo menos no meu fim, possa conhecer algo das dores que o meu abençoado Senhor sofreu por minha causa. Em honra, portanto, da sua amarga Paixão e morte, submeto-me agora alegremente a quaisquer sofrimentos que eu possa ser chamado a passar no momento da minha partida, e declaro minha determinação de suportá-los com toda a constância de que sou capaz. Rezo para que esta resolução da minha parte seja agradável aos teus olhos e que Tu me dês a graça de suportar minha última agonia com paciência. Amém.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (CVI/Final)

Capítulo LXV

Meios de se Evitar o Purgatório - A Santa Aceitação da Morte - O Exemplo do Padre Aquitanus - A Prudência de se Informar o Paciente de sua Condição Crítica - Resignação ou Não à Vontade Divina Diante da Morte: Exemplos Diversos - São João da Cruz e a Doce Morte da Alma que Ama a Deus 

O sexto meio de se evitar o Purgatório é a aceitação humilde e submissa da morte como expiação dos nossos pecados: é um ato generoso, pelo qual oferecemos nossa vida a Deus, em união com o sacrifício de Jesus Cristo na Cruz.

Deseja um exemplo dessa santa resignação da vida nas mãos do Criador? Em 2 de dezembro de 1638, morreu em Brisach, na margem direita do Reno, o Padre Jorge Aquitanus, da Companhia de Jesus. Duas vezes ele havia dedicado sua vida ao serviço dos atingidos pela peste. Aconteceu que, em duas ocasiões diferentes, a peste se alastrou com tal fúria que era quase impossível aproximar-se dos doentes sem ser contaminado. Todos fugiram, abandonando os moribundos à sua infeliz sorte. Mas o Padre Aquitanus, entregando sua vida nas mãos de Deus, fez-se servo e apóstolo dos doentes; ocupava-se exclusivamente em aliviar seus sofrimentos e administrar-lhes os sacramentos.

Deus o preservou durante a primeira onda da peste; mas quando ela voltou com violência redobrada, e o homem de Deus foi chamado pela segunda vez a dedicar-se aos enfermos, Deus desta vez aceitou seu sacrifício. Quando, vítima de sua caridade, ele jazia em seu leito de morte, perguntaram-lhe se oferecia de bom grado sua vida a Deus. 'Oh!' - respondeu, cheio de alegria - 'se eu tivesse um milhão de vidas para oferecer a Ele, Ele sabe com que prontidão eu as daria'. Tal ato, como se pode compreender, é muito meritório aos olhos de Deus. Não se assemelha ele ao supremo ato de caridade realizado pelos mártires que morreram por Jesus Cristo e que, como o batismo, apaga todos os pecados e cancela todas as dívidas? 'Ninguém tem maior amor do que este: dar a vida por seus amigos' (Jo 15,13), disse Nosso Senhor.

Para fazer esse ato durante uma enfermidade, é útil - senão necessário - que o paciente compreenda sua condição e saiba que o fim se aproxima. Por isso, é um grande erro esconder-lhe essa verdade por uma falsa delicadeza. 'Devemos' - diz Santo Afonso - 'com prudência informar o doente sobre o perigo que corre'. Se o paciente tenta se enganar com ilusões ou se, em vez de se resignar nas mãos de Deus, pensa apenas na cura, mesmo que receba todos os sacramentos, comete um grave erro.

Lemos na vida da Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento, religiosa de Pamplona, que uma alma foi condenada a um longo purgatório por não ter tido verdadeira submissão à Vontade Divina em seu leito de morte. Era uma jovem muito piedosa, mas quando a mão gelada da morte a tocou na flor da juventude, a natureza recuou, e ela não teve coragem de se entregar às mãos sempre amorosas de seu Pai Celeste – não queria morrer ainda. Morreu, contudo, e a Venerável Madre Francisca, que recebia visitas frequentes das almas do purgatório, soube que essa alma teria de expiar, com longos sofrimentos, sua falta de submissão aos decretos do Criador.

A vida do Venerável Padre Caraffa nos oferece um exemplo mais consolador. O Padre Vicente Caraffa, Geral da Companhia de Jesus, foi chamado para preparar para a morte um jovem nobre que havia sido condenado à execução e que acreditava ter sido condenado injustamente. Morrer na flor da idade, sendo rico, feliz, e quando o futuro sorri para nós, é algo difícil, devemos reconhecer; no entanto, um criminoso que é atormentado pelo remorso de consciência pode se resignar e aceitar a morte como um castigo expiatório por seu crime. Mas o que dizer de uma pessoa inocente?

O padre, portanto, tinha uma tarefa difícil a cumprir. Contudo, assistido pela graça divina, soube lidar com sabedoria com aquele infeliz jovem. Falou com tal unção sobre as faltas de sua vida passada e sobre a necessidade de satisfazer à Justiça Divina, fez-lhe compreender tão profundamente como Deus permitia aquele castigo temporal para o seu bem, que domou a natureza rebelde e transformou completamente os sentimentos de seu coração. O jovem passou a ver sua sentença como uma expiação que lhe obteria o perdão de Deus e subiu ao cadafalso não apenas com resignação, mas com verdadeira alegria cristã. Até o último momento, mesmo sob o machado do carrasco, bendizia a Deus e implorava por sua misericórdia, para grande edificação de todos os que assistiam à sua execução.

No momento em que sua cabeça caiu, o Padre Caraffa viu a sua alma subir triunfante ao Céu. Imediatamente foi até a mãe do jovem para consolá-la, relatando o que havia presenciado. Estava tão tomado de alegria que, ao retornar à sua cela, não cessava de exclamar: 'Ó homem feliz! Ó homem feliz!'  A família desejava mandar celebrar grande número de missas pelo repouso de sua alma. 'É supérfluo' - respondeu o padre - 'devemos antes agradecer a Deus e alegrar-nos, pois declaro-lhes que sua alma nem sequer passou pelo Purgatório'. Outro dia, enquanto trabalhava, ele parou de repente, seu semblante mudou, e ele olhou para o Céu; então foi ouvido exclamando: 'Ó sorte feliz! Ó sorte feliz!' E quando um companheiro lhe pediu explicação sobre essas palavras, respondeu: 'Ah! meu caro padre, era a alma daquele condenado que me apareceu em glória. Ó como foi proveitosa para ele sua resignação!'

A Irmã Maria de São José, uma das quatro primeiras carmelitas que abraçaram a reforma de Santa Teresa, foi uma religiosa de grande virtude. O fim de sua carreira se aproximava, e Nosso Senhor, desejando que a sua esposa fosse recebida no Céu em triunfo ao exalar seu último suspiro, purificou e embelezou sua alma pelos sofrimentos que marcaram o fim de sua vida. Durante os últimos quatro dias que passou na terra, perdeu a fala e os sentidos; foi atormentada por uma agonia terrível e as religiosas ficaram profundamente comovidas ao vê-la naquele estado. A Madre Isabel de São Domingos, priora do convento, aproximou-se da religiosa enferma e sugeriu-lhe que fizesse muitos atos de resignação e total abandono nas mãos de Deus. A Irmã Maria de São José ouviu-a e fez esses atos interiormente, embora não pudesse manifestar nenhum sinal exterior disso.

Morreu nessas santas disposições e, no próprio dia de sua morte, enquanto a Madre Isabel ouvia missa e rezava pelo repouso de sua alma, Nosso Senhor mostrou-lhe a alma de sua fiel esposa coroada de glória, e disse: 'Ela pertence ao número daqueles que seguem o Cordeiro'. A Irmã Maria de São José, por sua vez, agradeceu à Madre Isabel por todo o bem que lhe havia feito na hora da morte. Acrescentou que os atos de resignação que lhe havia sugerido lhe haviam merecido grande glória no Paraíso e a haviam isentado das penas do Purgatório.

Que felicidade é deixar esta vida miserável para entrar na única vida verdadeira e bem-aventurada! Todos nós podemos alcançar essa felicidade, se usarmos os meios que Jesus Cristo nos deu para satisfazer nesta vida e preparar nossas almas perfeitamente para comparecer diante dEle. A alma assim preparada é tomada, na última hora, pela mais doce confiança; ela tem, por assim dizer, um antegosto do Céu - experiências estas descritas por São João da Cruz na sua obra Chama Viva de Amor, ao falar da morte de um santo.

'O amor perfeito de Deus' - diz ele - 'torna a morte agradável, fazendo a alma experimentar a maior doçura naquele momento. A alma que ama é inundada por um torrente de delícias na aproximação daquele instante em que está prestes a entrar na posse plena de seu Amado. À beira de ser libertada desta prisão do corpo, ela já parece contemplar as glórias do Paraíso, e tudo dentro dela se transforma em amor'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (CV)

Capítulo LXIV

Meios de se Evitar o Purgatório - Confiança na Misericórdia de Deus - Palavras de São Francisco de Sales - São Filipe Néri: 'O Paraíso é seu!'

O quinto meio para obter o favor diante do tribunal de Deus é ter grande confiança em sua misericórdia. 'Junto de vós, Senhor, me refugio. Não seja eu confundido para sempre (Sl 30,2). Certamente Aquele que disse ao bom ladrão: 'Hoje estarás comigo no Paraíso', merece bem que tenhamos uma confiança ilimitada nele. São Francisco de Sales confessou que, se considerasse apenas a sua miséria, mereceria o inferno; mas, cheio de humilde confiança na misericórdia de Deus e nos méritos de Jesus Cristo, esperava firmemente compartilhar a felicidade dos eleitos. 'E o que Nosso Senhor faria com sua vida eterna' - disse ele - 'se não fosse dá-la a nós, pobres, pequenas e insignificantes criaturas que somos, que não temos outra esperança senão a sua bondade? Bendito seja Deus! Tenho esta firme confiança no fundo do meu coração, de que viveremos eternamente com Deus. Um dia estaremos todos unidos no Céu. Tenham coragem; em breve estaremos lá!'

'Devemos' - disse ele também - 'morrer entre dois travesseiros: um, da humilde confissão de que não merecemos nada além do inferno; o outro, da confiança total de que Deus, em sua misericórdia, nos dará o paraíso'. Tendo encontrado um dia um senhor que estava cheio de medo excessivo dos julgamentos de Deus, ele lhe disse: 'Aquele que tem um desejo verdadeiro de servir a Deus e evitar o pecado não deve, de forma alguma, permitir-se ser atormentado pelo pensamento da morte e do julgamento. Se eles devem ser temidos, não é com aquele medo que desanima e deprime o vigor da alma, mas com um medo temperado pela confiança e, portanto, salutar. Espere em Deus: quem espera nele nunca será confundido'.

Lemos na Vida de São Filipe Néri que, tendo ido um dia ao Convento de Santa Marta, em Roma, uma das religiosas, chamada Escolástica, desejou falar com ele em particular. Essa senhora estava há muito tempo atormentada por um pensamento de desespero, que não ousava revelar a ninguém; mas, cheia de confiança no santo, resolveu abrir seu coração a ele. Quando ela se aproximou dele, antes que tivesse tempo de dizer uma palavra, o homem de Deus disse-lhe com um sorriso: 'Você está muito enganada, minha filha, ao acreditar que está destinada às chamas eternas: o Paraíso pertence a você!' 'Não consigo acreditar, padre!' - respondeu ela com um profundo suspiro. 'Você não acredita? Isso é loucura da sua parte, você verá. Diga-me, Escolástica, por quem Jesus morreu?' 'Ele morreu pelos pecadores'. 'Então, pois, me diga, você é uma santa? 'Ai de mim!' - respondeu ela chorando, 'sou uma grande pecadora'. 'Portanto, Jesus morreu por você, e certamente foi para abrir o Céu para você. Assim, fica claro que o Céu é seu. Quanto aos seus pecados, você os detesta, não tenho dúvidas'. A boa religiosa ficou comovida com essas palavras. A luz entrou em sua alma, a tentação desapareceu e, a partir daquele momento, aquelas doces palavras - 'o Paraíso é seu!' - a encheram de confiança e alegria.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (CIV)

Capítulo LXIII

Meios de se Evitar o Purgatório - Os Sacramentos - Efeitos Espirituais e Medicinais da Extrema Unção [Unção dos Enfermos]

Indicamos, como quarto meio de satisfação neste mundo, o uso dos sacramentos, e especialmente a recepção santa e cristã dos últimos sacramentos na aproximação da morte.

O Divino Mestre nos adverte no Evangelho para nos prepararmos bem para a morte, a fim de que ela seja preciosa aos seus olhos e a coroação digna de uma vida cristã. Seu amor por nós faz com que Ele deseje ardentemente que deixemos este mundo inteiramente purificados, despojados de toda dívida para com a Justiça Divina; e que, ao comparecermos diante de Deus, sejamos considerados dignos de ser admitidos entre os eleitos, sem necessidade de passar pelo Purgatório. É para esse fim que Ele normalmente nos envia as dores da doença antes da morte e que instituiu os sacramentos, para nos ajudar a santificar os nossos sofrimentos e nos dispor mais perfeitamente a comparecer diante de sua face.

Os sacramentos que recebemos em tempo de doença são três: a Confissão, que podemos receber assim que desejarmos; o Santo Viático e a Extrema Unção, que podemos receber assim que houver perigo de morte. Esta circunstância do perigo de morte deve ser entendida no sentido amplo da palavra. Não é necessário que haja um perigo iminente de morte e que toda a esperança de recuperação esteja perdida; nem mesmo é necessário que o perigo de morte seja certo; basta que seja provável e prudentemente presumido, mesmo quando não há outra enfermidade além da velhice.

Os efeitos dos sacramentos, bem recebidos, correspondem a todas as necessidades, a todos os desejos legítimos dos doentes. Esses remédios divinos purificam a alma de seus pecados e aumentam seu tesouro de graça santificante; fortalecem o doente e o capacitam a suportar seus sofrimentos com paciência, a triunfar sobre os ataques do demônio no último momento e a fazer um generoso sacrifício de sua vida a Deus. Além disso, além dos efeitos que produzem sobre a alma, os sacramentos exercem uma influência salutar sobre o corpo. A extrema-unção, em especial, conforta o doente e alivia os seus sofrimentos; e até mesmo restaura sua saúde, se Deus julgar conveniente para sua salvação.

Os sacramentos são, portanto, para os fiéis, uma ajuda imensa, um benefício inestimável. Não é de se surpreender, portanto, que o inimigo das almas tenha como objetivo principal privá-las de um bem tão grande. Não podendo roubar os sacramentos da Igreja, ele se esforça para mantê-los longe dos doentes, seja fazendo com que eles os negligenciem completamente, seja fazendo com que os recebam tão tarde que percam todos os seus benefícios. Ai de mim! Quantas almas se deixam levar por essa armadilha! Quantas almas, por não receberem prontamente os sacramentos, caem no inferno ou no abismo mais profundo do purgatório!

Para evitar tal desgraça, a primeira preocupação de um cristão, em caso de doença, deve ser pensar nos sacramentos e recebê-los o mais rápido possível. Dizemos que ele deve recebê-los prontamente, enquanto ainda está em posse do uso de suas faculdades, e insistimos nessa circunstância pelas seguintes razões:

(i) Ao receber os sacramentos prontamente, o paciente, ainda com forças suficientes para se preparar adequadamente, obtém todos os frutos deles.

(ii) Ele precisa receber o mais rápido possível a assistência divina, a fim de suportar os seus sofrimentos, vencer a tentação e santificar o tempo precioso da doença.

(iii) É somente recebendo os óleos sagrados a tempo que podemos experimentar os efeitos de uma cura corporal.

E devemos aqui observar um ponto importante: o remédio sacramental da santa unção produz seu efeito sobre o doente da mesma maneira que os remédios médicos. Assemelha-se a um medicamento requintado que auxilia a natureza, na qual ainda se supõe haver um certo vigor; de modo que a extrema-unção não pode exercer uma virtude medicinal quando a natureza tornou-se muito fraca e a vida está quase extinta. Assim, um grande número de pessoas doentes morre porque adia a recepção dos sacramentos até estar em estado terminal; enquanto não é incomum ver aqueles que se apressam em recebê-los se recuperarem totalmente.

Santo Afonso nos fala de um doente que adiou receber a Extrema Unção até que fosse quase tarde demais, pois morreu pouco depois. Deus revelou, diz o santo doutor, que se ele tivesse recebido esse sacramento mais cedo, teria recuperado a saúde. No entanto, o efeito mais precioso dos últimos sacramentos é aquele que eles produzem na alma; eles a purificam dos resquícios do pecado e tiram, ou pelo menos diminuem, sua dívida de punição temporal; eles a fortalecem para suportar o sofrimento de maneira santa; eles a enchem de confiança em Deus e a ajudam a aceitar a morte em união com a de Jesus Cristo.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (CIII)

Capítulo LXII

Meios de se Evitar o Purgatório - A Mortificação Cristã - A Mortificação Cotidiana dos Afazeres Comuns - O Valor de uma Pequena Mortificação Imposta pela Beata Emily de Verceil

O terceiro meio de satisfação neste mundo é a prática da mortificação cristã e da obediência religiosa. Carregamos em nosso corpo a mortificação de Jesus, diz o Apóstolo, para que a vida de Jesus também se manifeste em nossos corpos (2Cor 4, 10). Esta mortificação de Jesus, que o cristão deve carregar em si é, no seu sentido mais amplo, a parte que ele deve assumir nos sofrimentos do seu Divino Mestre, suportando em união com Ele as provações que possa ter de enfrentar nesta vida ou o sofrimento que voluntariamente inflige a si mesmo. A primeira e melhor mortificação é aquela que está ligada aos nossos deveres diários, às dores que temos de suportar, ao esforço que devemos fazer para cumprir adequadamente os deveres do nosso estado e para suportar as contradições de cada dia. Quando São João Berchmans disse que a sua principal mortificação era a vida comum, não disse nada mais do que isto, porque para ele a vida comum abrangia todos os deveres do seu estado.

Além disso, aquele que santifica os deveres e sofrimentos de cada dia e que, assim, pratica a mortificação fundamental, logo avançará e imporá a si mesmo privações e sofrimentos voluntários para escapar das dores da outra vida. As menores mortificações, os sacrifícios mais insignificantes, especialmente quando feitos por obediência, têm grande valor aos olhos de Deus.

A Beata Emily, dominicana e prioresa do mosteiro de Santa Maria em Vercelli, inspirou suas religiosas com um espírito de perfeita obediência em vista do Purgatório. Um dos pontos da Regra proibia as religiosas de beber entre as refeições sem a permissão expressa da superiora. Ora, esta última, sabendo, como vimos, do valor do sacrifício de um copo de água aos olhos de Deus, costumava recusar essa permissão, para dar às suas irmãs a oportunidade de praticar uma mortificação fácil, mas suavizava sua recusa dizendo-lhes para oferecerem sua sede a Jesus, atormentado por uma sede cruel na cruz. Ela então as aconselhava a sofrer essa leve privação com o objetivo de diminuir os seus tormentos nas chamas expiatórias do Purgatório.

Havia em sua comunidade uma irmã chamada Maria Isabel, que era muito leviana, gostava de conversar e de outras distrações externas. A consequência era que ela tinha pouco gosto pela oração, era negligente na recitação do Ofício e só cumpria seu dever principal com as maiores reservas. Assim, ela nunca tinha pressa em ir para o coro e, assim que o ofício terminava, era a primeira a sair. Um dia, enquanto se apressava para sair do coro, ela passou pela cabine da prioresa, que a deteve: 'Onde você vai com tanta pressa, minha boa irmã?' - disse ela - 'e por que você está tão ansiosa para sair antes das outras irmãs?' A irmã, pega de surpresa, primeiro observou um silêncio respeitoso, depois reconheceu com humildade que o Ofício era cansativo para ela e parecia muito longo. 'Tudo bem' - respondeu a prioresa - 'mas se lhe custa tanto cantar louvores a Deus sentada confortavelmente no meio de suas irmãs, o que você fará no Purgatório, onde será obrigada a permanecer no meio das chamas? Para poupá-la dessa terrível provação, minha filha, ordeno que você saia do seu lugar a partir de agora por último'. 

A irmã submeteu-se com simplicidade, como uma criança verdadeiramente obediente; ela foi recompensada. O desgosto que ela havia experimentado até então pelas coisas de Deus transformou-se em devoção e alegria espiritual. Além disso, como Deus revelou à Beata Emily, tendo morrido algum tempo depois, ela obteve uma grande diminuição do sofrimento que a esperava na outra vida. Deus contou como tantas horas no Purgatório foram poupadas pelas horas que ela passou em oração por meio de um espírito de obediência.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 14 de junho de 2025

MEDITAÇÃO SOBRE O INFERNO


Todo o Inferno está nestas palavras de Jesus Cristo: 'Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno'.

1. O Inferno é a separação, a perda de Deus - 'Afasta-te de mim, pecador'. É assim que Deus repele para longe de si a alma pecadora. É a perda de Deus, a perda da suma beleza, da suma bondade, do sumo bem. Enquanto a nossa alma estiver presa no cárcere da carne, não poderá nunca compreender a imensidade desta desgraça que, na frase dos santos, constitui o inferno dos infernos.

2. O Inferno é a maldição de Deus - 'Afasta-te pecador maldito', é tal a maldição eficaz de um Deus todo-poderoso. Se é terrível a maldição de um pai, de uma mãe, o que será a maldição de Deus? Pecador maldito, maldito no corpo, maldito na alma. Olhos, língua, mãos, pés, inteligência, coração, vontade, tudo é maldito, porque tudo serviu de instrumento ao pecado.

3. O Inferno é o fogo - 'Afasta-te pecador maldito, para o fogo'. Quando os profetas falam do Inferno, logo se lhes apresenta à imaginação o mar, o mar sem limites e sem fundo, e os condenados, nadando e mergulhando neste abismo de fogo. O fogo os envolve, penetra-os, circula em suas veias, insinua-se até à medula dos ossos.

4. O Inferno é a eternidade  - 'Afasta-te pecador maldito, para o fogo'. A eternidade... quem pode compreendê-la! É um tempo que não acaba. Mil anos, milhões de anos, mil milhões de anos. Contai as gotas de água do oceano, os grãos de areia das praias, as folhas das árvores... a eternidade tem mais anos, mais séculos. Sempre! Nunca! Sempre queimar, sempre sofrer! Nunca o menor alívio, a menor esperança!

Se os condenados que estão no Inferno pudessem voltar à Terra, o que fariam? Procurariam outra vez a ocasião do pecado, as danças, os espetáculos, as tabernas, as casas de perdição? Não! Correriam para a igreja, ao pé do altar do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora, ao pé do confessor principalmente, para alcançar o perdão dos seus pecados. O que os condenados não podem mais, vós o podeis. Não estais no Inferno, mas talvez estejais no caminho do Inferno. Quanto antes, voltai para trás; talvez amanhã seja tarde.

(Excertos da obra 'O Pequeno Missionário', do Pe. Guilherme Vaessen, 1953)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

A ÚNICA CERTEZA DA MORTE


Certa ocasião, o filósofo grego Diógenes, famoso por sua maneira excêntrica, mexia numa pilha de caveiras quando o Rei Alexandre, o Grande, da Macedônia lhe perguntou o que procurava. Diógenes então respondeu: 'Procuro o crânio do seu pai, o Rei Filipe'. Tal resposta calou Alexandre pois, com isso, o filósofo estava a dizer que na morte todos somos iguais.


No enterro do Imperador Francisco José do Império Austro-Húngaro, ao se dirigir o féretro para o convento aonde o enterrariam, o cortejo encontrou ali as portas fechadas. Ao baterem à porta os que levavam os restos mortais do imperador, ouviram uma voz em resposta: 'Quem vem lá?' Ao que responderam: 'O Imperador da Áustria'." E ouviram em resposta: 'Não o conhecemos'. Seguiu-se outra batida à porta e a mesma pergunta: 'Quem vem lá?' - 'O rei da Hungria'. E novamente a resposta: 'Não o conhecemos'. Sucessivas tentativas de entrar no convento foram repelidas pelas diferentes respostas nomeando os inúmeros títulos do falecido diante a pergunta: 'Quem vem lá?', sempre com a mesma resposta: 'Não o conhecemos'. Até que finalmente, os de fora responderam: 'Um pobre mortal'. Diante desta resposta, as portas se abriram e o imperador pôde ser enterrado, para mostrar que títulos e honras humanas nada valem diante da morte e do julgamento de Deus, a não ser o bem ou o mal que cada um tenha praticado nessa vida.


sábado, 31 de maio de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (CII)

Capítulo CXI

Meios de se Evitar o Purgatório - Santa Margarida Maria e as Almas Sofredoras - As Consolações de Deus para com as Almas Caridosas

Entre as revelações de Nosso Senhor a Margarida Maria sobre o Purgatório, há uma delas que mostra como são particularmente severas as punições infligidas pelas faltas contra a caridade. 'Um dia' - relata Monsenhor Languet - 'Nosso Senhor mostrou à sua serva várias almas privadas da assistência da Santíssima Virgem e dos santos e até mesmo das visitas de seus anjos da guarda; isso era em castigo por sua falta de união com seus superiores e por certos mal-entendidos. Muitas dessas almas estavam destinadas a permanecer por muito tempo em chamas terríveis. A abençoada irmã reconheceu também muitas almas que haviam vivido na religião e que, por causa de sua falta de união e caridade com seus irmãos, foram privadas de seus sufrágios e não receberam nenhum alívio'.

Se é verdade que Deus castiga tão severamente aqueles que falharam na caridade, Ele será infinitamente misericordioso para com aqueles que praticaram essa virtude tão querida ao seu Coração. Mas, antes de tudo, Ele nos diz pela boca do seu Apóstolo, São Pedro, que tenhamos uma caridade mútua constante entre nós, pois a caridade cobre uma multidão de pecados (1Pd 4,8).

Ouçamos novamente Monsenhor Languet na Vida de Margarida Maria. É o caso da Madre Grefiber, diz ele, que, nas memórias que escreveu após a morte da abençoada irmã, atesta o seguinte fato. 'Não posso omitir a causa de certas circunstâncias particulares que manifestam a verdade de uma revelação feita nesta ocasião à serva de Deus. O pai de uma das noviças foi a causa disso. Este senhor havia falecido algum tempo antes e fora recomendado às orações da comunidade. A caridade da Irmã Margarida, então Mestra das Noviças, a levou a rezar mais especialmente por ele. Alguns dias depois, a noviça foi recomendá-lo às suas orações. 'Minha filha', disse sua santa mestra - 'fique perfeitamente tranquila; seu pai já está em condições de rezar por nós. Pergunte a sua mãe qual foi a ação mais generosa que seu pai realizou antes de morrer; essa ação lhe rendeu um julgamento favorável de Deus'.

'A ação a que ela se referia era desconhecida para a noviça; ninguém em Paray sabia das circunstâncias de uma morte que havia ocorrido tão longe daquela cidade. A noviça só viu sua mãe muito tempo depois, no dia de sua profissão. Ela então perguntou qual foi a ação cristã generosa que seu pai realizou antes de morrer. 'Quando o Santo Viático lhe foi levado' - respondeu sua mãe - 'o açougueiro juntou-se àqueles que acompanhavam o Santíssimo Sacramento e colocou-se em um canto da sala. O doente, ao percebê-lo, chamou-o pelo nome, disse-lhe para se aproximar e, apertando-lhe a mão com uma humildade incomum em pessoas de sua posição, pediu perdão por algumas palavras duras que lhe dirigira de vez em quando e desejou que todos os presentes fossem testemunhas da reparação que ele lhe fazia'. A irmã Margarida soube apenas por Deus o que havia acontecido, e a noviça soube, por isso, da verdade consoladora do que ela lhe havia dito a respeito do estado feliz de seu pai na outra vida. Acrescentemos que Deus, por meio dessa revelação, nos mostrou mais uma vez como a caridade cobre uma multidão de pecados e nos fará encontrar misericórdia no dia da justiça.

A bem-aventurada [santa] Margarida Maria recebeu de nosso Divino Senhor outra comunicação relativa à caridade. Ele lhe mostrou a alma de uma pessoa falecida que teve de sofrer apenas um leve castigo e lhe disse que, entre todas as boas obras que essa pessoa havia realizado no mundo, Ele havia levado em consideração especial certas humilhações a que ela se submetera no mundo, porque as havia sofrido com espírito de caridade, não apenas sem murmurar, mas mesmo sem sequer falar delas. Nosso Senhor acrescentou que, em recompensa, Ele lhe havia dado um julgamento brando e muito favorável.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (CI)

Capítulo CX

Meios de se Evitar o Purgatório - Caridade e Misericórdia - Palavras das Sagradas Escrituras - São Pedro Damião e o Exemplo de Caridade de João Patrizzi para com os Pobres

Acabamos de ver o primeiro meio de se evitar o Purgatório, uma terna devoção a Maria; o segundo consiste na caridade e em obras de misericórdia de todo tipo. Muitos pecados lhe foram perdoados, disse Nosso Senhor, falando de Madalena, porque ela amou muito (Lc 7,47). Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia (Mt 5,1). Não julgueis, e não sereis julgados. Não condeneis, e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoado (Lc 6,37). Se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai Celestial vos perdoará também as vossas ofensas (Mt 6, 14). Dai a todo aquele que vos pedir; dai, e dar-se-vos-á; porque com a mesma medida com que medirdes, vós sereis medidos (Lc 6, 30.38). Fazei-vos amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar [quando deixardes este mundo], eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16,9). E o Espírito Santo diz pela boca do Profeta Real [Davi]: 'Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará' (Sl 40,2).

Todas essas palavras indicam claramente que por nossa Caridade, Misericórdia e Benevolência, seja para com os pobres ou pecadores, para com nossos inimigos e aqueles que nos ferem, ou para com os falecidos que estão em grande necessidade de nossa assistência, encontraremos misericórdia no tribunal do Soberano Juiz. Os ricos deste mundo têm muito a temer. 'Ai de vós, que sois ricos - diz o Filho de Deus - 'porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós que estais fartos, porque tereis fome. Ai de vocês que agora riem, porque hão de se lamentar e chorar (Lc 6,24-25). Certamente, essas palavras de Deus deveriam fazer com que os ricos eleitores deste mundo tremessem; mas, se quisessem, a própria riqueza poderia se tornar para eles um grande meio de salvação; eles poderiam redimir seus pecados e pagar suas terríveis dívidas por meio de abundantes esmolas. 

Que o meu conselho, ó rei, te seja agradável, disse Daniel ao orgulhoso Nabucodonosor, e redime os teus pecados com esmolas e as tuas iniqüidades com obras de misericórdia para com os pobres (Dn 4,24). Pois a esmola livra de todo pecado e da morte, e não permite que a alma entre em trevas. A esmola será uma grande confiança diante do Deus Altíssimo para todos os que a derem, disse Tobias a seu filho (Tb 4,11-12). Nosso Salvador confirma tudo isso e vai ainda mais longe quando diz aos fariseus: 'Mas, quanto ao mais, dai esmolas, e eis que tudo vos será limpo' (Lc 11,41]. Quão grande, então, é a insensatez dos ricos, que têm em mãos um meio tão fácil de garantir seu bem-estar espiritual futuro e, ainda assim, negligenciam seu uso! Que loucura não fazer bom uso dessa fortuna da qual terão de prestar contas a Deus! Que tolice ir arder no Inferno ou no Purgatório e deixar uma fortuna para herdeiros avarentos e ingratos, que não concederão ao falecido nem uma oração, uma lágrima ou mesmo um pensamento passageiro! Mas, ao contrário, quão felizes são os cristãos que entendem que são apenas os distribuidores, diante de Deus, dos bens que receberam dele, que pensam apenas em dispor deles de acordo com os desígnios de Jesus Cristo, a quem devem prestar contas e, em suma, que fazem uso deles apenas para obter amigos, defensores e protetores na eternidade!

São Pedro Damião, em um de seus tratados, relata o seguinte fato. Um senhor romano, chamado João Patrizzi, morreu. Sua vida, embora cristã, tinha sido como a da maioria dos ricos, muito diferente da do seu Divino Mestre, pobre, sofredor, coroado de espinhos. Felizmente, porém, ele tinha sido muito caridoso com os pobres, a ponto de doar suas roupas para vesti-los. Alguns dias após sua morte, um santo sacerdote, estando em oração, foi arrebatado em êxtase e transportado para a Basílica de Santa Cecília, uma das mais famosas de Roma. Lá ele viu várias virgens celestiais, Santa Cecília, Santa Inês, Santa Ágata e outras, agrupadas em torno de um trono magnífico, no qual estava sentada a Rainha do Céu, cercada por anjos e espíritos abençoados.

Naquele momento, apareceu uma pobre mulher, vestida com uma roupa miserável, mas com uma capa de pele cara sobre os ombros. Ela se ajoelhou humildemente aos pés da Rainha Celestial e, unindo as mãos, com os olhos cheios de lágrimas, disse com um sorriso: 'Mãe de Misericórdia, em nome de tua inefável bondade, peço-te que tenhas piedade do infeliz João Patrizzi, que acaba de morrer e que sofre cruelmente no Purgatório'. Três vezes ela repetiu a mesma oração, cada vez com mais fervor, mas sem receber nenhuma resposta. 'A senhora sabe muito bem, ó rainha misericordiosa, que eu sou aquela mendiga que, na entrada de sua grande basílica, pedia esmolas em pleno inverno, sem nada para me cobrir além de meus trapos. Ó como eu tremia de frio! Então João, a quem eu pedia em nome de Nossa Senhora, tirou do seu ombro essa pele cara e a deu a mim, privando-se dela em meu favor. Será que um ato de caridade tão grande, realizado em seu nome, ó Maria, não merece alguma indulgência?'

Diante desse apelo comovente, a Rainha do Céu lançou um olhar de amor para a mulher suplicante. 'O homem por quem você reza' - respondeu ela' - 'está condenado por muito tempo ao mais terrível sofrimento, por causa de seus numerosos pecados. Mas como ele tinha duas virtudes especiais, a misericórdia para com os pobres e a devoção aos meus altares, condescenderei em lhe dar a minha ajuda'. Diante dessas palavras, a santa assembleia testemunhou sua alegria e gratidão para com a Mãe de Misericórdia. Patrizzi foi trazido: ele estava pálido, desfigurado e carregado de correntes, que lhe haviam causado feridas profundas. A Virgem Santa olhou para ele por um momento com terna compaixão, depois ordenou que suas correntes fossem retiradas e que lhe fossem colocadas vestes de glória, para que ele pudesse se juntar aos santos e espíritos abençoados que rodeavam o seu trono. Essa ordem foi executada imediatamente, e toda visão se desvaneceu. O santo sacerdote que teve essa visão não deixou, a partir daquele momento, de pregar a clemência de Nossa Senhora para com as pobres almas sofredoras, especialmente para com aqueles que haviam se dedicado a seu serviço e que tinham grande caridade para com os pobres.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (C)

Capítulo LIX

Meios de se Evitar o Purgatório - Privilégios do Santo Escapulário: Preservação dos Tormentos do Inferno e Libertação do Primeiro Sábado - Exemplos do Cumprimento destas Promessas

De acordo com o que dissemos, a Santíssima Virgem anexou dois grandes privilégios ao Santo Escapulário; por sua vez, os Soberanos Pontífices acrescentaram a eles as mais ricas indulgências. Não falaremos aqui sobre as duas indulgências, mas consideramos útil dar a conhecer esses dois preciosos privilégios, um sob o nome de Preservação, o outro sob o nome de Libertação.

O primeiro é a isenção dos tormentos do inferno: In hoc moriens aeternum non patietur incendium - Aquele que morrer usando este hábito não sofrerá o fogo do inferno. É evidente que aquele que morrer em pecado mortal, mesmo usando o escapulário, não estará isento da condenação; e não é esse o significado da promessa de Maria. Essa boa Mãe prometeu misericordiosamente dispor todas as coisas de tal modo que aquele que morrer usando esse santo hábito receberá uma graça eficaz digna de confessar e lamentar as suas faltas; ou, se for surpreendido por uma morte súbita, terá tempo e vontade para fazer um ato de perfeita contrição. Poderíamos encher um volume com os eventos milagrosos que comprovam o cumprimento dessa promessa. Basta relatar alguns deles.

O Venerável [Santo] Padre de la Colombiere nos conta que uma jovem, que era muito piedosa e usava o santo escapulário, teve a infelicidade de se desviar do caminho da virtude. Em consequência da má literatura e de companhias perigosas, ela caiu nas maiores desordens e estava prestes a perder a sua honra. Em vez de se voltar para Deus e recorrer à Santíssima Virgem, que é o refúgio dos pecadores, ela se abandonou ao desespero. O demônio logo sugeriu um remédio para os seus males - o terrível remédio do suicídio, que poria fim às suas misérias temporais para mergulhá-la em tormentos eternos. Ela correu para um rio e, ainda usando o escapulário, jogou-se na água. Mas - ó maravilha de Deus! - ela flutuou em vez de afundar e, assim, não conseguiu encontrar a morte que procurava. Um pescador, que a viu, apressou-se em ajudá-la, mas a infeliz criatura o impediu: arrancando o escapulário, ela o jogou longe de si e afundou imediatamente. O pescador não conseguiu salvá-la, mas encontrou o escapulário e reconheceu que essa vestimenta sagrada, enquanto havia sido usada, havia impedido a pecadora de cometer suicídio.

No hospital de Toulon, havia um oficial, um homem muito ímpio, que se recusava a ver um padre. A morte se aproximava e ele caiu em uma espécie de letargia. Os assistentes aproveitaram esse fato para colocar um escapulário em seu pescoço, sem que ele soubesse. Ao se recuperar logo depois, ele gritou com fúria: 'Por que vocês colocaram fogo em mim, um fogo que me queima? Tirem-no daqui, tirem-no daqui!' Então, invocaram a Santíssima Virgem e tentaram novamente colocar nele o escapulário. Ele percebeu isso, arrancou-o com raiva, jogou-o longe de si e, com uma horrível blasfêmia nos lábios, expirou.

O segundo privilégio, o Sabatino ou da Libertação, consiste em ser liberado do Purgatório pela Santíssima Virgem no primeiro sábado após a morte. Para desfrutar desse privilégio, certas condições devem ser cumpridas. Primeiro, observar a castidade de nosso estado. Segundo, recitar o Pequeno Ofício da Santíssima Virgem. Aqueles que recitam o Ofício Canônico satisfazem essa condição. Aqueles que não sabem ler devem, em vez de rezar o Ofício, observar os jejuns prescritos pela Igreja e abster-se de carne em todas as quartas-feiras, sextas-feiras e sábados. Terceiro, em caso de necessidade, a obrigação de recitar o Ofício, a abstinência e o jejum podem ser comutados em outras obras piedosas, por aqueles que têm o poder de conceder tais dispensas. Esse é o privilégio Sabatino ou da Libertação, com as condições necessárias para desfrutá-lo. Se nos lembrarmos do que foi dito sobre os rigores do Purgatório e sua duração, veremos que esse privilégio é muito precioso e suas condições muito fáceis des erem aplicadas. Sabemos que foram levantadas dúvidas quanto à autenticidade da Bula Sabatina, mas, além da tradição constante e da prática piedosa dos fiéis, o grande Papa Bento XIV, cuja eminente erudição e moderação de opiniões são bem conhecidas, pronunciou-se a seu favor.

Em Otranto, uma cidade do reino de Nápoles, uma senhora de alta posição teve grande prazer em assistir aos sermões de um padre carmelita que era um grande promotor da devoção a Maria. Ele assegurava a seus ouvintes que todos os cristãos que usassem piedosamente o escapulário e cumprissem as condições pré-estabelecidas veriam a Mãe Divina em sua partida deste mundo, e que essa grande consoladora dos aflitos viria no sábado após a morte para libertá-los do Purgatório e levá-los para a morada dos bem aventurados. Impressionada com essas preciosas vantagens, essa senhora imediatamente vestiu a túnica da Santíssima Virgem, firmemente decidida a observar fielmente as regras da Confraria. Sua piedade progrediu rapidamente. Ela rezava a Maria dia e noite, depositava nela toda a sua confiança e lhe prestava todas as homenagens possíveis. Entre outros favores que pediu, implorou que morresse em um sábado, para que pudesse ser libertada mais cedo do Purgatório. 

Suas preces foram ouvidas. Alguns anos depois, tendo adoecido, apesar da opinião contrária de seu médico, ela declarou que sua doença a levaria ao túmulo. 'Eu bendigo a Deus' - acrescentou - 'na esperança de estar logo unida a Ele no Céu'. Sua doença progrediu tão rapidamente que os médicos declararam unanimemente que ela estava à beira da morte e que não conseguiria viver até o fim do dia, que era quarta-feira. 'Vocês estão novamente enganados' - disse a senhora doente - 'viverei mais três dias e não morrerei até sábado'. O evento justificou suas palavras. Considerando os dias de sofrimento que lhe restavam como um tesouro inestimável, ela os aproveitou para purificar sua alma e aumentar seus méritos. Quando chegou o sábado, ela entregou a sua alma nas mãos do Criador.

Sua filha, que também era muito piedosa, estava inconsolável em seu luto. Enquanto orava em seu oratório pela alma de sua querida mãe e derramava lágrimas abundantes, um grande servo de Deus, que era habitualmente favorecido com comunicações sobrenaturais, foi até ela e disse: 'Pare de chorar, minha filha, ou melhor, deixe que sua dor se transforme em alegria. Venho assegurar-lhe, da parte de Deus, que hoje, sábado, graças aos privilégios concedidos aos membros da Confraria do Escapulário, sua mãe foi para o céu e está entre os eleitos. Fiquem consolados e abençoem a Virgem Augustíssima, a Mãe da Misericórdia'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 26 de abril de 2025

VERSUS: ORAÇÕES PARA MORRER COM DEUS

 

ORAÇÃO DA CONFIANÇA PARA MORRER COM DEUS

Ó Deus, meu Pai, Senhor da vida e da morte, que por decreto imutável, em justo castigo de nossas culpas, estabelecestes que todos os homens tem que morrer. Que se cumpram os vossos justos decretos: que os nossos corpos pecadores se transformem em pó mas, pela vossa grande misericórdia, recebei as nossas almas imortais, e quando os nossos corpos ressuscitarem, levai-os para o vosso Reino, para que vos amem e vos louvem para sempre! Eis-me aqui prostrado diante de Vós! Abomino de todo coração as minhas culpas passadas, pelas quais mereci mil vezes a morte. De bom grado morrerei, Senhor, no tempo, no lugar e com todas as suas angústias, tristezas e dores que Vós quiserdes. Aceito esta morte como expiação dos meus pecados e como prova da minha submissão à Vossa Santa Vontade. E, enquanto espero o dia da minha morte, dedicarei em todos os dias de vida que me restam para lutar contra os meus defeitos e crescer no vosso amor, para quebrar todos os laços que atam o meu coração às criaturas e, assim, preparar a minha alma para comparecer à vossa presença. E, neste firme propósito, abandono-me desde agora e sem reservas nos braços da vossa Paternal Providência. Amém.


ORAÇÃO DA PERSEVERANÇA PARA MORRER COM DEUS

'Lembra-te de mim, Senhor, quando estiveres no teu reino', disse o bom ladrão em sua última hora.
Lembrai-vos também de mim, Senhor, em meus últimos momentos.
Ajudai-me nessa hora com o poder dos vossos sacramentos e graças.
Que vossas palavras de absolvição desçam sobre mim.
Que eu seja ungido e selado pelos santos óleos.
Que o vosso Corpo me alimente e que eu me lave com o vosso Sangue divino. 
Que Maria, minha doce Mãe, se incline sobre mim.
Que meu Anjo da Guarda pronuncie aos meus ouvidos palavras de paz. 
Que meus santos de devoção intercedam por mim. 
Com eles e por meio de suas orações, dai-me, Senhor, o dom da perseverança final.
Que eu possa morrer, como desejei viver,
em vossa fé, em vossa Igreja, ao vosso serviço e em vosso Amor. Amém.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIX)

Capítulo LVIII

Meios de se Evitar o Purgatório - Devoção Especial à Santíssima Virgem - O Uso Cotidiano do Escapulário do Carmo

Um Servo de Deus resume estes meios e os reduz a dois, dizendo: 'Purifiquemos as nossas almas pela água e pelo fogo'; isto é, pela água das lágrimas e pelo fogo da caridade e das boas obras. De fato, podemos classificá-los todos nestes dois exercícios, e isto é conforme à Sagrada Escritura, onde vemos que as almas são limpas das suas manchas e purificadas como o ouro no crisol. Mas como devemos procurar acima de tudo ser práticos, sigamos o método que indicamos e que foi praticado, com tanto sucesso, pelos santos e por todos os cristãos fervorosos.

Em primeiro lugar, para obter uma grande pureza de alma e, por conseguinte, ter poucos motivos para temer o Purgatório, devemos nutrir uma grande devoção para com a Santíssima Virgem Maria. Esta boa Mãe ajudará de tal modo os seus queridos filhos a purificar as suas almas e a abreviar o seu Purgatório, que eles poderão viver com a maior confiança. Ela deseja mesmo que eles não se preocupem com este assunto e que não se deixem desanimar por um medo excessivo, como ela própria se dignou declarar ao seu servo Jerônimo Carvalho, de quem já falamos. 'Tem confiança, meu filho' - disse-lhe ela - 'Eu sou a Mãe de Misericórdia para os meus queridos filhos no Purgatório, assim como para os que ainda vivem na terra'. Nas Revelações de Santa Brígida, lemos algo semelhante: 'Eu sou' - disse-lhe a Santíssima Virgem - 'a Mãe de todos aqueles que estão no lugar de expiação; as minhas orações mitigam os castigos infligidos a eles por suas faltas' (Livro 4, cap. 1).

Aqueles que usam o santo escapulário têm um direito especial à proteção de Maria. A devoção do santo escapulário, ao contrário da do Rosário, não consiste na oração, mas na prática piedosa de usar uma espécie de hábito, que é como a veste da Rainha do Céu. O escapulário de Nossa Senhora do Carmo, de que aqui falamos, tem a sua origem no século XIII, e foi pregado pela primeira vez pelo Beato (São) Simão Stock, quinto Geral da Ordem do Carmo. Este célebre servo de Maria, nascido em Kent, na Inglaterra, no ano de 1165, quando ainda era jovem, retirou-se para uma floresta solitária para se dedicar à oração e à penitência. Escolheu como morada o oco de uma árvore, ao qual fixou um crucifixo e uma imagem da Santíssima Virgem, a quem honrava como sua Mãe e não cessava de invocar com o mais terno afeto. Durante doze anos, suplicou-lhe que lhe dissesse o que poderia fazer de mais agradável ao seu Divino Filho, quando a Rainha do Céu lhe disse que entrasse na Ordem do Carmo, que era particularmente dedicada ao seu serviço. Simão obedeceu e, sob a proteção de Maria, tornou-se um religioso exemplar e o ornamento da Ordem do Carmo, da qual foi eleito Superior Geral em 1245.

Um dia - era o dia 16 de julho de 1251 - a Virgem Santíssima apareceu-lhe rodeada por uma multidão de espíritos celestes e, com o rosto radiante de alegria, apresentou-lhe um escapulário de cor castanha, dizendo: 'Recebe, meu querido filho, este escapulário da tua Ordem; é o distintivo da minha Confraria e o penhor de um privilégio que obtive para ti e para os teus irmãos do Carmo. Aqueles que morrerem devotamente vestidos com este hábito serão preservados do fogo eterno. É o sinal da salvação, uma salvaguarda no perigo, um penhor de paz e de proteção especial, até ao fim dos tempos'. O feliz ancião divulgava por toda a parte o favor que recebera, mostrando o escapulário, curando os doentes e fazendo outros milagres em prova da sua maravilhosa missão. Imediatamente, Eduardo I, rei de Inglaterra e Luís IX, rei de França e, depois do seu exemplo, quase todos os soberanos da Europa, bem como um grande número dos seus súditos, receberam o mesmo hábito. A partir desse momento começa a célebre Confraria do Escapulário, que pouco depois foi erigida canonicamente pela Santa Sé.

Não contente com a concessão deste primeiro privilégio, Maria fez outra promessa em favor dos membros da Confraria do Escapulário, assegurando-lhes uma rápida libertação dos sofrimentos do Purgatório. Cerca de cinquenta anos após a morte do Beato Simão, o ilustre Pontífice João XXII, quando estava a rezar de manhã cedo, viu a Mãe de Deus aparecer rodeada de luz e com o hábito do Monte Carmelo. Entre outras coisas, ela lhe disse: 'Se entre os Religiosos ou membros da Confraria do Carmo houver alguns que, por causa das suas faltas, estejam condenados ao Purgatório, eu descerei para o meio deles como uma terna Mãe no sábado depois da sua morte; livrá-los-ei e conduzi-los-ei ao monte santo da vida eterna'. São estas as palavras que o Pontífice coloca nos lábios de Maria na sua célebre Bula de 3 de março de 1322, vulgarmente chamada Bula Sabatina. Ele conclui com estas palavras: 'Aceito, pois, esta santa indulgência; ratifico-a e confirmo-a na terra, como Jesus Cristo graciosamente a concedeu no céu pelos méritos da Santíssima Virgem'. Este privilégio foi depois confirmado por um grande número de Bulas e Decretos dos Soberanos Pontífices.

Tal é a devoção do santo escapulário. É sancionada pela prática das almas piedosas em todo o mundo cristão, pelo testemunho de vinte e dois papas, pelos escritos de um número incalculável de autores piedosos, e por milagres multiplicados durante os últimos 600 anos; de modo que, como nos diz o ilustre Bento XIV: 'aquele que ousa por em causa a validade da devoção do escapulário ou negar os seus privilégios, seria um orgulhoso desdenhador da religião'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 22 de março de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVIII)

 

Capítulo LVII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Estímulo à Devoção e Probabilidade do Purgatório - Meios de se Evitar o Purgatório - Conselho de Santa Catarina de Gênova

Se os santos religiosos passam pelo Purgatório, embora não fiquem retidos nele, não devemos temer que não só passemos por ele, mas também permaneçamos por mais ou menos tempo? Podemos viver numa segurança que seria, para dizer o mínimo, muito imprudente? A nossa fé e a nossa consciência dizem-nos que o nosso medo do Purgatório é bem fundamentado. Vou ainda mais longe, caro leitor, e digo que, com um pouco de reflexão, tu mesmo deves reconhecer que é muito provável, e quase certo, que irás para o Purgatório. Não é verdade que, ao deixar esta terra, a tua alma entrará numa dessas três moradas que a fé nos indica: Inferno, Céu ou Purgatório? Ireis para o Inferno? Não é provável, porque tendes horror ao pecado mortal, e por nada no mundo o cometeríeis, nem o teríeis na consciência depois de o terdes cometido. Ireis para o Céu? Respondeis imediatamente que vos julgais indignos de tal favor. Resta, então, o Purgatório; e deveis reconhecer que é muito provável, quase certo, que ireis para esse lugar de expiação.

Ao colocar esta grave verdade diante dos vossos olhos, não penseis, caro leitor, que queremos assustar-vos, ou tirar-vos toda a esperança de entrar no Céu sem o Purgatório. Pelo contrário, esta esperança deve permanecer sempre profundamente impressa nos nossos corações, pois é o espírito de Jesus Cristo, que não deseja de modo algum que os seus discípulos tenham necessidade de uma expiação futura. Ele até instituiu sacramentos e estabeleceu todos os tipos de meios para nos ajudar a fazer plena satisfação neste mundo. Mas esses meios são muitas vezes negligenciados; e é especialmente por um temor salutar que somos estimulados a fazer uso deles.

Ora, quais são os meios que devemos empregar para evitar, ou pelo menos abreviar, o nosso Purgatório e atenuar o seu rigor? São, evidentemente, os exercícios e as boas obras que mais nos ajudam a satisfazer as nossas faltas neste mundo e a encontrar misericórdia diante de Deus, a saber: a devoção à Santíssima Virgem Maria e a fidelidade no uso do seu escapulário; a caridade para com os vivos e os mortos; a mortificação e a obediência; a piedosa recepção dos sacramentos, especialmente quando se aproxima a morte; a confiança na Divina Misericórdia; e, finalmente, a santa aceitação da morte em união com a morte de Jesus na cruz.

Estes meios são suficientemente poderosos para nos preservar do Purgatório, mas é preciso fazer uso deles. Ora, para empregá-los seriamente e com perseverança, uma condição é necessária: formar uma firme resolução de satisfazer [o purgatório pessoal] neste mundo e não no outro. Essa resolução deve ser baseada na fé, que nos ensina quão fácil é a satisfação nesta vida, quão terrível é o Purgatório. Enquanto estiveres no caminho com o teu adversário, diz Jesus Cristo, faze um acordo com ele, para que, porventura, o teu adversário não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e sejas lançado na prisão. Em verdade vos digo que não sairás dali até que pagueis o último ceitil (Mt 5,25).

Reconciliarmo-nos com o nosso adversário no caminho significa, na boca de Nosso Senhor, apaziguar a Justiça Divina, e satisfazermo-nos no caminho da vida, antes de chegarmos àquele fim imutável, àquela eternidade onde toda a penitência é impossível, e onde teremos de nos submeter a todos os rigores da Justiça. Não é este conselho do nosso Divino Salvador muito sábio?

Poderemos comparecer diante do tribunal de Deus, carregados de uma dívida enorme, que poderíamos tão facilmente ter saldado com algumas obras de penitência, e que depois teremos de pagar com anos de tormento? 'Aquele que se purifica de suas faltas na vida presente' - diz Santa Catarina de Gênova - 'satisfaz com um centavo uma dívida de mil ducados; e aquele que espera até a outra vida para saldar suas dívidas, consente em pagar mil ducados por aquilo que antes poderia ter pago com um centavo'. Devemos, portanto, começar com a firme e eficaz resolução de dar satisfação neste mundo; essa é a pedra fundamental. Uma vez lançado esse alicerce, devemos empregar todos os meios acima enumerados.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.