1. Moisés, quando quis aproximar-se da sarça ardente, foi impedido de fazê-lo, até que tirasse os sapatos. E tu, que pretendes ver Aquele que ultrapassa todo pensamento e todo sentimento, como não te libertas de todo pensamento apaixonado?
2. Primeiramente, ora para obter o dom das lágrimas; assim, poderás suavizar, pela compunção, a dureza inerente à tua alma e, confessando tua iniquidade ao Senhor, obter dele o perdão.
3. Esforça-te por manter teu intelecto surdo e mudo durante a oração: assim poderás orar.
4. A oração é produto da doçura e da ausência de ira.
5. A oração é fruto da alegria e do reconhecimento.
6. A oração é exclusão da tristeza e do desalento.
7. Se queres orar dignamente, renuncia-te a todo instante; se suportas toda sorte de provações, resigna-te sabiamente por amor da oração.
8. Na hora de orar, encontrarás o fruto de todo sofrimento aceito com sabedoria.
9. O rancor cega a faculdade mestra de quem ora e derrama-lhe trevas sobre as orações.
10. Armado contra a ira, não admitirás jamais a cobiça, pois é a cobiça que alimenta a ira; esta por sua vez, turva os olhos da inteligência e destrói, assim, o estado de oração.
11. Não ores para que tuas vontades se cumpram: elas não concordam necessariamente com a vontade de Deus. Ora, sim, segundo o ensinamento recebido, dizendo: 'que vossa vontade se cumpra em mim'. Em tudo, pede-lhe que se faça a sua vontade, pois ele quer o bem e o benefício para tua alma; tu, porém, não é isso necessariamente que procuras.
12. Não te aflijas quando não receberes imediatamente, de Deus, o objeto de teu pedido: é que ele quer fazer-te ainda maior bem, por tua perseverança em permanecer com ele na oração. O que há de mais sublime, de fato, do que conversar com Deus e abstrair-se numa íntima comunicação com ele?
13. A oração sem distração é a intelecção mais alta da inteligência.
14. A oração é uma ascensão da inteligência para Deus.
15. Ora, em primeiro lugar, para te purificares das paixões; em segundo lugar, para te libertares da ignorância; em terceiro lugar, para te libertares de toda tentação e abandono.
16. Orando com teus irmãos ou orando só, esforça-te por orar, não por hábito, mas com sentimento.
17. Enquanto oras, vigia intensamente a tua memória, para que, ao invés de sugerir-te as suas lembranças, ela te leve à consciência da tua prática; pois, a inteligência tem uma perigosa tendência: deixar-se pilhar pela memória, no momento da criação.
18. Qual o objetivo dos demônios, quando excitam em nós a gula, a impudicícia, a cobiça, a ira, o rancor e as outras paixões? Querem que a nossa inteligência, estupidificada por elas, não possa orar convenientemente; pois, as paixões da parte irracional, vencedoras, impedem-na de mover-se de acordo com a razão (de acordo com as razões dos seres como objeto de contemplação) para procurar atingir a Razão (o Logos: o Verbo) de Deus.
19. O estado de oração é um 'hábito' impassível que, por um amor supremo, arrebata aos cimos intelectuais a inteligência possuída pela sabedoria.
20. Quem ama a Deus conversa incessantemente com ele, como com um Pai, despojando-se de todo pensamento apaixonado.
21. Quem ora em espírito e em verdade, não tira mais das criaturas os louvores que dá ao Criador: é do próprio Deus que ele louva Deus.
22. Sê prudente, protegendo tua inteligência de todo conceito, na hora da oração, para que ela seja firme na sua tranquilidade própria (de sua natureza original). Então, Aquele que tem piedade dos ignorantes virá também sobre ti e receberás um dom de oração muito glorioso.
23. Não poderias possuir a oração pura, estando perturbado com coisas materiais e agitado por inquietações contínuas, pois a oração é o abandono dos pensamentos.
24. A oração é atividade que mais convém à dignidade da inteligência.
25. O corpo tem o pão por alimento; a alma, a virtude; a inteligência, a oração espiritual.
26. Não eleves os olhos enquanto oras; renuncia à carne e à alma e vive segundo a inteligência.
27. Um santo, cheio do amor de Deus e de zelo na oração, encontrou, quando andava pelo deserto, dois anjos que se puseram, um à sua direita, outro à sua esquerda, e caminharam juntos. Mas ele não lhes deu a mínima atenção, para não perder o melhor. Pois, lembrava-se da palavra do Apóstolo: 'Nem os anjos, nem os principados, nem os poderes, poderão separar-nos da caridade de Cristo' (Rm 8,38).
28. Bem-aventurada a inteligência que, no momento da oração, torna-se imaterial e despojada de tudo.
29. A visão é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas as virtudes.
30. Quando, em tua oração, tiveres conseguido ultrapassar qualquer outra alegria, é que finalmente, em toda verdade, terás encontrado a oração.
(Ditos Espirituais dos Pais do Deserto, de Evágrio Pôntico - séc. IV)