VII
DOS PRECEITOS RELATIVOS À ESPERANÇA
Existe na lei divina algum preceito relativo à virtude da Esperança ou ao dom de temor?
Sim, ainda que, como os relativos à fé, têm em seus princípios um caráter especial que os distingue dos propriamente chamados mandamentos da lei de Deus (XXII, 1,2)*.
Que caráter ou forma têm os preceitos da fé e esperança considerados como preâmbulo da lei?
Que não se deram com caráter de preceitos; os da fé deram-se em forma de enunciados, e os de esperança e temor em forma de promessas e ameaças (Ibid).
Por que se deram desse modo?
Porque eram destinados a preparar convenientemente os homens para receber com fruto os mandamentos (Ibid).
Por que razão?
Porque, antes de promulgar a lei, era necessário, primeiramente, que o homem reconhecesse e acatasse o seu Autor, e que, depois, se lhe propusesse o quadro de recompensas e castigos como incentivo para observá-la; o primeiro se conseguiu mediante os preceitos relativos à fé, o segundo mediante os relativos à esperança e ao temor (Ibid).
Quais são os que propriamente constituem a substância da lei?
Suposta a preparação de que falamos, os que dão regras para ordenar e governar a vida, especialmente no que se refere à virtude da Justiça.
Logo, são os mesmos que formam o Decálogo?
Sim, Senhor.
Fazem parte do Decálogo os preceitos relativos à fé e à esperança?
Propriamente não, Senhor; pois o seu objeto primitivo foi o de preparar os homens para o advento e promulgação do Decálogo, se bem que, mais tarde, quando Jesus Cristo e os Apóstolos explicaram e ampliaram a lei, tomaram, às vezes, a forma de conselho e, não raro, de preceitos formais complementares (XXII, 1 ad 2).
Existe, portanto, coisa mais necessária, ou rigorosamente preceituada, do que a submissão absoluta do espírito a Deus por meio da fé, e o ato de esperança, baseado nos auxílios divinos?
Não, Senhor.
Há alguma virtude especial cuja missão seja converter a vida da alma em vida sobrenatural, e merecedora do mesmo Deus, como prêmio?
Sim, Senhor, a virtude da Caridade.
VIII
NATUREZA DA CARIDADE — ATO PRINCIPAL DA CARIDADE E SUA FÓRMULA
Que coisa é a Caridade?
Uma virtude que nos proporciona comunicação e amizade íntima com Deus, fundada na participação do mesmo Deus como objeto que é da sua bem-aventurança e da nossa (XXIII, 1).
Que pressupõe a amizade íntima com Deus?
Primeiramente, requer em nós uma participação da natureza de Deus, capaz de deificar a nossa, de elevar-nos acima de tudo o que é criado, seja homem ou anjo, até equiparar-nos em nobreza com Deus, de fazer-nos seus filhos, verdadeiros Deuses; em segundo lugar, requer faculdades operativas proporcionadas à dignidade de Deuses e filhos de Deus, para conhecê-Lo como Ele se conhece, amá-Lo como Ele se ama, e, como Ele, gozar da sua própria bem-aventurança (XXIII, 2).
Acompanham a caridade, necessariamente, estes dois grupos de bens?
Sim, Senhor; já que a caridade não é mais que seu complemento.
Logo, todo aquele que possui a caridade, necessariamente tem graça santificante, virtudes e dons? Sim, Senhor (XXIII, 7).
É a caridade a rainha das virtudes?
Sim, Senhor (XXIII, 6).
Por que?
Porque, só sob seu império, executam as virtudes atos meritórios de vida eterna (Ibid).
De que maneira nos une a Caridade com Deus?
Por meio do amor (XXVII).
Em que consiste o ato de amor, mediante o qual a Caridade nos une com Deus?
Consiste em amá-Lo por ser quem é, Bem Infinito, e em querer unir-se a Ele para participar da sua eterna felicidade (XXV, XXVII).
Em que se diferenciam estes dois amores?
Em que o primeiro é um amor de complacência em Deus por ser o que é em si mesmo, e o segundo se compraz em que o acúmulo de perfeições divinas esteja destinado a fazer o homem feliz.
Podem separar-se estes dois amores na virtude da caridade?
Não, Senhor.
Por que?
Porque, se Deus não fosse o objeto da nossa bem-aventurança, não haveria motivo suficiente para amá-Lo, e se não estivessem Nele a fonte e primeira origem de toda felicidade com que nos brinda, não O amaríamos como O amamos (XXV, 4).
É cada um destes amores um ato de amor puro e perfeito?
Sim, Senhor.
É cada um ato de caridade?
Sim, Senhor.
Há alguma subordinação entre eles, e em caso afirmativo, qual obtém a preferência?
Guardam subordinação entre si, e ocupa o primeiro lugar o ato de complacência em Deus, por ser Bem Infinito.
Por que ocupa o primeiro lugar?
Porque Deus é maior e mais excelso em si mesmo, do que enquanto se comunica à alma no céu. Não quer isto dizer que Deus, objeto da bem-aventurança, seja distinto de Deus em si mesmo, mas que as suas perfeições estão Nele de modo infinito e à alma se comunicam de modo finito e limitado.
Estende-se este amor a algum outro ser, fora de Deus?
Sim, Senhor; a todos os que O gozam, ou se acham em estado de O gozar algum dia (XXV, 6,10).
Quem são os que já gozam de Deus?
Os anjos e os justos que estão no céu.
Quem são os que se acham em estado de possuí-Lo?
As almas do Purgatório e quantos homens vivem na terra.
Logo, devemos amar a todos os homens com amor de caridade?
Sim, Senhor.
Estamos obrigados a guardar alguma ordem e preferência no amor de caridade que devemos a Deus, ao próximo e a nós mesmos?
Sim, Senhor. Depois de Deus, primeiramente devemos amar-nos a nós mesmos; depois aos outros e entre eles, com preferência, aos que estão mais próximos de Deus na ordem sobrenatural, e aos que estão mais ligados a nós ou com laços de sangue ou com os da amizade, comunidade de vida, etc. (XXVI).
Qual é o sentido das palavras: 'depois de Deus, primeira e principalmente devemos amar-nos a nós mesmos?'
Quer dizer que, depois de Deus, a quem amamos como fonte do bem para onde se encaminha a caridade, devemos querer possuí-Lo, com preferência a todos os homens.
Logo, em virtude da caridade, somente devemos querer a posse de Deus, o mesmo para nós que para os nossos próximos?
Podemos e devemos querer também tudo o que se ordene para consegui-la.
Há alguma coisa expressamente destinada para alcançá-la?
Sim, Senhor; os atos das virtudes sobrenaturais (XXV, 2).
Logo, depois da posse de Deus, e como meio para consegui-la, devemos querer a prática das virtudes sobrenaturais?
Sim, Senhor.
Podemos, em virtude da caridade, querer bens temporais para nós e para o nosso próximo?
Podemos, e, em determinadas ocasiões, devemos querê-los.
Quando devemos querê-los?
Quando sejam indispensáveis para viver e para praticar a virtude.
Quando podemos?
Quando, sem serem indispensáveis, são úteis e convenientes.
Se fossem obstáculo para o exercício das virtudes, poderíamos desejá-los sem faltar à caridade?
Não, Senhor.
Poderíeis ensinar-me uma fórmula breve e exata para exercitar-me na virtude da caridade?
Eis aqui uma: 'Deus e Senhor meu; amo-vos sobre todas as coisas; não quero outra recompensa mais do que a Vós mesmo, e amo-a, primeiramente, porque vós com ela sois ditoso, e depois por ser a bem-aventurança de todos os que vos possuem e dos chamados a possuir-vos algum dia'.
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)