O DOGMA DO PURGATÓRIO - SEGUNDA PARTE

 

Segunda Parte - O PURGATÓRIO, MISTÉRIO DE MISERICÓRDIA

Capítulo I

Temor e Confiança - A Misericórdia de Deus - Santa Lidwina e o Sacerdote Pouco Confiante - A Boa Vontade - São Claúdio de la Colombière e seu Testemunho Espiritual

Acabamos de considerar os rigores da Justiça Divina na outra vida; eles são tremendos e é impossível pensar neles sem um grande temor. A esse fogo aceso pela justiça divina e a essas dores excruciantes, comparadas com as quais todas as penitências dos santos e todos os sofrimentos dos mártires juntos não são nada, quem ousaria pensar e refletir sobre elas e não estremecer de muito medo?

Este temor é salutar e conforme ao espírito de Jesus Cristo. Nosso Divino Mestre deseja que tenhamos medo e que tenhamos medo não só do Inferno, mas também do Purgatório, que é uma espécie de inferno mitigado. É para nos inspirar este santo temor que Ele nos mostra as masmorras do Supremo Juiz, de onde não sairemos até que tenhamos pago o último centavo (Mt 5, 26). Podemos dizer do fogo do Purgatório o que se diz do fogo do Inferno: 'Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma, mas temei aquele que pode lançar no inferno tanto a alma como o corpo' (Mt 10,28). 

No entanto, não é intenção de Nosso Senhor que tenhamos um medo excessivo e estéril, um medo que nos tortura e desencoraja, um medo sombrio e sem confiança. Não; Ele deseja que nosso medo seja temperado com uma grande confiança em sua misericórdia; Ele deseja que tenhamos medo do mal para preveni-lo e evitá-lo; Ele deseja que o pensamento dessas chamas vingadoras nos estimule ao fervor ao seu serviço, e nos leve a expiar nossas faltas neste mundo e não no outro. 'Melhor é purgar nossos pecados e eliminar os nossos vícios agora' - diz o autor da Imitação - 'do que mantê-los para purificação futura' (Im 1, 24.2). Além disso, se apesar de nossos esforços para viver bem e de satisfazer nossos pecados neste mundo, temos temores bem fundamentados de que teremos que passar por um purgatório, devemos olhar para essa contingência com confiança ilimitada em Deus, que nunca deixa de consolar aqueles a quem Ele purifica pelos sofrimentos. 

Assim, no sentido de dar ao nosso medo esse caráter prático, esse contrapeso de confiança, depois de ter contemplado o Purgatório com todo o rigor de suas dores, devemos considerá-lo sob outro aspecto e de um ponto de vista diferente – o da Misericórdia de Deus, que brilha nele com não menos magnitude que a sua Justiça. Se Deus reserva castigos terríveis na outra vida para as menores faltas, Ele não os inflige sem, ao mesmo tempo, temperá-los com clemência; e nada mostra melhor a admirável harmonia da perfeição divina do que o Purgatório, porque ali se exerce a mais severa Justiça, juntamente com a mais inefável Misericórdia. Se Nosso Senhor castiga as almas que lhe são queridas, é de acordo com o seu amor, segundo as palavras: 'A quem amo, repreendo e castigo' (Ap 3,19). Com uma mão, Ele golpeia e, com a outra, Ele cura. Ele oferece misericórdia e redenção em abundância: quoniam apud Dominum misericordia, et copiosa apud eum redemptio (Sl 129). Esta infinita Misericórdia de nosso Pai Celestial deve ser o firme fundamento de nossa confiança e, a exemplo dos santos, devemos mantê-lo sempre diante dos nossos olhos. Os santos nunca a perderam de vista; e foi por isso que o temor do Purgatório nunca os privou de sua paz e alegria do Espírito Santo. 

Santa Lidwina, que tão bem conhecia a terrível severidade do sofrimento expiratório, estava animada por esse espírito de confiança e se esforçou sempre para o inspirar também aos outros. Certa vez, recebeu a visita de um padre piedoso. Enquanto ele estava sentado ao lado dela, junto com outras pessoas virtuosas, a conversa girava em torno dos sofrimentos da outra vida. Vendo nas mãos de uma mulher um vaso cheio de grãos de mostarda, o padre aproveitou para comentar que tremia ao pensar no fogo do Purgatório. 'No entanto' - acrescentou - 'eu ficaria satisfeito em ir lá por tantos anos quantos grãos de semente houver neste vaso; então, pelo menos, eu poderia ter certeza da minha salvação'. 'O que você está dizendo padre - respondeu a santa - 'por que tão pouca confiança na Misericórdia de Deus? Ah se o senhor tivesse um melhor conhecimento do Purgatório e dos terríveis tormentos que ali são suportados!' 'Seja o Purgatório o que for' - respondeu ele - 'eu mantenho o que falei'. Algum tempo depois, este sacerdote faleceu e quando as mesmas pessoas que estiveram presentes durante a conversa dele com Santa Lidwina, questionaram a santa sobre a sua condição no outro mundo, ela respondeu: 'O falecido está bem por causa de sua vida virtuosa, mas teria sido melhor para ele se ele tivesse mais confiança na Paixão de Jesus Cristo e se tivesse tido uma visão mais branda sobre os assuntos do Purgatório'.

Em que consistia essa falta de confiança que mereceu a desaprovação da santa? Na opinião deste bom sacerdote de que é quase impossível ser salvo e que só entraremos no Céu depois de ter sofrido incontáveis ​​anos de tortura. Essa ideia é completamente equivocada e contrária à confiança cristã. Nosso Salvador veio trazer paz aos homens de boa vontade, e nos impor, como condição de nossa salvação, um jugo que é suave e um fardo que não é pesado. Assim, faça valer sempre a sua boa vontade e você encontrará a paz interior e todas as dificuldades e contrariedades irão desaparecer.  Boa vontade! Isso é tudo. Seja uma pessoa de boa vontade, submeta-se à Vontade de Deus e anteponha a sua Santa Lei acima de tudo, servindo ao Senhor com todo o seu coração e Ele lhe dará uma assistência tão poderosa que você entrará no Paraíso com uma facilidade surpreendente. Eu nunca poderia acreditar - você seria levado a pensar - que era tão fácil entrar no céu! Mais uma vez, repito, para realizar em nós esta maravilha de Misericórdia, Deus pede de nossa parte apenas um coração reto e uma boa vontade.

A boa vontade consiste, propriamente falando, em submeter e conformar a nossa vontade à de Deus, que é o fundamento de toda boa vontade; e esta boa vontade atinge a sua perfeição máxima quando abraçamos a Vontade Divina como o bem soberano, mesmo quando ela nos impõe os maiores sacrifícios e os mais agudos sofrimentos. Ó estado admirável! A alma assim disposta parece perder a sensação de dor e isso porque a alma está animada com o espírito de amor; e, como diz Santo Agostinho, quando amamos não sofremos, ou, se sofremos, amamos o sofrimento - In eo quod amatur, aut non laboratur, aut ipse labor amatur.

São Cláudio de la Colombiere, da Companhia de Jesus, possuía este coração amoroso e esta vontade perfeita, e no seu Retiro Espiritual, exprime assim os seus sentimentos: 'Não devemos deixar de expiar as desordens passadas da nossa vida pela penitência; mas isso deve ser feito sem ansiedade, porque o pior que pode nos acontecer, quando nossa vontade é boa e somos submissos e obedientes, é que tenhamos que passar por muito tempo ao Purgatório, o que se pode dizer com razão não ser isso um grande mal. Eu não temo o Purgatório. Do Inferno nem falarei, pois seria ofender a Misericórdia de Deus por possuir o menor medo do Inferno, embora o tenha merecido mais do que todos os demônios juntos. Mas o Purgatório eu não temo. Gostaria de não o ter merecido, pois não o poderia viver sem ter desagradado a Deus; mas, como o teria merecido, devo aceitar e satisfazer a Justiça divina da maneira mais rigorosa que se possa imaginar, e isso até o Dia do Juízo. Eu sei que os tormentos ali suportados são terríveis, mas sei que eles honram a Deus e não podem prover mais dano às almas; que lá estaremos certos de nunca mais nos opor à Vontade de Deus; que nunca mais nos ressentiremos do rigor de seus juízos, que iremos amar a gravidade da sua justiça e esperaremos com paciência até que toda ela seja apaziguada. Por isso, dou de todo o coração as minhas satisfações às almas do Purgatório, e a elas todos os sufrágios que serão oferecidos por mim depois de minha morte, para que Deus seja glorificado no Paraíso pelas almas que mereceram ser elevadas a um grau mais alto de glória do que eu'.

Eis o que faz esse extravasamento da Caridade e onde o amor de Deus e ao próximo nos leva quando se apodera do nosso coração: transforma e transfigura o sofrimento de tal forma que toda amargura se molda em doçura: 'quando chegares a tal ponto que a tribulação te seja doce e amável por amor de Cristo' (Imit 2,12.11). Tenhamos, pois, grande amor a Deus, uma grande caridade e pouco temor do Purgatório. O Espírito Santo nos acalenta no fundo do nosso coração de que, como filhos de Deus, não precisamos temer os castigos de um Pai.

Capítulo II

Confiança em Deus - A Misericórdia de Deus para com as Almas - Deus Consola as Almas segundo Santa Catarina de Gênova - Santa Madalena de Pazzi com a Alma do seu Irmão

É bem verdade que nem todos conseguem alcançar um elevado grau de caridade, mas não há quem não possa confiar na Divina Misericórdia. Esta misericórdia é infinita, dá paz a todas as almas que a mantêm constantemente diante dos olhos e nela confiam. Ora, a Misericórdia de Deus se exerce em relação ao Purgatório de três maneiras:

(i) em consolar as almas;

(ii) em mitigar seus sofrimentos;

(iii) dando-nos, antes da morte, mil meios de evitar o Purgatório.

Em primeiro lugar, Deus consola as almas do Purgatório; Ele mesmo as consola; e Ele também as consola por meio da Santíssima Virgem e dos santos anjos. Ele consola as almas inspirando-as com um alto grau de fé, esperança e amor divino – virtudes que produzem nelas a conformidade com a Vontade Divina, a resignação e a mais perfeita paciência. 'Deus' - diz Santa Catarina de Gênova - 'inspira a alma do Purgatório com um movimento de amor tão ardente, que bastaria aniquilá-la se ela não fosse imortal. Iluminada e inflamada por essa pura caridade, quanto mais ama a Deus, mais a alma detesta a menor mancha que o desagrada, o menor obstáculo que impede a sua união com Ele. Assim, se ela pudesse acessar um outro Purgatório, muito mais terrível do que aquele em que está condenada, a alma nele se precipitaria, impelida fortemente pela impetuosidade do amor que existe entre Deus e ela, para se livrar mais rapidamente de tudo o que ainda a separa do bem soberano'. 

'Estas almas' - diz ainda a mesma santa - 'estão intimamente unidas à Vontade de Deus e tão completamente transformadas nela, que estão sempre satisfeitas com suas santas ordenanças. As almas do Purgatório não têm escolha própria; elas não podem mais querer outra coisa senão o que Deus quer. Assim recebem com perfeita submissão tudo o que Deus lhes dá; e nem o prazer, nem o contentamento e nem a dor podem fazê-las pensar em si mesmas.

Santa Madalena de Pazzi, após a morte de um de seus irmãos, tendo ido ao coro para orar por ele, viu a sua alma refém de um intenso sofrimento. Tocada de compaixão, ela se derreteu em lágrimas e gritou com voz comovente: 'Irmão, miserável e bem-aventurado! Ó alma aflita mas contente! Sujeita a dores tão intoleráveis ​​e, ao mesmo tempo, aceitas e suportadas! Por que não são compreendidas neste mundo por aqueles que não têm a coragem de carregar as suas cruzes? Enquanto estavas neste mundo, ó meu irmão, não quisestes me ouvir e agora desejais ardentemente que eu vos ouça... Ó Deus igualmente justo e misericordioso, aliviai este irmão que o serviu desde a infância. Olhai para a sua bondade, eu lhe imploro, e volvei sobre ele a vossa grande misericórdia, ó Deus infinitamente justo! 

No dia em que a santa teve aquele famoso êxtase, durante o qual percorreu as várias prisões do Purgatório, pôde ver de novo a alma do seu irmão: 'Pobre alma' - disse-lhe ela - 'como está doente e ainda assim está alegre. Você padece e se mantém feliz, porque sabe que essas tristezas o levarão um dia a uma grande e indescritível felicidade. Como serei feliz se nunca mais tivesse que padecer sofrimentos! Permanecei aqui, meu irmão, e completai a sua purificação em paz!'

Capítulo III

Consolação das Almas - Santo Estanislau de Cracóvia e a Ressurreição de Peter Miles

Este contentamento em meio ao sofrimento mais intenso não pode ser explicado senão pelas divinas consolações que o Espírito Santo infunde nas almas do Purgatório. O Espírito Divino, por meio da fé, da esperança e da caridade, dispõe estes dons à disposição dos enfermos que devem submeter-se a um tratamento muito penoso, mas cujo efeito é o de restabelecer-lhes a saúde perfeita. O doente sofre mas ama o seu sofrimento salutar. O Espírito Santo, o Consolador, dá um contentamento semelhante às almas santas. 

Temos disso um exemplo singular na pessoa de Peter Miles, que foi ressuscitado dos mortos por Santo Estanislau de Cracóvia, mas que preferiu retornar ao Purgatório a viver novamente na terra. O célebre milagre desta ressurreição aconteceu em 1070. Vejamos como tal fato é relatado na Acta Sanctorum de 7 de maio. Santo Estanislau era bispo de Cracóvia quando o duque Boleslas II governava a Polônia. Ele não deixou de lembrar a este príncipe dos seus deveres, os quais violou escandalosamente  diante de todo o seu povo.

Boleslas irritou-se com a santa liberdade do prelado e, para se vingar, incitou contra ele os herdeiros de um certo Peter Miles, que morrera três anos antes, depois de ter vendido um pedaço de terra à igreja de Cracóvia. Os herdeiros acusaram o santo de ter usurpado o terreno, sem o ter pago ao proprietário. Estanislau declarou que havia pago pelo terreno, mas como as testemunhas que deveriam tê-lo defendido foram subornadas ou intimidadas, ele foi denunciado como usurpador da propriedade alheia e condenado a fazer restituição. Então, vendo que nada tinha a esperar da justiça humana, elevou o seu coração a Deus e recebeu então uma inspiração repentina. Ele pediu um prazo de três dias, prometendo fazer Peter Miles comparecer pessoalmente, para que ele testemunhasse a compra legal e o pagamento do terreno.

O prazo foi concedido a ele em desprezo. O santo fez jejum e recolheu-se em profunda oração a  Deus para assumir a defesa da sua causa. No terceiro dia, depois de ter celebrado a Santa Missa, saiu acompanhado pelo seu clero e de muitos fiéis, ao local onde o homem havia sido sepultado. Por suas ordens, a sepultura foi aberta; e nada continha além de ossos. Ele os tocou com o seu báculo e, em nome dAquele que é a Ressurreição e a Vida, ordenou que o morto se levantasse. De repente, os ossos se reuniram, cobriram-se de carne e, à vista do povo estupefato, viu-se o morto pegar o bispo pela mão e caminhar em direção ao tribunal. Boleslas, com a sua corte e uma imensa multidão, aguardava o resultado com a mais viva expectativa. 'Eis a testemunha - disse o santo a Boleslas - 'ele vem, príncipe, para dar testemunho diante de ti; interrogue-o pois e ele te responderá'. É impossível descrever a estupefação do duque, dos seus conselheiros e de toda a multidão. Peter Miles afirmou então que havia sido pago pelo terreno; em seguida, voltando-se para os seus herdeiros, repreendeu-os por terem acusado o piedoso prelado contra todos os direitos da justiça; e então ele os exortou a fazer penitência por um pecado tão grave.

Foi assim que a iniquidade, que se acreditava já certa de sucesso, foi confundida. Agora vem a circunstância que diz mais respeito ao nosso assunto e à qual desejamos nos referir. Desejando realizar este grande milagre para a glória de Deus, Estanislau propôs ao defunto que, se desejasse viver mais alguns anos, obteria para ele este favor de Deus. O homem respondeu que não tinha tal desejo. Ele estava no Purgatório, mas preferia voltar para lá imediatamente e suportar as suas dores do que expor-se à condenação nesta vida terrestre. Ele pediu ao santo apenas que implorasse a Deus que o tempo dos seus sofrimentos fosse reduzido, para que pudesse entrar mais cedo na morada dos eleitos. Depois disso, e acompanhado pelo bispo e uma grande multidão, Peter Miles voltou ao seu túmulo, deitou-se, e seu corpo desfez-se em ossos, retomando o estado tal como encontrado previamente. Temos motivos para acreditar que o santo obteve logo a libertação da sua alma.

O que há de mais notável neste exemplo, e que mais deveria chamar a nossa atenção, é que uma alma do Purgatório, depois de ter experimentado os tormentos mais excruciantes, preferiu aquele estado de sofrimento à vida deste mundo; e a razão que se dá para essa preferência é que, nesta vida mortal, estamos expostos ao perigo de nos perdermos e incorrermos em uma condenação eterna.

Capítulo IV

Consolação das Almas - Santa Catarina de Ricci e as Consolações pela Alma de um Príncipe

Relatemos um outro exemplo das consolações interiores e do misterioso contentamento que as almas experimentam em meio aos sofrimentos mais excruciantes: encontramo-lo na Vida de Santa Catarina de Ricci, religiosa da Ordem de São Domingos, falecida no Convento de Prato, em 2 de fevereiro de 1590. Esta serva de Deus tinha tão grande devoção pelas almas do Purgatório que sofreu no lugar delas nesta terra o que elas teriam de suportar no outro mundo. Entre outras coisas, ela libertou das chamas expiatórias a alma de um príncipe e sofreu por ele os mais terríveis tormentos por quarenta dias.

Este príncipe, cujo nome não é mencionado na história, em consideração sem dúvida a sua família, havia levado uma vida mundana, e a santa ofereceu muitas orações, jejuns e penitências para que Deus a iluminasse sobre a condição de sua alma e para que não fosse condenado. Deus se dignou ouvi-la e o infeliz príncipe, antes de sua morte, deu provas evidentes de uma conversão sincera. Morreu com bons sentimentos e assim alcançou o Purgatório. Catarina apreendeu isso por revelação divina em oração e se ofereceu para satisfazer a Justiça Divina por aquela alma. 

Nosso Senhor atendeu a sua oferta de caridade e, assim, recebeu a alma do príncipe na glória, submetendo Catarina então a sofrimentos totalmente incomuns pelo período de quarenta dias. Ela foi afetada por uma doença que, de acordo com o julgamento dos médicos, não era natural e que não tinha possibilidade de cura e nem de alívio. De acordo com o depoimento de testemunhas oculares, o corpo da santa ficou coberto de bolhas cheias de um fluido aquecido e inflamado, como água fervente. Isso causou tanto calor que a sua cela parecia um forno e exposta ao fogo, de tal maneira que era impossível permanecer ali por alguns instantes sem sair para respirar. A carne da paciente estava fervendo e sua língua parecia um pedaço de metal em brasa. A intervalos, a inflamação cessava e então a carne parecia assada, para logo em seguida reaparecerem as bolhas e o mesmo calor excruciante.

No entanto, em meio a essa tortura, a santa não perdeu a serenidade de seu semblante e nem a paz de sua alma, mas, ao contrário, parecia se alegrar com os seus tormentos. Às vezes, os sofrimentos aumentavam a tal ponto que ela perdia a fala por dez ou mais minutos. Quando uma irmã religiosa lhe disse que ela parecia estar em chamas, ela respondeu simplesmente: 'Sim', sem acrescentar mais nada. Quando, em outra ocasião, manifestaram a ela que tal zelo havia ido longe demais e que não deveria pedir a Deus um sofrimento tão excessivo, ela respondeu: 'Perdoem-me, minhas queridas irmãs se eu não lhes atendo, mas é que Jesus tem tanto amor pelas almas, que tudo o que fazemos pela salvação delas lhe é infinitamente agradável; por isso suporto de bom grado qualquer dor, seja ela qual for, tanto pela conversão dos pecadores como pela libertação das almas detidas no Purgatório'. Ao final dos quarenta dias, Catarina voltou ao seu estado normal. Os parentes do príncipe perguntaram a ela onde estava a sua alma. 'Não tenham medo' - respondeu ela - a alma dele já está no gozo da glória eterna'. Assim se soube finalmente que era pela alma dele que ela tanto sofrera.

Este exemplo nos ensina muitas coisas, mas o citamos para mostrar que os maiores sofrimentos não são incompatíveis com a paz interior. Nossa santa, enquanto suportou visivelmente as penas do Purgatório, experimentou nisso uma paz admirável e um contentamento sobre-humano.

Capítulo V

Consolação das Almas - A Santíssima Virgem como Mãe das Almas do Purgatório - Padre Jerônimo Carvalho - Beato Renier de Citeaux

As almas do Purgatório recebem também grande consolação por meio da Santíssima Virgem. Ela não é a Consoladora dos Aflitos? E que aflição pode ser comparada à das pobres almas do Purgatório? Ela não é a Mãe da Misericórdia? E não é para essas santas almas sofredoras que ela deve mostrar toda a misericórdia do seu coração? Não devemos pois estranhar que, nas Revelações de Santa Brígida, a Rainha do Céu se dê o belo nome de 'Mãe das Almas do Purgatório'. 'Eu sou' - disse Nossa senhora àquela santa - 'a Mãe de todos aqueles que estão no lugar de expiação e minhas orações mitigam os castigos que  lhes são infligidos por suas faltas'.

A 25 de outubro de 1604, no Colégio da Companhia de Jesus de Coimbra, o Padre Jerônimo Carvalho faleceu em odor de santidade, com a idade de cinquenta anos. Este admirável e humilde servo de Deus sentiu uma viva apreensão pelos sofrimentos do Purgatório. Nem as cruéis macerações que infligia a si mesmo várias vezes ao dia, sem contar aquelas induzidas a cada semana pela memória da Paixão, nem as seis horas que dedicava de manhã e à noite à meditação de temas sagrados, pareciam suficientes a ele para protegê-lo do castigo que ele imaginava esperar após a morte. Mas um dia a Rainha do Céu, a quem ele manifestava uma terna devoção, condescendeu em consolar o seu servo com a simples certeza de que ela era uma Mãe de Misericórdia para os seus queridos filhos no Purgatório, tanto como para os da terra. Difundindo mais tarde esta consoladora doutrina, o santo homem deixou escapar acidentalmente, no ardor de suas palavras, esta revelação: 'Ela mesma me disse isto'.

Conta-se que um grande servo de Maria, o Beato Renier de Citeaux, tremeu ao pensar em seus pecados e na terrível Justiça de Deus após a morte. Em seu temor, dirigindo-se à sua grande protetora, a quem chamava de Mãe de Misericórdia, foi arrebatado em espírito e viu a Mãe de Deus suplicando ao seu Filho em seu favor. 'Meu Filho' - dizia ela - 'cuida dele com misericórdia no Purgatório, porque ele humildemente se arrepende de seus pecados'. 'Minha Mãe' - respondeu Jesus - 'coloco a causa dele em tuas mãos', significando dizer que se fizesse segundo o desejo da sua Mãe. O Beato Renier compreendeu então, com indescritível alegria, que Maria obtivera a sua isenção do Purgatório.

Capítulo VI

Consolação das Almas - A Santíssima Virgem e o Privilégio dos Sábados - Venerável Paula de Santa Teresa - São Pedro Damião e o Relato de uma Visão Milagrosa

É em certos dias especiais que a Rainha do Céu exerce a sua misericórdia no Purgatório. Esses dias privilegiados são: primeiro todos os sábados e depois as diversas festas da Santíssima Virgem, que assim se tornam como festas no Purgatório. Vemos nas revelações dos santos que, no sábado, dia especialmente consagrado à Santíssima Virgem, a doce Mãe de Misericórdia desce às masmorras do Purgatório para visitar e consolar os seus devotos servos. Então, segundo a piedosa crença dos fiéis, ela resgata aquelas almas que, tendo usado o santo escapulário, gozam deste privilégio sabatino, e depois dá alívio e consolo a outras almas que lhe foram particularmente devotas. Testemunha disso foi a Venerável Irmã Paula de Santa Teresa, religiosa dominicana do Convento de Santa Catarina de Nápoles.

Num sábado, arrebatada em êxtase e transportada em espírito para o Purgatório, ficou algo surpreendida ao encontrá-lo transformado num Paraíso de delícias, iluminado por uma luz brilhante, em vez da escuridão que prevalecia em outras ocasiões. Enquanto ela se perguntava qual poderia ser a causa dessa mudança, ela percebeu a Rainha do Céu cercada por uma multidão de anjos, aos quais ela deu ordens para libertar aquelas almas que a honraram de maneira especial e conduzi-las ao Céu. Se isso ocorre em um sábado comum, dificilmente podemos duvidar que o mesmo ocorra nos dias de festa consagrados à Mãe de Deus. Entre todas as suas festas, a da gloriosa Assunção de Maria parece ser o principal dia de libertação. 

São Pedro Damião nos diz que todos os anos, no dia da Assunção, a Santíssima Virgem resgata vários milhares de almas. Eis o relato de uma visão milagrosa que ilustra este assunto: 'É um piedoso costume' - diz ele - 'que tem o povo de Roma de visitar as igrejas, levando uma vela na mão, durante a noite anterior à Festa da Assunção de Nossa Senhora'. Ora, aconteceu que uma pessoa de posição, estando de joelhos na basílica de Santa Maria em Aracoeli, em Campidoglio, viu diante dela, prostrada em oração, outra senhora, que reconheceu como sendo a sua madrinha, falecida alguns meses antes. Surpresa, e não podendo acreditar em seus olhos, ela quis desvendar o mistério e, então, postou-se perto da porta da igreja. Assim que viu a senhora sair, pegou-a pela mão e puxou-a para o lado. 'Você não é a minha madrinha Marozi, que me segurou na pia batismal?' 'Sim, sou eu' - respondeu a aparição imediatamente. 'E como é que te encontro entre os vivos, já que estás morta há mais de um ano?' 'Até hoje estive mergulhada em um fogo terrível, por causa dos muitos pecados de vaidade que cometi em minha juventude, mas hoje, durante esta grande solenidade, a Rainha do Céu desceu ao meio das chamas do Purgatório e me livrou, juntamente com um grande número de outras almas, para que possamos entrar no Céu na festa de sua Assunção. Ela pratica esse grande ato de clemência todos os anos; e, apenas no dia de hoje, o número daqueles que ela libertou é igual à população de Roma. Vendo que a sua afilhada permanecia estupefata e parecia ainda duvidar da evidência de seu bom senso, a aparição acrescentou: 'Como prova da verdade de minhas palavras, saiba que você mesmo morrerá daqui a um ano, na festa da Assunção; se você sobreviver a esse período, acredite que isso foi uma ilusão'. São Pedro Damião conclui este relato dizendo que a jovem passou o ano praticando o exercício das boas obras, a fim de se preparar para comparecer diante de Deus. No ano seguinte, na Vigília da Assunção, ela adoeceu e morreu no próprio dia da festa, como havia sido previsto.

A festa da Assunção é, pois, o grande dia da misericórdia de Maria para com as pobres almas; ela se deleita em introduzir os seus filhos na glória do Céu, no aniversário do dia em que ela entrou pela primeira vez em seus abençoados portais. Esta crença piedosa, acrescenta o Abade Louvet, baseia-se em um grande número de revelações particulares; é por essa razão que em Roma a Igreja de Santa Maria in Montorio, que é o centro da arquiconfraria dos sufrágios pelos defuntos, é dedicada nessa intenção com o título de Assunção.

Capítulo VII

Consolação das Almas - A Intercessão dos Anjos - Venerável Paula de Santa Teresa - Pedro de Basto: Vida de Santidade e Devoção pelas Almas do Purgatório 

Além das consolações que recebem da Santíssima Virgem, as almas são também assistidas e consoladas no Purgatório pelos santos anjos e, principalmente, pelos seus anjos da guarda. Os doutores da Igreja ensinam que a missão tutelar dos anjos da guarda só termina com a entrada dos protegidos no Paraíso. Se, no momento da morte, uma alma em estado de graça ainda não se tornou digna de ver a face do Altíssimo, o anjo da guarda a conduz ao lugar de expiação, e ali permanece junto dela para lhe providenciar toda a assistência e consolo em seu poder.

É uma opinião comum entre os santos doutores - diz o Padre Rossignoli - que Deus, que um dia enviará os seus anjos para reunir os eleitos, também os envia de tempos em tempos ao Purgatório, para visitar e consolar as almas sofredoras. Sem dúvida, não pode haver alívio mais precioso do que a visão dos habitantes do Céu, aquela morada abençoada para onde um dia irão para desfrutar de sua gloriosa e eterna felicidade. 

As Revelações de Santa Brígida estão repletas de exemplos dessa natureza e as vidas de vários santos também fornecem um grande número deles. A Venerável Irmã Paula de Santa Teresa, de quem já falamos no capítulo anterior, tinha uma devoção extraordinária para com a Igreja Padecente, pela qual foi recompensada em vida com visões milagrosas. Um dia, enquanto fazia uma oração fervorosa nesta intenção, foi transportada em espírito para o Purgatório, onde viu um grande número de almas mergulhadas nas chamas. Perto delas, ela viu nosso Salvador, assistido pelos seus anjos que apontavam, um após o outro, várias almas que Ele desejava levar para o Céu, para onde eram levadas sob indizível alegria. Diante da visão, a serva de Deus, dirigindo-se ao seu Divino Esposo, disse: 'Ó Jesus, por que esta escolha entre uma multidão tão vasta?' 'Eu libertei' - dignou-se a responder - 'aqueles que durante a vida realizaram grandes atos de caridade e misericórdia, e que mereceram que eu cumprisse a minha promessa a respeito deles: bem-aventurados os misericordiosos, porque obterão misericórdia'. 

Na vida do servo de Deus, Pedro de Basto, encontramos um exemplo que mostra como os santos anjos, mesmo enquanto velam por nós na terra, se interessam pelas almas do Purgatório. E já que mencionamos o nome do Irmão Basto, não podemos resistir ao desejo de dar a conhecer este admirável religioso aos nossos leitores; sua história é tão interessante quanto edificante.

Pedro de Basto, irmão coadjutor da Companhia de Jesus e a quem o seu biógrafo chama de Alfonso Rodríguez do Malabar, morreu em odor de santidade em Cochim, em primeiro de março de 1645. Nasceu em Portugal, da ilustre família dos Machado, unidos pelo sangue a toda a nobreza de toda a província entre o Douro e o Minho. Os duques de Pastrano e Hixar estavam entre seus parentes e o mundo lhe oferecia então uma carreira com as mais brilhantes perspectivas. Mas Deus o reservou para si mesmo e o dotou de maravilhosos dons espirituais. Ainda muito pequeno, quando levado à igreja, rezava diante do Santíssimo Sacramento com o fervor de um anjo. Ele acreditava que todo o povo via como ele, com os olhos do corpo, as legiões de espíritos celestiais em adoração perto do altar e do tabernáculo e, desde então, também o divino Salvador, oculto sob os véus eucarísticos, tornou-se por excelência o centro de todos os seus afetos e das inúmeras maravilhas que preencheram a sua longa e santa vida.

Foi aí que, mais tarde, como num sol divino, descobriu sem véus o futuro e os seus detalhes mais imprevistos. Foi a ele também que Deus mostrou os símbolos misteriosos de uma escada de ouro que unia o Céu e a terra, sustentada pelo tabernáculo, e do lírio da pureza, enraizado e se alimentando do divino trigo dos eleitos e do vinho que sozinho pode gerar virgens. Aos dezessete anos, graças à sua pureza de coração e à fortaleza cuja fonte inesgotável era o Sacramento da Eucaristia, Pedro fez em Lisboa um voto de castidade perpétua aos pés de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ainda assim, não pensou em deixar o mundo e, alguns dias depois, embarcou para as Índias e por dois anos exerceu a profissão militar. Ao final desse período, e sob o risco de um naufrágio, indefeso à mercê das ondas por cinco dias inteiros, foi amparado e salvo pela Rainha do Céu e pela aparição do seu Divino Filho. Prometeu então dedicar-se inteiramente ao estado religioso pelo resto de sua vida. Assim que regressou a Goa, tendo então apenas dezenove anos, foi e ofereceu-se na condição de irmão leigo aos Superiores da Companhia de Jesus. Temendo que o seu nome lhe valesse algum sinal de distinção ou privilégio, adotou doravante o complemento do nome da humilde aldeia onde recebera o batismo, passando a chamar-se simplesmente Pedro de Basto.

Pouco tempo depois, durante uma das provações do seu noviciado, ocorreu este maravilhoso incidente que está registrado nos Anais da Sociedade e que é tão consolador para todos os filhos de Santo Inácio. O mestre de noviços do irmão Pedro enviou-o em peregrinação com dois jovens companheiros à ilha de Salsette, ordenando-lhes que não aceitassem a hospitalidade de nenhum dos missionários, mas que mendigassem de aldeia em aldeia o pão de cada dia e o alojamento da noite. Um dia, cansados ​​da longa viagem, encontraram acolhida em uma família muito humilde, constituída por um ancião, uma mulher e uma criança, que os recebeu com a maior caridade e os incitou a participar de uma refeição frugal. No momento da partida, depois de lhes ter retribuído a acolhida com mil agradecimentos, quando Pedro de Basto implorou aos seus anfitriões que lhe dissessem os seus nomes, de modo a recomendá-los expressamente às graças de Deus, ouviu a mulher lhe dizer: 'Nós somos os três fundadores da Companhia de Jesus', desaparecendo todos no mesmo instante.

Toda a vida religiosa desse santo homem até a sua morte – ou seja, quase cinquenta e seis anos – não foi senão uma cadeia de prodígios e de graças extraordinárias; mas, devemos acrescentar, que ele os mereceu e os comprou, por assim dizer, ao preço da virtude, do trabalho e dos sacrifícios mais heroicos. Incumbido alternadamente de cuidar da lavandaria, da cozinha ou da porta, nos seminários de Goa, de Tuticurin, de Coulao e de Cochim, Pedro nunca procurou afastar-se dos trabalhos mais árduos, nem reservar a si um pouco de lazer, às custas dos seus diferentes ofícios, para que pudesse desfrutar sempre das alegrias da oração. Doenças severas e cuja única causa era o trabalho excessivo - dizia ele sorrindo - eram as suas distrações mais agradáveis. Além disso, abandonado, por assim dizer, à fúria do demônio, o servo de Deus quase não gozava de descanso. Os espíritos das trevas apareceram para ele sob as formas mais terríveis e, muitas vezes, o espancavam severamente, especialmente na hora em que, todas as noites como era seu costume, ele interrompia o sono para ir rezar diante do Santíssimo Sacramento.

Um dia, enquanto viajavam, seus companheiros fugiram diante o alvoroço de uma tropa de homens de aparência formidável, montados em cavalos e elefantes, que vinham ao encontro deles em fúria. Só ele permaneceu calmo e quando seus companheiros expressaram seu espanto por ele não ter manifestado o menor sinal de medo, ele respondeu: 'Se Deus não permite que os demônios exerçam a sua raiva contra nós, o que temos a temer? E se Ele lhes dá permissão, por que então eu deveria me esforçar para escapar da sua fúria? Bastou invocar a Rainha do Céu e ela apareceu imediatamente ao meu lado, pondo em fuga a tropa infernal.

Muitas vezes parecia que tudo era confusão, até no fundo da sua alma, e ele só encontrava a paz e a tranquilidade quando estava no seu refúgio habitual, ou seja, Jesus presente na Santa Eucaristia. Carregado um dia de ultrajes, que lhe causaram alguma pequena perturbação, prostrou-se ao pé do altar e pediu ao nosso Divino Salvador o dom da paciência. Então Nosso Senhor lhe apareceu coberto de chagas, um manto púrpura sobre os ombros, uma corda no pescoço, um junco nas mãos e uma coroa de espinhos na cabeça; então, dirigindo-se a Pedro, disse: 'Veja o que o verdadeiro Filho de Deus sofreu para ensinar os homens a sofrer'.

Mas não falamos no ponto que queríamos ilustrar com esta vida santa – quero dizer, a devoção de Pedro de Basto para com as almas do Purgatório, devoção encorajada e secundada pelo seu bom anjo da guarda. Apesar dos seus numerosos trabalhos, ele recitava diariamente o Santo Rosário em intenção dos falecidos. Um dia, tendo-o esquecido, retirou-se sem o ter recitado mas, mal tinha adormecido, quando foi acordado pelo seu anjo. 'Meu filho' - disse o espírito celestial - 'as almas do Purgatório estão esperando o benefício de suas esmolas diárias'. E então Pedro levantou-se instantaneamente para cumprir esse dever de piedade.

Capítulo VIII

Consolação das Almas - A Intercessão dos Anjos - Beata Emília de Vercelli - Intercessão dos Santos do Céu

Se os santos anjos são zelosos pelas almas do Purgatório em geral, é fácil compreender que tenham particular zelo pelas almas dos seus protegidos. No convento de Vercelli, onde a Beata Emilia, religiosa dominicana, era prioresa, era questão de regra nunca beber nada entre as refeições, a não ser com autorização expressa da Superiora. Tal permissão a Beata Prioresa não estava acostumada a conceder e aconselhava suas irmãs a fazer aquele pequeno sacrifício alegremente, em memória da sede ardente que nosso Salvador havia padecido por nossa salvação na Cruz; para incentivá-los a fazer esse sacrifício, ela sugeria que confiassem aquelas poucas gotas de água aos seus anjos da guarda, para que fossem preservadas até a outra vida, para com elas temperar o calor do Purgatório.

Em uma certa ocasião, uma irmã chamada Cecília Avogadra veio pedir permissão para se refrescar com um pouco de água, pois estava com sede. 'Minha filha' - disse a Prioresa - 'faça este pequeno sacrifício pelo amor de Deus e em consideração ao Purgatório'. 'Madre, este sacrifício não é pouco pois realmente estou morrendo de sede' - respondeu a boa irmã mas, embora um tanto triste, obedeceu ao conselho de sua superiora. Este duplo ato de obediência e mortificação foi precioso aos olhos de Deus e a Irmã Cecília logo recebeu a sua recompensa. Com efeito, algumas semanas depois, ela faleceu e, após três dias, apareceu resplandecente em glória à Madre Emilia. 'Ó Madre - ela disse - 'como sou grata a ti! Fui condenada a um longo Purgatório por ter me apegado demais à minha família e eis que, depois de dois dias, vi o meu anjo da guarda entrar em minha prisão, segurando na mão o copo d'água que me fizeste oferecer em sacrifício ao meu Divino Esposo; ele derramou aquela água sobre as chamas que me devoraram e que então se extinguiram imediatamente. Agora estou libertada e alço o meu voo para o Céu, onde a minha gratidão nunca te esquecerá!'.

É assim que os anjos de Deus consolam as almas do Purgatório. Pode-se perguntar aqui como os santos e bem-aventurados já coroados no Céu podem ajudá-las? Isto é certo -  diz o padre Rossignoli -  e tal é o ensinamento de todos os mestres em teologia, como Santo Agostinho e São Tomás, que os santos são muito poderosos a esse respeito por meio de súplica que fazemos a eles por impetração e não por satisfação. Em outras palavras, os santos do Céu podem interceder pelas almas penitentes e assim obter da Divina Misericórdia uma abreviação dos seus sofrimentos, mas não podem satisfazer por eles e nem pagar as suas dívidas para com a Justiça Divina, pois este é um privilégio reservado por Deus apenas à Igreja Militante.

Capítulo IX

Auxílio às Santas Almas - Sufrágios pelas Boas Obras - A Misericórdia de Deus - Revelações de Santa Gertrudes - O Sacrifício de Judas Macabeu 

Se Deus consola as almas com tanta bondade, a sua misericórdia resplandece ainda mais claramente no poder que dá à sua Igreja de abreviar a duração dos seus sofrimentos. Desejando executar com clemência a severa sentença da sua Justiça, Ele concede alívio e mitigação da dor, mas o faz de forma indireta por meio da intervenção dos vivos. Ele nos dá todo o poder para socorrer os nossos irmãos padecentes por meio dos sufrágios, isto é, por meio da impetração e da satisfação.

A palavra sufrágio na linguagem eclesiástica é sinônimo de oração, mas quando o Concílio de Trento declara que as almas do Purgatório podem ser assistidas pelos sufrágios dos fiéis, o sentido da palavra toma um sentido mais abrangente, incluindo tudo aquilo que podemos oferecer a Deus em favor dos falecidos. Assim, podemos oferecer a Deus não apenas as nossas orações, mas todas as nossas boas obras, na medida em que se constituam impetratórias ou satisfatórias.

Para entender bem esses termos, lembremos que cada uma de nossas boas obras, realizadas em estado de graça, possui ordinariamente um triplo valor aos olhos de Deus: (i) o caráter meritório, ou seja, faz aumentar o nosso mérito e nos dá direito a um novo grau de glória no Céu; (ii)  o caráter impetratório (impetrar, obter) pelo que, tal como uma oração, tem a virtude de obter alguma graça de Deus; (iii) o caráter satisfatório, que incorpora, por assim dizer, um valor intrínseco capaz de satisfazer a Justiça Divina e pagar as nossas dívidas da pena temporal perante Deus. 

O mérito é inalienável e permanece sempre como propriedade da pessoa que pratica a ação. Pelo contrário, os valores impetratório e satisfatório das nossas boas obras pode beneficiar a outros, em virtude da comunhão dos santos. Isto entendido, coloquemos esta questão prática – Quais são os sufrágios pelos quais, segundo a doutrina da Igreja, podemos socorrer as almas do Purgatório? A esta pergunta respondemos: orações, esmolas, jejuns e penitências de toda espécie, indulgências e, sobretudo, o Santo Sacrifício da Missa. Por meio de todas estas obras, realizadas em estado de graça, Jesus Cristo nos permite oferecê-las à divina Majestade para alívio de nossos irmãos do purgatório e Deus as aplica a essas almas de acordo com as regras de sua justiça e misericórdia. Neste arranjo admirável, ao mesmo tempo em que protege os direitos de sua Justiça, nosso Pai Celestial multiplica os efeitos de sua Misericórdia, que é assim exercida, ao mesmo tempo, em favor da Igreja Padecente e da Igreja Militante. A assistência misericordiosa que Ele nos permite dar aos nossos irmãos sofredores é também de grande proveito para nós mesmos. É um exercício de graça não vantajoso apenas para os que partiram, mas também santo e salutar para os vivos - sancta et salubris est cogitatio pro de functis exorare.

Lemos nas Revelações de Santa Gertrudes que uma humilde religiosa de sua comunidade, tendo coroado uma vida exemplar com uma morte muito piedosa, Deus se dignou a mostrar à santa o estado da falecida na outra vida. Gertrudes viu sua alma adornada com beleza inefável e querida por Jesus, que a olhou com amor. No entanto, por causa de alguma negligência leve ainda não expiada, ela não pôde entrar no céu, mas foi obrigada a descer à morada sombria do sofrimento. Mal ela havia emergido em suas profundezas, a santa a viu reaparecer e subir ao Céu, conduzida pelos sufrágios da Igreja. Ecclesiae precibus sursum ferri (Legado Div. Pietatis, lib. 5., c. 5).

Mesmo na Antiga Lei, orações e sacrifícios eram oferecidos pelos mortos. A Sagrada Escritura relata como louvável a ação piedosa de Judas Macabeu após a sua vitória sobre Górgias, general do rei Antíoco. Os soldados cometeram uma falta ao retirar dos despojos alguns objetos oferecidos aos ídolos, o que por lei lhes eram proibidos de fazer. Então Judas, chefe do exército de Israel, ordenou orações e sacrifícios pela remissão de seus pecados e pelo repouso de suas almas. Vejamos como esse fato está relacionado nas Escrituras (2 Mc 12,39): 'Depois do sábado, Judas foi com sua companhia para levar os corpos daqueles que foram mortos e sepultá-los com seus parentes nos sepulcros de seus pais. E eles encontraram, sob as túnicas dos mortos, alguns dos donativos dos ídolos de Jamnia, que a lei proíbe aos judeus; de modo que todos viram claramente que, por essa causa, foram mortos. Então todos eles louvaram o justo julgamento do Senhor, que havia descoberto as coisas que estavam escondidas. E, pondo-se em oração, rogaram que o pecado deles fosse esquecido. O valoroso Judas exortou o povo a se abster do pecado, pois viram diante de seus olhos o que havia acontecido, por causa do pecado daqueles que foram mortos. E fazendo depois uma coleta, ele enviou doze mil dracmas de prata a Jerusalém para a oferta de um sacrifício pelos pecados dos mortos. Belo e santo modo de agir pela sua crença sobre a ressurreição! Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles e por acreditar que aqueles que morrem piedosamente podem esperar uma grande graça reservada para eles. Portanto, é um pensamento santo e louvável rezar pelos mortos, para que possam ser perdoados dos seus pecados'.

Capítulo X

Auxílio às Santas Almas - Santo Agostinho e Santa Mônica - O Santo Sacrifício da Missa 

Na Nova Lei temos o Santo Sacrifício da Missa, do qual os diversos sacrifícios da Lei Mosaica eram apenas pálidas referências. O Filho de Deus a instituiu, não só como digna homenagem prestada pela criatura à Divina Majestade, mas também como propiciação pelos vivos e pelos mortos; isto é, como um meio eficaz de apaziguar a Justiça de Deus, provocada pelos nossos pecados. O Santo Sacrifício da Missa foi celebrado em intenção dos falecidos desde o tempo da fundação da Igreja. 'Celebramos o aniversário do triunfo dos mártires' - escreve Tertuliano no século III - 'e, segundo a tradição de nossos pais, oferecemos o Santo Sacrifício pelos falecidos no aniversário de sua morte' (De Corona, c. 5).

'Não se pode duvidar' - escreve Santo Agostinho - 'que as orações da Igreja, o Santo Sacrifício e as esmolas distribuídas pelos defuntos aliviam essas almas santas e movem Deus a tratá-las com mais clemência do que merecem os seus pecados. É a prática universal da Igreja, uma prática que ela conserva tal como tendo recebido dos seus antepassados ​​– isto é, dos santos Apóstolos' (Serm. 34, De Verbis Apost.). 

Santa Mônica, a digna mãe de Santo Agostinho, quando estava prestes a expirar, pediu apenas uma coisa ao seu filho: que ele se lembrasse dela no altar de Deus e o santo Doutor, ao relatar essa comovente circunstância no Livro de suas Confissões, pede a todos os seus leitores que se unam a ele para recomendá-la a Deus durante o Santo Sacrifício da Missa (Liv. 9., c. 5). Desejando retornar para a África, Santa Mônica foi com Santo Agostinho até Ostia, a fim de embarcar; mas ela adoeceu e logo sentiu que seu fim estava se aproximando. 'É aqui' - disse ela ao filho - 'que você vai enterrar a sua mãe. A única coisa que peço a você é que se lembre de mim no altar do Senhor' - Ut ad altare Domini memineritis mei

Santo Agostinho continua: 'Que me perdoem as lágrimas que então derramei, pois não se deve lamentar aquela morte que foi apenas a entrada para a verdadeira vida. No entanto, considerando com os olhos da fé as misérias de nossa natureza caída, posso derramar diante de Ti, ó Senhor, outras lágrimas além das da carne, lágrimas que fluem ao pensar no perigo a que se expõe toda alma que pecou por Adão'.

'É certo que minha mãe viveu de maneira a dar glória ao Vosso Nome, pela atividade de sua fé e pela pureza de seus costumes; ainda ouso afirmar que nenhuma palavra contrária à Tua lei jamais escapou de seus lábios? Infelizmente o que será da vida mais santa se a examinares em todos os rigores da tua justiça? Por isso, ó Deus do meu coração, deixo de lado as boas obras que minha mãe tem feito para pedir-Vos apenas o perdão dos seus pecados. Ouve-me pelas chagas daquele que morreu por nós na Cruz e que, agora sentado à tua direita, é o nosso Mediador'.

'Sei que minha mãe sempre teve misericórdia, que perdoou de coração todas as ofensas e perdoou todas as dívidas que lhe eram devidas. Cancela então as dívidas dela, se durante o curso de sua longa vida houver alguma devida a Ti. Perdoa-a, ó Senhor, perdoa-a, e não entres em juízo contra ela; pois Tuas palavras são verdadeiras; Tu prometeste misericórdia aos misericordiosos'.

'Esta misericórdia, creio, já lhe mostraste, ó meu Deus; mas aceita a homenagem da minha oração. Lembre-se que, em sua passagem para a outra vida, tua serva não desejou para seu corpo nem um funeral pomposo e nem perfumes preciosos; ela não pediu uma sepultura magnífica, nem que fosse carregada para aquele sepulcro que havia mandado construir em Tagaste, sua terra natal; mas apenas para que nos lembremos dela em teu altar, cujos mistérios ela prezava'.

'Tu sabes, Senhor, que todos os dias de sua vida ela participou daqueles Divinos Mistérios que contêm a Santa Vítima cujo sangue apagou a sentença de nossa condenação. Que ela descanse então em paz com meu pai, seu esposo, com o esposo a quem ela foi fiel durante todos os dias de sua união, e nas dores de sua viuvez com aquele de quem ela se fez humilde servo, para conquistá-lo para ti. pela sua mansidão e paciência. E Tu, ó meu Deus, inspira os teus servos, que são meus irmãos, inspira todos aqueles que leem estas linhas a se lembrarem em teu altar de Mônica, tua serva e Patrício, que era o seu esposo; que todos os que ainda vivem na falsa luz deste mundo possam se lembrar piedosamente dos meus pais, que a última oração de minha mãe moribunda seja ouvida e acatada, muito além de suas expectativas'.

Esta bela passagem de Santo Agostinho nos mostra a opinião deste grande Doutor sobre o tema dos sufrágios pelos defuntos e nos mostra claramente que o maior e mais eficaz de todos os sufrágios é o Santo Sacrifício da Missa.

Capítulo XI

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - Jubileu do Papa Leão XIII e a Solene Comemoração dos Defuntos

Temos assistido com que vivo e santo entusiasmo a Igreja celebrou o Jubileu Sacerdotal do seu venerado pontífice, o Papa Leão XIII. Os fieis de todas as partes do mundo foram a Roma, pessoalmente ou de coração, para oferecer as suas homenagens e presentes aos pés do Vigário de Jesus Cristo. Toda a Igreja Militante rejubilou-se então em meio às suas longas provações.

A Igreja Triunfante no Céu participou desta alegria pela canonização e beatificação de um grande número de seus gloriosos membros. Não era apropriado, portanto, que a Igreja Padecente também participasse desse momento? Nossos queridos irmãos do Purgatório deveriam ser esquecidos? Aquelas almas tão queridas ao coração de Jesus não deveriam experimentar também os felizes efeitos daquela gloriosa solenidade?

Leão XIII entendeu que sim. Sempre guiado pelo Espírito Santo, ao atuar como Pastor Supremo, o Papa, por meio de Carta Encíclica datada de 1º de abril de 1888, decretou que, em todo o mundo cristão, deveria haver uma solene Comemoração dos Defuntos no último domingo do mês de setembro. Recordando com que amor admirável a Igreja Militante manifestou a sua alegria, e como a Igreja Triunfante se alegrou com ela, 'para coroar, em certo sentido' - diz o nosso Santo Padre - 'esta exultação geral, desejamos cumprir, como perfeitamente possível, o dever de nossa caridade apostólica, estendendo a plenitude dos infinitos tesouros espirituais àqueles filhos amados da Igreja que, tendo morrido a morte dos justos, deixaram esta vida de combate com o sinal da fé, e tornaram-se ramos da videira mística, embora não lhes seja permitido entrar ainda na paz eterna até que tenham pago o último centavo da dívida que devem à justiça infinita de Deus.

'Somos movidos a isso tanto pelos desejos piedosos dos católicos, a quem sabemos que nossa resolução será particularmente querida, quanto pela intensidade agonizante das dores sofridas pelas almas que partiram; mas somos especialmente inspirados pelo costume da Igreja, que, em meio às solenidades mais festivas do ano, não esquece a santa e salutar comemoração dos mortos para que sejam libertados de seus pecados'.

'Por esta razão, uma vez que é certo da doutrina católica que as almas detidas no Purgatório são aliviadas pelos sufrágios dos fiéis, e especialmente pelo augusto Sacrifício do Altar, pensamos que não podemos dar nenhuma promessa mais útil nem mais desejável de nosso amor do que multiplicando por toda parte, para mitigação de suas dores, a pura oblação do Santo Sacrifício de nosso Divino Mediador'.

'Portanto, designamos, com todas as dispensas e derrogações necessárias, o último domingo do mês de setembro próximo como dia de ampla expiação; dia em que será celebrada por nós, e também por nossos irmãos, os Patriarcas, Arcebispos, Bispos e todos os outros Prelados que exercem jurisdição em uma diocese, cada um em sua igreja patriarcal, metropolitana ou catedral, uma Missa especial pelos defuntos, com toda a solenidade possível, e segundo o rito indicado pelo missal para a Comemoração de todos os Fieis Defuntos. Aprovamos que o mesmo se faça nas igrejas paroquiais e colegiadas, tanto seculares como regulares, contanto que não seja omitido o ofício próprio da missa do dia em todos os lugares onde tal obrigação exista'.

'No que diz respeito aos fieis, exortamo-los vivamente, depois de terem recebido o Sacramento da Penitência, a alimentarem-se devotamente com o pão dos anjos em sufrágio pelas almas do Purgatório. Por nossa autoridade apostólica, aos fiéis que o fizerem, concedemos a indulgência plenária, a ser aplicada às almas defuntas, e o favor do altar privilegiado a todos aqueles que, como dissemos acima, participarem da celebrarão desta Missa'.

'Assim, as almas santas, que expiam os danos de suas faltas ainda pendentes por aquelas dores agudas, receberão alívio especial e eficaz, graças à Hóstia Salvadora que a Igreja Universal, unida à sua Cabeça visível e animada com o mesmo espírito de caridade, oferecerá a Deus, para que Ele os admita na morada da consolação, da luz e da paz eterna'.

'Deste modo, veneráveis ​​irmãos, concedemos-vos afetuosamente no Senhor, como penhor destes dons celestiais, a bênção apostólica para vós, para todo o clero e para todas as pessoas confiadas aos vossos cuidados. Dado em Roma, sob o selo do Pescador, na solenidade da Páscoa do ano de 1888, décimo primeiro do nosso Pontificado'.

Capítulo XII

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - A Libertação do Monge de Clairvaux - Beato Henrique Suso e o Purgatório 

Nada, de tudo o que podemos fazer em favor das almas do Purgatório, nada há de mais precioso do que a imolação do nosso Divino Salvador sobre o altar. Além de ser a doutrina expressa da Igreja, manifestada em seus Concílios, muitos fatos milagrosos, devidamente autenticados, não deixam margem para dúvidas quanto a este ponto.

Já falamos do monge de Clairvaux que foi libertado do purgatório pelas orações de São Bernardo e sua comunidade. Este monge, cuja vida religiosa não tinha sido tão meritória, apareceu depois da sua morte para pedir a ajuda de São Bernardo. O santo abade, com todos os seus fervorosos discípulos, apressou-se em oferecer orações, jejuns e missas pelo pobre irmão falecido. Este, tendo alcançado a libertação, mostrou-se, cheio de gratidão, a um religioso mais idoso da comunidade, que rezara com especial devoção em sua intenção. Questionado sobre o sufrágio que mais lhe tinha sido proveitoso, em vez de responder diretamente, tomou o ancião pela mão e, conduzindo-o à igreja onde se celebrava a missa, disse, apontando para o altar: 'Eis o grande poder redentor que quebrou minhas correntes; eis o preço do meu resgate: é a hóstia salvadora, que tira os pecados do mundo' (L'Abbe Postel, Le Purgatoire, cap. 5; cf. Rossign., Merv., 47).

Eis aqui outro fato, relatado pelo historiador Fernando de Castela, e citado pelo padre Rossignoli. Havia em Colônia, entre os alunos das classes superiores da universidade, dois religiosos dominicanos de grande talento, um dos quais era o beato Henrique Suso. Os mesmos estudos, o mesmo tipo de vida e, sobretudo, o mesmo gosto pela santidade, fizeram-nos contrair uma íntima amizade e a repartirem mutuamente as mercês que recebiam do Céu.

Terminados os estudos, vendo que iam separar-se, para regressarem cada um ao seu convento, concordaram e prometeram-se mutuamente que o primeiro dos dois que morresse seria assistido pelo outro, durante um ano inteiro, pela celebração de duas missas por semana – uma na segunda-feira como missa de Requiem como era de costume e outra, na sexta-feira (dia da Paixão do Senhor), na medida em que as liturgias permitissem. Assim comprometidos, despediram-se com um beijo da paz e deixaram Colônia. Por vários anos, ambos continuaram a servir a Deus com fervor muito edificante. O irmão, cujo nome não é mencionado, foi o primeiro a falecer e, então, Suso recebeu a notícia com os mais perfeitos sentimentos de resignação à vontade divina. Quanto ao compromisso feito entre ambos, o tempo o fez esquecer. Rezava muito em intenção do amigo, impondo-se contínuas penitências e muitas outras boas obras, mas não pensava em oferecer as missas que havia prometido.

Certa manhã, enquanto meditava em recolhimento na capela, de repente viu aparecer diante dele a alma do amigo defunto, que, olhando para ele com ternura, o repreendeu por ter sido infiel à sua palavra, dada e aceita, à qual tinha direito legítimo de ter recebido dele com toda confiança. O bem aventurado Suso, envergonhado, desculpou-se por seu esquecimento, enumerando as orações e mortificações que havia oferecido e que ainda continuava a oferecer pelo amigo, cuja salvação lhe era tão cara quanto a sua. 'É possível, meu querido irmão' - acrescentou - 'que tantas orações e boas obras que ofereci a Deus não foram suficientes para você?' 'Ó não, querido irmão' - respondeu a alma sofredora - 'isso não é suficiente. É preciso o sangue de Jesus Cristo para extinguir as chamas que me consomem; somente o augusto Sacrifício pode me redimir destes terríveis tormentos. Rogo-te, pois, que cumpras a tua palavra, e não me recuses o que me deves por justiça'.

O Beato Suso apressou-se em responder ao apelo da alma sofredora e, para reparar a sua falta, celebrou e fez celebrar mais missas do que havia prometido. No dia seguinte, vários sacerdotes, a pedido de Suso, uniram-se a ele para oferecer o Santo Sacrifício pelo falecido e repetiram estes atos de caridade por vários dias. Depois de certo tempo, o amigo de Suso apareceu novamente para ele, mas agora em uma condição muito diferente; seu semblante estava radiante e envolvido por uma luz brilhante: 'Obrigado, meu fiel amigo' - disse ele - 'eis que pelo Sangue do meu Salvador fui liberto dos meus sofrimentos. Agora vou para o Céu contemplar Aquele que tantas vezes adoramos juntos sob o véu eucarístico'. Suso prostrou-se para agradecer ao Deus de toda misericórdia e compreendeu, mais do que nunca, o valor imponderável do Santíssimo Sacrifício do Altar (Rossignoli, Merv., 34; Fernando de Castela).

Capítulo XIII

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - Santa Isabel e a Rainha Constança - São Nicolau de Tolentino e o pedido do amigo Pellegrino 

Lemos na Vida de Santa Isabel de Portugal [8 de julho] que, após a morte de sua filha Constança, ela ficou sabendo do lamentável estado da falecida no Purgatório e do preço que Deus exigiu pelo seu resgate. A jovem rainha, recém-casada com o rei de Castela, havia sido arrebatada por uma morte súbita do afeto da sua família e dos seus súditos. Isabel, assim que recebera a triste notícia, havia partido com o rei, seu esposo, para a cidade de Santarém, quando um eremita, saindo do seu isolamento, correu atrás do cortejo real, gritando que queria falar com a rainha. Os guardas o repeliram, mas a santa, vendo a persistência de suas intenções, deu ordem para que aquele servo de Deus fosse trazido à sua presença.

O homem relatou então que, enquanto estava rezando em seu convento, apareceu-lhe a Rainha Constança implorando que ele desse a conhecer urgentemente à sua mãe que ela estava padecendo nas profundezas do Purgatório, onde havia sido condenada a longos e terríveis sofrimentos, mas que seria libertada se, durante o período de um ano, o Santo Sacrifício da Missa fosse celebrado por ela todos os dias. Os cortesãos presentes ridicularizaram o eremita, tratando-o como um visionário, um impostor e um tolo. Isabel, dirigindo-se ao rei, perguntou o que ele achava de tudo: 'Eu acredito e seria sábio fazer o que lhe foi revelado de uma maneira tão extraordinária. E, afinal, mandar celebrar missas pelos nossos parentes falecidos nada mais é do que um dever paterno e cristão'. Um santo padre chamado Ferdinand Mendez foi nomeado para rezar as missas.

Ao final de um ano, Constança apareceu a Santa Isabel, vestida com um manto branco brilhante. 'Hoje, querida mãe' - disse ela - 'fui libertada das dores do Purgatório e estou prestes a entrar no Céu'. Cheia de consolo e alegria, a santa dirigiu-se à igreja para agradecer a Deus. Lá  encontrou o padre Mendez que assegurou a ela que, que no dia anterior, havia terminado a celebração das trezentas e sessenta e cinco missas que lhe haviam sido confiadas. A Rainha então entendeu que Deus havia cumprido a promessa que Ele havia feito ao piedoso eremita  e testemunhou a sua gratidão distribuindo abundantes esmolas aos pobres.

'Vós nos livrastes dos que nos afligem, e e envergonhastes os que nos odeiam' (Salmo 43). Tais foram as palavras dirigidas ao ilustre São Nicolau de Tolentino pelas almas pelas quais ofereceu o Santo Sacrifício da Missa. Uma das maiores virtudes desse admirável servo de Deus, diz o Padre Rossignoli, foi a sua caridade e sua devoção à Igreja Padecente (Merv., 21; Vie de Saint Nic. de Tolentino, 10 set.). Por ela, jejuava frequentemente a pão e água, infligia disciplinas cruéis a si mesmo e usava em torno da cintura uma pesada corrente de ferro. Quando estava para receber a dignidade do sacerdócio, hesitou muito antes de receber as ordens sagradas, mas assim o fez, com o pensamento de que, celebrando diariamente o Santo Sacrifício, poderia ajudar com muito mais eficácia as almas sofredoras do Purgatório. Por outro lado, as almas que ele socorreu com tantos sufrágios apareceram-lhe várias vezes para lhe agradecer ou para se recomendar à sua caridade.

Ele vivia perto de Pisa, inteiramente ocupado com os seus exercícios espirituais, quando em um sábado à noite viu em sonho uma alma em sofrimento, que lhe rogava que celebrasse a Santa Missa na manhã seguinte por ela e por várias outras almas que sofriam terrivelmente em Purgatório. O santo reconheceu a voz, mas não conseguia lembrar-se claramente da pessoa que falava com ele. 'Eu sou' - disse a aparição - 'o seu amigo falecido Pellegrino d'Osimo. Pela Divina Misericórdia, escapei do castigo eterno pelo meu arrependimento, mas não do castigo temporal devido aos meus pecados. Venho em nome de muitas almas infelizes como eu para pedir-vos que amanhã celebreis a Santa Missa por nós e, por meio dela, esperamos a nossa libertação ou pelo menos receber um grande alívio'. O santo respondeu, com a sua habitual amabilidade: 'Que Nosso Senhor se digne aliviar-te pelos méritos do seu precioso Sangue! Mas esta missa pelos mortos não posso rezar amanhã, pois devo cantar a Missa conventual em coro'. 'Ah! pelo menos venha comigo' - respondeu a aparição, entre gemidos e lágrimas - 'Eu te imploro, pelo amor de Deus, que venha e veja nossos sofrimentos e se é possível recusar as nossas súplicas e nos deixar sofrer tão severas agonias.

Pareceu ao santo então ter sido transportado ao Purgatório. Ele viu como que uma vasta planície, onde uma imensa multidão de almas, de todas as idades e condições, padeciam de torturas de todo tipo e terríveis de se ver. Por gestos e palavras, as almas imploravam por auxílio: 'Eis' - disse Pellegrino- 'o estado de sofrimento daqueles que me enviaram a você. Visto que sois agradável ​​aos olhos de Deus, temos confiança de que Ele nada recusará à oblação do Sacrifício por vós oferecido e que a sua Divina Misericórdia nos livrará'. Diante dessa terrível visão, o santo não pôde conter as lágrimas. Imediatamente pôs-se em oração para consolá-los dos tormentos e, na manhã seguinte, dirigiu-se ao prior, relatando-lhe a visão que tivera e o pedido de Pellegrino sobre a missa daquele dia. O Padre Prior, partilhando a sua emoção, dispensou-o de pronto de rezar a missa conventual,  no dia e no resto da semana, para poder assim oferecer o Santo Sacrifício pelos falecidos e dedicar-se inteiramente ao alívio das almas sofredoras. Agradecido por tal permissão, Nicolau dirigiu-se à igreja e celebrou a Santa Missa com extraordinário fervor. Durante toda a semana continuou a celebrar o Santo Sacrifício pela mesma intenção, além de oferecer orações diurnas e noturnas pelas almas, além de outras penitências e todo tipo de boas obras.

No final da semana, Pellegrino apareceu novamente diante dele, mas agora não mais em estado de sofrimento, mas revestido com uma roupa branca e o esplendor de uma luz celestial, que envolvia também um grande número de outras almas. Todos o agradeceram, chamando-o de libertador; então subindo em direção ao Céu, eles entoaram estas palavras do salmista: Salvasti nos de affligentibus nos, et odientes nos confudisti - 'Vós nos livrastes dos que nos afligem, e e envergonhastes os que nos odeiam' (Salmo 43), sendo que os inimigos aqui mencionados constituem os pecados e os demônios, os seus instigadores.

Capítulo XIV

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - Padre Gerard e as Três Conversões - As Trintas Missas de São Gregório

Vamos agora considerar os efeitos sobrenaturais da Missa de uma outra forma, mas que provam não menos claramente a eficácia do Santo Sacrifício quando oferecido pelos defuntos. Nós os encontramos nas Memórias do Padre Gerard, um jesuíta inglês e confessor da fé durante as perseguições religiosas na Inglaterra no século XVI. 

Depois de relatar como recebeu a abjuração de um cavalheiro protestante, casado com uma de suas primas, padre Gerard acrescenta: 'Esta conversão levou a outra nas circunstâncias mais extraordinárias. Meu novo convertido foi ver um de seus amigos que estava gravemente doente. Este era um homem justo, detido na heresia mais por ilusão do que por qualquer outro motivo. O visitante exortou-o com urgência a se converter e a pensar em sua alma; e obteve dele a promessa de que faria a sua confissão. Neste sentido, instruiu-o em tudo e o ensinou a se preparar na contrição dos seus pecados, enquanto foi procurar um padre. Mas ele teve grande dificuldade em encontrar um, e nesse ínterim o doente morreu. Quando estava prestes a expirar, o pobre moribundo perguntava frequentemente se o amigo ainda não havia voltado com o 'médico' que ele havia prometido trazer; era assim que ele chamava o padre católico.

O que se seguiu mostrou que Deus aceitou a boa fé do falecido. Nas noites seguintes à sua morte, sua esposa, protestante, viu uma luz movendo-se em seu quarto e até passando através das cortinas de sua cama. Com medo, ela chamou uma de suas criadas para dormir com ela no quarto, mas esta não via nada, embora a luz continuasse visível aos olhos de sua senhora. A pobre senhora mandou chamar então o amigo cujo regresso o marido tanto esperara, contou-lhe o sucedido e perguntou o que devia ser feito. Este amigo, antes de dar uma resposta, consultou um padre católico. O padre lhe disse que a luz era, para a esposa do falecido, um sinal sobrenatural pelo qual Deus a convidava a retornar à Verdadeira Fé. A senhora ficou profundamente impressionada com essas palavras e abriu então o seu coração à graça e, por sua vez, foi convertida.

Uma vez convertida, mandou celebrar a missa em seu quarto por algum tempo, mas a luz sempre voltava. O padre, considerando essas circunstâncias diante de Deus, refletiu que o falecido, embora salvo por seu arrependimento acompanhado pelo desejo de confissão, estava no purgatório e, portanto, precisava de orações. Aconselhou à sua senhora que mandasse rezar missa pela alma dele durante trinta dias, segundo um antigo costume dos católicos ingleses. A boa viúva seguiu este conselho e, no trigésimo dia, em vez de uma luz, viu três, sendo que duas delas pareciam apoiar a terceira. As três luzes pairaram sobre a sua cama, depois elevaram-se até o teto e desapareceram, para nunca mais voltar. Essas três luzes parecem ter significado as três conversões e a eficácia do Santo Sacrifício da Missa para abrir o Céu às almas que partiram'.

As trinta missas que eram rezadas por trinta dias consecutivos não é um costume apenas inglês, como é chamado pelo padre Gerard, mas também é amplamente difundido na Itália e em outros países cristãos. Essas missas são chamadas as Trinta Missas de São Gregório, porque o piedoso costume parece remontar a este grande papa. Assim é relatado em seus Diálogos (Livro 4, cap. 40): Um religioso, chamado Justus, havia recebido e guardado para si três moedas de ouro. Esta foi uma falta grave contra seu voto de pobreza. Ele foi descoberto e excomungado. Esta pena salutar o fez entrar em si mesmo e, algum tempo depois, morreu com verdadeiros sentimentos de arrependimento. No entanto, São Gregório, para inspirar aos irmãos um vivo horror ao pecado da avareza em um religioso, não retirou a sentença de excomunhão. Justus foi enterrado separado dos outros monges e as três moedas foram jogadas na sepultura, enquanto os religiosos repetiam todos juntos as palavras de São Pedro a Simão, o Mago: Pecunia tua tecum sit in perditionem – Pereça contigo o teu dinheiro! (At 8,20).

Algum tempo depois, o santo Abade, julgando que o escândalo estava suficientemente reparado e movido de compaixão pela alma de Justus, chamou o sacristão [monge responsável pelos serviços religiosos do mosteiro] e disse-lhe com tristeza: 'Desde o momento de sua morte, nosso irmão é torturado pelas chamas do Purgatório; devemos por meio da caridade fazer um esforço para libertá-lo. Vá, então, e cuide para que, de agora em diante, o Santo Sacrifício seja oferecido em sua intenção por trinta dias; não deixe passar uma manhã sem que a Vítima da Salvação seja oferecida para a sua libertação'. O sacristão obedeceu prontamente. As trinta missas foram celebradas ao longo de trinta dias consecutivos. Quando chegou o trigésimo dia e terminou a trigésima missa, o defunto apareceu a um irmão chamado Copiosus, dizendo: 'Bendito seja Deus, meu querido irmão, hoje fui libertado e admitido na sociedade dos santos'. Desde então estabeleceu-se este piedoso costume de celebrar trinta missas em intenção das almas dos defuntos.

Capítulo XV

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - A Aparição de Eugenie Van de Kerchove - O Camponês e o Príncipe Polonês

Nada é mais conforme ao espírito cristão do que oferecer o Santo Sacrifício para o alívio das almas que partiram, e seria uma grande desgraça se o zelo dos fieis esfriasse a esse respeito. Deus parece multiplicar prodígios para nos impedir de cair em tão fatal relaxamento. O seguinte incidente é atestado por um digno padre da diocese de Bruges, que o recebeu de sua fonte primitiva, e cujo testemunho carrega toda a certeza de uma testemunha ocular sobre o fato. Em 13 de outubro de 1849, morreu com a idade de cinquenta e dois anos, na freguesia de Ardoye, na Flandres, uma mulher chamada Eugenie Van de Kerchove, cujo marido, John Wybo, era agricultor. Ela era uma mulher piedosa e caridosa, dando esmolas com uma generosidade proporcional aos seus meios.

Ela teve, até o fim de sua vida, uma grande devoção à Santíssima Virgem e, em sua honra, fazia abstinência nas sextas-feiras e nos sábados de cada semana. Embora sua conduta não fosse isenta de certas falhas domésticas, ela levou uma vida exemplar e edificante. Uma criada chamada Barbara Vennecke, de vinte e oito anos, uma jovem virtuosa e dedicada, e que havia ajudado sua patroa nos momentos finais de doença, continuou a servir a John Wybo, o viúvo de Eugenie.

Cerca de três semanas após a sua morte, a falecida apareceu à sua serva em circunstâncias que vamos relatar. Foi no meio da noite; Bárbara dormia profundamente, quando ouviu distintamente ser chamada três vezes pelo seu nome. Ela acordou sobressaltada e viu diante de si a sua patroa, sentada ao lado de sua cama, vestida em roupas de serviço, compostas por saia e jaqueta curta. Diante da visão, por estranho que pareça, Bárbara não se assustou nem um pouco e conservou a sua presença de espírito. A aparição falou com ela: 'Bárbara' - disse, simplesmente pronunciando seu nome.  'O que você deseja, Eugenie?' - respondeu a serva. 'Pegue o pequeno ancinho que muitas vezes lhe disse para colocar em seu lugar; remexa o monte de areia no quartinho; você sabe ao qual me refiro. Lá você encontrará uma certa quantia em dinheiro; use-a para rezar missas em minha intenção, dois francos para cada uma, pois ainda estou sofrendo'. 'Farei isso, Eugenie' - respondeu Bárbara, e no mesmo instante a aparição desapareceu. A serva, ainda bastante serena, adormeceu novamente e repousou tranquilamente até de manhã.

Ao acordar, Bárbara acreditou ter sido tudo um sonho, mas estava profundamente impressionada, pois tinha a impressão de ter ficado desperta e ter visto a sua velha patroa de forma tão distinta e tão cheia de vida, e da qual recebera instruções tão precisas, que não pôde deixar de pensar: 'Não é assim que sonhamos; vi a minha senhora pessoalmente; ela se apresentou diante dos meus olhos e falou comigo. Isto não é um sonho, mas uma realidade'. A seguir, ela pegou o ancinho conforme lhe fôra indicado, remexeu na areia e ali encontrou uma bolsa contendo a quantia de quinhentos francos.

Diante de circunstâncias tão estranhas e extraordinárias, a jovem julgou ser seu dever consultar o pastor e foi relatar-lhe tudo o que havia acontecido. O venerável Abade R., então pároco de Ardoye, respondeu que as missas pedidas pela falecida deviam ser celebradas mas, considerando a quantia em dinheiro, era necessário o consentimento prévio do marido. Este último consentiu de bom grado que o dinheiro fosse empregado para tão santo propósito, e as missas foram celebradas, sendo aplicados dois francos por cada missa. Chamamos a atenção para a circunstância da taxa, porque correspondia ao piedoso costume da falecida. A taxa para uma missa fixada pela tarifa diocesana à época era de cerca de um franco e meio, mas a esposa de Wybo, por consideração pessoal e ao clero, obrigado naquele momento de escassez a socorrer um grande número de pobres, concedia dois francos para cada missa que costumava celebrar.

Dois meses após a primeira aparição, Bárbara foi novamente acordada durante a noite. Desta vez, seu quarto foi iluminado por uma luz brilhante, e sua senhora revelou-se tão bela quanto nos seus dias de juventude, vestida com um manto de deslumbrante brancura, olhando-a com um sorriso amável. 'Bárbara' - disse com uma voz clara e audível - 'eu te agradeço; estou libertada'. Dizendo essas palavras, ela desapareceu e o quarto tornou-se escuro como antes. A serva, maravilhada com o que tinha visto, foi tomada de grande alegria. Essa aparição causou a impressão mais viva em sua mente, e ela preserva até hoje a lembrança mais consoladora de tudo. É dela que temos esses detalhes tão específicos, por especial concessão do venerável abade R., então pároco em Ardoye quando esses fatos ocorreram.

O célebre Padre Lacordaire, no início das conferências sobre a imortalidade da alma, que ministrou alguns anos antes de sua morte aos alunos de Soreze, relatou-lhes o seguinte incidente: o príncipe polonês de X., infiel e materialista declarado, acabara de compor uma obra contra a imortalidade da alma. Ele estava a ponto de enviá-la  à imprensa quando certo dia, passeando pelos seus parques, encontrou uma mulher que, em prantos, prostrou-se aos seus pés e tomada de profunda dor lhe disse: 'Meu bom príncipe, meu marido acaba de falecer. Neste momento, a sua alma talvez esteja sofrendo no Purgatório. Estou em estado de tal pobreza que não tenho nem mesmo a pequena quantia necessária para celebrar uma missa pelos defuntos. Por sua bondade, intervenha em meu auxílio em favor da alma do meu pobre marido'.

Embora o príncipe estivesse convencido da falsa credulidade daquela mulher, não teve coragem de recusar o seu pedido, dando-lhe então uma moeda de ouro. A pobre mulher correu em direção à igreja e fez a oferta ao sacerdote para oferecer algumas missas pelo repouso da alma do seu marido. Cinco dias depois, ao entardecer, o príncipe, no isolamento de seu escritório, estava lendo o manuscrito e retocando alguns detalhes do texto de sua autoria quando, erguendo os olhos, viu, diante de si, um homem vestido com trajes de camponês. 'Príncipe' - disse o visitante desconhecido - 'venho agradecer-lhe, pois sou o marido daquela pobre mulher que outro dia lhe implorou para lhe dar uma esmola, com a qual pudesse oferecer o Santo Sacrifício da Missa em intenção da minha alma. A tua caridade agradou a Deus: foi Ele quem me permitiu vir agradecer-te pessoalmente'. Ditas essas palavras, o camponês desapareceu como uma sombra. A emoção do príncipe foi indescritível e, de pronto, lançou os seus escritos às chamas, e se rendeu tão inteiramente à convicção da verdade que sua conversão foi imediata e completa, nela perseverando até a sua morte.

Capítulo XVI

Auxílio às Santas Almas - Liturgia da Igreja para o Dia de Finados - Santo Odilo e o Decreto de Cluny 

A Santa Igreja possui uma liturgia especial para os defuntos: é composta de vésperas, matinas, laudes e da comumente chamada 'missa de requiem'. Esta liturgia, tão comovente quanto sublime por meio do luto e das lágrimas, desvela aos olhos dos fieis a luz consoladora da eternidade. Esta liturgia é proferida nos funerais dos seus filhos e, particularmente, no dia solene da comemoração dos mortos. A Santa Missa aqui ocupa o primeiro lugar; é como o centro divino ao redor do qual todas as outras orações e cerimônias se agrupam. No dia seguinte ao Dia de Todos os Santos, na grande solenidade de Finados, todos os sacerdotes devem oferecer o Santo Sacrifício pelos mortos; dia em que os fieis têm o dever de assistir, e até oferecer a Sagrada Comunhão, orações e esmolas, para alívio do sofrimento dos seus irmãos no Purgatório. 

Esta festa em memória dos falecidos não é de origem muito antiga. Desde o início, a Igreja sempre rezou pelos seus filhos defuntos: cantou salmos, recitou orações, ofereceu a Santa Missa pelo repouso de suas almas. No entanto, não se tinha uma missa especial para recomendar a Deus as almas dos mortos em geral. Foi somente no século X que a Igreja, sempre guiada pelo Espírito Santo, instituiu o dia solene de comemoração de todos os defuntos, para encorajar os fieis a cumprir o grande dever de oração pelos defuntos, conforme prescrito pela caridade cristã. O berço desta comovente solenidade teve lugar na Abadia de ClunySanto Odilo, então abade da mesma no final do século X, edificou toda a França com sua caridade para com o próximo. Estendendo sua compaixão até os mortos, ele não deixava de rezar também pelas almas do Purgatório. Foi esta terna caridade que o inspirou a estabelecer no seu mosteiro, como também nos seus arredores, a festa da comemoração de todas as almas defuntas. Acreditamos, como nos diz o historiador Berault, que ele havia recebido uma revelação nesse sentido, pois Deus lhe manifestara de maneira milagrosa como agradava aos Céus a devoção do seu servo. 

Eis como isso é relatado pelos seus biógrafos. Enquanto o santo abade dirigia o seu mosteiro na França, um piedoso eremita vivia em uma pequena ilha na costa da Sicília. Certo dia, um peregrino francês foi lançado na costa desta pequena ilha por uma tempestade. O eremita, a quem foi dado conhecer, perguntou-lhe se conhecia o abade Odilo. 'Certamente' - respondeu o peregrino - 'eu o conheço e tenho orgulho de conhecê-lo; mas como você o conhece e por que me faz essa pergunta?'. 'Ouço muitas vezes' - respondeu o eremita - 'que os espíritos malignos se queixam de pessoas piedosas que, com suas orações e esmolas, livram as almas das dores que suportam na outra vida, mas se queixam principalmente de Odilo, abade de Cluny e dos seus religiosos. Quando, portanto, você retornar ao seu país natal, eu imploro a você, em nome de Deus, que exorte o santo abade e os seus monges a redobrar suas boas obras em favor das pobres almas'.

O peregrino retornou à França e dirigiu-se até o mosteiro, cumprindo o que lhe havia sido recomendado. Em função disso, Santo Odilo ordenou que, em todos os mosteiros do seu Instituto, no dia seguinte ao dia de Todos os Santos, fosse feita uma comemoração especial pelas almas de todos os fieis defuntos, por meio da recitação das vésperas pelos mortos nas horas da véspera e das matinas da manhã seguinte, repique de sinos e celebração de missa especial pelo repouso das almas falecidas. Este decreto, redigido em Cluny, válido para o mosteiro e para todos os demais do instituto, ainda hoje se conserva e essa prática tão piedosa passou rapidamente a ser aplicada para outras igrejas e, com o tempo, tornou-se de observância universal para todo o mundo católico.

Capítulo XVII

Auxílio às Santas Almas - O êxtase de João de Alvernia - O exemplo de Santa Madalena de Pazzi - São Malaquias e sua Irmã Imprudente

Os anais da Ordem Seráfica nos falam de um santo religioso chamado João de Alvernia. Amava ardentemente Nosso Senhor Jesus Cristo e, com o mesmo amor, acolhia as almas resgatadas pelo seu Sangue e tão caras ao seu Coração. Aqueles que sofreram nas prisões do Purgatório tiveram grande intercessão por meio de suas orações, penitências e sacrifícios. Um dia Deus quis manifestar a ele os admiráveis ​​e consoladores efeitos do Divino Sacrifício oferecido no Dia de Finados sobre todos os altares. O Servo de Deus celebrava a missa pelos defuntos naquela solenidade quando foi arrebatado em êxtase. Ele viu o Purgatório aberto e as almas saindo libertadas em virtude do Sacrifício da Propiciação; elas se assemelhavam a inúmeras faíscas que escapavam de uma fornalha ardente. Ficaríamos menos surpresos com os efeitos poderosos da Santa Missa se lembrarmos que ela é o mesmo sacrifício oferecido pelo próprio Filho de Deus na Cruz. É o mesmo Sacerdote, diz o Concílio de Trento, é a mesma Vítima, a única diferença está na forma de imolação: na Cruz, a imolação foi sangrenta e, no altar, é incruenta.

Ora, aquele sacrifício da cruz tem valor infinito; a do altar é, aos olhos de Deus, de valor equivalente. Observemos, no entanto, que a eficácia deste Divino Sacrifício é aplicada apenas parcialmente aos mortos e em uma medida conhecida apenas pela justiça de Deus. A Paixão de Jesus Cristo e o seu Preciosíssimo Sangue derramado pela nossa salvação são um oceano inesgotável de mérito e satisfação. É em virtude dessa Paixão que obtemos todos os dons e misericórdias de Deus. A mera comemoração que dela fazemos por meio da oração, quando oferecemos a Deus o Sangue de seu Filho unigênito, para implorar sua misericórdia - a oração unida e assim fortalecida pela Paixão de Jesus Cristo - tem grande poder junto de Deus. Santa Madalena de Pazzi aprendeu com Nosso Senhor a oferecer ao Pai eterno o Sangue do seu divino Filho, como exortação à Paixão. Ela o fazia cinquenta vezes ao dia e, em um de seus êxtases, viu um grande número de pecadores perdoados e suas almas libertadas do Purgatório por essa prática. 'Cada vez' - Jesus lhe falou - 'que uma criatura oferece ao meu Pai o Sangue pelo qual foi redimida, ela oferece a Ele um presente de valor infinito'. Se tal é o valor de uma oferenda que constitui uma mera exortação à Paixão, o que dizer do Sacrifício da Missa, que é a própria renovação dessa mesma Paixão?

Muitos cristãos não conhecem suficientemente a grandeza dos Divinos Mistérios realizados em nossos altares; a fraqueza de sua fé, juntamente com esta falta de conhecimento, os impede de apreciar o tesouro escondido no Divino Sacrifício e os leva a olhá-lo com uma espécie de indiferença. Infelizmente! Eles verão mais tarde, com amargo pesar, como se enganaram. A irmã de São Malaquias, arcebispo de Armagh, na Irlanda, dá-nos um notável exemplo disso.

São Bernardo, em sua bela 'Vida de São Malaquias', elogia muito aquele prelado pela sua devoção às almas do Purgatório. Quando ainda era diácono, gostava de assistir aos funerais dos pobres e à missa que se celebrava por eles; e acompanhava os seus restos mortais até o cemitério com profundo zelo, tanto maior quando costumava ver aquelas infelizes criaturas negligenciadas após a sua morte. Entretanto, uma sua irmã, movida pelo espírito mundano, julgava que tal prática degradava ao próprio irmão e à toda a sua família por associar-se assim aos pobres. Ele a repreendeu, mostrando que, com o seu comportamento, ela não entendia nem a caridade cristã e nem a excelência do Santo Sacrifício da Missa. Malaquias continuou assim o exercício de sua humilde caridade, limitando-se a responder à irmã que ela havia esquecido os ensinamentos de Jesus Cristo e que um dia se arrependeria de sua linguagem infeliz.

O Céu não deixou impune a temeridade imprudente dessa mulher: ela morreu ainda jovem e foi prestar contas ao Soberano Juiz da vida mundana que havia levado. Malaquias bem que tinha motivos para reclamar da sua conduta mas, diante a sua morte, fez questão de esquecer todos os seus erros e, preocupado somente na salvação da sua alma, ofereceu orações e o Santo Sacrifício pela irmã. Com o passar do tempo, porém, tendo muitos outros por quem orar, ele deixou de concentrar as suas intenções pela alma da irmã. 'Podemos acreditar' - diz Pe. Rossignoli - 'que Deus permitiu que ela fosse esquecida, como punição pela falta de compaixão que ela demonstrou pelos mortos'.

Seja como for, em certa ocasião ela se manifestou ao irmão durante o sono. Malaquias a viu então parada no meio do átrio diante da igreja, triste, vestida de luto e implorando a sua compaixão, por ele a ter esquecido em suas orações nos últimos trinta dias. Ele então acordou de repente e lembrou que, na verdade, fazia trinta dias que não celebrava a missa em intenção da sua irmã. No dia seguinte, ele recomeçou a oferecer o Santo Sacrifício por ela. Então a falecida apareceu para ele à porta da igreja, ajoelhada no umbral, lamentando que ainda não tinha permissão para nela entrar. Ele continuou seus sufrágios. Alguns dias depois, ele a viu entrar na igreja e avançar até o meio do corredor, sem conseguir entretanto, apesar de todos os esforços, aproximar-se do altar. Viu, portanto, que era preciso perseverar ainda mais e , assim, continuou a oferecer o Santo Sacrifício pelo repouso de sua alma. Finalmente, depois de alguns dias, ele a viu junto do altar, vestida com trajes magníficos, radiante de alegria e livre de quaisquer sofrimentos. 'Nisto vemos' - acrescenta São Bernardo - 'quão grande é a eficácia do Santo Sacrifício para remir os pecados, para combater os poderes das trevas e para abrir as portas do Céu às almas que deixaram esta terra'.

Capítulo XVIII

Auxílio às Santas Almas - São Malaquias no Mosteiro de Claraval - Irmã Zenaide - São José de Anchieta e a Missa de Réquiem

Não podemos deixar de contar a graça especial que a grande caridade de São Malaquias para com as santas almas lhe proporcionou. Um dia, estando na companhia de várias pessoas piedosas e conversando familiarmente sobre assuntos espirituais, chegaram a falar do seu último fim. 'Se' - disse ele - 'a escolha fosse dada a cada um de vós, a que hora e em que lugar gostaríeis de morrer?' A esta pergunta, um mencionou uma certa festa, outro uma tal hora e outro ainda, em tal lugar. Quando chegou a vez de o santo exprimir o seu pensamento, disse que não haveria lugar de seu maior agrado de terminar a sua vida do que no Mosteiro de Claraval, sob a direção de São Bernardo, a fim de poder gozar imediatamente do benefício dos sacrifícios daqueles fervorosos religiosos; e quanto a hora, preferia, o dia de Finados, para poder tomar parte em todas as missas e em todas as orações oferecidas em todo o mundo católico pelos fiéis defuntos.

Este seu piedoso desejo foi satisfeito em todos os detalhes. Estava a caminho de Roma para visitar o Papa Eugênio III quando, chegando a Claraval um pouco antes do dia de Finados, foi acometido por uma grave doença que o obrigou a permanecer naquele santo retiro. Compreendeu logo que Deus tinha ouvido as suas preces e exclamou como o profeta: 'Este é o meu repouso para todo o sempre; aqui habitarei, porque o escolhi' (Salmo 131). De fato, no dia seguinte, dia de Finados, enquanto toda a Igreja rezava pelos defuntos, ele entregou a sua alma nas mãos do Criador.

'Conhecemos' - diz o Abade Postel - 'uma santa religiosa chamada Irmã Zenaide que, afligida por uma doença terrível por vários anos, pediu a Nosso Senhor a graça de morrer no Dia de Finados, para o qual sempre tivera grande devoção. Seu desejo foi concedido. Na manhã do dia 2 de novembro, depois de dois anos de sofrimentos suportados com verdadeira coragem cristã, ela começou a entoar um hino de ação de graças e calmamente expirou alguns momentos antes da celebração das missas.

Sabemos que na liturgia católica há uma Missa Especial pelos defuntos; é celebrada com paramentos negros e é chamada de Missa de Réquiem. Pode-se perguntar: esta missa é mais proveitosa para as almas do que qualquer outra? O Sacrifício da Missa, não obstante a variedade de suas cerimônias, é sempre o mesmo Sacrifício infinitamente santo do Corpo e Sangue de Jesus Cristo mas, como a Missa pelos Defuntos contém orações especiais para as almas dos falecidos, ela oferece também uma ajuda especial para elas, pelo menos naqueles momentos em que as leis litúrgicas permitem que o padre celebre trajado de preto. Esta opinião, fundamentada na instituição e na prática da Igreja, é confirmada por um fato que lemos na Vida do Venerável Padre José Anchieta.

Este santo religioso, justamente apelidado de Taumaturgo do Brasil, tinha, como todos os santos, grande caridade para com as santas almas do Purgatório. Um dia, na Oitava de Natal, tempo no qual a Igreja proíbe a celebração de Missas de Réquiem, precisamente no dia 27 de dezembro, festa de São João Evangelista, este homem de Deus, para grande espanto de todos, subiu ao altar com paramentos negros e ofereceu o Santo Sacrifício pelos defuntos. O seu superior, padre Nóbrega, conhecendo a santidade de Anchieta, não duvidou que tivesse recebido uma inspiração divina; no entanto, para remover de tal conduta o caráter de irregularidade que parecia ter, repreendeu o santo sacerdote na presença de todos os irmãos. 'Como foi isso, padre' - disse a ele - 'você não sabe que a Igreja proíbe a celebração da missa em paramentos negros no dia de hoje? Você esqueceu a liturgia?'

O bom padre, bastante humilde e obediente, respondeu com respeitosa simplicidade que Deus lhe havia revelado a morte de um sacerdote da Companhia. Este padre, seu colega de estudos na Universidade de Coimbra, e que nessa altura residia na Itália, no Colégio da Santa Casa de Loreto, falecera naquela noite. 'Deus' - revelou ele - 'tornou-me isso conhecido e deu-me a entender que eu deveria oferecer o Santo Sacrifício em sua intenção imediatamente e fazer tudo ao meu alcance para o repouso de sua alma'. 'Mas' - disse então o Superior - 'como você sabe que a missa celebrada hoje será de algum benefício para ele?' Anchieta respondeu simplesmente: 'Imediatamente após ter feito a memória dos defuntos, quando disse estas palavras: A Vós, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda honra e glória!, Deus me mostrou a alma desse querido amigo, libertada de todos os seus sofrimentos, elevando-se ao Céu para receber a sua coroa de glória'.

Capítulo XIX

Alívio às Santas Almas pelo Santo Sacrifício da Missa - Madre Inês e Irmã Serafina - Rainha Margarida da Áustria e o Arquiduque Alberto - Padre Mancinelli e o Manto da Caridade

Acabamos de falar da eficácia do Santo Sacrifício para aliviar as pobres almas. Uma fé viva neste mistério consolador inflama a devoção dos verdadeiros fiéis e suaviza a amargura da dor da perda. A morte privou-os de um pai, de uma mãe, de um amigo? Voltem os seus olhos lacrimosos em direção ao Altar, que lhes oferece o meio de testemunhar o seu amor e a sua gratidão para com os seus queridos defuntos. Daí resulta as numerosas missas que podem mandar celebrar; daí também esse afã de assistir ao Santo Sacrifício de Propiciação em favor dos defuntos.

A Venerável Madre Inês de Langeac, religiosa dominicana de quem já nos referimos antes, assistia à Santa Missa com a máxima devoção e incentivava as suas religiosas a um fervor semelhante. Dizia-lhes que este Divino Sacrifício era o ato mais santo da religião, a obra de Deus por excelência, e recordava-lhes a Sagrada Escritura: 'Maldito aquele que faz com negligência a obra do Senhor!' (Jr 48,10).

Uma irmã da comunidade chamada Serafina faleceu; ela não tinha prestado atenção suficiente aos conselhos salutares da sua Superiora e foi condenada a um Purgatório severo. Madre Agnes soube disso por revelação. Num êxtase, foi levada em espírito ao lugar da expiação e viu muitas almas no meio das chamas. Entre elas, reconheceu a Irmã Serafina que, por meio de penosos lamentos, implorava a sua ajuda. Tocada pela mais viva compaixão, a caridosa Superiora fez tudo o que estava ao seu alcance: durante oito dias, jejuou, comungou e assistiu à Santa Missa em intenção da querida irmã falecida. Enquanto rezava, entre lágrimas e suspiros, implorando a Divina Misericórdia por meio do precioso Sangue de Jesus, para que Ele tivesse a bondade de livrar a sua querida filha daquelas terríveis chamas e admiti-la ao deleite da sua presença, ela ouviu uma voz que lhe disse: 'Continue a rezar; a hora da libertação dela ainda não chegou'. Madre Agnes perseverou na oração e, dois dias depois, enquanto assistia ao Santo Sacrifício, no momento da elevação, viu a alma da Irmã Serafina elevar-se ao Céu num êxtase de alegria. Esta visão consoladora foi a recompensa da sua caridade e a inflamou ainda mais na devoção pelo Santo Sacrifício da Missa.

As famílias cristãs, que possuem um espírito de fé viva, têm o dever, segundo a sua categoria e os seus meios, de mandar celebrar um grande número de missas pelos defuntos. Na sua santa liberalidade, esgotam os seus recursos para multiplicar os sufrágios da Igreja e assim aliviar as almas santas. Conta-se na Vida da Rainha Margarida de Áustria, esposa de Filipe III que, no dia de suas exéquias, se celebraram na cidade de Madri quase mil e cem missas pelo repouso da sua alma. Esta rainha tinha pedido por mil missas no seu último testamento e o Rei mandou acrescentar este número para vinte mil. Quando o arquiduque Alberto morreu em Bruxelas, a piedosa Isabel, sua viúva, mandou celebrar quarenta mil missas pelo repouso da sua alma e, durante um mês inteiro, ela própria assistiu com a maior piedade às dez missas de cada dia (Padre Mumford, 'Caridade para com os Falecidos').

Um dos modelos mais perfeitos de devoção ao Santo Sacrifício da Missa e da caridade para com as almas do Purgatório, foi o Padre Júlio Mancinelli, da Companhia de Jesus. As missas oferecidas por este digno religioso - diz L. Rossignoli (Merv 23) -  pareciam ter uma eficácia toda especial para o alívio dos fiéis defuntos. As almas apareciam-lhe frequentemente para implorar o favor de uma única Missa. 

César Costa, tio do Pe. Mancinelli, era arcebispo de Cápua. Um dia, encontrando o seu santo sobrinho muito mal vestido, apesar do mau tempo, deu-lhe, com a maior caridade, uma esmola para que comprasse um manto. Pouco tempo depois, o arcebispo faleceu; e o padre, ao sair para visitar os doentes, envolto no seu novo manto, encontrou o seu falecido tio a vir em sua direção, envolto em chamas e a pedir-lhe que lhe emprestasse o seu manto. Assim que o padre concedeu e o arcebispo vestiu o manto, as chamas extinguiram-se de imediato. O Pe. Mancinelli compreendeu que aquela alma estava a sofrer no Purgatório e que pedia a sua ajuda, em troca da caridade que tivera para com ele. Pegando então o manto, prometeu rezar pela pobre alma sofredora com todo o fervor possível, especialmente junto do altar.

Este fato foi noticiado internacionalmente e produziu uma impressão tão salutar que, após a morte do padre, foi representado em uma pintura que se conserva no Colégio de Macerata, a sua terra natal. O Padre Júlio Mancinelli é visto no altar, vestido com as vestes sagradas, um pouco elevado acima dos degraus do altar, para significar o arrebatamento com que foi favorecido por Deus. Da sua boca saem faíscas, emblema das suas orações ardentes e do seu fervor durante o Santo Sacrifício. Sob o altar, vê-se o Purgatório e as almas que recebem o benefício dos seus sufrágios. Por cima dele, dois anjos derramam de vasos esplendorosos uma chuva de ouro, significando as bênçãos, as graças e os privilégios concedidos às pobres almas em virtude do Santo Sacrifício. Vemos também o manto e uma inscrição em verso, que traduzida diz assim: 'Ó veste milagrosa, dada como proteção contra a severidade do frio e que depois serviu para temperar o calor do fogo. É assim que a caridade atua, dando calor ou refrigério, segundo os sofrimentos que alivia'.

Capítulo XX

Alívio às Santas Almas pelo Santo Sacrifício da Missa - Santa Teresa e Bernardino de Mendoza - Número de Missas x Pompas das Exéquias

Concluamos o que dissemos sobre o Santo Sacrifício com as palavras que Santa Teresa relata sobre Bernardino de Mendoza. Ela relata este fato no seu Livro das Fundações (capítulo 10), da seguinte forma: 'Na Festa de Finados, Dom Bernardino de Mendoza doou uma casa com um belo jardim, em Madrid, para que ela fundasse ali um mosteiro em honra da Mãe de Deus. Dois meses depois, ele adoeceu subitamente e perdeu a fala, de modo que não podia nem confessar, embora desse muitos sinais de contrição. 'Morreu '- diz Santa Teresa - 'muito pouco tempo depois, e longe do lugar onde eu estava. Mas Nosso Senhor falou-me e me disse que ele estava salvo, apesar de ter corrido um grande risco; mas que a misericórdia lhe tinha sido feita por causa da doação da casa ao convento de Sua Mãe Santíssima; mas que a sua alma só seria libertada dos sofrimento quando fosse rezada a primeira missa naquele lugar. Senti tão profundamente as dores que esta alma sofria que, embora estivesse muito ansiosa para realizar a fundação de um convento em Toledo, parti imediatamente para Valladolid no dia de São Lourenço'.

'Um dia, quando estava a rezar em Medina del Campo, Nosso Senhor me disse para que me apressasse o máximo possível, porque a alma de Mendoza era refém dos mais intensos sofrimentos. Ordenei imediatamente aos pedreiros que erguessem sem demora as paredes do convento; mas como isso levaria muito tempo, pedi ao bispo autorização para fazer uma capela provisória para uso das Irmãs que eu tinha trazido comigo. Obtida a autorização, mandei rezar a missa e, no momento em que deixava o meu lugar para me aproximar da Santa Mesa, vi o nosso benfeitor que, de mãos unidas e rosto radiante, me agradeceu por o ter libertado do Purgatório. Depois eu o vi entrar no Céu. Fiquei tanto mais contente quanto não contava com isso assim. Isto porque, embora Nosso Senhor me tivesse revelado que a libertação desta alma se seguiria à celebração da primeira missa na casa, eu pensava que deveria ser a primeira missa em que o Santíssimo Sacramento fosse ali reservado'. Este belo relato nos mostra não só a eficácia do Santo Sacrifício da missa, mas também a terna bondade com que Jesus se interessa pelas almas santas, condescendendo mesmo em solicitar os nossos sufrágios em favor delas.

Mas, sendo o Divino Sacrifício de tanto valor, pode-se perguntar se um grande número de missas proporciona às almas mais alívio do que um número menor, mas que, em compensação, são acompanhadas por magníficas exéquias e abundantes esmolas? A resposta a esta pergunta pode ser deduzida do espírito da Igreja, que é o espírito do próprio Jesus Cristo e a expressão da sua vontade. Ora, a Igreja aconselha os fiéis a mandarem rezar pelos defuntos, a darem esmolas e a praticarem outras boas obras, a pedirem indulgências para eles mas, sobretudo, mandarem celebrar a Santa Missa e a ela assistirem. Embora dando o primeiro lugar ao Divino Sacrifício, ela aprova e faz uso de vários tipos de sufrágios, de acordo com as circunstâncias, devoção ou condição social do falecido ou dos seus herdeiros.

É um costume católico, religiosamente observado desde a mais remota antiguidade, mandar celebrar a missa pelos defuntos com cerimônias solenes, e fazer um funeral com tanta pompa quanto as posses o permitam. A despesa com isso é uma esmola dada à Igreja, uma esmola que, aos olhos de Deus, aumenta muito o preço do Santo Sacrifício e seu valor compensatório para o falecido. É bom, porém, regular as despesas do funeral, de modo a deixar uma soma suficiente para um certo número de missas, e também para dar esmolas aos pobres. O que se deve evitar é perder de vista o caráter cristão dos funerais e considerar a cerimônia fúnebre menos como um grande ato de religião do que como uma mera manifestação de vaidade mundana.

O que deve ainda ser evitado são os emblemas profanos de luto que não são conformes à tradição cristã, tais como as coroas de flores, com as quais, com grande despesa, se carregam os caixões dos mortos. Trata-se de uma inovação, justamente desaprovada pela Igreja, à qual Jesus Cristo confiou o cuidado dos ritos e cerimônias religiosas, sem exclusão das cerimônias fúnebres. Aquelas de que ela se serve por ocasião da morte de seus filhos são veneráveis pela sua antiguidade e cheias de sentido e de consolação. Tudo o que se apresenta aos olhos dos fiéis em tais ocasiões, a cruz e a água benta, as luzes e o incenso, as lágrimas e as orações, respiram a compaixão pelas pobres almas, a fé na Divina Misericórdia e a esperança da imortalidade. O que há de tudo isso nas frias coroas de violetas? Não dizem nada à alma cristã; não passam de emblemas profanos desta vida mortal, que contrastam estranhamente com a cruz, e que são estranhos aos ritos da Igreja Católica.

Capítulo XXI

Alívio às Santas Almas pelas Orações - As Orações do Irmão Corrado d'Offida - O Anzol de Ouro e o Fio de Prata

Depois do Santo Sacrifício da Missa, temos uma multidão de meios secundários, mas muito eficazes, para aliviar as santas almas, se os empregarmos com espírito, fé e fervor. Em primeiro lugar, a oração - a oração em todas as suas formas. Os Anais da Ordem Seráfica falam com admiração do Irmão Corrado d'Offida, um dos primeiros companheiros de São Francisco. Distinguia-se por um espírito de oração e de caridade, que contribuía muito para a edificação dos seus irmãos. Entre estes, havia um jovem monge cuja conduta relaxada e desordenada perturbava a santa comunidade; mas, graças às orações e às caridosas exortações de Corrado, corrigiu-se inteiramente e tornou-se um modelo de regularidade. Pouco depois desta feliz conversão, faleceu e os seus irmãos deram-lhe os sufrágios ordinários. 

Passados alguns dias, quando o Irmão Corrado estava em oração diante do altar, ouviu uma voz que pedia o auxílio de suas orações. 'Quem és tu?' - disse o servo de Deus. 'Sou a alma do jovem religioso que reanimaste ao fervor' - respondeu a voz. 'Mas não morreste uma morte santa? Continuas a precisar ainda de orações?'. 'Sim, morri uma boa morte e estou salvo, mas por causa dos meus pecados anteriores, que não tive tempo de expiar, sofro o mais terrível castigo, e peço-lhe que não me recuse o auxílio das suas orações'. Imediatamente o Irmão Corrado prostrou-se diante do sacrário e rezou um Pater, seguido de um Requiem aeternam. 'Ó meu bom Padre' - exclamou a aparição - 'que refrigério me traz a tua oração! Oh, como ela me alivia! Peço-vos que continueis a rezar'. Corrado repetiu devotamente as mesmas orações. 'Pai amado' - repetiu de novo a alma - 'ainda mais, ainda mais! Sinto um alívio tão grande quando rezas!' O caridoso religioso continuou as suas orações com renovado fervor e repetiu o Pai Nosso por cem vezes. Então, com acentos de indizível alegria, a alma falecida lhe disse: 'Agradeço-te, meu bom padre, em nome de Deus, porque agora estou libertado e prestes a entrar no Reino dos Céus'.

Vemos, por este exemplo, como são eficazes as menores orações e as mais curtas súplicas para aliviar os sofrimentos das pobres almas. Li - diz o Padre Rossignoli - que um santo bispo, arrebatado em êxtase, viu uma criança que, com um anzol de ouro e um fio de prata, tirou do fundo de um poço uma mulher que nele se tinha afogado. Depois da sua oração, e quando se dirigia para a igreja, viu a mesma criança a rezar junto a uma campa no cemitério. O que estás a fazer aí, meu amiguinho? Estou a rezar o Pai-Nosso e a Ave-Maria' - respondeu a criança - 'pela alma da minha mãe, cujo corpo está aqui enterrado'. O prelado compreendeu imediatamente que Deus lhe queria mostrar a eficácia da oração mais simples; sabia que a alma daquela mulher tinha sido libertada, que o anzol era o Pater e que a Ave era o fio de prata daquela linha mística'.

Capítulo XXII

Alívio às Santas Almas pelas Orações - O Santo Rosário - Padre Nieremberg e o Terço Perdido - Madre Francisca do Santíssimo Sacramento e o Santo Rosário

Sabemos que o Santo Rosário ocupa o primeiro lugar entre todas as orações que a Igreja recomenda aos fiéis. Esta excelente oração, fonte de tantas graças para os vivos, é também singularmente eficaz para aliviar os defuntos. Temos uma prova comovente disso na vida do Padre Nieremberg, que já mencionamos em outro lugar. Este caridoso servo de Deus impunha a si mesmo frequentes mortificações, acompanhadas de devoções e orações para o alívio das pobres almas sofredoras. Não deixava de rezar o terço todos os dias em intenção delas e de lhes obter todas as indulgências ao seu alcance, oferta que recomendou aos fiéis numa obra especial que publicou sobre o assunto. O terço que usava era ornamentado com medalhas piedosas e enriquecido com numerosas indulgências. Um dia perdeu este terço e ficou inconsolável; não que este santo religioso, cujo coração não estava preso a nada na terra, tivesse qualquer apego material a essas contas, mas porque se viu privado do meio de obter o alívio que costumava dar às pobres almas. Procurou por toda a parte, tentou lembrar-se de onde poderia ter colocado o seu precioso tesouro: tudo foi inútil e, quando chegou a noite, viu-se obrigado a substituir o seu terço indulgenciado por orações comuns.


Enquanto estava assim ocupado e sozinho na sua cela, ouviu um ruído no teto semelhante ao passar de suas contas e que lhe era bem conhecido; levantando os olhos, viu na realidade o seu terço, segurado por mãos invisíveis, descer em direção a ele e cair aos seus pés. Não duvidou que as mãos invisíveis eram as das almas que foram aliviadas por este meio. Podemos imaginar com que renovado fervor recitava as suas habituais cinco dezenas e quanto este fato extraordinário o encorajava a perseverar numa prática que era tão visivelmente aprovada pelo Céu.

A Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento teve desde a sua infância a maior devoção para com as almas sofredoras e nela perseverou enquanto viveu (Sa Vie par le R. Joachim; Vid. Rossignoli, Merv., 26). Ela era toda coração e toda devoção para com aquelas pobres e santas almas. Para as ajudar, rezava diariamente o seu terço, a que costumava chamar o seu esmoler, e terminava cada dezena com o requiescant in pace. Nos dias de festa, quando tinha um maior tempo livre, acrescentava o Ofício dos Mortos. À oração juntava as penitências. A maior parte do ano jejuava a pão e água e nas vigílias praticava outras austeridades. Teve de suportar muitos trabalhos e fadigas, dores e perseguições. Todos estes trabalhos foram transformados em sufrágios para as santas almas, a quem Madre Francisca oferecia tudo a Deus para o alívio delas.

Não contente com o fato de os ajudar ela própria, na medida das suas possibilidades empenhava os outros a fazer o mesmo. Se acorriam sacerdotes ao convento, pedia missas para as almas; se eram leigos, aconselhava-os a distribuir abundantes esmolas pelos fieis defuntos. Em recompensa da sua caridade, Deus permitia frequentemente que as almas a visitassem, quer para pedir os seus sufrágios, quer para lhe agradecer. Testemunhas afirmam que, por várias vezes, certas almas a esperavam visivelmente à porta, quando ela se dirigia para o Ofício das Matinas, para se recomendarem às suas orações. Outras vezes, entravam em sua cela para lhes apresentar o seu pedido e rodeavam a sua cama, esperando que ela acordasse. Estas aparições, a que estava habituada, não lhe causavam qualquer receio e, para que não se julgasse refém de algum sonho ou vítima do demônio, diziam-lhe, ao entrar: 'Salve, serva de Deus, esposa do Senhor! Que Jesus Cristo esteja sempre contigo!' Em seguida, testemunhavam a sua veneração por uma grande cruz e pelas relíquias dos santos que a sua benfeitora guardava em sua cela. Se a encontravam a rezar o terço, acrescentam as mesmas testemunhas, tomavam-lhe as mãos e beijavam-nas carinhosamente, como fruto e instrumento da sua libertação.

Capítulo XXIII

Alívio às Santas Almas pelo Jejum, Penitências e Mortificações - Um Copo de Água - O Lamento de uma Religiosa a Santa Margarida Maria

Depois da oração, vem o jejum, isto é, não só o jejum propriamente dito, que consiste na abstenção de alimentos, mas também de todas as obras penitenciais, quaisquer que sejam elas. É preciso notar aqui que não se trata apenas das grandes austeridades praticadas pelos santos, mas de todas as tribulações, de todas as contradições desta vida, como também das menores mortificações, dos menores sacrifícios que nos impomos ou aceitamos por amor de Deus e que oferecemos à sua Divina Misericórdia para alívio das almas santas.

Um copo de água, que recusamos quando temos sede, é uma coisa insignificante e, se considerarmos esse ato em si mesmo, dificilmente veremos a eficácia que ele possa ter para aliviar os sofrimentos do Purgatório. Mas a bondade divina é tal que se digna aceitar esse sacrifício como sendo de grande valor. 'Se me permitem' - diz o Abade Louvet, falando sobre este assunto - 'contarei um exemplo que se deu quase sob minha própria experiência pessoal. Uma de minhas parentes era religiosa em uma comunidade que ela edificava, não por aquele heroísmo de virtude que brilhava nos santos, mas por uma virtude comum e uma grande regularidade de vida. Aconteceu que ela perdeu uma amiga que tinha conhecido no mundo e, desde que soube da sua morte, assumiu o dever de recomendar a sua alma a Deus. 

Uma noite, estando com muita sede, o seu primeiro impulso foi refrescar-se com um copo de água, o que lhe era permitido pelo regulamento; mas, lembrando-se da sua falecida amiga e, em benefício da sua alma, recusou a si própria esta pequena gratificação. Em vez de beber o copo de água que tinha na mão, deitou-o fora, pedindo a Deus que tivesse piedade da pessoa falecida. Esta boa irmã lembra-nos o rei Davi que, encontrando-se com o seu exército num lugar sem água e oprimido pela sede, recusou-se a beber a água refrescante que lhe traziam das cisternas de Belém. Em vez de a levar aos seus lábios ressequidos, derramou-a como libação ao Senhor e a Sagrada Escritura cita este ato do santo Rei como um dos mais agradáveis a Deus. Ora, esta ligeira mortificação que a nossa santa religiosa impôs a si própria, negando a si mesma este gole de água, foi tão agradável a Deus, que Ele permitiu que a alma da falecida se manifestasse por uma aparição. Na noite seguinte, apareceu à Irmã, agradecendo-lhe vivamente o alívio recebido. Aquelas poucas gotas de água que, em espírito de mortificação, ela havia negado a si mesma, transformaram-se em fonte refrescante capaz de amenizar para ela o calor do fogo do Purgatório.

Queremos observar que o que aqui dizemos não se limita aos atos de mortificação supererrogatória [além do obrigatório], mas também das mortificações obrigatórias; ou seja, de tudo que temos de padecer no cumprimento dos nossos deveres, e de todas as boas obras a que nos obrigam os nossos deveres de cristãos ou os deveres do nosso estado particular de vida. Assim, todo o cristão é obrigado, em virtude da lei de Deus, a abster-se de palavras imprudentes, de calúnias e de murmurações; assim, todo o religioso deve observar o silêncio, a caridade e a obediência, tal como prescrito na Regra. Ora, estas observâncias, embora obrigatórias, quando praticadas no verdadeiro espírito de um cristão, com o objetivo de agradar a Deus, em união com os trabalhos e sofrimentos de Jesus Cristo, podem tornar-se sufrágios e servir para aliviar as santas almas.

Naquela famosa aparição em que a bem aventurada Margarida Maria viu a falecida religiosa sofrendo intensamente pela sua tibieza, a pobre alma, depois de ter relatado em pormenores os tormentos que padecia, concluiu a sua fala com estas palavras 'Ai de mim! Uma hora de recolhimento em silêncio curaria a minha boca ressequida; outra passada na prática da caridade curaria a minha língua; outra passada sem murmurar nem desaprovar as ações da Superiora curaria o meu coração torturado'.

Capítulo XXIV

Alívio às Santas Almas pela Sagrada Comunhão - Santa Madalena de Pazzi e suas 107 Comunhões - Comunhão Geral pelas Almas dos Falecidos - A Conversão do Pecador e o Aviso do Mendigo 

Se as boas obras ordinárias proporcionam tanto alívio às almas, quais não seriam os efeitos da obra mais santa que um cristão pode realizar, ou seja, a Sagrada Comunhão? Quando Santa Madalena de Pazzi viu o seu irmão nos sofrimentos do Purgatório, tocada de compaixão, derreteu-se em lágrimas e exclamou com voz lamentável: 'Ó alma aflita, como são terríveis as tuas dores! Por que não são compreendidas por aqueles que não têm coragem de carregar sua cruz aqui embaixo? Quando ainda estavas neste mundo, meu caro irmão, não me ouvias, e agora desejas ardentemente que eu te ouça. Pobre vítima, que queres de mim?' Ouviu-se então se contar até o número cento e sete e, depois, ela o ouviu exclamar em voz alta que esse era o número de comunhões que ele a pedia em tom de súplica. 'Sim' - ela respondeu - 'posso facilmente fazer o que me pedes, mas infelizmente quanto tempo levarei para pagar essa dívida! Se Deus me permitisse, eu iria de bom grado para onde tu estás, para te libertar e para impedir que outros descessem até lá'. A santa, sem omitir as suas orações e outros sufrágios, fez com o maior fervor todas as comunhões que o seu irmão a chamara a fazer para a sua libertação.

Trata-se de um piedoso costume estabelecido nas igrejas da Companhia de Jesus - nos conta Padre Rossignoli - oferecer todos os meses uma comunhão geral em benefício das almas do Purgatório e Deus dignou-se mostrar por um prodígio como esta prática lhe é agradável. No ano de 1615, quando os Padres de Roma celebraram esta comunhão mensal na igreja de Nossa Senhora do Trastevere, estava presente uma multidão de pessoas. Entre os cristãos fervorosos, encontrava-se um grande pecador que, embora participasse nas cerimônias piedosas da religião, levava há muito tempo uma vida muito ruinosa. Este homem, antes de entrar na igreja, viu sair e avançar em sua direção um homem de aspecto humilde, que lhe pediu uma esmola por amor de Deus. Este, a princípio, recusou mas o pobre homem, como é costume com os mendigos, persistiu, pedindo uma segunda e uma terceira vez, num tom de súplica muito lamentável. Finalmente, cedendo a uma boa inspiração, o nosso pecador chamou o mendigo e deu-lhe uma moeda.

Então o pobre homem mudou as suas súplicas para uma outra linguagem. 'Guarde o seu dinheiro' - disse ele - 'não tenho necessidade da sua liberalidade; mas o senhor mesmo precisa muito de mudar de vida. Saiba que foi para lhe fazer esta salutar advertência que eu vim do Monte Gargano para a cerimônia que hoje devia ter lugar nesta igreja. Há vinte anos que levas esta vida deplorável, provocando a ira de Deus em vez de a apaziguar com uma confissão sincera. Apressa-te a fazer penitência se quiseres escapar ao golpe da Justiça Divina que está prestes a cair sobre a tua cabeça'.

O pecador ficou impressionado com estas palavras; um medo secreto apoderou-se dele ao ouvir ser revelados os segredos da consciência, que julgava serem conhecidos apenas por Deus. A sua comoção aumentou ainda mais quando viu o pobre homem desaparecer como fumo diante dos seus olhos. Abrindo o seu coração à graça, entrou na igreja, pôs-se de joelhos e derramou uma torrente de lágrimas. Depois, sinceramente arrependido, procurou um confessor, confessou os seus muitos pecados e pediu perdão. Depois da confissão, contou ao sacerdote o que lhe tinha acontecido, pedindo-lhe que o desse a conhecer, para que a devoção para com as almas santas aumentasse, pois não tinha dúvidas de que tinha sido uma alma acabada de libertar do Purgatório que lhe tinha obtido a graça da conversão.

Poder-se-ia perguntar quem teria sido o misterioso mendigo que apareceu a este pecador para o converter? Alguns acreditavam que não seria outro senão Miguel Arcanjo, porque ele disse que vinha do Monte Gargano. Sabemos que este monte é celebrado em toda a Itália por uma aparição de São Miguel, em cuja honra foi erigido um magnífico santuário. Seja como for, a conversão deste pecador por um tal milagre, e no mesmo momento em que se rezava e se comungava em intenção dos fieis defuntos, mostra claramente a excelência desta devoção e como a mesma deve ser agradável aos olhos de Deus. Concluamos, pois, com as palavras de São Bernardo: 'Que a caridade vos leve a comungar pelos falecidos, pois nada há de mais eficaz para o eterno repouso das suas almas'.

Capítulo XXV

Alívio às Santas Almas pela Via Sacra - Venerável Maria d'Antigna e essa Santa Devoção

Depois da Sagrada Comunhão, falemos da Via Sacra. Este santo exercício pode ser considerado em si mesmo, bem como nas indulgências com que é enriquecido. Em si mesmo, é um modo solene e muito excelente de meditar a Paixão do nosso Salvador e, por conseguinte, o exercício mais salutar da nossa santa religião.

No seu sentido literal, a Via Sacra é a distância percorrida pelo Homem-Deus, carregando o peso da sua Cruz, desde o palácio de Pilatos, onde foi condenado à morte, até ao cume do Calvário, onde foi crucificado. Depois da morte do seu Divino Filho, a Virgem Santíssima, sozinha ou em companhia das santas mulheres, visitou frequentemente aquele caminho doloroso. Seguindo o seu exemplo, os fiéis da Palestina e, no decurso dos tempos, numerosos peregrinos de países mais distantes, foram também visitar esses lugares santos, banhados com o suor e o sangue de Jesus Cristo; e a Igreja, para encorajar a piedade deles, abriu-lhes os seus tesouros de bênçãos espirituais. Mas como nem todos podem ir à Terra Santa, a Santa Sé permite que se ergam nas igrejas e capelas de países distantes cruzes, quadros ou baixos-relevos, representando as cenas comoventes que se passaram no verdadeiro caminho do Calvário em Jerusalém.

Ao permitir a inserção destas santas Estações, os Romanos Pontífices, que compreenderam toda a excelência e toda a eficácia desta devoção, dignaram-se também a enriquecê-la com todas as indulgências que haviam concedido aos que participavam de uma visita presencial à Terra Santa. E assim, de acordo com diferentes Circulares (Breves) e Constituições dos Soberanos Pontífices Inocêncio XI, Inocêncio XII, Bento XIII, Clemente XII e Bento XIV, aqueles que fazem a Via Sacra, com as devidas disposições, são contemplados com todas as indulgências concedidas aos fiéis que visitam pessoalmente os Lugares Santos de Jerusalém, sendo estas indulgências aplicáveis também aos falecidos.

Ora, como é certo que numerosas indulgências, plenárias ou parciais, foram concedidas a quem visitava os Lugares Santos de Jerusalém, como se pode ver na Bula Terrae Sanctae, podemos dizer então, no que diz respeito às indulgências que, de todas as práticas de piedade, a Via Sacra é a mais rica. Assim, esta devoção, tanto pela excelência do seu objeto como pelas indulgências a ela associadas, constitui um sufrágio do maior valor para as Santas Almas.

Encontramos um incidente relacionado com este tema na Vida da Venerável Maria d'Antigna (Louvet, Le Purgatoire, p. 332). Durante muito tempo, ela teve o piedoso costume de fazer todos os dias a Via Sacra para alívio das almas dos falecidos; mas depois, por motivos mais aparentes do que concretos, passou a fazê-la raramente e, por fim, omitiu-a completamente. Nosso Senhor, que tinha grandes desígnios em relação a esta piedosa virgem e que desejava fazer dela uma vítima de amor para a consolação das pobres almas do Purgatório, quis dar-lhe uma lição que nos serve de instrução a todos. Uma religiosa do mesmo convento, falecida então há pouco tempo, apareceu-lhe, queixando-se com tristeza: 'Minha querida Irmã' - disse ela - 'porque já não fazes a Via Sacra pelas almas do Purgatório? Antigamente, costumavas aliviar-nos todos os dias com esse santo exercício; por que nos privas agora dessa assistência?'

Enquanto a alma ainda falava, o próprio Nosso Senhor apareceu à sua serva e repreendeu-a pela sua negligência. 'Sabe, minha filha' - acrescentou - 'que a Via Sacra é muito proveitosa para as almas do Purgatório e constitui um sufrágio do maior valor. Por isso, permiti que esta alma, para seu bem e para o bem dos outros, vos implorasse isto. Sabei também que foi por causa da vossa dedicação expressa na prática desta devoção que fostes favorecida pela comunicação frequente com os mortos. É também por esta razão que essas almas agradecidas não cessam de rezar por vós e de defender a vossa causa no tribunal da minha Justiça. Dá a conhecer este tesouro às tuas irmãs e diz-lhes que dele tirem abundantemente frutos para si e para as almas dos falecidos'.

Capítulo XXVI

Alívio às Santas Almas pelas Indulgências - Bem Aventurada Maria de Quito e a Mesa Coberta de Pedras Preciosas

Passemos agora às indulgências aplicáveis aos defuntos. Aqui a Misericórdia Divina revela-se com extrema prodigalidade. Sabemos que uma indulgência é a remissão da pena temporal devida ao pecado, concedida pelo 'Poder das Chaves' [Potestas Clavium, poder conferido por Cristo diretamente a São Pedro e à Igreja Católica (Mt 16,19)], independente do sacramento da Penitência.

Em virtude do Poder das Chaves que recebeu de Jesus Cristo, a Igreja pode libertar os fieis de todos os obstáculos à sua entrada na glória. Ela exerce este poder no sacramento da Penitência, onde os absolve dos seus pecados; exerce-o também fora do sacramento, pela remissão da dívida da pena temporal que permanece depois da absolvição; este segundo caso constitui as chamadas indulgências. A remissão das penas temporais pelas indulgências é concedida aos fiéis apenas nesta vida; mas a Igreja pode autorizar os seus filhos, enquanto vivos, a transferir, para os seus amigos defuntos, a remissão concedida a si mesmos; esta é a indulgência aplicável às almas do Purgatório.

Aplicar uma indulgência aos mortos é oferecê-la a Deus em nome da sua Santa Igreja, para que Ele se digne empregá-la em benefício das almas sofredoras. As satisfações assim oferecidas à Justiça Divina em nome de Jesus Cristo são sempre aceitas e Deus aplica-as ou a uma alma em particular ou a certas almas que Ele próprio quer beneficiar, ou a todas em geral. As indulgências são plenárias ou parciais. A indulgência plenária é, para quem a obtém, a remissão de toda a pena temporal que permanece aos olhos de Deus. Suponhamos que, para nos absolvermos desta dívida, seríamos obrigados a cumprir cem anos de penitência canônica na terra ou a sofrer por um tempo ainda mais longo no Purgatório; pela virtude de uma indulgência plenária devidamente obtida, toda esta punição é remida e a alma já não retém aos olhos de Deus qualquer sombra de pecado, que a impeça de ver a sua divina face.

A indulgência parcial consiste na remissão de um certo número de dias ou anos. Estes dias e anos não representam de modo algum dias e anos de sofrimento no Purgatório; devem ser entendidos como dias e anos de penitência pública canônica, consistindo principalmente em jejuns, tais como eram antigamente impostos aos pecadores, segundo a antiga disciplina da Igreja. Assim, uma indulgência de quarenta dias ou sete anos é uma remissão tal como foi devida a Deus por quarenta dias ou sete anos de penitência canônica. Que proporção existe entre esses dias de penitência e a duração dos sofrimentos do Purgatório? Este é um segredo que não Deus não nos quis revelar.

As indulgências constituem, na Igreja, um verdadeiro tesouro espiritual aberto a todos os fiéis; todos podem tirar proveito delas, para pagar as suas dívidas e as dos outros. Foi para enfatizar estas graças, que Deus fez questão de as mostrar um dia à Bem Aventurada Maria de Quito. Um dia, arrebatada em êxtase, ela viu, no meio de um grande espaço aberto, uma imensa mesa repleta de montes de prata, ouro, rubis, pérolas e diamantes e, ao mesmo tempo, ouviu uma voz que lhe dizia: 'Estas riquezas são propriedade pública; cada um pode aproximar-se e tirar o que quiser' e Deus lhe fez saber que isto era o símbolo das indulgências (Rossignoli, Merveilles, 29). Podemos dizer, como o piedoso autor das Merveilles, como somos culpados se, diante de tal abundância, permanecermos pobres e indigentes e negligenciarmos a assistência aos outros. Infelizmente, as almas do purgatório estão em extrema necessidade, suplicam-nos em lágrimas no meio dos seus tormentos; nós temos os meios de pagar as suas dívidas com indulgências e, mesmo assim, não nos esforçamos por o fazer.

Será que o acesso a esse tesouro exige de nossa parte esforços penosos, como jejuns, retiros ou privações insuportáveis para a natureza? Não vemos como os homens, por amor aos bens e riquezas, para conservar uma obra de arte, para salvar uma parte da sua fortuna ou um bem precioso, se expõem às chamas de um incêndio? Não deveríamos então fazer pelo menos o mesmo para salvar das chamas expiatórias as almas resgatadas pelo Sangue de Jesus Cristo? Mas a bondade divina não nos pede nada de tão penoso; exige apenas obras ordinárias e fáceis como um terço, uma comunhão, uma visita ao Santíssimo Sacramento, uma esmola ou o ensino dos fundamentos do Catecismo às crianças abandonadas. E nós descuidamo-nos de adquirir os tesouros mais preciosos por meios tão fáceis e não temos nem tempo e nem vontade de os aplicar aos nossos pobres parentes falecidos que padecem nas chamas do Purgatório.

Capítulo XXVII

Alívio às Santas Almas pelas Indulgências - As Indulgências Plenárias de Madre Francisca de Pamplona - Santa Madalena e Santa Teresa e as Religiosas que Passaram Algumas Horas no Purgatório

Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento, de cuja caridade para com as almas santas já falamos, era também muito zelosa em aliviá-las com indulgências. Um dia, Deus mostrou-lhe as almas de três prelados que tinham ocupado anteriormente a Sé de Pamplona e que ainda padeciam os sofrimentos do Purgatório. A serva de Deus compreendeu que devia empregar todos os meios para conseguir a pronta libertação deles. Como a Santa Sé tinha então concedido à Espanha as Bulas da Cruzada, que permitiam obter a indulgência plenária sob certas condições, ela acreditava que o melhor meio de ajudar aquelas pobres almas seria conseguir para cada uma delas a vantagem desta indulgência plenária.

Dirigiu-se então ao seu bispo, Cristóvão de Ribera, informando-o de que três dos seus antecessores ainda se encontravam no Purgatório e instando-o a obter para ela três indulgências das Bulas da Cruzada. Ela cumpriu todas as condições exigidas e aplicou uma indulgência plenária a cada um dos três bispos. Na noite seguinte, todos eles apareceram à Madre Francisca, libertados de todos os seus sofrimentos. Agradeceram-lhe e pediram-lhe que agradecesse também ao Bispo Ribera pelas indulgências que lhes tinham aberto o Céu (Vie de Franqoise du Sacrem., Merv., 26).

Padre Cepari relata o seguinte na sua obra 'Vida de Santa Madalena de Pazzi'. Morreu uma religiosa professa que, durante a sua última doença, tinha sido cuidada com muita ternura por Santa Madalena e, como era costume expor o corpo na igreja, Madalena sentiu-se inspirada a ir vê-lo mais uma vez. Dirigiu-se, pois, à grade da sala do coro de onde o podia ver; mas, mal o fez, foi arrebatada em êxtase e viu a alma da irmã defunta a voar para o Céu. Transportada de alegria, ouviu-se dizer: 'Adeus, querida irmã; adeus, alma bendita! Como uma pomba pura, voas para o teu lar celestial e nos deixa nesta morada de miséria. Oh, como és bela e gloriosa! Quem pode descrever a glória com que Deus coroou as tuas virtudes?' Quão pouco tempo passaste no Purgatório! O teu corpo ainda não foi levado ao túmulo e eis que a tua alma já foi recebida nas mansões celestes. Conheceis agora a verdade daquelas palavras que vos dirigi ultimamente: 'Que todos os sofrimentos desta vida nada são em comparação com a recompensa que Deus reservou para os seus amigos'. Nesta mesma visão, Nosso Senhor revelou a ela que esta alma piedosa tinha passado apenas quinze horas no Purgatório, porque tinha sofrido muito durante a vida e porque tinha tivera o cuidado de ganhar muitas indulgências concedidas pela Igreja aos seus filhos, em virtude dos méritos de Jesus Cristo.

Santa Teresa, nas suas obras, fala de uma religiosa que dedicava o maior apreço pela mais singela indulgência concedida pela Igreja, e esforçava-se por obter todas as que estavam ao seu alcance. De resto, levava uma vida bastante rotineira e sem grandes obras de virtude. Quando faleceu, a santa, não com grande surpresa, viu a sua alma subir ao Céu quase que imediatamente após a sua morte, de modo que não teve, por assim dizer, a experiência do Purgatório. Quando Santa Teresa manifestou o seu espanto por tal fato, Nosso Senhor fez saber a ela o grande cuidado que a religiosa tivera em obter todas as indulgências possíveis durante a vida. 'Foi por esse meio' - acrescentou - 'que ela saldou quase toda a sua dívida, que era bastante considerável, antes da sua morte e, assim, compareceu com grande pureza perante o tribunal de Deus'.

Capítulo XXVIII

Alívio às Santas Almas pelas Indulgências - Orações e Jaculatórias

Há certas indulgências que são fáceis de obter e que se aplicam também aos mortos. Esperamos ajudar ao leitor indicando as principais [a obra original é de 1888; acessar aqui o atual Manual de Indulgências da Igreja Católica]:

(i) Oração 'Eis-me aqui, ó bom e dulcíssimo Jesus' - indulgência plenária para quem, depois de se ter confessado e comungado, recitar esta oração diante de uma imagem de Cristo crucificado, acrescentando alguma outra oração em intenção do Soberano Pontífice [e da Igreja].

(ii)  Santo Rosário - muitas e grandes indulgências estão associadas à recitação do Santo Rosário, se fizermos uso de contas indulgenciadas pelo nosso Santo Padre, o Papa, ou por um sacerdote que tenha recebido tais faculdades.

(iii) A Via Sacra - como já dissemos, à Via Sacra estão associadas várias indulgências plenárias e um grande número de indulgências parciais. Estas indulgências não exigem a confissão e a comunhão; basta estar em estado de graça e ter uma dor sincera de todos os nossos pecados. 

Quanto ao exercício propriamente dito da Via-Sacra, não se requer senão duas condições: (i) visitar as quatorze estações, passando de uma para outra, tanto quanto as circunstâncias o permitam; (ii) meditar ao mesmo tempo na Paixão de Jesus Cristo; as pessoas que não souberem fazer uma meditação conexa com a Via sacra podem contentar-se em pensar afetuosamente em alguma circunstância da Paixão que esteja de acordo com a sua capacidade; exortamo-las, contudo, impor como uma obrigação recitar sempre um Pai Nosso e uma Ave Maria em cada estação, e a fazer um ato de contrição pelos seus pecados.

(iv) Atos de Fé, Esperança e Caridade - Indulgência de sete anos e sete quarentenas de cada vez que forem recitados.

(v) Ladainha da Santíssima Virgem - trezentos dias de indulgência por vez.

(vi) Sinal da Cruz - cinquenta dias cada vez; mediante uso de água benta, indulgência de cem dias.

(vii) Jaculatórias como 'Meu Jesus, misericórdia!' - cem dias cada vez; 'Jesus, manso e humilde de coração, fazei o meu coração semelhante ao Vosso' - Trezentos dias, uma vez ao dia; 'Doce Coração de Maria, sede a minha salvação' - trezentos dias por vez'.

(viii) Oração 'Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo; para sempre seja louvado! Amém. - cinquenta dias cada vez que duas pessoas se saúdam com estas palavras.

(ix) Oração do Ângelus - indulgência de cem dias cada vez que for recitado, seja de manhã, ao meio-dia ou à noite, ao som de um sino, de joelhos e com o coração contrito.

Capítulo XXIX

Alívio às Santas Almas pelas Esmolas - O Caso do Abade Raban-Maur e do Procurador Edelard do Mosteiro de Fulda

Resta-nos falar de um último e muito poderoso meio de aliviar as pobres almas do Purgatório: a esmola. O Doutor Angélico, São Tomás, dá preferência à esmola antes do jejum e da oração, quando se trata de expiar faltas passadas. 'A esmola' - diz ele - 'possui mais completamente a virtude da satisfação do que a oração, e a oração mais completamente do que o jejum'. É por isso que os grandes servos de Deus e os grandes santos a escolheram como principal meio de assistência aos mortos. Entre eles, podemos citar como um dos mais notáveis o santo abade Raban-Maur, primeiro abade de Fulda, no século X, e depois arcebispo de Mayence.

Padre Trithemius, conhecido escritor da Ordem de São Bento, fez distribuir abundantes esmolas pelos mortos. Ele tinha estabelecido a regra de que, quando um religioso morresse, a sua porção de comida deveria ser distribuída entre os pobres durante trinta dias, para que a alma do falecido fosse aliviada pelas esmolas. No ano de 830, o mosteiro de Fulda foi atacado por uma doença contagiosa que levou a falecer um grande número de religiosos. Raban-Maur, cheio de zelo e de caridade pelas suas almas, chamou Edelard, o Procurador do mosteiro, e recordou-lhe a regra estabelecida sobre as esmolas para os defuntos. 'Cuida muito bem' - disse ele - 'que as nossas prescrições sejam fielmente observadas, e que os pobres sejam alimentados durante um mês inteiro com a comida que seria destinada aos irmãos que perdemos'.

Edelard falhou tanto na obediência como na caridade. Sob o pretexto de que tal liberalidade era extravagante e que deveria economizar os recursos do mosteiro mas, na realidade, porque estava influenciado por uma avareza secreta, negligenciou a distribuição dos alimentos ou o fez de uma forma muito aquém da ordem que tinha recebido. Deus não deixou impune esta desobediência.

Passado um mês, certa noite, depois de a comunidade ter-se recolhido, Edelard atravessava a sala da congregação com uma lâmpada na mão, quando, tomado de absoluto estupor, encontrou ali reunidos um grande número de religiosos, numa hora em que a sala deveria estar totalmente vazia. O seu espanto transformou-se em medo quando, olhando-os atentamente, reconheceu neles os religiosos recentemente falecidos. O terror apoderou-se de tal modo dele que um arrepio gelado congelou as suas veias fazendo dele como que uma estátua sem vida pregada no chão.

Então, um dos religiosos falecidos dirigiu-lhe terríveis censuras: 'Criatura infeliz, por que não distribuíste as esmolas que estavam destinadas a aliviar as almas dos teus irmãos falecidos? Por que nos privaste dessa assistência em  meio aos tormentos do Purgatório? Recebe, a partir deste momento, o castigo pela tua avareza; um castigo mais terrível está reservado para ti quando, depois de três dias, compareceres diante do teu Deus'.

Diante de tais palavras, Edelard caiu como se tivesse sido fulminado por um raio e assim permaneceu imóvel até depois da meia-noite, hora em que a comunidade dirigiu-se para o coro. Aí encontraram-no semimorto, no mesmo estado em que se encontrava Heliodoro, depois de ter sido açoitado pelos anjos no templo de Jerusalém (cf 2Mc 3). Foi levado para a enfermaria, onde lhe foram dispensados todos os cuidados possíveis, de modo que conseguiu recuperar a consciência. Logo que pôde falar, na presença do abade e de todos os seus irmãos, relatou com lágrimas o terrível acontecimento que o seu triste estado testemunhava com tanta evidência. Depois, acrescentando que deveria morrer dentro de três dias, pediu os últimos sacramentos com todos os sinais de um humilde arrependimento. Recebeu-os com sentimentos de piedade e, três dias depois, realmente expirou, assistido pelas orações dos seus irmãos.

Imediatamente entoou-se a missa de defuntos e distribuiu-se aos pobres a sua parte da comida, em benefício da sua alma. Entretanto, o seu castigo ainda não havia terminado. Edelard apareceu diante o abade Raban, pálido e desfigurado. Tocado de compaixão, Raban perguntou-lhe o que podia fazer por ele. 'Ah!' - respondeu a infeliz alma - 'apesar das orações da nossa santa comunidade, não posso obter a graça da minha libertação até que todos os meus irmãos, a quem a minha avareza defraudou dos sufrágios que lhes eram devidos, tenham sido libertados. O que foi dado aos pobres em meu nome não serviu de nada para mim, mas somente a eles, e isto por ordem da Justiça Divina. Peço-vos, pois, ó Pai venerado e misericordioso, que redobreis as vossas esmolas. Espero que, por estes meios poderosos, a clemência divina se digne livrar-nos a todos, primeiro aos meus irmãos e depois a mim, que sou o menos merecedor de tal misericórdia'. Raban-Maur aumentou então as esmolas e, mal tinha passado um mês, Edelard apareceu-lhe de novo, mas agora vestido de branco, rodeado de raios de luz e com o rosto radiante de alegria. Agradeceu, da maneira mais comovente, ao seu abade e a todos os membros do mosteiro a caridade que lhe tinham feito (Vie de Raban-Maur, Rossignoli, Merv., 2).

Que instrução não contém esta bela história! Em primeiro lugar, a virtude da esmola para os mortos brilha de maneira muito marcante. Depois, vemos como Deus castiga, mesmo nesta vida, aqueles que, por avareza, temem não privar os mortos dos seus sufrágios. Não me refiro aqui aos herdeiros que se tornam culpáveis, negligenciando as doações que lhes cabem por testamento dos parentes falecidos, negligência que constitui uma injustiça sacrílega; mas àqueles filhos ou parentes que, por miseráveis motivos de interesse, mandam celebrar o menor número possível de missas, são parcimoniosos na distribuição de esmolas, não tendo piedade das almas dos parentes falecidos e que as deixam definhar nos terríveis tormentos do Purgatório. Trata-se da mais negra ingratidão, uma dureza de coração inteiramente oposta à caridade cristã, e que encontrará o seu castigo talvez ainda neste mundo.

Capítulo XXX

Alívio às Santas Almas pelas Esmolas - Os Limites da Misericórdia Cristã - São Francisco de Sales e a Viúva de Pádua

A esmola cristã, essa misericórdia que Jesus Cristo tanto recomenda no Evangelho, compreende não só a assistência corporal prestada aos necessitados, mas também todo o bem que fazemos ao nosso próximo, trabalhando pela sua salvação, suportando os seus defeitos e perdoando as suas ofensas. Todas estas obras de caridade podem ser oferecidas a Deus pelos defuntos e contêm uma grande virtude satisfatória. São Francisco de Sales conta que em Pádua, onde fez parte dos seus estudos, existia um costume detestável. Os jovens divertiam-se a correr pelas ruas à noite, armados de arcabuzes, e gritavam a todos os que encontravam: 'Quem vem por aí?'

As pessoas eram obrigadas a responder, pois era costume então disparar sobre aqueles que não respondiam e, assim, muitas pessoas foram feridas ou mortas. Aconteceu certa noite que, por não ter  respondido à pergunta, um estudante foi atingido na cabeça por uma bala e ficou mortalmente ferido. O autor deste ato, em pânico, fugiu e refugiou-se na casa de uma boa viúva que conhecia e cujo filho era seu colega de curso. Confessou-lhe com lágrimas que acabara de matar um desconhecido e suplicou-lhe que lhe desse asilo em sua casa. Tocada de compaixão, e não suspeitando que tinha diante de si o assassino do seu filho, a senhora escondeu o fugitivo num lugar seguro, onde os oficiais de justiça não o poderiam descobrir.

Ainda não havia passado meia hora quando se ouviu um ruído tumultuoso à porta; um cadáver foi trazido para dentro e colocado diante dos olhos da viúva. Infelizmente, era o seu filho que tinha sido morto e cujo assassino estava agora escondido em sua casa. A pobre mãe rompeu em gritos de partir o coração e, entrando no esconderijo do assassino, gritou: 'Homem miserável' - disse ela - 'o que meu filho te fez para que o tenhas assassinado assim tão cruelmente?'

O culpado do crime, ao saber que tinha matado o seu amigo, chorou em voz alta, arrancando os cabelos e torcendo as mãos em desespero. Depois, lançando-se de joelhos, pediu perdão à sua protetora e suplicou-lhe que o entregasse ao magistrado, para que pudesse expiar tão horrível crime. A mãe desconsolada lembrou-se nesse momento que era cristã e que o exemplo de Jesus Cristo em rezar pelos seus carrascos a estimulava a uma ação heroica. Respondeu-lhe que, se ele pedisse perdão a Deus e emendasse a sua vida, ela deixá-lo-ia ir e suspenderia todos os procedimentos legais contra ele.

Este perdão foi de tal agrado a Deus, que Ele quis dar à generosa mãe uma prova notável disso. Permitiu que a alma do seu filho lhe aparecesse, resplandecente de glória, dizendo que ele estava prestes a gozar da bem-aventurança eterna. 'Deus teve misericórdia de mim, querida mãe' - disse a alma bendita - 'porque tiveste misericórdia do meu assassino. Em consideração ao perdão que concedestes, fui libertado do Purgatório onde, sem a assistência que me proporcionastes, teria de passar por longos anos de intenso sofrimento'.

Capítulo XXXI

Alívio às Santas Almas pelo Ato Heroico da Caridade - A Caridade para com os Falecidos pelo Padre Munford - O Ato Heroico da Caridade de Santa Gertrudes

Até agora, falamos dos diferentes tipos de boas obras que podemos oferecer a Deus como sufrágios pelos mortos. Resta-nos dar a conhecer um ato que engloba todas as obras e meios, pelo qual podemos ajudar mais eficazmente as pobres almas; é o voto heroico ou, como outros lhe chamam, o ato heroico de caridade para com as almas do Purgatório.

Este ato consiste em ceder-lhes todas as nossas obras de satisfação, isto é, o valor satisfatório de todas as obras da nossa vida e de todos os sufrágios que nos serão dados depois da nossa morte, sem reservar nada para saldar as nossas próprias dívidas. Depositamo-los nas mãos da Santíssima Virgem, para que ela os distribua, segundo a sua vontade, às almas que deseja livrar do Purgatório.

É uma doação absoluta em favor das almas de tudo o que podemos lhes dar; oferecemos a Deus em seu favor todo o bem que fazemos, de qualquer espécie que seja, seja em pensamentos, palavras ou obras, tudo o que sofremos meritoriamente durante esta vida, sem excetuar nada do que podemos lhes dar razoavelmente e acrescentando mesmo aqueles sufrágios que podemos receber para nós mesmos após a morte. Compreenda-se bem que o objeto desta santa doação é o valor satisfatório das nossas obras e de modo algum o mérito que tem um grau de glória correspondente no Céu; porque o mérito é estritamente pessoal e não pode ser transferido para outro.

Eis a fórmula deste Ato Heroico: 'Ó Santíssima e Adorável Trindade, desejando cooperar na libertação das almas do Purgatório, e para testemunhar a minha devoção à Santíssima Virgem Maria, eu cedo e renuncio em favor dessas santas almas toda a parte satisfatória das minhas obras, e todos os sufrágios que me possam ser dados depois da minha morte, entregando-os inteiramente nas mãos da Santíssima Virgem, para que ela os aplique segundo a sua boa vontade às almas dos fiéis defuntos que ela deseja libertar dos seus sofrimentos. Dignai-vos, ó meu Deus, aceitar e abençoar esta oferenda que Vos faço neste momento. Amém'.

Os Soberanos Pontífices, Bento XIII, Pio VI e Pio IX, aprovaram este ato heroico e enriqueceram-no com indulgências e privilégios, dos quais os principais são os seguintes:

(i) aos sacerdotes que realizarem este ato, o indulto de um altar privilegiado todos os dias do ano;
(ii)  os simples fiéis podem obter uma indulgência plenária, aplicável apenas às almas do Purgatório, cada vez que comungarem, desde que em visita a uma igreja ou oratório público e aí rezem por intenção do sumo pontífice;
(iii) podem aplicar às almas santas todas as indulgências que não se apliquem de outro modo em virtude de concessão, e que tenham sido concedidas até ao presente ou que venham a ser concedidas no futuro (Pio IX, 30 de setembro de 1852).

'Aconselho todos os verdadeiros cristãos' - diz o Padre Munford na sua obra 'Caridade para com os Falecidos' - a cederem com santo desinteresse aos fiéis defuntos todo o fruto das suas boas obras que estão a nossa disposição. Não creio que possam fazer melhor uso deles, pois os tornam mais meritórios e mais eficazes, tanto para obter a graça de Deus como para expiar os seus próprios pecados e encurtar o próprio tempo do seu Purgatório, ou mesmo para adquirir uma isenção de passagem pelo mesmo'.

Estas palavras exprimem as preciosas vantagens do Ato Heroico e, para dissipar todo o receio posterior que possa surgir no espírito, acrescentamos três observações:

1. Este ato nos dá a perfeita liberdade para rezar pelas almas pelas quais estamos mais interessados; a aplicação destas orações está sujeita à disposição da adorável vontade de Deus, que é sempre infinitamente perfeita e infinitamente amorosa.

2. Não obriga sob pena de pecado mortal e pode ser revogada em qualquer altura. Pode ser feito sem usar nenhuma fórmula particular; basta ter a intenção e fazê-lo de coração. No entanto, é útil recitar a fórmula de oferecimento de vez em quando, para estimular o nosso zelo pelo alívio das santas almas por meio da oração, da penitência e das boas obras.

3. O Ato Heroico não nos sujeita às terríveis consequências de termos de passar nós próprios por um longo Purgatório; pelo contrário, permite-nos confiar com mais segurança na misericórdia de Deus a nosso respeito, como nos mostra o exemplo de Santa Gertrudes.

Venerável Denis, o Cartuxo, conta que a Virgem Santa Gertrudes tinha feito uma doação completa de todas as suas obras de satisfação em favor dos fiéis defuntos, sem reservar nada para saldar as dívidas que ela mesma poderia ter contraído diante de Deus. Estando à beira da morte e, como todos os santos, considerando com muita tristeza o grande número dos seus pecados, por um lado e, por outro, lembrando-se de que havia empregado todas as suas obras de satisfação para a expiação dos pecados dos outros, afligiu-se, para que, tendo dado tudo aos outros e não reservado nada para si, sua alma, ao partir deste mundo, não fosse condenada a horríveis sofrimentos. 

Em meio aos seus receios, Nosso Senhor apareceu-lhe e a consolou, dizendo: 'Tranquiliza-te, minha filha, a tua caridade para com os defuntos não te prejudicará. Saiba que a generosa doação que fizeste de todas as tuas obras às santas almas me foi singularmente agradável e, para te dar uma prova disso, declaro-te que todas as dores que terias de suportar na outra vida estão agora remidas; além disso, em recompensa da tua generosa caridade, aumentarei de tal forma o valor dos méritos das tuas obras que te darei um grande aumento de glória no Céu'.

Capítulo XXXII

Alívio às Santas Almas - Orações por Todos os Fieis Defuntos - Santo Andre Avellino e sua Percepção pelo Destino Eterno das Almas - Exortação de São Francisco de Sales

Vimos os recursos e os numerosos meios que a Misericórdia Divina colocou nas nossas mãos para aliviar as almas do Purgatório; mas que almas estão nessas chamas expiatórias e a que almas devemos dar a nossa ajuda? Por quais almas devemos rezar e oferecer os nossos sufrágios a Deus? A estas perguntas devemos responder que devemos rezar pelas almas de todos os fiéis defuntos - omnium fidelium defunctorum -  de acordo com a expressão própria da Igreja. Embora a piedade filial nos imponha deveres especiais em relação aos nossos pais e parentes, a caridade cristã nos manda rezar pelos fiéis defuntos em geral, porque todos eles são nossos irmãos em Jesus Cristo, todos são nossos próximos, a quem devemos amar como a nós mesmos.

Por estas palavras, fiéis defuntos, a Igreja entende todos os que estão efetivamente no Purgatório, isto é, aqueles que não estão no inferno, mas que ainda não são dignos de serem admitidos na glória do Paraíso. Mas quem são essas almas? Podemos conhecê-las? Deus reservou esse conhecimento para si mesmo e, a não ser que Ele queira nos mostrar, devemos permanecer em total ignorância sobre o estado das almas na outra vida. Desta forma, Deus raramente dá a conhecer que uma dada alma está no Purgatório ou na glória do Céu e, mais raramente ainda, revela a condenação de uma alma. Nesta incerteza, devemos rezar em geral como faz a Igreja, por todos os defuntos, sem prejuízo das almas que queremos ajudar em particular.

Podemos evidentemente limitar a nossa intenção àqueles que, de entre os mortos, ainda precisam da nossa ajuda, se Deus nos conceder o privilégio que concedeu, por exemplo, a Santo André Avellino, de conhecer a condição das almas na outra vida. Quando este santo religioso da Ordem dos Teatinos, segundo o seu piedoso costume, rezava com angélico fervor pelos defuntos, acontecia-lhe por vezes sentir dentro de si uma espécie de resistência, um sentimento de invencível repulsa; outras vezes, pelo contrário, era uma sensação de grande consolação e particular atração. Logo compreendeu o significado dessas diferentes impressões: a primeira significava que sua oração era inútil, pois a alma que desejava socorrer era indigna de misericórdia e estava condenada ao fogo eterno; a outra, no entanto, indicava que sua oração era eficaz para o alívio da alma no Purgatório. O mesmo acontecia quando desejava oferecer o Santo Sacrifício por um defunto. Sentia-se, ao sair da sacristia, como que retido por uma mão invisível e compreendia que aquela alma estava no inferno; mas, quando se encontrava inebriado de alegria, de luz e de devoção, tinha a certeza de estar contribuindo para a libertação de uma alma. Este santo caridoso rezava, pois, com o maior fervor pelos defuntos que sabia estarem a sofrer, e não cessava de aplicar os seus sufrágios enquanto as almas não lhe viessem agradecer, dando-lhe a certeza da sua libertação. 

Quanto a nós, que não temos estas luzes sobrenaturais, devemos rezar por todos os defuntos, mesmo pelos maiores pecadores e pelo cristão mais virtuoso. Santo Agostinho conhecia a grande virtude de sua mãe, Santa Mônica; no entanto, não contente em oferecer a Deus os seus próprios sufrágios por ela, pedia aos seus leitores que não deixassem de recomendar a sua alma à Misericórdia Divina. Quanto aos grandes pecadores, que morrem sem se reconciliarem exteriormente com Deus, não podemos excluí-los dos nossos sufrágios, porque não temos a certeza da sua impenitência interior. A fé nos ensina que todos os homens que morrem em estado de pecado mortal incorrem na condenação eterna; mas quem são aqueles que na realidade morrem nesse estado? Só Deus, que reserva para si o julgamento dos vivos e dos mortos, sabe disso. Quanto a nós, só podemos tirar uma conclusão conjectural das circunstâncias exteriores, e mesmo disso devemos abster-nos. Mas é preciso confessar que há tudo a temer para aqueles que morrem despreparados para a morte, e toda a esperança parece desaparecer para aqueles que se recusam a receber os sacramentos. 

Estes últimos deixam esta vida com sinais exteriores de condenação. No entanto, devemos deixar o julgamento para Deus, de acordo com as palavras, Dei judicium est - A Deus pertence o julgamento (Dt, 1,17). Há mais a esperar para aqueles que não são positivamente hostis à religião, que são benevolentes para com os pobres, que conservam alguma prática de piedade cristã ou que pelo menos aprovam e favorecem a piedade; há mais, digo ainda, a esperar para tais pessoas quando acontece que elas morrem subitamente, sem terem tido tempo de receber os últimos sacramentos da Igreja.

São Francisco de Sales não quer que desesperemos da conversão dos pecadores até ao seu último suspiro e, mesmo depois da sua morte, proíbe-nos de julgar mal aqueles que levaram uma vida má. Com exceção dos pecadores, cuja reprovação é claramente manifestada pelas Sagradas Escrituras, não podemos, diz ele, concluir que uma pessoa está condenada, mas devemos respeitar os desígnios de Deus. A sua principal razão é que, como a primeira graça é gratuita, assim também é a última, que é a perseverança final ou uma boa morte. É por isso que devemos ter esperança na salvação dos fieis defuntos, por mais triste que tenha sido a sua morte, porque as nossas conjecturas baseiam-se apenas em constatações exteriores que podem ser, portanto, completamente equivocadas.

Capítulo XXXIII

Alívio às Santas Almas - A Sorte Eterna dos Falecidos de Morte Súbita - O Padre Ravignan e o General Exelmans -  O Cura D'Ars e a Viúva Enlutada - Irmã Catarina de Santo Agostinho e a Mulher dos Escândalos

Padre Ravignan, ilustre e santo pregador da Companhia de Jesus, também possuía uma grande esperança no bem estar dos pecadores levados por uma morte súbita, quando não manifestavam ódio no coração pelas coisas de Deus. Ele vivia para falar do momento supremo e parecia convencido que muitos pecadores se convertem nos seus últimos momentos, e se reconciliam com Deus, ainda que não possam manifestar qualquer sinal disso exteriormente. Em certas mortes, há mistérios de misericórdia onde o olhar do homem não vê senão golpes de justiça. Como um último lampejo de luz, Deus revela-se por vezes às almas cuja maior desgraça foi ignorá-lo e o último suspiro delas, compreendido por Aquele que sonda os corações, pode ser um gemido de perdão, ou seja, um ato de contrição perfeita. 

general Exelmans, parente deste bom padre, foi subitamente levado ao túmulo por um acidente e, infelizmente, não tinha sido muito fiel na prática da sua religião. Tinha prometido que um dia se confessaria, mas não tinha tido oportunidade de o fazer. O Padre Ravignan, que há muito tempo rezava e pedia orações por ele, ficou consternado quando soube de tal morte. No mesmo dia, uma pessoa habituada a receber comunicações sobrenaturais julgou ouvir uma voz interior que lhe dizia: 'Quem pode medir a extensão da misericórdia de Deus? Quem conhece a profundidade do oceano ou a quantidade de água que ele contém? Muito será perdoado àqueles que pecaram por ignorância'.

O biógrafo de quem tomamos emprestado este episódio, o Padre de Ponlevoy, prossegue: 'Cristãos, colocados sob a lei da Esperança, não menos do que sob a lei da Fé e da Caridade, devemos elevar-nos continuamente do fundo dos nossos sofrimentos ao pensamento da bondade infinita de Deus. Não há limite para a graça de Deus aqui em baixo; enquanto restar uma centelha de vida, não há nada que ela não possa efetuar na alma. Por isso, devemos sempre esperar e pedir a Deus com humilde persistência. Não sabemos até que ponto podemos ser ouvidos. Grandes santos e doutores têm-se esforçado muito para exaltar a poderosa eficácia da oração em favor dos entes queridos que partiram, por mais infeliz que tenha sido o seu fim. Conheceremos um dia as maravilhas indescritíveis da misericórdia divina. Nunca devemos deixar de a implorar com a maior confiança'.

Segue-se um incidente que os nossos leitores podem ter visto no Petit Messager du Coeur de Marie, de novembro de 1880. Um religioso, que pregava uma missão às senhoras de Nancy, tinha-lhes recordado, em uma conferência, que nunca se deve desesperar da salvação de uma alma e que, por vezes, as ações de menor importância aos olhos do homem são recompensadas por Deus na hora da morte. Quando ele estava prestes a sair da igreja, uma senhora vestida de luto aproximou-se dele e disse: 'Padre, o senhor acaba de nos recomendar confiança e esperança; o que acaba de me acontecer justifica plenamente as suas palavras. Eu tinha um marido que era muito amável e afetuoso e que, apesar de levar uma vida irrepreensível, negligenciava completamente a prática da sua religião. As minhas orações e exortações ficaram sem efeito. Durante o mês de maio que precedeu a sua morte, tinha erguido no meu quarto, como era meu hábito, um pequeno altar à Virgem Maria e decorei-o com flores, que renovava de tempos a tempos. O meu marido passava o domingo no campo e, de cada vez que regressava, trazia-me algumas flores que ele próprio tinha colhido e com as quais eu enfeitava o meu oratório. Será que ele reparou nisso? Será que o fez para me agaradr ou foi por um sentimento de piedade para com a Virgem? Não sei, mas nunca deixou de me trazer as flores'.

'No início do mês seguinte, morreu subitamente, sem ter tido tempo para receber os sacramentos e bênçãos finais. Fiquei inconsolável, sobretudo porque vi desaparecerem todas as minhas esperanças de que ele se voltasse para Deus. Em consequência da minha dor, a minha saúde ficou completamente abalada, e a minha família instou-me a fazer uma viagem pelo Sul. Como tinha de passar por Lyon, desejava ver o Cura d'Ars. Escrevi-lhe, portanto, pedindo-lhe uma audiência e recomendando-lhe as orações do meu marido, que tinha morrido subitamente. Não lhe dei mais pormenores'.

'Chegando a Ars, mal entrei no quarto do venerável cura e este, para meu grande espanto, dirigiu-se a mim com estas palavras: "Senhora, está desconsolada; mas esqueceu-se dos ramos de flores que lhe eram trazidos todos os domingos do mês de maio?" É impossível exprimir o meu espanto ao ouvir o Pe. Vianney recordar-me uma circunstância de que eu não tinha falado a ninguém e que ele só podia saber por revelação. E continuou: 'Deus teve piedade daquele que honrou a sua Santa Mãe. No momento da sua morte, o vosso marido arrependeu-se; a sua alma está no Purgatório e as nossas orações e boas obras obterão a sua libertação'.

Lemos na Vida de uma santa religiosa, Irmã Catarina de Santo Agostinho (Santo Afonso, Paráfrase da Salve Regina), que no lugar onde ela vivia havia uma mulher chamada Maria, que na sua juventude se tinha entregado a uma vida muito desordenada e como a idade não lhe trouxera nenhuma emenda, tornando-a, pelo contrário, ainda mais obstinada no vício, os habitantes locais, não tolerando mais os escândalos que ela dava, expulsaram-na da cidade. Não encontrou outro asilo senão uma gruta na floresta onde, após alguns meses, morreu sem a assistência dos sacramentos. O seu corpo foi enterrado num campo, como se fosse algo contagioso. A Irmã Catarina, que tinha o piedoso costume de recomendar a Deus as almas de todos aqueles de cuja morte ouvia falar, não pensou em rezar por esta em particular, julgando, como todos os demais, que ela estaria provavelmente condenada.

Quatro meses depois, a serva de Deus ouviu uma voz que lhe dizia: 'Irmã Catarina, como sou infeliz! Tu recomendas a Deus as almas de todos; eu sou a única de quem não tens piedade!' 'Quem és tu, então?' - respondeu a irmã. 'Sou a pobre Maria, que morreu sozinha na gruta'. 'ComoMaria, estás salva?' 'Sim, pela intercessão da Divina Misericórdia, estou salva. À beira da morte, aterrorizada pela lembrança dos meus muitos pecados e vendo-me abandonada por todos, invoquei a Santíssima Virgem. Na sua terna bondade, ela me ouviu e me concedeu a graça de uma contrição perfeita, com o desejo de me confessar, se isso me fosse possível.  Recuperei, assim, a graça de Deus e fui resgatada do inferno. Mas fui obrigada a ir para o Purgatório, onde sofro terrivelmente. O meu tempo será encurtado e em breve poderei ser libertada, se me forem oferecidas algumas missas. Manda celebrá-las por mim, querida irmã, e lembrar-me-ei sempre de ti diante de Jesus e de Maria'. A Irmã Catarina apressou-se a satisfazer este pedido e, passados alguns dias, a alma apareceu de novo, brilhante como uma estrela, agradecendo a sua caridade.

Capítulo XXXIV

Razões para Assistência às Santas Almas - A Nossa Falta de Reflexão e Zelo - Exortações de Santos sobre a Excelência dessa Obra de Caridade

Acabamos de passar em revista os meios e recursos que a Misericórdia Divina colocou em nossas mãos para o alívio de nossos irmãos no Purgatório. Esses meios são poderosos e os recursos são muitos; mas será que os utilizamos abundantemente? Tendo em nosso poder o auxílio às pobres almas, temos zelo suficiente para o fazer? Somos tão ricos em caridade como Deus é rico em misericórdia? Quantos cristãos, infelizmente, pouco ou nada fazem em intenção dos defuntos! E os que não se esquecem deles, os que têm suficiente caridade para os ajudar com os seus sufrágios, quantas vezes não lhes falta zelo e fervor! Comparai os cuidados que dispensamos aos doentes com a assistência que damos às almas penadas. Quando um pai ou uma mãe são acometidos de alguma doença, quando um filho ou uma pessoa que nos é querida é vítima de sofrimento, que cuidado, que solicitude e quanta devoção da nossa parte! Mas as almas santas, que não nos são menos queridas, definham sob o peso, não de uma doença dolorosa, mas de tormentos expiatórios mil vezes mais cruéis. Somos igualmente fervorosos, solícitos e disponíveis para as aliviar? 'Não' - diz São Francisco de Sales - 'não nos lembramos suficientemente dos nossos amigos queridos que partiram. A sua lembrança parece perecer com o som dos sinos fúnebres e esquecemos que a amizade que encontra um fim, mesmo na morte nunca foi uma amizade genuína'.

De onde vem esse triste e culposo esquecimento? A sua causa principal é a falta de reflexão. Quia nullus est qui recogitat corde - Porque não há quem considere no coração (Jr 12,2). Perdemos de vista os grandes motivos que nos impelem ao exercício dessa caridade para com os falecidos. É, portanto, para estimular o nosso zelo que vamos recordar esses motivos e colocá-los sob a luz mais forte possível.

Podemos dizer que todos esses motivos se resumem nas seguintes palavras do Espírito Santo: 'É um pensamento santo e salutar orar pelos mortos, para que sejam libertados de seus pecados, isto é, da punição temporal devida aos seus pecados (2Mc 12,46). Em primeiro lugar, é uma obra santa e excelente em si mesma, além de agradável e meritória aos olhos de Deus. Por conseguinte, é uma obra salutar, extremamente proveitosa para a nossa própria salvação, para o nosso bem-estar neste mundo e no outro.

'Uma das obras mais santas, um dos melhores exercícios de piedade que podemos praticar neste mundo' - nos diz Santo Agostinho - 'é oferecer sacrifícios, esmolas e orações pelos mortos' (Homilia 16). 'O alívio que obtemos para os defuntos' - diz São Jerônimo - 'obtém para nós uma misericórdia equivalente'. Considerada em si mesma, a oração pelos mortos é uma obra de Fé, de Caridade e, muitas vezes, até de Justiça.

Por primeiro, quem são de fato as pessoas a quem devemos tratar de assistir? Quem são essas almas santas, predestinadas, tão queridas de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo, tão queridas da sua Mãe, que a Igreja recomenda incessantemente à nossa caridade? Almas que nos são também tão queridas, pois estiveram, talvez, intimamente unidas a nós nesta terra, e que nos suplicam com estas palavras comoventes: 'Tende piedade de mim, tende piedade de mim, ao menos vós, meus amigos' (Jó 19,21). Em segundo lugar, em que necessidades elas se encontram? Infelizmente, sendo muito grandes as suas necessidades, as almas que assim sofrem têm direito à nossa ajuda na proporção da sua total incapacidade de fazer algo por si próprias. Em terceiro lugar, que bem podemos proporcionar a estas almas? O bem maior, pois podemos ajudá-las a conquistar a posse da bem-aventurança eterna.

'Assistir as almas do Purgatório' - diz São Francisco de Sales - 'é praticar a mais excelente das obras de misericórdia, ou melhor, é praticar de maneira mais sublime todas as obras de misericórdia juntas: é visitar os doentes; é dar de beber aos que têm sede da visão de Deus; é alimentar os famintos, resgatar os prisioneiros, vestir os nus, proporcionar aos pobres exilados a hospitalidade da Jerusalém Celeste; é consolar os aflitos, é instruir os ignorantes - em suma, é praticar todas as obras de misericórdia numa única obra'. Esta doutrina concorda muito bem com a de São Tomás, que diz em sua Summa: 'Sufrágios para os mortos são mais agradáveis a Deus do que sufrágios para os vivos; porque os primeiros estão em necessidade mais urgente deles e porque não são capazes de ajudar a si mesmos, como o podem os vivos' (Suplemento, Q. 71, art. 5).

Nosso Senhor considera toda a obra de misericórdia exercida para com o nosso próximo como feita para Ele próprio. 'É a Mim que o fizestes' - Mi hi fecistis. Isto é especialmente verdade para a misericórdia praticada em intenção às pobres almas sofredoras. Foi revelado a Santa Brígida que aquele que, com os seus sufrágios, tira uma alma do Purgatório, tem o mesmo mérito como se tirasse o próprio Jesus Cristo do cativeiro.

Capítulo XXXV

Razões para o Socorro às Santas Almas - A Controvérsia entre o Irmão Bento e o Irmão Bertrand

Quando exaltamos tanto os méritos da oração pelos falecidos, não concluímos de forma alguma que outras boas obras devam ser omitidas, pois todas as outras boas obras devem ser exercidas de acordo com o tempo, o lugar e as circunstâncias. A única intenção que tínhamos em vista era dar uma ideia correta da misericórdia para com os falecidos e inspirar nos outros o desejo de a praticarem. Além disso, as obras espirituais de misericórdia, que têm por objetivo a salvação das almas, são todas de igual excelência, e é apenas em certos aspectos que podemos colocar a assistência aos mortos acima do zelo pela conversão dos pecadores.

Nas Crônicas dos Frades Pregadores (cf Rossign., Merv. I), conta-se que surgiu uma controvérsia bastante intensa entre dois religiosos dessa Ordem, o Irmão Bento e o Irmão Bertrand, a propósito dos sufrágios pelos defuntos. O motivo foi o seguinte: O Irmão Bertrand celebrava frequentemente a Santa Missa pelos pecadores e rezava continuamente pela sua conversão, impondo a si mesmo as mais severas penitências; mas raramente era visto a rezar a missa de exéquias pelos defuntos. 

Irmão Bento, que tinha grande devoção pelas almas do Purgatório, tendo notado esta conduta, perguntou-lhe porque agia assim. 'Por que' - respondeu ele - 'as almas do Purgatório estão seguras da sua salvação, enquanto os pecadores estão continuamente expostos ao perigo de cair no inferno. Que condição mais deplorável do que a de uma alma em estado de pecado mortal? Ela está em inimizade com Deus, presa nas correntes do demônio, suspensa sobre o abismo do inferno pelo frágil fio da vida, que pode romper-se a qualquer momento. O pecador caminha no caminho da perdição; se continuar a avançar, cairá no abismo eterno. Devemos, portanto, ir em seu auxílio e preservá-lo desta que é a maior das desgraças, trabalhando pela sua conversão. Aliás, não foi para salvar os pecadores que o Filho de Deus veio à terra e morreu numa cruz? São Dênis assegura-nos também que a mais divina de todas as coisas divinas é trabalhar com Deus para a salvação das almas. No que diz respeito às almas do Purgatório, elas estão seguras, a sua salvação eterna está assegurada. Sofrem, são vítimas de grandes tormentos, mas não têm nada a temer do inferno, e os seus sofrimentos terão um fim. As dívidas que contraíram diminuem todos os dias e em breve gozarão da luz eterna; enquanto os pecadores são continuamente ameaçados com a condenação, a mais terrível desgraça que pode acontecer a uma das criaturas de Deus'.

'Tudo o que disseste é verdade' - respondeu o Irmão Bento - 'mas há uma outra consideração a fazer. Os pecadores são escravos de Satanás, por sua própria vontade. Seu jugo é de sua própria escolha, eles poderiam quebrar suas correntes se quisessem; enquanto as pobres almas no Purgatório podem apenas suspirar e implorar a assistência dos vivos. A eles é impossível romper os grilhões que as prendem às chamas torturantes. Suponhamos que encontrásseis dois mendigos, um doente, aleijado e desamparado, absolutamente incapaz de ganhar o seu sustento; o outro, ao contrário, embora em grande aflição, jovem e vigoroso; qual dos dois mereceria a maior parte da vossa esmola?' 'Certamente o que não podia trabalhar' - respondeu o Irmão Bertrand.

'Pois bem, meu caro padre - continuou o Irmão Bento - 'é exatamente o que se passa com os pecadores e as almas santas. Elas não mais podem ajudar a si próprias. O tempo da oração, da confissão e das boas obras já passou para elas; só nós podemos aliviá-las. É verdade que mereceram estes sofrimentos como castigo pelos seus pecados, mas agora lamentam e detestam esses pecados. Eles estão na graça e amizade de Deus; enquanto os pecadores são agora os seus inimigos. É certo que devemos rezar pela sua conversão, mas sem prejuízo do que devemos às almas sofredoras, tão caras ao coração de Jesus. Tenhamos compaixão dos pecadores, mas não nos esqueçamos de que eles têm todos os meios de salvação à sua disposição; devem romper os laços do pecado e fugir do perigo de condenação que os ameaça. Não parece evidente que as almas sofredoras têm mais necessidade e merecem uma parte maior da nossa caridade?'

Apesar da força desses argumentos, o Irmão Bertrand persistiu em sua opinião inicial. Então, na noite seguinte, ele vivenciou a aparição de uma alma do Purgatório, que o fez experimentar, por um curto espaço de tempo, a dor que ela mesma suportava. Esse sofrimento era tão atroz que parecia impossível suportá-lo. Então, como diz Isaías, a tortura deu-lhe o entendimento: vexatio intellectum dabit (Is 28,19) e convenceu-se de que devia fazer mais pelas almas sofredoras. Na manhã seguinte, cheio de compaixão, subiu os degraus do altar, vestido de preto, e ofereceu o Santo Sacrifício pelas almas dos falecidos.

Capítulo XXXVI

Razões para o Socorro às Santas Almas - Socorro às Almas dos Nossos Parentes Falecidos - Cimon de Atenas e o seu Pai na Prisão - São João de Deus e o Socorro aos Doentes de um Incêndio

Se somos obrigados a socorrer as santas almas pela extrema necessidade em que se encontram, quanto maior não se torna este motivo quando nos lembramos de que estas almas estão unidas a nós pelos laços mais sagrados, os laços de sangue, pelo Sangue de Jesus Cristo, e pelos laços da carne e do sangue humanos, de onde fomos gerados segundo a carne?

Sim, há no Purgatório almas unidas a nós pelos mais íntimos laços de família. Pode ser um pai ou uma mãe que, padecendo aqueles horríveis tormentos, estendem os braços em súplica para mim. O que não faríamos pelo nosso pai ou pela nossa mãe, se soubéssemos que estão a penar em algum calabouço tremendo? Um antigo ateniense, o célebre Cimon, teve o desgosto de ver o seu pai preso por credores sem coração, que ele não podia satisfazer. O pior é que não conseguiu reunir uma soma suficiente para efetuar o resgate do seu pai e o seu velho pai morreu na prisão. Cimon apressou-se a ir à prisão e pediu que lhe dessem, pelo menos, o corpo do seu pai para que o pudesse enterrar. Isso também lhe foi recusado, sob o pretexto de que, não tendo com que pagar as suas dívidas, não podia tê-lo libertado. 'Permitam-me primeiro enterrar meu pai' - gritou Cimon - ''e depois voltarei e tomarei o seu lugar na prisão'.

Admiramos este ato de piedade filial, mas não temos também o dever de o imitar? Não temos também, porventura, um pai ou uma mãe no Purgatório? Não somos obrigados a libertá-los à custa dos maiores sacrifícios? Mais afortunados do que Cimon, temos com que pagar as suas dívidas; não precisamos de tomar o seu lugar; pelo contrário, libertá-los é lutar pelo nosso próprio resgate.

Admiremos também a caridade de São João de Deus, que enfrentou a fúria das chamas para salvar os pobres doentes durante uma conflagração. Este grande servo de Deus morreu em Granada, no ano de 1550, ajoelhado diante de uma imagem de Jesus Crucificado, que ele abraçou e continuou a manter apertada nos seus braços, mesmo depois de ter entregado a sua alma a Deus. Filho de pais muito pobres e obrigado a sustentar-se com o pastoreio de rebanhos, era rico em fé e confiança em Deus. Tinha grande prazer na oração e na escuta da Palavra de Deus; este foi o fundamento da grande santidade que depois alcançou.

Um sermão do Venerável Padre João d'Ávila, Apóstolo da Andaluzia, impressionou-o de tal modo que resolveu consagrar toda a sua vida ao serviço dos pobres doentes. Sem outro recurso que não fosse a caridade e a confiança em Deus, conseguiu comprar uma casa, na qual reuniu todos os doentes pobres e abandonados, para lhes dar alimento para a alma e para o corpo. Este asilo depressa se transformou no Hospital Real de Granada, um estabelecimento imenso, cheio de uma multidão de idosos e doentes. Um dia, tendo deflagrado um incêndio no hospital, muitos dos doentes correram o risco de morrer de uma morte horrível. Estavam rodeados de chamas por todos os lados, de tal modo que era impossível alguém tentar salvá-los. Proferiam os gritos mais angustiantes, chamando o Céu e a Terra em seu auxílio. 

João, diante disso, inflama-se de caridade, precipita-se no fogo, luta através das chamas e do fumo até chegar aos leitos dos doentes; depois, erguendo-os sobre os ombros, carrega essas infelizes criaturas, uma após outra, para um lugar seguro. Obrigado a atravessar essa imensa fornalha, trabalhando no calor do fogo durante meia hora inteira, o santo não sofreu o menor ferimento; as chamas respeitaram sua pessoa, suas roupas e até mesmo o menor fio de cabelo de sua cabeça. Deus proveu tal milagre mostrando quanto era agradável a Ele a caridade do seu servo. E aqueles que salvam, não o corpo, mas as almas das chamas do Purgatório, a sua obra é menos agradável a Deus? As necessidades, os gritos e os gemidos dessas almas são menos tocantes para um coração de fé? Será mais difícil socorrê-las? Será necessário lançarmos por entre as chamas para as salvar?

Certamente, temos todas as facilidades ao nosso alcance para socorrê-las e Deus não exige para isso grandes esforços de nossa parte. No entanto, a caridade das almas fervorosas leva-as, por vezes, a fazer os sacrifícios mais heróicos e até mesmo a compartilhar os tormentos dos seus irmãos do Purgatório.

Capítulo XXXVII

Razões para o Socorro às Santas Almas - Obras de Satisfação em Favor das Almas do Purgatório pela Serva de Deus Maria Villani - A Marca do Purgatório na Testa dessa Serva de Deus

Já vimos como Santa Catarina de Ricci e vários outros levaram o seu heroísmo ao ponto de sofrerem em lugar das almas do Purgatório. Acrescentemos mais alguns exemplos desta admirável caridade. A serva de Deus Maria Villani, da Ordem de São Domingos, cuja vida foi escrita pelo Padre Marchi (cf Rossignoli, Merv., 41), aplicava-se dia e noite à prática de obras de satisfação em favor dos defuntos.

Um dia - era a Vigília da Epifania - permaneceu muito tempo em oração, suplicando a Deus que aliviasse os sofrimentos das almas do Purgatório em consideração aos próprios sofrimentos de Jesus Cristo, oferecendo nesta intenção as dores da flagelação do nosso Salvador, da sua coroa de espinhos, das suas amarras, dos pregos, do peso da cruz - numa palavra, todas as suas dores amargas e todos os instrumentos da sua Paixão. Na noite seguinte, Deus teve o prazer de manifestar o quanto esta santa prática lhe havia sido agradável. Durante a sua oração, em êxtase, viu uma longa procissão de pessoas vestidas de branco e radiantes de luz. Levavam os emblemas da Paixão e entravam na glória do Paraíso. A serva de Deus compreendeu que eram as almas libertadas pelas suas fervorosas orações e pelos méritos da Paixão de Jesus Cristo.

Em outra ocasião, na festa dos Fieis Defuntos, recebera a intimação de trabalhar na elaboração de um manuscrito e que passasse o dia a escrevê-lo. Tal tarefa, imposta pela obediência, foi uma provação para a sua piedade: sentiu alguma relutância em obedecer, porque queria dedicar todo esse dia à oração, à penitência e a exercícios piedosos para o alívio das almas sofredoras. Esqueceu-se por um momento de que a obediência devia prevalecer sobre tudo o mais, conforme está escrito: Melior est enim oboedientia quam victimae - A obediência é melhor que o sacrifício (1Sm 15,22). Vendo a sua grande caridade para com as santas almas, Deus concedeu-lhe aparecer, para a instruir e consolar. 'Obedece, minha filha' - disse a ela - 'faz o trabalho que te é imposto pela obediência e o oferece pelas almas: cada linha que escreveres hoje, em espírito de obediência e de caridade, conseguirá a libertação de uma alma'. Compreender-se-á facilmente que ela trabalhou então com a maior diligência e escreveu o maior número possível dessas linhas, por ser algo tão agradável a Deus.

A sua caridade para com as santas almas não se limitava à oração e ao jejum; desejava suportar uma parte dos seus sofrimentos. Um dia, enquanto rezava com essa intenção, foi arrebatada em espírito e conduzida ao Purgatório. Lá, em meio a uma multidão de almas sofredoras, viu uma terrivelmete mais atormentada do que as outras, e que lhe despertou a mais terna compaixão. 'Por que' - perguntou ela - 'tens de sofrer tão excruciante tortura? Não recebes nenhum alívio?' 'Tenho estado' - respondeu a alma - 'há muito tempo neste lugar, suportando os mais espantosos tormentos, como castigo pela minha antiga vaidade e escandalosa extravagância. Até agora não recebi o menor alívio, porque Deus permitiu que eu fosse esquecida por meus pais, meus filhos, meus parentes e amigos: eles não fazem uma única oração por mim. Quando estava na terra, ocupada exclusivamente com a minha aparência e frivolidades mundanas, com festas e com prazeres, raramente me dedicava à lembrança de Deus e dos meus deveres cristãos. O meu único desejo efetivo era promover os interesses mundanos da minha família. Como vês, sou bem castigada, pois me encontro completamente esquecida por todos'.

Estas palavras causaram uma dolorosa impressão em Maria Villani. Suplicou a esta alma que lhe permitisse sentir alguma coisa do que ela sofria; e, no mesmo instante, pareceu-lhe que um dedo de fogo lhe tocava a testa, e a dor que sentiu foi tão aguda que fez cessar completamente o seu êxtase. A marca ficou tão profundamente impressa na sua testa que, mesmo dois meses depois, ainda era visível e causava-lhe um sofrimento intolerável. A serva de Deus ofereceu este fato, juntamente com orações e outras boas obras, pela alma a que acabamos de nos referir. Esta alma apareceu a Maria ao fim de dois meses e disse que, tendo sido libertada pela sua intercessão, estava prestes a entrar no Céu. E, neste mesmo instante, a cicatriz da sua testa desapareceu.

Capítulo XXXVIII

Razões para o Socorro às Santas Almas - Heróis e Vítimas da Caridade - Os Exemplos dos Padres Laynez e Fabricius - Padre Nieremberg, Vítima da Caridade pelas Almas do Purgatório

'Aquele que esquece seu amigo, depois que a morte o tirou de sua vista, nunca lhe teve uma amizade verdadeira'. Estas palavras o Padre Laynez, Segundo Geral da Companhia de Jesus, repetia continuamente aos filhos de Santo Inácio. Ele desejava que os interesses das almas lhes fossem tão caros depois da morte como o foram durante a vida. Unindo o exemplo ao preceito, Laynez aplicou às almas do Purgatório uma grande parte das suas orações, sacrifícios e a satisfação que mereceu diante de Deus pelos seus trabalhos para a conversão dos pecadores. Os Padres da Companhia, fiéis às suas lições de caridade, manifestaram sempre um zelo particular por esta devoção, como se pode ver no livro intitulado 'Heróis e Vítimas da Caridade' na Companhia de Jesus, do qual transcrevo a seguinte página.

'Em Munster, na Vestfália, em meados do século XVII, surgiu uma epidemia que todos os dias fazia inúmeras vítimas. O medo paralisou a caridade da maior parte dos habitantes, e poucos foram os que se dedicaram a socorrer as infelizes criaturas atingidas pela peste. Foi então que o Padre Fabricius, animado pelo espírito de Laynez e Loyola, lançou-se na arena do sacrifício. Pondo de lado toda a precaução pessoal, empregou todo o seu tempo em visitar os doentes, em procurar remédios para eles e em dispô-los para uma morte cristã. Ouvia as suas confissões, administrava os últimos sacramentos, enterrava-os com as suas próprias mãos e, finalmente, celebrava o Santo Sacrifício para o repouso das suas almas.

De fato, durante toda a sua vida, este servo de Deus teve a maior devoção para com as almas santas. Entre todos os seus exercícios de piedade, o que lhe era mais caro, e que ele sempre recomendou vivamente, era o de oferecer o Santo Sacrifício da Missa pelos defuntos, sempre que as Rubricas o permitissem. Como resultado deste conselho, todos os Padres de Munster resolveram consagrar um dia de cada mês aos fiéis defuntos; cobriram a sua igreja de luto e rezavam com toda a solenidade pelos fieis defuntos. Deus dignou-se, como faz muitas vezes, recompensar o Padre Fabricius e encorajou o seu zelo com várias aparições das almas sofredoras. Umas pediam-lhe que apressasse a sua libertação, outras agradeciam-lhe o alívio que lhes tinha proporcionado; outras ainda anunciavam-lhe o momento feliz da sua libertação. 

O seu maior ato de caridade foi aquele que realizou no momento da sua morte. Com uma generosidade verdadeiramente admirável, sacrificou todos os sufrágios, orações, missas, indulgências e mortificações que a sua sociedade religiosa aplicava aos seus membros falecidos. Pediu a Deus que os privasse deles para o alívio das almas sofredoras que mais agradassem a sua Divina Majestade'.

Já falamos anteriormente do Padre Nieremberg, célebre tanto pelas obras de piedade que publicou como pelas eminentes virtudes que praticou. A sua devoção pelas almas santas, não contente com sacrifícios e orações frequentes, levava-o a sofrer por elas com uma generosidade que muitas vezes chegava ao heroísmo.  Entre os seus penitentes, na corte de Madri, havia uma senhora de classe que, sob a sua sábia direção, tinha atingido um alto grau de virtude no meio do mundo, mas era atormentada por um medo excessivo da morte, tendo em vista o Purgatório que a esperava. Adoeceu perigosamente e os seus temores aumentaram de tal modo que quase perdeu os sentimentos cristãos. O seu santo confessor empregou todos os meios que o seu zelo podia sugerir, mas em vão; não conseguiu restituir-lhe a tranquilidade, nem conseguia convencê-la a receber os últimos sacramentos.

Para coroar este infortúnio, perdeu subitamente a consciência e ficou reduzida a uma letargia completa.. O padre, justamente alarmado com o perigo desta alma, retirou-se para uma capela perto do quarto da moribunda. Ali ofereceu o Santo Sacrifício com o maior fervor para obter para a doente tempo suficiente para que recebesse os sacramentos da Igreja. Ao mesmo tempo, movido por uma caridade verdadeiramente heróica, ofereceu-se como vítima à Justiça Divina, para sofrer nesta vida todos os sofrimentos reservados àquela pobre alma na outra.

A sua oração foi ouvida. Mal terminou a missa, a doente recobrou a consciência e constatou-se que estava completamente mudada. Estava tão bem disposta que pediu os últimos sacramentos, os quais recebeu com pungente fervor. Depois, ouvindo do seu confessor que não tinha nada a temer do Purgatório, expirou perfeitamente serena e com um sorriso nos lábios.

A partir dessa hora, o Padre Nieremberg foi submetodo a todo tipo de sofrimento, tanto do corpo como da alma. Os dezesseis anos restantes da sua vida foram um longo martírio e um rigoroso purgatório. Nenhum remédio humano podia aliviá-lo e seu único consolo estava na lembrança da sagrada causa pela qual ele os suportou. Finalmente, a morte veio pôr fim aos seus terríveis sofrimentos e, ao mesmo tempo, podemos razoavelmente acreditar, abrir-lhe as portas do Paraíso, pois está escrito: 'bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia'.

Capítulo XXXIX

Razões e Exemplos para a Devoção às Santas Almas - São Pedro Damião e o seu Pai - O Exemplo da Jovem Anamita - O Velho Porteiro de um Seminário e a Propagação da Fé

Os exemplos de uma generosa caridade para com os defuntos não são raros, e é sempre útil recordá-los. Não podemos deixar de mencionar o belo e comovente exemplo de São Pedro Damião, bispo de Óstia, cardeal e doutor da Igreja, um exemplo que nunca se cansa de repetir. Ainda jovem, Pedro teve a infelicidade de perder a sua mãe e, pouco depois, o seu pai casou-se de novo, ficando ele entregue aos cuidados de uma madrasta. Apesar de ter demonstrado todo o afeto possível por ela, esta mulher era incapaz de retribuir o amor deste querido filho; tratou-o com uma severidade bárbara e, para se livrar dele, mandou-o para junto do irmão mais velho, que o empregou a tratar dos porcos. 

O pai, que deveria tê-lo protegido, abandonou-o à sua infeliz sorte. Mas o menino ergueu os olhos para o Céu, onde viu outro Pai, em quem depositava toda a sua confiança. Aceitou tudo o que acontecia como vindo das suas mãos divinas, e resignou-se às dificuldades da sua situação. 'Deus' - disse ele - 'tem os seus desígnios em tudo o que faz, e são desígnios de misericórdia; temos apenas que nos abandonar em suas mãos e Ele dirigirá todas as coisas para o nosso bem'. Pedro não se deixou enganar; foi nesta dolorosa provação que o futuro Cardeal da Igreja, aquele que iria surpreender a sua época pela extensão da sua erudição e que edificaria o mundo com o brilho das suas virtudes, lançou as bases da sua futura santidade. Mal coberto de trapos, o seu biógrafo conta-nos que nem sempre tinha o suficiente nem para aplacar a sua fome, mas rezava confiante  a Deus e aceitava tudo isso.

Entretanto, aconteceu que o seu pai morreu. O jovem santo esqueceu a dureza com que tinha sido tratado e, como um bom filho, rezava continuamente pelo descanso da alma do pai. Um dia, encontrou na estrada uma peça de ouro, que a Providência parecia ter colocado ali para ele. Era uma grande fortuna para o pobre menino. Mas, em vez de a usar para aliviar a sua própria miséria, o seu primeiro pensamento foi levá-la a um sacerdote e pedir-lhe que celebrasse o Santo Sacrifício da Missa pela alma do seu falecido pai. A Santa Igreja considera este sinal de devoção filial tão tocante que o inseriu por inteiro no Ofício da festa deste santo.

'Permitam-me' - dizia o missionário Padre Louvet - 'acrescentar mais um fato da minha experiência pessoal. Quando eu pregava a fé em Cochinchina, uma pobre menina anamita, que acabava de ser batizada, perdeu a mãe. Aos quatorze anos, viu-se obrigada a prover ao seu sustento e ao dos seus dois irmãos mais novos com os seus parcos rendimentos, que mal chegavam a sete cêntimos [do franco] por dia. Qual não foi a minha surpresa quando, no fim da semana, a vi trazer-me o ganho de dois dias, para que eu rezasse uma missa pelo repouso da alma da sua querida mãe. Aquelas pobres pequeninas tinham jejuado durante uma parte da semana para conseguir este humilde sufrágio para a sua falecida mãe. Ó santa esmola dos pobres e dos órfãos! Se o meu próprio coração foi tão profundamente tocado por ela, quanto mais o coração do nosso Pai Celestial, e que bênçãos ela terá trazido para aquela mãe e para os seus filhos!

Eis aí a generosidade dos pobres! Que exemplo e reprovação para tantos ricos, extravagantes no luxo e nos prazeres, mas avarentos quando se trata de dar uma esmola para mandar celebrar missas pelos seus parentes defuntos. Embora, antes de todas as outras intenções, incluindo a de se dedicar uma parte das esmolas para mandar celebrar missas pelas suas próprias almas ou pelas almas dos seus parentes e amigos, é conveniente empregar uma parte para o alívio dos pobres, ou para outras boas obras, como em benefício das escolas católicas, serviços de pregação da sã doutrina e outros fins, segundo as circunstâncias. Esta é uma santa liberalidade, conforme ao espírito da Igreja, e muito proveitosa para as almas do Purgatório'.

Abade Louvet, de cuja obra destacamos o texto acima, relata um outro evento que serve para ser mencionado aqui. Trata-se de um homem de condição humilde que fez um sacrifício generoso em favor da Propagação da Fé, mas em circunstâncias que tornaram esse ato particularmente valioso para as necessidades futuras de sua alma no Purgatório. Um pobre porteiro de um seminário, durante a sua longa vida, tinha juntado, centavo a centavo, a soma de oitocentos francos. Não tendo família, destinou essa soma à celebração de missas após a sua morte. 

Mas o que é que a caridade não pode fazer, quando faz inflamar um coração com o seu fogo sagrado? Um jovem padre estava prestes a deixar o seminário para partir para as missões estrangeiras. O velho sentiu-se inspirado a entregar-lhe o seu pequeno tesouro para a bela obra da Propagação da Fé. Deu o dinheiro ao missionário e disse a ele: 'Caro senhor, peço-lhe que aceite esta pequena esmola para o ajudar na obra da difusão do Evangelho. Guardei-a para mandar rezar missas depois da minha morte, mas prefiro ficar um pouco mais no Purgatório para que o nome do bom Deus seja glorificado'. O jovem padre comoveu-se até às lágrimas. Não quis aceitar a oferta demasiado generosa do pobre homem, mas este insistiu com tanta veemência que não teve coragem de o recusar.

Poucos meses depois, o bom velho morreu. Nenhuma aparição revelou o seu destino no outro mundo. Mas será que ele está necessitado? Não sabemos que o Coração de Jesus não pode deixar-se ultrapassar em generosidade? Não compreendemos que um homem que foi suficientemente generoso para se entregar às chamas do Purgatório, a fim de que Jesus Cristo fosse dado a conhecer às nações infiéis, não terá certamente encontrado abundante misericórdia perante o Soberano Juiz?

Capítulo XL

Razões e Exemplos para a Devoção às Santas Almas - Obrigação de Caridade e de Justiça - O Roubo aos Falecidos - A Propriedade Devastada - O Velho Soldado e o seu Legado Piedoso Não Cumprido

Acabamos de considerar a devoção às almas do Purgatório como uma obra de caridade. A oração pelos mortos, dissemos, é uma obra santa, porque é um exercício muito salutar da mais excelente das virtudes, a caridade. Esta caridade para com os defuntos não é apenas facultativa e de conselho, mas é também de preceito, não menos do que dar esmolas aos pobres. Como existe uma obrigação geral de caridade para dar esmolas, com quanto maior razão não somos obrigados pela lei geral da caridade a ajudar os nossos irmãos sofredores no Purgatório?

Esta obrigação de caridade está muitas vezes associada a uma obrigação de justiça rigorosa. Quando um moribundo, quer por palavra, quer por testamento escrito, exprime os seus últimos desejos no que diz respeito às obras de piedade; quando encarrega os seus herdeiros de mandar celebrar um certo número de missas, de distribuir uma certa soma em esmolas, para qualquer boa obra que seja, os herdeiros são obrigados, em estrita justiça, a partir do momento em que entram na posse da propriedade, a cumprir sem demora os últimos desejos do falecido.

Este dever de justiça é tanto mais sagrado quanto estes legados piedosos não passam frequentemente de restituições disfarçadas. Ora, o que nos ensina a experiência cotidiana? Será que as pessoas se apressam com religiosa exatidão a cumprir essas piedosas obrigações que dizem respeito à alma do defunto? Infelizmente, muito pelo contrário. Uma família que se apodera de uma fortuna considerável distribui ao seu pobre parente defunto os poucos sufrágios que ele reservou para seu próprio benefício espiritual; e se as sutilezas da lei civil os favorecem, os membros dessa família não se envergonham, sob o pretexto de alguma informalidade, de anular fraudulentamente o testamento para se livrarem da obrigação de fazer esses legados piedosos. Não é em vão que o autor da Imitação de Cristo nos aconselha a satisfazer os nossos pecados durante a nossa vida e a não depender demasiado dos nossos herdeiros, que muitas vezes negligenciam a execução das piedosas doações feitas por nós para o alívio das nossas pobres almas.

Para estas famílias - todo cuidado é pouco! É uma injustiça sacrílega combinada com uma crueldade atroz. Roubar a um pobre, diz o IV Concílio de Cartago, é como tornar-se o seu assassino (Egentium Necatores). Que diremos, pois, daqueles que roubam os mortos, que os privam injustamente dos seus sufrágios e os deixam sem assistência nos terríveis tormentos do Purgatório? Além disso, aqueles que se tornam culpados desse roubo infame são frequentemente punidos mais severamente por Deus, mesmo nesta vida. Às vezes, ficamos espantados ao ver uma fortuna considerável derreter-se, por assim dizer, nas mãos de certos herdeiros; uma espécie de maldição parece pairar sobre certas heranças. No dia do Juízo Final, quando o que agora está oculto se manifestar, veremos que a causa dessa ruína terá sido frequentemente a avareza e a injustiça dos herdeiros, que negligenciaram as obrigações impostas a eles em relação aos legados piedosos relativos à herança.

Aconteceu em Milão, diz o Padre Rossignoli, que uma magnífica propriedade, situada a pouca distância da cidade, foi completamente devastada pelo granizo, enquanto os campos vizinhos permaneceram ilesos. Este fenómeno atraiu a atenção e o espanto; fazia lembrar as pragas do Egito. O granizo devastou os campos dos egípcios e respeitou a terra de Gessen, habitada pelos filhos de Israel. Este foi considerado como um flagelo semelhante. O granizo misterioso não podia ter-se confinado exclusivamente aos limites de uma propriedade sem obedecer a uma causa inteligente. As pessoas não sabiam como explicar este fenômeno, quando a aparição de uma alma do Purgatório revelou que se tratava de um castigo infligido aos filhos ingratos e culpados, que tinham negligenciado a execução da última vontade do seu falecido pai relativamente a certas obras de piedade.

Sabemos que em todos os países e em todos os lugares, fala-se de casas assombradas, tornadas inabitáveis, com grande prejuízo para seus proprietários. Ora, se tentarmos descobrir a causa disso, geralmente descobriremos que uma alma esquecida por seus parentes volta para reclamar os sufrágios que lhe são devidos. Quer seja atribuído à credulidade, à excitação da imaginação, à alucinação, ou mesmo ao engano, permanecerá sempre um fato bem provado para ensinar aos herdeiros insensíveis como Deus castiga tal conduta injusta e sacrílega, mesmo nesta vida.

O seguinte evento, que foi relatado por Tomás de Cantimpre (Rossign., Merv., 15), demonstra claramente quão culpáveis são, aos olhos de Deus, os herdeiros que defraudam os mortos. Durante as guerras de Carlos Magno, um valente soldado tinha servido nos mais importantes e honrosos cargos. A sua vida era a de um verdadeiro cristão. Contente com o seu soldo, abstinha-se de qualquer ato de violência e o tumulto do campo nunca o impediu de cumprir os seus deveres essenciais, embora em assuntos de menor importância tivesse sido culpado de muitas pequenas faltas comuns aos homens da sua profissão. Tendo atingido uma idade muito avançada, adoeceu; e vendo que a sua última hora tinha chegado, chamou à sua cabeceira um sobrinho órfão, de quem tinha sido pai, e expressou-lhe os seus desejos de morte. 

'Meu filho' - disse ele - 'sabes que não tenho riquezas para te legar; só tenho as minhas armas e o meu cavalo. As minhas armas são para ti. Quanto ao meu cavalo, vende-o quando eu tiver entregue a minha alma a Deus, e reparte o dinheiro entre os padres e os pobres, para que os primeiros ofereçam o Santo Sacrifício por mim, e os outros me ajudem com as suas orações'. O sobrinho chorou e prometeu executar sem demora os últimos desejos do seu tio e benfeitor moribundo. O velho soldado morreu pouco depois, o sobrinho tomou posse das armas e levou o cavalo. Era um animal muito bonito e valioso. Em vez de o vender imediatamente, como tinha prometido ao seu falecido tio, começou por usá-lo em pequenas viagens e, como estava muito satisfeito com ele, não quis desfazer-se dele tão cedo. Adiou com o duplo pretexto de que não havia nada que obrigasse ao cumprimento imediato da sua promessa e que aguardaria uma ocasião favorável para obter um preço elevado por ele. Assim, adiando de dia para dia, de semana para semana e de mês para mês, acabou por abafar a voz da consciência e esqueceu a obrigação sagrada que havia assumido para com a alma do seu benfeitor.

Seis meses se passaram, quando, certa manhã, o falecido apareceu-lhe dirigindo-se a ele em termos de severa reprovação. 'Homem infeliz' - disse ele - 'esqueceste a alma do teu tio; violaste a promessa sagrada que fizeste no meu leito de morte. Onde estão as missas que deverias ter mandado rezar? Onde estão as esmolas que deveríeis ter distribuído aos pobres para o repouso da minha alma? Por causa da vossa negligência culpada, sofri tormentos inauditos no Purgatório. Finalmente, Deus teve piedade de mim; hoje vou gozar a companhia dos bem-aventurados no Céu. Mas tu, por um justo julgamento de Deus, morrerás dentro de poucos dias e serás submetido às mesmas torturas que me restariam suportar se Deus não tivesse tido misericórdia de mim. Sofrerás durante o mesmo tempo que eu deveria ter sofrido, depois do qual começarás então a expiação das tuas próprias faltas'.

Alguns dias depois, o sobrinho adoeceu gravemente. Chamou imediatamente um sacerdote, relatou-lhe a visão e confessou os seus pecados, chorando amargamente. 'Vou morrer em breve' - disse ele - 'e aceito a morte das mãos de Deus como um castigo que muito mereci'. Ele expirou em sentimentos de humilde arrependimento. Essa foi apenas a menor parte dos sofrimentos que lhe foram anunciados como punição por sua injustiça; trememos de horror ao pensar na parte restante que ele estava prestes a cumprir na outra vida.

Capítulo XLI

Razões de Justiça - São Bernardino de Sena e a Viúva Infiel - Pecados Graves Devido às Reparações aos Mortos Não Cumpridas

Conta São Bernardino de Sena que um casal sem filhos fez um contrato segundo o qual, no caso de um morrer antes do outro, o sobrevivente deveria distribuir os bens deixados pelo outro, para o repouso da alma do defunto. O marido morreu primeiro e a sua viúva não cumpriu a promessa. A mãe da viúva ainda vivia e o defunto apareceu-lhe, pedindo-lhe que fosse ter com a filha e a exortasse, em nome de Deus, a cumprir o seu compromisso. 'Se ela demorar' - disse ele - 'a distribuir em esmolas a soma que destinei aos pobres, dizei-lhe da parte de Deus que dentro de trinta dias será atingida por uma morte súbita'. Quando a impiedosa viúva ouviu esta solene advertência, teve a audácia de a considerar como um sonho e persistiu na sua sacrílega infidelidade à sua promessa. Trinta dias se passaram e a infeliz mulher, tendo ido a um quarto superior da casa, caiu pela janela e morreu no local.

A injustiça para com os mortos, de que acabamos de falar, e as manobras fraudulentas para escapar à obrigação de executar os seus legados piedosos, são pecados graves, crimes que merecem o castigo eterno do Inferno. A menos que se faça uma confissão sincera e, ao mesmo tempo, a devida restituição, este pecado encontrará o seu castigo não no Purgatório, mas no Inferno.

Infelizmente, sim, é sobretudo na outra vida que a justiça divina castigará os culpados usurpadores dos bens dos mortos. Juízo sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia, diz o Espírito Santo. (Tg 2,13). Se estas palavras são verdadeiras, quão rigoroso julgamento aguarda aqueles cuja detestável avareza deixou a alma de um pai, de um benfeitor, durante meses, anos, talvez até séculos, nos espantosos tormentos do Purgatório. Este crime, como já dissemos, é tanto mais grave quanto, em muitos casos, os sufrágios que o defunto pede para a sua alma não passam de restituições disfarçadas. Este fato é, em certas famílias, demasiadas vezes ignorado. É muito cômodo falar de intriga e de avareza clerical. Usam-se os melhores pretextos para invalidar um testamento que, muitas vezes, talvez na maioria dos casos, envolve uma restituição necessária. O padre não é mais do que um intermediário neste ato indispensável, obrigado a um segredo absoluto em virtude do seu ministério sacramental.

Expliquemos melhor a questão. Um moribundo foi culpado de alguma injustiça durante a sua vida. Isso é mais frequente do que imaginamos, mesmo em relação aos homens mais corretos aos olhos do mundo. No momento em que está prestes a comparecer diante de Deus, esse pecador faz a sua confissão; ele deseja reparar integralmente, como lhe compete, todo o prejuízo que causou ao seu próximo, mas não lhe resta tempo para o fazer ele próprio, e não está disposto a revelar o triste segredo aos seus filhos. Que faz ele? Encobre a sua restituição sob o véu de um legado piedoso.

Ora, se esse legado não for pago e, consequentemente, a injustiça não for reparada, o que acontecerá com a alma do falecido? Ficará retida por tempo indefinido no Purgatório? Não conhecemos todas as leis da Justiça Divina, mas numerosas aparições servem para nos dar uma idéia delas, pois todas declaram que não podem ser admitidas na bem-aventurança eterna enquanto uma parte da dívida da Justiça estiver por ser cancelada. Além disso, não são essas almas culpadas por terem adiado até à sua morte o pagamento de uma dívida de justiça que tinham há tanto tempo? E se agora os seus herdeiros se esquecem de a pagar por elas, não é isso uma consequência deplorável do seu próprio pecado, do seu atraso culposo? É por culpa deles que esses bens mal adquiridos permanecem na família, e eles não deixarão de clamar contra eles enquanto a restituição não for feita. Res clamat domino - a propriedade clama pelo seu legítimo dono; clama contra o seu injusto possuidor.

Se, por malícia dos herdeiros, a restituição nunca for feita, é evidente que essa alma não pode permanecer para sempre no Purgatório; mas, nesse caso, um longo atraso na sua entrada no Céu parece ser um castigo adequado para um ato de injustiça, do qual a alma se retratou, é verdade, mas que ainda permanece na sua causa eficaz. Pensemos, pois, nessas graves consequências, quando deixamos passar dias, semanas, meses e talvez até anos, antes de saldar uma dívida tão sagrada.

Ai de nós! Como é fraca a nossa fé! Se um animal doméstico, um cãozinho, cai no fogo, demorais a tirá-lo? Vede, vossos pais, vossos benfeitores, pessoas que vos são muito caras, contorcendo-se nas chamas do Purgatório, e não considerais vosso dever urgente aliviá-los; retardais, deixais passar longos dias de sofrimento para essas pobres almas, sem vos esforçardes por praticar as boas obras que as libertarão de suas dores?

Capítulo XLII

Razões de Justiça - As Lágrimas Infrutíferas para as Almas do Purgatório - O Exemplo de Santa Margarida de Cortona

Acabamos de falar da obrigação de justiça que incumbe aos herdeiros a execução de legados piedosos. Há um outro dever de estrita justiça que diz respeito aos filhos: estes são obrigados a rezar pelos pais falecidos. Reciprocamente, os pais são obrigados, por direito natural, a não esquecer perante Deus os seus filhos que os precederam na eternidade. Infelizmente, há pais que permanecem inconsoláveis pela perda de um filho ou de uma filha querida e que, em vez de rezarem por eles, não lhes dedicam senão lágrimas infrutíferas. Ouçamos o que diz Tomé de Cantimpre sobre este assunto; o fato ocorreu na sua própria família.

A avó de Tomé tinha perdido um filho em quem depositava as suas maiores esperanças. Dia e noite chorava por ele e recusava toda a consolação. No excesso de sua dor, esqueceu-se do grande dever do amor cristão e não pensou em rezar por aquela alma que lhe era tão cara. O infeliz objeto desta estéril ternura definhava entre as chamas do Purgatório, sem receber qualquer alívio nos seus sofrimentos. Finalmente, Deus teve piedade dele. Um dia, quando estava mergulhada nas profundezas da sua dor, esta mulher teve uma visão milagrosa. Viu, numa bela estrada, um cortejo de jovens, belos e radiantes como anjos, que avançavam cheios de alegria para uma cidade magnífica. Compreendeu que eram almas do Purgatório que faziam a sua entrada triunfal no Céu. Olhou para eles, ansiosamente, para ver se, entre as suas fileiras, não encontraria o seu filho. Infelizmente, ele não estava lá. Então, ele apareceu muito atrás dos outros, triste, sofredor e fatigado, com as vestes encharcadas de água. 'Ó meu querido, objeto da minha dor' - disse ela - 'como é possível que fiques atrás dessa procissão radiante? Gostaria de te ver à frente destes teus companheiros'.

'Mãe' - respondeu ele em tom queixoso - 'são essas tuas lágrimas que derramas sobre mim que umedecem e encharcam as minhas vestes e que retardam a minha entrada na glória do Céu. Deixa-te abandonar a uma dor cega e inútil. Abre o teu coração a sentimentos mais cristãos. Se me amas verdadeiramente, alivia-me nos meus sofrimentos; aplica-me algumas indulgências, reza orações, dá esmolas, obtém para mim os frutos do Santo Sacrifício da Missa. É por este meio que provareis o vosso amor, pois assim me livrareis da prisão onde definho e me levareis para a vida eterna, que é muito mais desejável do que a vida terrestre que me destes'. Então, a visão desapareceu e a mãe, assim admoestada e reconduzida aos verdadeiros sentimentos cristãos, em vez de se entregar a uma tristeza desmedida, aplicou-se à prática de toda boa obra que pudesse aliviar e socorrer a alma de seu filho.

A grande causa desse esquecimento, dessa indiferença, dessa negligência culpada e dessa injustiça para com os mortos é a falta de fé. Pois não vemos que os verdadeiros cristãos, aqueles animados por um espírito de fé, fazem os mais nobres sacrifícios em favor de seus amigos que partiram? Descendo em espírito às chamas penais, contemplando ali os rigores da justiça divina, ouvindo a voz dos mortos que imploram a sua compaixão, não pensam senão em aliviar essas pobres almas e consideram como seu dever mais sagrado obter para os seus pais e amigos defuntos todos os sufrágios possíveis, segundo os seus meios e condições. Felizes os cristãos que demonstram a sua fé pelas suas obras e que são misericordiosos pois, por sua vez, obterão misericórdia.

A Beata (Santa) Margarida de Cortona foi inicialmente uma grande pecadora mas, depois de sua conversão, apagou as suas desordens passadas com grandes penitências e obras de misericórdia. A sua caridade para com as pobres almas não tinha limites; sacrificava tudo tempo, repouso e as satisfações, para obter de Deus onipotente a sua libertação. Compreendendo que a devoção para com as almas santas, quando bem orientada, tem como primeiro objetivo os nossos pais, sendo o seu pai e a sua mãe falecidos, nunca deixou de oferecer por eles as suas orações, mortificações, vigílias, sofrimentos, comunhões e as missas a que tinha a felicidade de assistir. Em recompensa da sua piedade filial, Deus revelou-lhe que, com todas as suas orações, havia sido abreviado o longo período de sofrimento que os seus pais teriam de suportar no Purgatório e que, assim, ela havia obtido a libertação antecipada das almas dos seus pais para a glória eterna no Paraíso.

Capítulo XLIII

Razões de Justiça - O Zelo de Santa Catarina de Sena pela Salvação da alma do seu Pai Jacomo

Santa Catarina de Sena deixou-nos um exemplo semelhante. É assim relatado pelo seu biógrafo, o Beato Raimundo de Cápua. 'A serva de Deus' - escreve ele - 'tinha um zelo ardente pela salvação das almas. Falarei primeiro do que ela fez em favor da alma do seu pai, Jacomo. Este homem íntegro já tinha notado a santidade da sua filha e estava cheio de respeitosa ternura para com ela; aconselhava todos os da sua casa a não se oporem a ela em nada, mas a deixarem em perfeita liberdade na prática das suas boas obras. Assim, o afeto que unia pai e filha aumentava de dia para dia. Catarina rezava constantemente pela salvação do seu pai; Jacomo tinha um santo prazer nas virtudes de sua filha, esperando, por meio dos seus méritos, obter o favor de Deus'.

A vida de Jacomo aproximou-se do fim e ele foi confinado à cama por uma doença perigosa. Ao ver o seu estado, a sua filha, como era seu costume, entregou-se à oração, suplicando ao seu Esposo Celeste que curasse aquele que ela amava tão ternamente. Ele respondeu que Jacomo estava à beira da morte e que viver mais tempo não lhe seria proveitoso. Catarina foi então ter com o seu pai e encontrou-o tão perfeitamente resignado a deixar este mundo que, sem qualquer pesar, agradeceu a Deus por isso de todo o coração.

Mas o seu amor filial não se contentou com isso; ela dedicou-se então vivamente à oração, a fim de obter de Deus, fonte de toda a graça, que concedesse ao seu pai, não apenas o perdão de todas as suas faltas, mas também que, na hora da sua morte, ele pudesse ser admitido no Céu, sem sequer passar pelas chamas do Purgatório. Recebeu a resposta divina que a Justiça não podia sacrificar os seus direitos e que uma alma devia ser perfeitamente pura para entrar na glória do Paraíso. 'O teu pai' - disse Nosso Senhor - 'levou uma boa vida no estado de casado, e fez muito que foi muito agradável aos meus olhos; acima de tudo, a sua conduta para contigo foi muito agradável para mim; mas a minha Justiça exige que a sua alma passe pelo fogo, a fim de a purificar dos pecados que incorreu no mundo'. 'Ó meu amado Salvador' - respondeu Catarina - 'como posso suportar a ideia de ver aquele que me alimentou, que me criou com tanta ternura, que foi tão bom para mim durante toda a sua vida, possa estar atormentado em meio àquelas chamas terríveis? Suplico à Vossa Bondade Infinita que não permita que a sua alma deixe o corpo até que, de uma forma ou de outra, tenha sido tão perfeitamente purificada que não tenha necessidade de passar pelos fogo do Purgatório'.

Admirável condescendência da graça! Deus cedeu à oração e ao desejo da sua criatura. As forças de Jacomo estavam esgotadas, mas a sua alma não podia partir enquanto durasse o conflito entre Nosso Senhor, que alegava a sua Justiça, e Catarina, que implorava a sua Misericórdia. Por fim, Catarina retomou: 'Se eu não posso obter esta graça sem satisfazer a tua Justiça, que essa Justiça se exerça sobre mim; estou pronta a sofrer por meu pai tudo o que a tua Bondade quiser enviar-me'. Nosso Senhor consentiu. 'Aceitarei a tua proposta' - disse Ele - 'por causa do teu amor por mim, isento a alma do teu pai de toda a expiação, mas tu sofrerás, enquanto viveres, a dor que lhe estava destinada'. Cheia de alegria, Catarina gritou: 'Obrigada pela tua graça, Senhor, e que seja feita a tua vontade!'

A santa retornou imediatamente para junto do seu pai, que acabava de entrar em agonia. Encheu-o de coragem e alegria, dando-lhe, da parte de Deus, a certeza da sua salvação eterna, e não o deixou até que se expirasse a sua alma. No mesmo momento em que a alma do seu pai se separou do corpo, Catarina foi acometida de dores violentíssimas, que permaneceram até sua morte, sem lhe permitir um só momento de repouso. Ela mesma - acrescenta o Beato Raimundo de Cápua - assegurou-me muitas vezes isto e, de fato, tal era evidente para todos os que a viam. Mas a sua paciência era maior do que a sua doença. Tudo o que contei, me foi transmitido por Catarina quando, comovido ao ver os seus sofrimentos, lhe perguntei a causa deles. Não me esqueço de dizer que, no momento em que o seu pai expirou, a ouviram gritar, com o rosto radiante de alegria e um sorriso nos lábios: 'Deus seja louvado! Meu querido pai, como eu gostaria de morrer assim!'. Durante a celebração das exéquias fúnebres, quando todos estavam a chorar, Catarina parecia transportada de alegria. Consolava a mãe e toda a gente como se não tivesse sido afetada pela morte do pai. Era porque tinha visto aquela alma querida sair triunfante da prisão do corpo e passar, sem qualquer obstáculo, para a bem-aventurança eterna. Essa visão inundou-a de consolação, porque pouco tempo antes ela própria tinha provado as alegrias da luz eterna.

Admiremos aqui a sabedoria da Providência. A alma de Jacomo poderia certamente ter sido purificada de outra maneira e ter sido imediatamente admitida no Céu, como o bom ladrão que confessou o nosso Salvador na Cruz. Mas Deus quis que a sua purificação fosse realizada por meio dos sofrimentos de Catarina, como ela própria tinha pedido, e isto não para a experimentar, mas para aumentar e favorecer os seus méritos e a sua coroa de glória. Era conveniente que esta santa donzela, que tão ardentemente amava a alma do seu pai, recebesse alguma recompensa pelo seu afeto filial; e como ela tinha preferido a salvação da alma dele à do seu próprio corpo, o seu sofrimento corporal contribuiu enormemente para a felicidade da sua alma. Assim, falava sempre dos seus doces e queridos sofrimentos. E tinha razão, porque essas aflições aumentavam a doçura da graça nesta vida e as delícias da glória na outra. Confiava-me que, muito tempo depois da sua morte, seu pai Jacomo vinha continuamente agradecer-lhe a felicidade que lhe tinha proporcionado. Revelou-lhe muitas coisas ocultas, avisou-a das ciladas do demônio e preservou-a de todos os perigos.

Capítulo XLIV

Razões e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santo Ambrósio - São João da Cruz: Dar Esmolas por Amor de Si Mesmo - Santa Brígida e o Beato Pedro Lefevre

Acabamos de ver como a caridade para com as almas dos falecidos é santa e meritória diante de Deus - sancta cogitatio. Resta mostrar como é salutar, ao mesmo tempo, para nós mesmos - salubris cogitatio. Se a excelência da obra em si mesma é um incentivo tão poderoso, as preciosas vantagens que dela derivam não são menos estimulantes. Consistem, por um lado, nas graças que recebemos em recompensa da nossa generosidade e, por outro, no fervor cristão que esta boa obra nos inspira. 'Bem aventurados' - disse o nosso Salvador - 'os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia' (Mt 5,7); 'Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará' (Sl 40,2); 'Todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes' (Mt 25, 40); 'O Senhor use convosco de misericórdia, como vós usastes com os que morreram' (Rt 1,8). Todas estas diferentes frases exprimem, no seu sentido mais forte, a caridade para com os defuntos.

Tudo o que oferecemos a Deus pela caridade para com os mortos - diz Santo Ambrósio no seu Livro dos Ofícios - transforma-se em mérito para nós e nos reverte centuplicado depois da nossa morte -  Omne quod defunctis impenditur, in nostrum tandem meritum commutatur, et illud post mortem centuplum recipimus duplicatum. Podemos dizer que o espírito da Igreja e os argumentos dos doutores e dos santos, estão expressos nestas palavras: 'O que fizerdes pelos mortos, fazeis de modo excelente por vós mesmos'. A razão disto é que esta obra de misericórdia nos será revertida centuplicada, no tempo da alição. Podemos aplicar aqui as célebres palavras de São João de Deus quando pediu aos habitantes de Granada que lhe dessem uma esmola por amor de si mesmos. Para prover às necessidades dos doentes que acolhia no seu hospital, o caridoso santo percorria as ruas de Granada, gritando: 'Dai esmolas, meus irmãos, dai esmolas por amor de vós mesmos'.

As pessoas ficavam espantadas com esta nova forma de expressão porque sempre tinham estado habituadas a ouvir: esmola por amor de Deus. 'Por que' - perguntaram ao santo - 'nos pedes que demos esmola por amor de nós mesmos?' Ao que ele espondeu: 'Porque este é o grande meio de redimir os vossos pecados, conforme as palavras do Profeta: redime os teus pecados com esmolas e as tuas iniquidades com obras de misericórdia para com os pobres' (Dn 4,24). Dando esmolas, trabalhais no vosso próprio interesse, pois assim diminuís os terríveis castigos que os vossos pecados mereceram. Não devemos concluir que tudo isso se aplica também às esmolas dadas às almas do Purgatório? Ajudá-las é preservar-nos das terríveis expiações a que de outro modo não poderíamos fugir. Podemos, pois, clamar com São João de Deus: 'Dai-lhes a esmola dos vossos sufrágios; assisti-as por amor de vós mesmos'. A generosidade para com os falecidos é sempre retribuída; encontra a sua recompensa em toda a espécie de graças, cuja fonte é a gratidão das almas santas e a de Nosso Senhor, que considera como feito a si mesmo tudo o que fazemos pelas almas penitentes.

Santa Brígida declara nas suas Revelações - e o seu testemunho é citado por Bento XII (Serm. 4, 12) - que ela ouviu uma voz das profundezas das chamas do Purgatório pronunciando estas palavras: 'Sejam bem aventurados e sejam recompensados os que nos aliviam nestas dores!' E em uma outra ocasião: 'Ó Senhor Deus, mostrai o vosso poder onipotente em recompensar cem vezes mais aqueles que nos ajudam com os seus sufrágios, e fazei brilhar sobre nós os raios da luz divina'. Em outra visão, a santa ouviu a voz de um anjo que dizia: 'Abençoados sejam na terra aqueles que, pelas suas orações e boas obras, aprestam-se em auxílio das pobres almas sofredoras!"

Beato Pedro Lefevre, da Companhia de Jesus, tão conhecido pela sua devoção para com os santos anjos, tinha também uma devoção especial para com as almas do Purgatório. 'Essas almas' - dizia ele - 'têm anelos de caridade que estão sempre dirigidos para aqueles que ainda caminham entre os perigos desta vida; elas estão cheias de gratidão para com aqueles que as ajudam. Elas podem rezar por nós e oferecer os seus tormentos a Deus em nosso favor'. É uma excelente prática invocar as almas do Purgatório para que possamos obter de Deus, por sua intercessão, um verdadeiro conhecimento dos nossos pecados e uma perfeita contrição por eles, fervor no exercício das boas obras, cuidado em produzir frutos dignos de penitência e, em geral, praticar todas as virtudes, cuja ausência foi a causa dos seus atuais e terríveis castigos.

Capítulo XLV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Gratidão das Almas - Santa Margarida de Cortona e São Filipe Néri - O Cardeal Baronius e a Doente no Leito de Morte

É difícil compreender a gratidão das almas santas? Se tivésseis resgatado um cativo do jugo da escravatura, estaria ele grato por tal benefício? Quando o imperador Carlos V se apoderou da cidade de Túnis, restituiu à liberdade vinte mil escravos cristãos que, antes da sua vitória, estavam reduzidos a mais deplorável condição. Plenos de gratidão para com o seu benfeitor, rodearam-no, abençoando-o e cantando-lhe louvores. Se désseis saúde a um doente em estado grave ou fortuna a uma criatura infeliz, reduzida à miséria, não receberíeis em troca a sua gratidão e as suas bênçãos? E as almas, tão santas e tão boas, comportar-se-ão de modo diferente em relação aos seus benfeitores; essas pobres almas cujo cativeiro, pobreza, sofrimento e necessidade ultrapassam de longe qualquer cativeiro, indigência ou doença que se possa encontrar na Terra? Elas intercedem especialmente na hora da morte daqueles que intercederam por elas, visando protegê-los, guiá-los e conduzi-los às moradas eternas. 

Já falamos de Santa Margarida de Cortona e da sua devoção às almas santas. Conta-se na sua biografia que, ao morrer, viu uma multidão de almas que ela tinha libertado do Purgatório formarem-se em procissão para a acompanharem ao Paraíso. Deus revelou este favor concedido a Margarida de Cortona por intermédio de uma pessoa santa da cidade de Castello. Esta serva de Deus, arrebatada em êxtase no momento em que Margarida partiu desta vida, viu a sua alma no meio deste cortejo brilhante e, ao recuperar do seu arrebatamento, contou a todos o que Nosso Senhor tinha manifestado a ela.

São Filipe Néri, fundador da Congregação do Oratório, tinha uma terníssima devoção para com as santas almas do Purgatório, e sentia uma atração particular por rezar por aquelas que tinham estado sob a sua direção espiritual. Considerava-se muito obrigado para com todas elas, porque a Divina Providência as tinha confiado de modo especial ao seu zelo. Parecia-lhe que a sua caridade devia segui-los até à sua purificação final e à sua admissão na glória do Céu. Confessou que muitos dos seus filhos espirituais lhe apareciam depois da morte, fosse para lhe pedir orações, fosse para lhe agradecer a sua intercessão em favor deles.

Após a sua morte, um padre franciscano de grande piedade estava a rezar na capela onde tinham sido depositados os venerados restos mortais do santo, quando este lhe apareceu rodeado de glória e no meio de um brilhante cortejo. Encorajado pelo ar de amável familiaridade com que o santo o olhava, atreveu-se a perguntar o significado daquele cortejo luminoso de espíritos bem aventurados que o acompanhava. O santo respondeu-lhe que eram as almas daqueles que ele tinha guiado espiritualmente em vida e que, com os seus sufrágios, tinha libertado do Purgatório. Acrescentou que tinham vindo ao seu encontro desde a sua partida deste mundo, para o introduzirem, por sua vez, na Jerusalém Celeste.

'Não há dúvida' - diz o piedoso Padre Rossignoli - 'que, ao entrarem na glória eterna, os primeiros favores que pedem à Divina Misericórdia são para aqueles que lhes abriram as portas do Paraíso e que nunca deixarão de rezar pelos seus benfeitores, sempre que os virem em qualquer necessidade ou perigo. Nos reveses da sorte, nas doenças e nos contratempos de toda a espécie, eles serão os seus protetores. Seu zelo aumentará na proporção em que os interesses da alma estiverem em jogo; eles os ajudarão poderosamente a vencer a tentação, a praticar boas obras, a morrer uma morte cristã e a escapar dos sofrimentos da outra vida'.

Cardeal Baronius, cuja autoridade como historiador é bem conhecida, relata que uma pessoa muito caridosa para com as almas santas foi afligida por uma terrível agonia quando estava no seu leito de morte. O espírito das trevas sugeriu-lhe os medos mais sombrios e ocultou-lhe da vista a doce luz da Divina Misericórdia, tentando levá-la ao desespero. De repente, o Céu pareceu abrir-se diante dos seus olhos e ela viu milhares de defensores a voar em seu auxílio, reanimando a sua coragem e prometendo-lhe a vitória. Consolada por esta ajuda inesperada, perguntou quem eram os seus defensores. 'Somos as almas que tu libertaste do Purgatório; nós, por nossa vez, viemos para te ajudar, e muito em breve te conduziremos ao Paraíso' - foi a resposta. Perante estas palavras consoladoras, a doente sentiu que os seus receios se transformavam na mais doce confiança. Pouco tempo depois, ela expirou tranquilamente, com o semblante sereno e o coração cheio de alegria.

Capítulo XLVI

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Regresso do Sacerdote Exilado - O Padre Mumford e a Carta de William Freyssen

Para compreender a gratidão das santas almas, é necessário que tenhamos uma concepção muito clara do benefício que recebem dos seus benfeitores e que saibamos o que significa 'entrar no Céu'. 

'Quem nos dará a conhecer' - diz o abade Louvet - 'as alegrias dessa hora bem-aventurada?' Representai para vós mesmos a felicidade de um exilado que regressa finalmente à sua pátria. Durante o reinado do terror, um pobre padre de La Vendee foi condenado a morrer afogado. Tendo escapado por milagre, foi obrigado a emigrar para salvar a sua vida. Quando a paz foi restabelecida na Igreja e na França, apressou-se a regressar à sua querida paróquia.

'Foi um dia de festa na aldeia. Todos os paroquianos foram ao encontro do seu pároco e pai; os sinos da velha torre tocaram alegremente e a igreja estava decorada como em dias de grande solenidade. O velho sacerdote avançou sorridente no meio dos seus filhos, mas quando as portas do lugar santo se abriram diante dele, quando voltou a ver o altar que tanto alegrou os dias da sua juventude, o seu coração, demasiado fraco para suportar tais arroubos de alegria, rompeu-se no seu peito. Com uma voz trêmula entoou o Te Deum, mas era o Nunc Dimittis da sua vida sacerdotal:caiu moribundo aos pés do altar. O exilado não tinha mais o vigor necessário para suportar as alegrias do seu regresso'. Se tais são as alegrias do regresso de um exilado à sua pátria terrestre, quem nos dará a conhecer os enlevos que experimentaremos ao entrar no Céu, a verdadeira morada das nossas almas? E como admirar a gratidão dos bem aventurados que ajudamos a lá entrar? 

O Padre James Mumford, da Companhia de Jesus, que nasceu na Inglaterra em 1605 e que lutou durante quarenta anos pela causa da Igreja naquele país, entregue à heresia, compôs uma obra notável sobre o Purgatório, que mandou imprimir em Colônia por William Freyssen, um conhecido editor católico. Este livro obteve grande circulação e fez um grande bem entre as almas, sendo o editor Freyssen um dos que mais se beneficiaram com ele. Eis a carta que ele escreveu ao Padre Mumford em 1649: 

'Escrevo-lhe, padre, para o informar da cura milagrosa e dupla do meu filho e da minha mulher. Durante as férias, enquanto o meu escritório estava fechado, pus-me a trabalhar na leitura do livro Misericórdia Praticada para com as Almas do Purgatório”, que me mandaste imprimir. Estava ainda a ler a obra quando fui informado de que o meu filho, de quatro anos de idade, apresentava sintomas de uma doença grave. A doença progrediu rapidamente, o médico perdeu a esperança e já se pensava nos preparativos para o seu enterro. Ocorreu-me que talvez o pudesse salvar, fazendo um voto a favor das almas do Purgatório'.

'Fui à igreja de manhã cedo, e implorei fervorosamente a Deus que tivesse piedade de mim, prometendo como voto distribuir gratuitamente cem exemplares do vosso livro entre os eclesiásticos e religiosos, para lhes lembrar o zelo com que devem interessar-se pela Igreja que sofre, e as práticas mais adequadas para cumprir este dever. Reconheço que estava cheio de esperança. Quando regressei a casa, encontrei a criança melhor. Já pedia comida, embora há vários dias não conseguisse engolir uma só gota de líquido. No dia seguinte, a cura foi completa; levantou-se, saiu para passear e comeu com tanto apetite como se nunca tivesse estado doente. Penetrado de gratidão, o meu desejo mais urgente era cumprir a minha promessa. Dirigi-me ao Colégio da Companhia de Jesus e pedi aos Padres que aceitassem os meus cem exemplares, que ficassem com o número que quisessem para eles e que distribuíssem os demais para outras comunidades e eclesiásticos que conhecessem, para que as almas sofredoras, minhas benfeitoras, pudessem ser consoladas com novos sufrágios'.

'Três semanas depois, aconteceu-me um outro acidente, não menos grave. A minha mulher, ao entrar em casa, foi subitamente tomada por um violento tremor em todos os membros, que a fez cair prostrada no chão. Rapidamente perdeu o apetite e a capacidade de falar. Foram empregados todos os tipos de remédios, mas em vão. A doença só aumentava, e toda a esperança parecia perdida. O seu confessor, vendo-a reduzida a este estado, procurou palavras para me consolar, exortando-me a resignar-me à vontade de Deus. Quanto a mim, depois da proteção que experimentei das boas almas do Purgatório, não podia pensar em desesperar'. 

'Voltei à mesma igreja, prostrei-me diante do Santíssimo Sacramento e renovei a minha súplica com todo o fervor de que era capaz. Ó meu Deus - exclamei - a vossa misericórdia não tem limites! Em nome da vossa Infinita Bondade, não permitais que o restabelecimento da saúde do meu filho seja compensado pela morte da minha mulher! Fiz então o voto de distribuir duzentos exemplares do teu livro, para obter um alívio ainda mais abundante para as almas sofredoras. Ao mesmo tempo, pedi às almas que tinham sido libertadas anteriormente que unissem as suas orações às das outras ainda retidas no Purgatório. Depois desta oração, regressei a casa e vi os meus criados a correr ao meu encontro. Disseram-me que a minha querida esposa estava bastante melhor, que o delírio tinha cessado e que a sua fala tinha voltado. Apressei-me a ir ter com ela e verifiquei que tudo era verdade. Ofereci-lhe comida, que ela tomou com gosto. Pouco tempo depois, estava tão restabelecida que me acompanhou à igreja para dar graças a Deus por toda a sua misericórdia'.

'Vossa Reverência pode depositar toda a confiança nesta declaração. Peço-lhe que me ajude a agradecer a Nosso Senhor por este duplo milagre' (William Freyssen). 

Capítulo XLVII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Relato do Abade Postel sobre a Pobre Serva de Paris

Abade Postel, tradutor da obra de F. Rossignoli, relata o seguinte fato, ocorrido em Paris, por volta do ano 1827, e que está inserido como nº 27 na sua obra Merveilles du Purgatoire. Uma pobre criada, educada como boa cristã na sua aldeia natal, tinha adotado o piedoso costume de mandar rezar todos os meses uma missa pelas almas defuntas. Os seus patrões mudaram-se para a capital levando-a consigo e, aí também, nunca se descuidou disso, tendo ainda como regra assistir ao Divino Sacrifício e unir as suas orações às do sacerdote, especialmente pela alma que estava mais perto de completar a sua expiação. Esta era a sua intenção habitual.

Deus não tardou prová-la com uma longa doença, que não só lhe causou cruéis sofrimentos, mas também a fez perder o seu lugar de trabalho e dispender os seus últimos recursos. No dia em que pôde deixar o hospital, só lhe restavam um franco e alguns centavos. Depois de ter dirigido aos Céus uma oração fervorosa, cheia de confiança, foi à procura de um serviço. Disseram-lhe que provavelmente encontraria emprego numa certa família no outro extremo da cidade, para onde se dirigiu e, como era obrigada a passar diante da Igreja de Saint Eustache, ali entrou. A presença de um padre no altar recordou-lhe que, neste mês, ela havia esquecido da sua habitual missa pelos defuntos, e que este era o dia em que, desde há muitos anos, estava habituada a fazer tal boa obra. Mas o que é que ela haveria de fazer? Se se desfizesse do seu último franco, não lhe restaria mais nada, nem mesmo algo para matar a fome. Era uma luta entre a devoção e a prudência humana. A devoção levou a melhor. 'Afinal de contas' - disse para si mesma - 'o bom Deus sabe que é para Ele, e Ele não me abandonará!' Entrando na sacristia, fez o seu ofertório para a missa, à qual assistiu com o seu fervor habitual.

Poucos minutos depois, continuou o seu caminho, cheia de ansiedade, como facilmente se pode depreender. Não dispondo de quaisquer meios, o que é que havia de fazer se não conseguisse arranjar emprego? Estava ainda ocupada com estes pensamentos, quando um jovem pálido, de figura esguia e aspecto distinto, se aproximou dela e lhe perguntou: 'Você está à procura de emprego?' - 'Sim, senhor'. 'Pois bem, vá até a rua tal, número tal, à casa de Madame... Penso que a agradarás e serás admitida lá'. Depois de dizer estas palavras, desapareceu no meio da multidão que passava, sem esperar pelos agradecimentos da pobre rapariga.

Ela encontrou a rua, reconheceu o número e subiu aos apartamentos. Uma criada saiu carregando um embrulho debaixo do braço e proferindo palavras de queixa e raiva. 'A senhora da casa está? - perguntou a recém-chegada. 'Pode estar ou pode não estar' - respondeu a outra - 'o que é que isso me interessa? A senhora abrirá a porta se lhe convier e eu não mais me preocuparei com isso. Adeus!' E desceu os degraus. A nossa pobre rapariga tocou a campainha com mão trêmula e uma voz suave convidou-a a entrar. Encontrou-se na presença de uma velha senhora de aspecto venerável, que a encorajou a manifestar a sua necessidade.

'Senhora' - disse a criada = 'soube esta manhã que a senhoea eta´precisando de uma criada e vim oferecer os meus serviços. Asseguraram-me que a senhora me receberia com bondade'. - 'Oh, minha querida filha, o que me dizes é muito extraordinário. Esta manhã não precisava de ninguém; só ao cabo de meia hora é que despachei uma doméstica insolente, e não há ninguém no mundo, exceto ela e eu, que o possa saber. Quem vos mandou, então?' - 'Foi um cavalheiro, senhora; um jovem cavalheiro que encontrei na rua, que me mandou vir aqui para este fim, e eu louvei a Deus por isso, porque é-me absolutamente necessário que eu encontre um serviço hoje porque não tenho uma moeda nos bolsos'.

A velha senhora não estava compreendendo quem era a pessoa, e estava perdida em conjecturas, quando a criada, erguendo os olhos para os móveis da pequena sala, viu um retrato. 'Veja, senhora' - disse ela imediatamente - 'não se confunda mais; este é o retrato do jovem cavalheiro que falou comigo. É por causa dele que eu vim'.

A estas palavras, a senhora soltou um grande grito e pareceu perder a consciência. Fez a rapariga repetir a história da sua devoção às almas do Purgatório, da missa da manhã e do seu encontro com o desconhecido; depois, lançando-se sobre o pescoço da rapariga, abraçou-a no meio de uma torrente de lágrimas e lhe disse: 'A partir de agora não serás minha serva; serás a minha filha. É o meu filho, o meu único filho, que viste - o meu filho, morto há dois anos, que deve a ti a sua libertação, e que Deus mandou enviar-te até aqui. Não tenho como duvidar disso. Que sejas, pois, abençoada, e rezemos continuamente por todos aqueles que ainda padecem no limiar da eternidade abençoada'.

Capítulo XLVIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - A Mulher Napolitana e o Bilhete Misterioso

Para provar que as almas do Purgatório demonstram a sua gratidão até por favores temporais, o Padre Rossignoli relata um fato ocorrido em Nápoles, que tem alguma semelhança com o que acabamos de ler. Se não é dado a todos oferecer a Deus as abundantes esmolas de Judas Machabeus, que enviou doze mil dracmas a Jerusalém para sacrifícios e orações em favor dos mortos, são muito poucos os que não podem ao menos fazer a oferta da pobre viúva do Evangelho, que foi elogiada pelo próprio Salvador. Ela havia dado apenas dois cêntimos, mas, disse Jesus: 'todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, de sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento' (Mc 12, 44).  

Este exemplo comovente foi imitado por uma humilde mulher napolitana, que tinha a maior dificuldade em prover as necessidades da sua família. Os recursos da casa dependiam dos ganhos diários do marido, que todas as noites trazia para casa o fruto do seu trabalho. Infelizmente, um dia esse pobre pai foi preso por dívidas, de modo que a responsabilidade de sustentar a família recaiu sobre a infeliz mãe, que não possuía nada além de sua confiança em Deus. Com fé, ela implorou à Providência Divina que viesse em seu auxílio e, especialmente, para que livrasse o seu marido que definhava na prisão apenas por causa de sua pobreza.

Dirigiu-se então a um cavalheiro rico e benevolente e, contando-lhe a triste história dos seus infortúnios, suplicou-lhe com lágrimas que a ajudasse. Deus permitiu que ela recebesse dele apenas uma esmola insignificante, no valor de uma moeda equivalente a apenas dez cêntimos. Profundamente aflita, entrou numa igreja para implorar ao Deus dos indigentes que a socorresse na sua aflição, pois nada tinha a esperar na terra. Estava absorta em orações e lágrimas quando, por inspiração, sem dúvida, do seu bom anjo da guarda, lhe ocorreu interceder pelas almas santas em seu favor, pois tinha ouvido falar muito dos seus sofrimentos e da sua gratidão para com aqueles que as ajudam. Cheia de confiança, dirigiu-se à sacristia, ofereceu aquela simples moeda e perguntou a um sacerdote se seria possível celebrar uma missa pelos defuntos. O bom padre, que lá se encontrava, apressou-se a subir ao altar para rezar a missa nessa intenção, enquanto a pobre mulher, prostrada em recolhimento, assistia o Santo Sacrifício, oferecendo as suas orações pelos defuntos.

Regressou à casa muito consolada, como se tivesse recebido a certeza de que Deus tinha ouvido a sua oração. Quando percorria as ruas populosas de Nápoles, foi abordada por um ancião, que lhe perguntou de onde vinha e para onde ia. A infeliz mulher explicou-lhe a sua aflição e o uso que tinha feito da pequena esmola que recebera. O velho pareceu profundamente sensibilizado com a sua miséria, disse-lhe algumas palavras de encorajamento e deu-lhe um bilhete fechado num envelope, mandando que o entregasse a um certo senhor em particular, deixando-a em seguida.

A mulher apressou-se a procurar o tal senhor e a entregar a ele o bilhete recebido. Este, ao abrir o envelope, foi tomado de espanto e intensa comoção, pois reconheceu imediatamnete a letra do seu pai, falecido há algum tempo. 'Onde arranjaste esta carta?' - exclamou ele, completamente atordoado. 'Senhor' - respondeu a boa mulher - 'foi um ancião que me abordou na rua. Falei-lhe da minha aflição e ele mandou-me entregar-lhe este bilhete em seu nome. O seu semblante assemelha-se muito ao retrato que o senhor tem sobre a porta'. Cada vez mais impressionado por estas circunstâncias, o cavalheiro pegou de novo o bilhete e o leu em voz alta: 'Meu filho, o teu pai acaba de sair do Purgatório, graças a uma missa que a portadora deste recado mandou celebrar esta manhã. Ela está em situação muito aflita e eu a recomendo aos seus cuidados'. 

Leu e releu aquelas linhas, traçadas por aquela mão que lhe era tão cara, por um pai que agora estava entre os eleitos. Lágrimas de alegria corriam-lhe pelas faces quando se voltou para a mulher. 'Pobre mulher' - disse ele - 'com a tua esmola insignificante, asseguraste a felicidade eterna daquele que me deu a vida. Por minha vez, assegurarei a tua felicidade temporal. Tomo a meu cargo suprir a partir de agora todas as tuas necessidades e as de toda a tua família'. Que alegria para aquele senhor! Que alegria para aquela pobre mulher! É difícil dizer de que lado encontrava-se a maior felicidade. O que é mais importante e mais fácil é ver a instrução que se pode tirar desse fato: ele nos ensina que o menor ato de caridade para com os membros da Igreja Sofredora é precioso aos olhos de Deus e atrai sobre nós milagres de misericórdia.

Capítulo XLIX

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Caso do Arcebispo Sandoval em Louvain - O Advogado que Renunciou ao Mundo - A Aparição do Irmão Latti ao Dr. Verdiano

Citemos aqui outro exemplo, tanto mais digno de menção quanto um grande papa, Clemente VIII, viu nele o próprio dedo de Deus e recomendou sua publicação para a edificação da Igreja. 'Vários autores' - diz o Padre Rossignoli - 'relataram a maravilhosa assistência que Cristóvão Sandoval, Arcebispo de Sevilha, recebeu das almas do Purgatório'. Ainda criança, ele tinha o costume de distribuir parte do seu dinheiro de bolso em esmolas para o benefício das santas almas. A sua piedade aumentava com a idade; por amor das pobres almas sofredoras, dava tudo o que podia dispor, chegando mesmo a privar-se de várias pequenas coisas úteis ou necessárias. Quando prosseguia os seus estudos na Universidade de Louvain, aconteceu que algumas cartas que esperava de Espanha se atrasaram, pelo que se viu reduzido a tais dificuldades pecuniárias que mal tinha dinheiro para comprar comida. Nesse momento, um pobre pediu-lhe uma esmola por amor das almas do Purgatório e, o que nunca lhe tinha acontecido, viu-se obrigado a recusar.

Afligido por esta circunstância, entrou em uma igreja. 'Se' - disse ele - 'não posso dar uma esmola pelas minhas pobres almas, posso pelo menos dar-lhes a ajuda pelas minhas orações'. Mal tinha acabado a sua oração quando, ao sair da igreja, foi abordado por um belo jovem, vestido como um viajante, que o saudou com respeitosa afabilidade. Cristóvão experimentou um sentimento de temor religioso, como se estivesse na presença de um espírito em forma humana. Mas foi logo tranquilizado pelo seu amável interlocutor, que lhe falou com a maior convicção do Marquês de Denia, seu pai, dos seus parentes e amigos, tal como o faria um espanhol recém-chegado da Península. Terminou pedindo-lhe que o acompanhasse a um hotel, onde poderiam jantar juntos e estar mais à vontade. Sandoval, que não comia nada desde o dia anterior, aceitou de bom grado a oferta. Sentaram-se então à mesa e continuaram a conversar agradavelmente. Depois da refeição, o forasteiro deu a Sandoval uma quantia em dinheiro, pedindo-lhe que a aceitasse e que a utilizasse para o fim que quisesse, acrescentando que o Marquês, seu pai, o indenizaria assim que regressasse à Espanha. Depois, com o pretexto de tratar de algum negócio, retirou-se e Cristóvão nunca mais o viu. Apesar de todas as suas indagações sobre o estrangeiro, nunca conseguiu obter qualquer informação a seu respeito. Ninguém, nem em Louvain nem na Espanha, tinha visto ou conhecido um jovem que correspondesse à sua descrição. Quanto à soma de dinheiro, era exatamente a quantia de que o piedoso Cristóvão necessitava para fazer face às despesas até à chegada das suas cartas, e esse dinheiro nunca mais foi reclamado à sua família.

Estava, por isso, convencido de que o Céu tinha feito um milagre em seu favor e tinha enviado em seu auxílio uma daquelas almas que ele próprio tinha aliviado com as suas orações e esmolas. Esta opinião foi confirmada pelo Papa Clemente VIII, a quem contou o fato quando foi a Roma receber as Bulas de elevação ao Episcopado. Este Pontífice, impressionado com as circunstâncias extraordinárias do caso, aconselhou-o a dar a conhecer o fato a todos para a edificação dos fiéis; considerou-o como um favor do Céu, que provava quão preciosa é, aos olhos de Deus, a caridade para com os defuntos.

Tal é a gratidão das almas santas que deixaram este mundo, que elas a testemunham até mesmo pelos favores que lhes foram concedidos enquanto ainda estavam nesta vida. Conta-se nos Anais dos Frades Pregadores que, entre os que foram receber o hábito das mãos de São Domingos em 1221, havia um advogado que abandonara a sua profissão em circunstâncias extraordinárias. Estava unido por laços de amizade a um jovem de grande piedade, a quem assistiu caridosamente durante a doença de que morreu. Isto foi suficiente para levar o falecido a obter para ele o maior de todos os benefícios, o da conversão e vocação à vida religiosa. Cerca de trinta dias depois da sua morte, apareceu ao advogado e implorou a sua ajuda, porque estava no Purgatório. 'Os teus sofrimentos são muitos?' - perguntou ao seu amigo. 'Ai de mim!' - respondeu este último - 'se toda a terra, com suas florestas e montanhas, estivesse em chamas, não formaria uma fornalha como aquela em que estou mergulhado'. Tomado de medo, a sua fé reanimou-se e, pensando apenas na sua própria alma, perguntou: 'Em que estado me encontro aos olhos de Deus?' 'Num mau estado' - respondeu a alma - 'e numa profissão perigosa'. 'Então, o que é que eu devo fazer? Que conselho me dás?' 'Abandona o mundo perverso em que estás envolvido e ocupa-te apenas com os assuntos da tua alma'. O advogado, seguindo este conselho, deu todos os seus bens aos pobres e tomou o hábito de São Domingos.

Vejamos como um santo religioso da Companhia de Jesus manifestou a sua gratidão, mesmo depois da morte, ao médico que o assistiu na sua última doença. Francisco Lacci, Irmão Coadjutor, morreu no Colégio de Nápoles em 1598. Era um homem de Deus, cheio de caridade, paciência e terna devoção para com a Santíssima Virgem. Algum tempo depois de sua morte, o Dr. Verdiano entrou na igreja do Colégio para assistir à missa, antes de iniciar as suas visitas. Era o dia em que se celebravam as exéquias do rei Filipe II, falecido quatro meses antes. Quando, ao sair da igreja, se preparava para levar a água benta, aproximou-se um religioso e perguntou-lhe por que razão estava preparado o catafalco e em intenção de quem era a missa a ser celebrada. 'É a missa para o rei Filipe II' - respondeu ele.

Mas, ao mesmo tempo, Verdiano ficou espantado com o fato de um religioso fazer tal pergunta a um desconhecido, e não distinguindo as feições do seu interlocutor na obscuridade do lugar onde se encontrava, perguntou-lhe quem era. 'Sou' - respondeu ele - 'o Irmão Lacci, a quem o senhor assistiu na minha última doença'. O médico olhou-o atentamente, reconhecendo então as feições do religioso. Tomado de espanto, disse: 'Mas tu morreste dessa doença! Então estás a sofrer no Purgatório e vens pedir os nossos sufrágios?' 'Bendito seja Deus, já não tenho dores nem sofrimentos. Não preciso dos vossos sufrágios. Estou nas alegrias do Paraíso'. 'E o rei Filipe, também já está no Paraíso?' 'Sim, ele está lá, mas colocado tão abaixo de mim quanto foi elevado acima de mim na Terra. Quanto ao senhor, Dr. Verdiano, onde pensa fazer a sua primeira visita médica hoje?' Tendo Verdiano respondido que ia atender uma certa pessoa, que estava perigosamente doente, Lacci avisou-o para se precaver de um grande perigo que o ameaçava à porta da casa que ele ia visitar. De fato, o médico encontrou ali uma grande pedra disposta em posição tão perigosa, que tendia a se deslocar a qualquer momento, de modo a feri-lo mortalmente. Esta circunstância material parece ter sido concebida pela Providência para provar a Verdiano que ele não tinha sido vítima de uma ilusão.

Capítulo L

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Conhecimento e as Orações das Almas pelos seus Benfeitores - Doutrina Confirmada por Santos e Santas da Igreja
 
Acabamos de falar da gratidão das santas almas. Por vezes, esta se manifesta, como vimos, de forma bem visível mas, mais frequentemente, exercem-na de forma invisível, por meio das suas orações. As almas rezam por nós não só quando, depois da sua libertação, estão com Deus no Céu, mas também no seu lugar de exílio e no meio dos seus sofrimentos. Embora não possam rezar por si mesmas, obtêm, no entanto, com as suas súplicas, uma grande graça para nós. Tal é a doutrina expressa por dois eminentes teólogos, Bellarmino e Suarez. 'Estas almas são santas' - diz Suarez - 'e queridas por Deus. A caridade impele-as a amar-nos, e elas sabem, pelo menos de um modo geral, a que perigos estamos expostos e que necessidade temos da assistência divina. Por que, então, não rezariam pelos seus benfeitores?'

Por que? A resposta seria: porque não os conhecem. Naquela sombria morada, em meio aos seus tormentos, como poderiam saber quem são aqueles que os assistem com os seus sufrágios? A esta objeção pode-se responder que as almas sentem pelo menos o alívio que recebem e a assistência que lhes é prestada; isto basta, mesmo que ignorem a fonte de origem, para invocar as bênçãos do Céu sobre os seus benfeitores, sejam eles quem forem, e que são conhecidos por Deus.

Mas, na realidade, eles não sabem de quem recebem auxílio nos seus sofrimentos? A sua ignorância a esse respeito não está provada, e temos fortes razões para crer que tal ignorância não existe. Será que o seu anjo guardião, que ali habita com eles para lhes dar toda a consolação ao seu alcance, os privaria desse conhecimento consolador? Esse conhecimento não está conforme à doutrina da comunhão dos santos? A relação que existe entre nós e a Igreja Penitente não seria tanto mais perfeita quanto é recíproca e se as almas conhecessem muito bem os seus benfeitores?

Esta doutrina é confirmada por um grande número de revelações particulares e pela prática de várias pessoas santas. Já dissemos que Santa Brígida, num dos seus êxtases, ouviu várias almas gritarem em voz alta: 'Senhor Deus todo-poderoso, recompensai cem vezes mais aqueles que nos assistem com as suas orações e que Vos oferecem as suas boas obras, para que possamos gozar da luz da Vossa Divindade!'.

Lemos na Vida de Santa Catarina de Bolonha que ela tinha uma terníssima devoção para com as santas almas do Purgatório; que rezava por elas com muita frequência e com o maior fervor; que ela se recomendava a elas com a maior confiança nas suas necessidades espirituais, e aconselhava os outros a fazerem o mesmo, dizendo: 'Quando quero obter qualquer favor do nosso Pai do Céu, recorro às almas que estão detidas no Purgatório; peço-lhes que apresentem o meu pedido à Divina Majestade em seu próprio nome, e sinto que sou ouvida pela sua intercessão'. Um santo sacerdote dos nossos dias, cuja causa de beatificação foi iniciada em Roma, o Venerável Vianney*, o Cura d'Ars, dizia a um eclesiástico que o consultava: 'Se soubéssemos quão grande é o poder das boas almas do Purgatório junto do Coração de Deus, e se soubéssemos todas as graças que podemos obter por sua intercessão, elas não seriam tão esquecidas. Devemos, portanto, rezar muito por elas, para que elas rezem muito por nós'.

* o texto original data de 1893; São João Maria Vianney foi canonizado em 31 de maio de 1925.

Estas últimas palavras de [São João] Vianney mostram a verdadeira maneira de recorrer às almas do Purgatório; devemos assisti-las, para obter em troca as suas orações e os efeitos da sua gratidão - devemos rezar muito por elas, para que rezem muito por nós. Não se trata aqui de as invocar como invocamos os santos do Céu. Não é esse o espírito da Igreja que, antes de tudo, reza pelos defuntos e os assiste com os seus sufrágios. Mas não é contrário ao espírito da Igreja, nem à piedade cristã, procurar alívio para as almas, com a intenção de obter em troca, por meio do auxílio das suas orações, os favores que desejamos. Assim, é um ato louvável e piedoso oferecer uma missa pelos defuntos quando temos necessidade de alguma graça particular. Se, quando as almas santas estão ainda nos seus sofrimentos, as suas orações são tão poderosas, podemos facilmente conceber que serão ainda muito mais eficazes quando, estando inteiramente purificadas, essas almas estiverem diante do trono de Deus.

Capítulo LI

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Castigo para com os que Esquecem as Almas Sofredoras - Venerável Archangela Panigarola e a Alma do seu Pai

Se as almas são tão gratas para com os seus benfeitores, Nosso Senhor Jesus Cristo, que as ama, que recebe como feito a si mesmo todo o bem que lhes proporcionamos, dar-lhes-á uma recompensa abundante, muitas vezes ainda nesta vida, e sempre na outra. Ele considera os que fazem misericórdia e castiga os que se esquecem de a fazer para com as almas sofredoras.

Vejamos primeiro um exemplo de castigo. A Venerável Archangela Panigarola, religiosa dominicana e prioresa do Mosteiro de Santa Marta de Milão, tinha um zelo extraordinário pelo alívio das almas do Purgatório. Rezava e obtinha orações por todos os seus amigos falecidos, e até por aqueles que lhe eram desconhecidos, mas de cuja morte tinha sido avisada. Seu pai, Gothard, a quem ela amava ternamente, era um desses cristãos do mundo que raramente pensavam em rezar pelos mortos. Ele próprio morreu e, muito desconsolada, Archangela compreendeu que o seu querido pai precisava mais das suas orações do que das suas lágrimas. Por isso, tomou a resolução de o recomendar a Deus por sufrágios especiais. Mas, por estranho que pareça, esta resolução quase nunca foi posta em prática; esta rapariga, tão piedosa e devota do seu pai, fez muito pouco pela sua alma. Deus permitiu que, apesar das suas santas resoluções, ela o esquecesse continuamente e se interessasse por outros. 

Por fim, um acontecimento inesperado explicou este esquecimento inusitado e despertou a sua devoção em favor do pai. No dia da festa de todos os santos, permaneceu isolada na sua cela, ocupada exclusivamente em exercícios de piedade e penitência para alívio das santas almas. De repente, o seu anjo apareceu-lhe, tomou-a pela mão e conduziu-a em espírito ao Purgatório. Entre as primeiras almas que viu, reconheceu a de seu pai, mergulhada numa lagoa de água gelada. Mal Gothard viu sua filha e, aproximando-se dela, censurou-a dolorosamente por tê-lo abandonado em seus sofrimentos, enquanto ela mostrava tanta caridade para com os outros, a quem constantemente socorria, e frequentemente livrava aqueles que, no entanto, lhe eram estranhos.

Archangela ficou durante algum tempo confusa diante estas censuras, que sabia merecer; em breve, porém, derramando uma torrente de lágrimas, respondeu: 'Farei, meu querido pai, tudo o que me pedes. Queira Deus dar ouvidos às minhas súplicas e livrar-te rapidamente'. Enquanto isso, ela não podia se recuperar de seu espanto, nem entender como ela poderia ter esquecido tanto o seu amado pai. Depois de a levar de volta, o seu anjo disse-lhe que esse esquecimento tinha acontecido por uma disposição da Justiça Divina. 'Deus' - disse ele - 'permitiu assim como castigo pelo pouco zelo que, durante a vida, o teu pai manifestou por Deus, pela sua própria alma e pela do seu próximo. Vistes como ele foi atormentado e entorpecido num lago de gelo; este foi o castigo da sua tepidez no serviço de Deus e da sua indiferença em relação à salvação das almas'.

'Vosso pai não era um homem imoral, é verdade, mas mostrava pouca inclinação para a aquisição da virtude e para a prática das obras de piedade e caridade a que a Igreja exorta os fiéis. É por isso que Deus permitiu que ele fosse esquecido, mesmo por vós, que lhe teríeis dado demasiado alívio. Este é o castigo que a Justiça Divina costuma infligir àqueles que faltam com o fervor e a caridade. Ele permite que os outros se comportem em relação a eles como agiram para com Deus e para com seus irmãos. Aliás, esta é a regra de Justiça que nosso Salvador estabeleceu no Evangelho: com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos' (Mt 7,2).

Capítulo LII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santa Catarina de Sena e a Salvação da Alma de Palmerine - Santa Madalena de Pazzi e sua Mãe

Deus está mais inclinado a recompensar do que a punir e, se inflige um castigo àqueles que esquecem as almas tão caras ao seu Coração, mostra-se verdadeiramente grato àqueles que o auxiliam junto às almas sofredoras. Em recompensa, dir-lhes-á um dia: 'Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino que vos está preparado. Tivestes misericórdia dos vossos irmãos necessitados e sofredores; em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes' (Mt 25,40). Muitas vezes, nesta vida, Jesus recompensa as almas compassivas e caridosas com a concessão de muitos favores. 

Santa Catarina de Sena, pela sua caridade, converteu uma pecadora chamada Palmerine, que morreu e foi para o Purgatório. A santa não descansou enquanto não libertou esta alma. Em recompensa, Nosso Senhor permitiu mostrar-se à sua serva, como uma conquista gloriosa da sua caridade. O Beato Raymond conta assim os pormenores: Em meados do século XIV, quando Santa Catarina edificava a sua cidade natal com toda a espécie de obras de misericórdia, uma mulher de nome Palmerine, depois de ter sido objeto da sua mais terna caridade, concebeu uma secreta aversão pelos seus benfeitores, que chegou a degenerar em ódio implacável. Não podendo mais ver nem ouvir a santa, a ingrata Palmerine, amargurada contra a serva de Deus, não cessava de manchar a sua reputação com as mais atrozes calúnias. Catarina fez tudo o que estava ao seu alcance para a conciliar, mas em vão. Então, vendo que a sua bondade, a sua humildade e os seus benefícios não serviam senão para excitar a fúria desta infeliz mulher, implorou fervorosamente a Deus que se dignasse mover aquele coração tão obstinado.

Deus ouviu a sua oração, atingindo Palmerine com uma doença mortal; mas, ainda assim, este castigo não foi suficiente para a fazer entrar em si. Em troca de toda a ternura que a santa lhe dedicava, a infeliz mulher carregou-a de insultos e expulsou-a da sua presença. Entretanto, o seu fim aproximava-se e um sacerdote foi chamado para administrar os últimos sacramentos. A doente não estava em condições de os receber, devido ao ódio que alimentava e ao qual se recusava a renunciar. Ao ouvir isto, e vendo que a infeliz criatura já tinha um pé no Inferno, Catarina derramou uma torrente de lágrimas e ficou inconsolável. Durante três dias e três noites, não cessou de suplicar a Deus em seu favor, juntando o jejum à oração. 'Senhor' - dizia ela - 'permitirás que esta alma se perca por minha causa? Conjuro-vos que me concedais, a qualquer preço, a sua conversão e a sua salvação. Castigai-me pelo seu pecado, de que eu sou a causa: não é a ela, mas a mim, que o castigo deve atingir. Senhor, não me recuseis a graça que vos peço: não vos deixarei enquanto não a tiver obtido. Em nome da vossa bondade, da vossa misericórdia, suplico-vos, misericordiosíssimo Salvador, que não permitais que a alma desta minha irmã deixe o seu corpo enquanto não for restituída à vossa graça'.

A sua oração, acrescenta o seu biógrafo, foi tão poderosa que impediu a morte da doente. A sua agonia durou três dias e três noites, para grande espanto das enfermeiras. Durante este tempo, Catarina continuou a interceder e acabou por obter a vitória. Deus não resistiu e fez um milagre de misericórdia. Um raio de luz celeste penetrou no coração da moribunda, mostrou-lhe a sua culpa e incitou-a ao arrependimento. A santa, a quem Deus revelou isto, apressou-se a ir ter com a doente. Logo que a mulher a viu, deu-lhe todos os sinais de consideração e agradecimento, acusou-se em voz alta da sua falta, recebeu com piedade os últimos sacramentos e morreu na graça de Deus.

Apesar da sinceridade da sua conversão, era de recear que uma pecadora que escapara por pouco ao Inferno tivesse de passar por um Purgatório severo. A caridosa Catarina continuou a fazer tudo o que estava ao seu alcance para apressar o momento em que Palmerine seria admitido à glória do Paraíso. Tanta caridade não podia deixar de ter a sua recompensa. Nosso Senhor - escreve o Beato Raymond - mostrou à sua esposa aquela alma salva pelas suas orações. Era tão brilhante que ela me disse não encontrar palavras capazes de exprimir a sua beleza. Não estava ainda admitida à glória da visão beatífica, mas tinha aquele brilho que a criação e a graça do batismo lhe conferem. Nosso Senhor disse-lhe então: 'Olha, minha filha, esta alma perdida que encontraste!' E acrescentou: 'Não te parece muito bela e preciosa? Quem não suportaria todo o tipo de sofrimento para salvar uma criatura tão perfeita e introduzi-la na vida eterna? Se Eu, que sou a Beleza Suprema, de quem emana toda a beleza, me deixei cativar pela beleza das almas, a ponto de descer à terra e derramar o meu Sangue para as redimir, com quanto maior razão não deveríeis trabalhar uns pelos outros, para que não se percam criaturas tão admiráveis. Se vos mostrei esta alma, foi para que sejais ainda mais zelosos em tudo o que diz respeito à salvação das almas'.

Santa Madalena de Pazzi, tão cheia de devoção pelos mortos, esgotou todos os recursos da caridade cristã em favor de sua mãe, depois que esta partiu desta vida. Quinze dias depois da sua morte, Jesus, querendo consolar a sua esposa, mostrou-lhe a alma da sua querida mãe. Madalena viu-a no Paraíso, vestida com um esplendor deslumbrante e rodeada de santos, que pareciam ter grande interesse por ela. Ouviu a alma bendita dar-lhe três ordens, que ficaram para sempre impressas na sua memória: 'Cuida, minha filha' - disse ela - 'de descer o mais baixo possível na humildade, de observar a obediência religiosa e de cumprir com prudência tudo o que ela prescreve'. Dizendo isso, Madalena viu sua abençoada mãe desaparecer de vista e permaneceu inundada com a mais doce consolação.

Capítulo LIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - São Tomás de Aquino, sua Irmã e a Aparição do Irmão Romano - O Arcipreste Ponzoni e Dom Alfonso Sánchez - Santa Margarida Maria e a Incredulidade de Madre Greffier 

O Doutor Angélico - Santo Tomás de Aquino - era também muito devoto das almas sofredoras, que lhe apareceram várias vezes, como ele próprio testemunhou. Ele oferecia suas orações e sacrifícios a Deus especialmente pelas almas dos falecidos que ele conhecera ou com quem tinha parentesco. Quando era professor de Teologia na Universidade de Paris, perdeu uma irmã que faleceu em Cápua, no convento de Santa Maria, do qual era abadessa. Assim que soube de sua morte, recomendou fervorosamente sua alma a Deus. Dias depois, ela lhe apareceu, suplicando que tivesse piedade dela e intensificasse as suas súplicas, pois sofria cruelmente nas chamas da outra vida. Tomás apressou-se em oferecer todas as satisfações possíveis por ela e solicitou também as orações de vários amigos. Assim, obteve a libertação de sua irmã, que veio pessoalmente anunciar-lhe a boa nova.

Algum tempo depois, tendo sido enviado a Roma por seus superiores, a alma de sua irmã manifestou-se a ele em toda a glória de uma alegria triunfante. Ela disse que suas orações foram ouvidas, que estava livre do sofrimento e prestes a gozar do repouso eterno no seio de Deus. Familiarizado com essas comunicações sobrenaturais, o santo não hesitou em interrogar a aparição, perguntando sobre o destino de seus dois irmãos, Arnoldo e Landolfo, que haviam falecido anteriormente. 'Arnoldo está no Céu' -respondeu a alma - 'e goza de um alto grau de glória por ter defendido a Igreja e o Sumo Pontífice contra as agressões do imperador Frederico. Quanto a Landolfo, ele ainda está no Purgatório, onde sofre muito e precisa de assistência. Quanto a você, meu querido irmão' - acrescentou - 'um lugar magnífico o aguarda no Paraíso, em recompensa por tudo o que você fez pela Igreja. Apresse-se em concluir as obras que iniciou, pois em breve você se unirá a nós'. A história conta que, de fato, ele viveu apenas por um curto período após esse evento.

Em outra ocasião, o mesmo santo, estando em oração na Igreja de São Domingos, em Nápoles, viu aproximar-se o Irmão Romano, que o sucedera em Paris na cadeira de teologia. O santo pensou inicialmente que ele tinha acabado de chegar de Paris, pois ignorava a sua morte. Assim, levantou-se, foi ao seu encontro, saudou-o e perguntou sobre sua saúde e o motivo da viagem. ''Não pertenço mais a este mundo' - disse o religioso com um sorriso - 'e, pela misericórdia de Deus, já desfruto da bem-aventurança eterna. Venho por ordem de Deus encorajá-lo em seus trabalhos'. 'Estou em estado de graça?' - perguntou imediatamente Tomás. 'Sim, querido irmão, e suas obras são muito agradáveis a Deus'. 'E você, teve que sofrer no Purgatório?' 'Sim, por quatorze dias, devido a pequenas infidelidades que não expiei suficientemente na Terra'. Então Tomás, cuja mente estava constantemente ocupada com questões teológicas, aproveitou a oportunidade para tentar penetrar o mistério da visão beatífica; mas recebeu como resposta este versículo do Salmo 47: Sicut audivimus, sic vidimus in civitate Dei nostri – Como aprendemos pela fé, vimos com nossos olhos a cidade do nosso Deus'. Dizendo essas palavras, a aparição desapareceu, deixando o Doutor Angélico inflamado pelo desejo do Bem Eterno.

Mais recentemente, no século XVI, um favor semelhante, mas talvez mais maravilhoso, foi concedido a um zelador das almas do Purgatório, amigo íntimo de São Carlos Borromeu. O Venerável Gratien Ponzoni, arcipreste [decano] de Arona, dedicou sua vida às almas sofredoras. Durante a peste que vitimou tantas pessoas na diocese de Milão, Ponzoni, além de ministrar os sacramentos aos doentes, não hesitou em assumir o papel de coveiro, enterrando os mortos, pois o medo havia paralisado a coragem de todos. Com zelo e caridade verdadeiramente apostólicos, ajudou muitas vítimas em seus últimos momentos e enterrou-as no cemitério próximo à sua igreja de Santa Maria.

Certo dia, após o Ofício de Vésperas, ao passar pelo cemitério com Dom Alfonso Sánchez, governador de Arona, Ponzoni parou, impressionado por uma visão extraordinária. Temendo uma ilusão, perguntou ao governador: 'Senhor, você vê o mesmo espetáculo que eu?' 'Sim' - respondeu o governador - 'vejo uma procissão de mortos avançando de seus túmulos para a igreja; e confesso que, até você falar, não acreditava em meus olhos'. Convencido da realidade da aparição, o arcipreste concluiu: 'Provavelmente são vítimas recentes da peste, que querem manifestar sua necessidade de orações'” Ele imediatamente ordenou que os sinos tocassem e convidou os paroquianos para um serviço solene pelos mortos no dia seguinte.

Essas aparições, atestadas por testemunhas confiáveis e santos como Tomás de Aquino, demonstram a importância de orações pelas almas do Purgatório. Ainda hoje, devemos ser prudentes, mas também abertos à fé, evitando incredulidade excessiva, especialmente quando se trata da glória de Deus e do bem do próximo.

Vemos aqui duas pessoas cujo bom senso as protegeu contra qualquer perigo de ilusão e que, ambas impressionadas ao mesmo tempo ao verem a mesma aparição, hesitaram em acreditar nela até estarem convencidas de que seus olhos estavam testemunhando o mesmo fenômeno. Não há o menor espaço para alucinação, e qualquer pessoa sensata deve admitir a realidade de um acontecimento sobrenatural, atestado por tais testemunhas. Também não podemos questionar essas aparições baseadas no testemunho de um Santo Tomás de Aquino, como relatado acima. Devemos evitar rejeitar com demasiada facilidade outros fatos da mesma natureza, desde que sejam atestados por pessoas de santidade reconhecida e verdadeiramente dignas de crédito. Certamente, é necessário sermos prudentes, mas nossa prudência deve ser cristã, igualmente distante da credulidade e daquele espírito orgulhoso e pretensioso com o qual, como já observamos, Jesus repreendeu seus Apóstolos: Noli esse incredulus, sed fidelis – 'Não sejas incrédulo, mas crente' (Jo 20,27).

Monsenhor Languet, Bispo de Soissons, faz a mesma observação em referência a uma circunstância que ele relata na vida da Beata Margarida Maria Alacoque. Madame Billet, esposa do médico da casa – isto é, do convento de Paray, onde residia a bem-aventurada irmã – acabara de falecer. A alma da falecida apareceu à serva de Deus, pedindo suas orações e encarregando-a de alertar o marido sobre dois assuntos secretos relacionados à sua salvação. A santa irmã relatou o ocorrido à sua superiora, Madre Greffier. A superiora ridicularizou a visão e também a quem a relatou; impôs silêncio a Margarida, proibindo-a de dizer ou fazer qualquer coisa relacionada ao que lhe fora solicitado.

A humilde religiosa obedeceu com simplicidade e, com a mesma simplicidade, relatou à Madre Greffier a segunda solicitação que recebeu da falecida alguns dias depois; mas a superiora tratou isso com o mesmo desprezo. No entanto, na noite seguinte, foi despertada por um barulho tão terrível em seu quarto que pensou que morreria de susto. Chamou as irmãs e, quando vieram ajudá-la, ela estava a ponto de desmaiar. Quando se recuperou um pouco, culpou-se por sua incredulidade e não demorou a informar o médico sobre o que havia sido revelado à irmã Margarida. O médico reconheceu o aviso como vindo de Deus e aproveitou-o. Quanto à Madre Greffier, aprendeu pela experiência que, embora a desconfiança seja geralmente a política mais sábia, às vezes é errado levá-la longe demais, especialmente quando estão em jogo a glória de Deus e o bem do próximo.

Capítulo LIV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Purgatório na Terra em Substituição ao Purgatório Após a Morte - Servos de Deus: Irmão Gaspar Lourenço e Padre Michel de la Fontaine 

Além das vantagens que já consideramos, a caridade para com as almas do Purgatório é extremamente salutar para aqueles que a praticam, pois estimula o fervor no serviço a Deus e inspira os pensamentos mais santos. Pensar nas almas do Purgatório é refletir sobre os sofrimentos da outra vida; é lembrar que todo pecado exige expiação, seja nesta vida ou na próxima. Ora, quem não entende que é melhor fazer satisfação aqui, já que os castigos futuros são tão terríveis? Uma voz parece emergir do Purgatório, repetindo estas palavras da Imitação de Cristo: 'É melhor purgar agora os nossos pecados e cortar os nossos vícios do que deixá-los para purgação depois'.

Lembramos também desta outra sentença, presente no mesmo capítulo: 'Lá, uma hora de punição será mais grave do que cem anos da mais amarga penitência aqui'. Penetrados por este temor salutar, suportamos voluntariamente os sofrimentos da vida presente e dizemos a Deus com Santo Agostinho e São Luís Bertrand: Domine, hic ure, hic seca, hic non parcas, ut in aeternum parcas – 'Senhor, aplica aqui o ferro e o fogo; não me poupes nesta vida, para que me poupes na próxima'. Com esses pensamentos, o cristão encara as tribulações da vida presente, especialmente os sofrimentos de uma doença dolorosa, como um Purgatório na terra que o dispensará do Purgatório após a morte.

No dia 6 de janeiro de 1676, faleceu em Lisboa, aos sessenta e nove anos, o servo de Deus Gaspar Lourenço, Irmão Coadjutor da Companhia de Jesus e porteiro da casa professada dessa ordem. Ele era cheio de caridade para com os pobres e para com as almas do Purgatório. Não sabia poupar esforços no serviço dos desafortunados e era maravilhosamente engenhoso em ensinar-lhes a bendizer a Deus pela miséria que lhes garantia o Céu. Ele próprio estava tão penetrado da felicidade de sofrer por Nosso Senhor que crucificava sua carne quase sem medida, e acrescentava outras austeridades nas vigílias dos dias de Comunhão.

Aos setenta e oito anos, não aceitava dispensa dos jejuns e abstinências da Igreja e não deixava passar um dia sem ao menos duas disciplinas corporais. Mesmo em sua última enfermidade, o Irmão Enfermeiro observou que a proximidade da morte não o fazia tirar a camisa de cilício, tamanha era sua vontade de morrer na cruz. Os sofrimentos de sua agonia, que foram cruéis, poderiam ter substituído as mais rigorosas penitências. Quando lhe perguntaram se sofria muito, ele respondeu com ar alegre: 'Estou passando pelo meu Purgatório antes de partir para o Céu'.

Irmão Lourenço nasceu no dia da Epifania e Nosso Senhor revelou-lhe que esse mesmo dia seria também o de sua morte. Ele indicou a hora na noite anterior; e, quando o Irmão Enfermeiro o visitou ao amanhecer, disse com um sorriso de dúvida: 'Não é hoje, irmão, que esperas desfrutar da visão de Deus?' 'Sim' - respondeu ele - 'assim que eu receber o Corpo do meu Salvador pela última vez'. De fato, ele recebeu a Sagrada Comunhão e expirou sem luta e sem agonia. Há, portanto, todas as razões para acreditar que ele falava com um conhecimento sobrenatural da verdade ao dizer: 'Estou passando pelo meu Purgatório antes de partir para o Céu'.

Outro servo de Deus recebeu da própria Santíssima Virgem a garantia de que seus sofrimentos terrenos substituiriam o Purgatório. Refiro-me ao Padre Michel de la Fontaine, que adormeceu suavemente no Senhor no dia 11 de fevereiro de 1606, em Valência, na Espanha. Ele foi um dos primeiros missionários a trabalhar pela salvação do povo peruano. Sua maior preocupação ao instruir os novos convertidos era inspirá-los a um horror soberano ao pecado e levá-los a uma grande devoção à Mãe de Deus, falando das virtudes daquela admirável Virgem e ensinando-os a rezar o rosário em sua honra.

Maria, por sua vez, não recusava os favores que lhe eram pedidos. Um dia, quando exausto de cansaço, estava prostrado no chão, sem forças para se levantar, ele foi visitado por aquela que a Igreja, com razão, chama de Consoladora dos Aflitos. Ela reanimou sua coragem, dizendo-lhe: 'Confiança, meu filho; suas fadigas substituirão o Purgatório para você; suporte seus sofrimentos pacientemente, e, ao deixar esta vida, sua alma será recebida na morada dos bem-aventurados'.

Essa visão foi, para o Padre Michel de la Fontaine, durante a vida, mas especialmente na hora de sua morte, uma fonte abundante de consolação. Em gratidão por esse favor, ele praticava, a cada semana, alguma penitência especial. No momento em que expirou, um religioso de eminente virtude viu sua alma partir para o Céu acompanhada pela Santíssima Virgem, pelo Príncipe dos Apóstolos, São João Evangelista e São Inácio, o fundador da Companhia de Jesus.

Capítulo LV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Conselhos Úteis das Santas Almas e a Bem Aventurada Maria dos Anjos - São Pedro Claver, o Apóstolo dos Escravos Negros, e as Almas do Purgatório
 
Além dos santos pensamentos que a devoção às almas santas sugere, estas às vezes contribuem diretamente para o bem-estar espiritual de seus benfeitores. Na vida da bem-aventurada Maria dos Anjos, do Ordem do Monte Carmelo, diz-se que é quase inacreditável a frequência com que as aparições das almas do Purgatório vinham implorar a sua assistência e depois agradecer pela sua libertação. Muito frequentemente, elas conversavam com a bem-aventurada irmã, dando-lhe conselhos úteis para ela mesma ou para suas irmãs, e revelando coisas relacionadas ao outro mundo. 'Na quarta-feira dentro da Oitava da Assunção' - ela escreveu - 'enquanto rezava as orações da noite, uma das nossas boas irmãs me apareceu. Ela estava vestida de branco, rodeada de glória e esplendor, e era tão bonita que não sei de nada aqui embaixo com que se possa compará-la. Temendo alguma ilusão do demônio, me armei com o Sinal da Cruz; mas ela sorriu e desapareceu logo em seguida. Pedi ao Nosso Senhor que não permitisse que eu fosse enganada pelo demônio. Na noite seguinte, a irmã apareceu novamente, e chamando-me pelo meu nome, disse: Venho da parte de Deus para te avisar que estou gozando da bem-aventurança eterna. Diga à nossa Madre Prioresa que não é o desígnio de Deus revelar-lhe o destino que a espera; diga-lhe que confie em São José e nas almas do Purgatório. Tendo dito isso, desapareceu'.

São Pedro Claver, Apóstolo dos Escravos Negros de Cartago, foi auxiliado pelas almas do Purgatório em seu trabalho apostólico. Ele não abandonou as almas de seus queridos irmãos negros após a morte deles; penitências, orações, missas, indulgências, na medida em que dependia dele, ele aplicava a elas, diz o Padre Fleurian, seu biógrafo. Assim, acontecia frequentemente que aquelas pobres almas aflitas, certas de seu poder junto a Deus, vinham pedir a assistência de suas orações. A fastiosidade e incredulidade de nosso século, diz o mesmo autor, não nos impede de relatar alguns poucos fatos adicionais. Eles podem, talvez, parecer dignos da zombaria dos livres-pensadores, mas não basta saber que Deus é o Senhor desses acontecimentos, e que são, além disso, tão bem autenticados que merecem um lugar em uma história escrita para leitores cristãos?

Um negro doente, a quem ele havia acolhido em seu quarto e colocado em sua própria cama, ouvindo um barulho de gemidos altos durante a noite, temeu e correu até o Padre Claver, que estava ajoelhado em oração. 'Padre!' - exclamou ele - 'que barulho terrível é esse, que me aterroriza e me impede de dormir?' 'Volte, meu filho' - respondeu o santo homem - 'e vá dormir sem medo'. Então, depois de ajudá-lo a se deitar, ele abriu a porta do quarto, disse algumas palavras, e imediatamente os gemidos cessaram.

Vários outros escravos negros estavam ocupados na tarefa de reparar uma casa a alguma distância da cidade, quando um deles saiu para cortar lenha em uma montanha próxima. Ao se aproximar da floresta, ouviu seu nome ser chamado do alto de uma árvore. Ele levantou os olhos na direção de onde vinha a voz, e não vendo ninguém, estava prestes a fugir e se juntar aos seus companheiros, mas foi parado em um caminho estreito por um espectro terrível, que lhe desferiu uma chuva de golpes com um chicote com pedaços de ferro quente, dizendo: 'Por que você não trouxe o seu rosário? Leve-o consigo sempre e reze-o pelas almas no Purgatório'. O fantasma então ordenou que ele pedisse à dona da casa três moedas de ouro que lhe eram devidas e que ele as entregasse ao Padre Claver, para que missas fossem celebradas por sua intenção, após o que desapareceu.

Enquanto isso, o barulho dos golpes e os gritos do homem trouxeram seus companheiros até o local, onde o encontraram mais morto do que vivo, coberto pelas feridas que recebera e incapaz de pronunciar uma palavra. Eles o levaram até a casa, onde a dona confirmou que realmente devia a quantia de dinheiro a um negro que havia falecido algum tempo antes. O Padre Claver, ao ser informado do ocorrido, celebrou as missas solicitadas e deu então um rosário ao homem negro, que passou a usá-lo todos os dias e nunca mais deixou de rezá-lo.

Capítulo LVI

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santa Madalena de Pazzi e Irmã Benedicta - O Pensamento do Purgatório: Exemplos do Padre Paulo Hoffee, Padre Claúdio de la Colombière e Padre Luís Corbinelli

Santa Madalena de Pazzi, em uma aparição de uma alma falecida, recebeu a mais salutar instrução sobre as virtudes religiosas. Havia no seu convento uma irmã chamada Maria Benedicta, que se distinguia pela sua piedade, pela sua obediência e por todas as outras virtudes que são o ornamento das almas santas. Era tão humilde, diz o Padre Cepari, e tinha tal desprezo por si mesma que, sem a orientação dos seus Superiores, teria ido a extremos, com o único objetivo de adquirir a reputação de ser uma pessoa sem prudência e sem juízo. Dizia, portanto, que não podia deixar de sentir inveja de Santo Aleixo, que encontrou um meio de viver uma vida oculta, desprezível aos olhos do mundo. Era tão dócil e pronta na obediência, que corria como uma criancinha ao menor sinal da vontade dos seus Superiores, e estes eram obrigados a usar de grande circunspeção nas ordens que lhe davam, para que ela não fosse além dos seus desejos. De fato, ela tinha adquirido tal domínio sobre as suas paixões e apetites, que seria difícil imaginar uma mortificação mais perfeita.

Esta boa irmã morreu subitamente, depois de algumas horas de doença. Na manhã seguinte, um sábado, durante a missa celebrada, enquano as religiosas cantavam o Sanctus, Madalena foi arrebatada em êxtase. Durante o arrebatamento, Deus mostrou-lhe esta alma sob a forma corporal na glória do Céu. Estava adornada com uma estrela de ouro, que recebera como recompensa pela sua ardente caridade. Todos os seus dedos estavam cobertos de anéis caros, por causa da sua fidelidade a todas as regras e do cuidado que tivera em santificar as suas ações mais ordinárias. Na cabeça, trazia uma coroa riquíssima, porque sempre amou a obediência e o sofrimento por Jesus Cristo. De fato, ultrapassava em glória uma grande multidão de virgens e contemplava o seu Esposo Jesus com singular familiaridade, porque tinha amado tanto a humilhação, segundo estas palavras do nosso Salvador: 'Aquele que se humilhar será exaltado'. Tal foi a sublime lição que a santa recebeu em recompensa da sua caridade para com os defuntos.

O pensamento do Purgatório incita-nos a trabalhar com zelo e a não cometer as menores faltas, a fim de evitar as terríveis expiações da outra vida. O Padre Paulo Hoffee, que morreu santamente em Ingolstadt no ano de 1608, fez uso deste pensamento em seu próprio benefício e no dos outros. Nunca perdeu de vista o Purgatório, nem deixou de aliviar as pobres almas que frequentemente lhe apareciam a pedir os seus sufrágios. Como Superior dos seus irmãos religiosos, exortava-os muitas vezes a santificarem-se a si próprios, para depois poderem santificar os outros, e a nunca negligenciarem a mais pequena prescrição das suas regras; depois acrescentava com grande simplicidade: 'Caso contrário, receio que venhais, como muitos outros o fizeram, pedir as minhas orações para que vos libertem do Purgatório'. Nos seus últimos momentos, ele estava totalmente ocupado em conversas amorosas com Nosso Senhor, sua Santíssima Mãe e os santos. Foi sensivelmente consolado pela visita de uma alma muito santa, que o tinha precedido no Céu apenas dois ou três dias antes e que agora o convidava a ir deleitar-se no amor eterno de Deus (Menologia da Companhia de Jesus, 17 de dezembro).

Quando dizemos que o pensamento do Purgatório nos faz usar todos os meios para o evitar, é evidente que temos razões para recear ir para lá. Mas em que se baseia esse temor? Se refletirmos um pouco sobre a santidade que é necessária para entrar no Céu e sobre a fragilidade da natureza humana, que é a fonte de tantas faltas, facilmente compreenderemos que este receio é demasiado fundamentado. Além disso, os exemplos que lemos acima não nos mostram claramente que, muitas vezes, mesmo as almas mais santas têm, por vezes, que sofrer expiação na outra vida?

O Venerável [depois Santo] Padre Cláudio de la Colombière morreu em odor de santidade, em Paray, a 15 de fevereiro de 1682, como havia sido predito pela Beata [depois Santa] Margariada Maria. Assim que ele expirou, deram notícia disso à Irmã Margarida. A santa religiosa, sem se mostrar perturbada e sem se desdobrar em vãs lamentações, disse simplesmente à pessoa que a avisara: 'Vai rezar a Deus por ele e faz com que se reze por toda a parte pelo repouso da sua alma'. O Padre tinha morrido às cinco horas da manhã. Nessa mesma noite, ela escreveu um bilhete à mesma pessoa, nestes termos: 'Deixa de te afligir; invoca-o. Não temais nada, ele é mais poderoso do que nunca para nos ajudar'. Estas palavras dão-nos a entender que ela tinha sido sobrenaturalmente esclarecida acerca da morte deste santo homem e do estado da sua alma na outra vida.

A paz e a tranquilidade da Irmã Margarida diante da morte de um diretor que lhe tinha sido útil foi outra espécie de milagre. A bem-aventurada irmã não amava senão em Deus e por Deus; Deus ocupava o lugar de tudo no seu coração e consumia pelo fogo do seu amor todos os outros apegos. A superiora ficou surpreendida com a sua perfeita tranquilidade por ocasião da morte do santo missionário e, mais ainda, por Margarida não ter pedido para fazer nenhuma penitência extraordinária para o repouso da sua alma, como era seu costume por ocasião da morte de qualquer pessoa conhecida por quem se interessasse particularmente. A Madre Superiora perguntou à serva de Deus a razão disso e ela respondeu-lhe muito simplesmente: 'Ele não tem necessidade disso; está em condições de rezar por nós, uma vez que foi exaltado no Céu pelo Sagrado Coração de Nosso Senhor Divino. Apenas para expiar uma ligeira negligência na prática do Amor Divino' - acrescentou - 'a sua alma foi privada da visão de Deus desde que deixou o corpo até ao momento em que os seus restos mortais foram entregues ao túmulo'.

Acrescentemos mais um exemplo, o do Padre Corbinelli. Esta santa pessoa não foi isenta do Purgatório. É verdade que não ficou retido lá, mas teve que passar pelas chamas antes de ser admitido na presença de Deus. Luís Corbinelli, da Companhia de Jesus, morreu em odor de santidade na casa professa de Roma, no ano de 1591, quase ao mesmo tempo que São Luís Gonzaga. A morte trágica de Henrique II, rei de França, provocou-lhe um desgosto pelo mundo e decidiu consagrar-se inteiramente ao serviço de Deus. No ano de 1559, o casamento da princesa Isabel foi celebrado com grande pompa na cidade de Paris. Entre outros divertimentos, foi organizado um torneio, no qual figurou a flor da nobreza e da cavalaria francesas. O próprio Rei apareceu no meio da sua brilhante corte. Entre os espectadores, reunidos até de terras estrangeiras, estava o jovem Luís Corbinelli, que tinha vindo da sua cidade natal - Florença - para assistir ao festival. Corbinelli contemplava com admiração a glória do monarca francês, agora no zênite da sua grandeza e prosperidade quando, de repente, o viu cair, atingido por um golpe fatal desferido por um oponente imprudente. A lança mal empunhada por Montgomery transpassou o Rei, que expirou ali mesmo banhado em sangue.

Num piscar de olhos, toda a sua glória desapareceu e a magnificência real foi coberta por uma mortalha. Este acontecimento causou uma impressão profunda em Corbinelli; vendo assim exposta a futilidade da grandeza humana, renunciou ao mundo e abraçou a vida religiosa na Companhia de Jesus. A sua vida foi a de um santo, e a sua morte encheu de alegria todos os que dela foram testemunhas. Aconteceu alguns dias antes da morte de São Luís, que estava doente no Colégio Romano. O jovem santo anunciou ao Cardeal Bellarmine que a alma do Padre Corbinelli tinha entrado na glória; e quando o Cardeal lhe perguntou se não tinha passado pelo Purgatório, respondeu: 'Passou, mas não ficou lá'.

Capítulo LVII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Estímulo à Devoção e Probabilidade do Purgatório - Meios de se Evitar o Purgatório - Conselho de Santa Catarina de Gênova

Se os santos religiosos passam pelo Purgatório, embora não fiquem retidos nele, não devemos temer que não só passemos por ele, mas também permaneçamos por mais ou menos tempo? Podemos viver numa segurança que seria, para dizer o mínimo, muito imprudente? A nossa fé e a nossa consciência dizem-nos que o nosso medo do Purgatório é bem fundamentado. Vou ainda mais longe, caro leitor, e digo que, com um pouco de reflexão, tu mesmo deves reconhecer que é muito provável, e quase certo, que irás para o Purgatório. Não é verdade que, ao deixar esta terra, a tua alma entrará numa dessas três moradas que a fé nos indica: Inferno, Céu ou Purgatório? Ireis para o Inferno? Não é provável, porque tendes horror ao pecado mortal, e por nada no mundo o cometeríeis, nem o teríeis na consciência depois de o terdes cometido. Ireis para o Céu? Respondeis imediatamente que vos julgais indignos de tal favor. Resta, então, o Purgatório; e deveis reconhecer que é muito provável, quase certo, que ireis para esse lugar de expiação.

Ao colocar esta grave verdade diante dos vossos olhos, não penseis, caro leitor, que queremos assustar-vos, ou tirar-vos toda a esperança de entrar no Céu sem o Purgatório. Pelo contrário, esta esperança deve permanecer sempre profundamente impressa nos nossos corações, pois é o espírito de Jesus Cristo, que não deseja de modo algum que os seus discípulos tenham necessidade de uma expiação futura. Ele até instituiu sacramentos e estabeleceu todos os tipos de meios para nos ajudar a fazer plena satisfação neste mundo. Mas esses meios são muitas vezes negligenciados; e é especialmente por um temor salutar que somos estimulados a fazer uso deles.

Ora, quais são os meios que devemos empregar para evitar, ou pelo menos abreviar, o nosso Purgatório e atenuar o seu rigor? São, evidentemente, os exercícios e as boas obras que mais nos ajudam a satisfazer as nossas faltas neste mundo e a encontrar misericórdia diante de Deus, a saber: a devoção à Santíssima Virgem Maria e a fidelidade no uso do seu escapulário; a caridade para com os vivos e os mortos; a mortificação e a obediência; a piedosa recepção dos sacramentos, especialmente quando se aproxima a morte; a confiança na Divina Misericórdia; e, finalmente, a santa aceitação da morte em união com a morte de Jesus na cruz.

Estes meios são suficientemente poderosos para nos preservar do Purgatório, mas é preciso fazer uso deles. Ora, para empregá-los seriamente e com perseverança, uma condição é necessária: formar uma firme resolução de satisfazer [o purgatório pessoal] neste mundo e não no outro. Essa resolução deve ser baseada na fé, que nos ensina quão fácil é a satisfação nesta vida, quão terrível é o Purgatório. Enquanto estiveres no caminho com o teu adversário, diz Jesus Cristo, faze um acordo com ele, para que, porventura, o teu adversário não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e sejas lançado na prisão. Em verdade vos digo que não sairás dali até que pagueis o último ceitil (Mt 5,25).

Reconciliarmo-nos com o nosso adversário no caminho significa, na boca de Nosso Senhor, apaziguar a Justiça Divina, e satisfazermo-nos no caminho da vida, antes de chegarmos àquele fim imutável, àquela eternidade onde toda a penitência é impossível, e onde teremos de nos submeter a todos os rigores da Justiça. Não é este conselho do nosso Divino Salvador muito sábio?

Poderemos comparecer diante do tribunal de Deus, carregados de uma dívida enorme, que poderíamos tão facilmente ter saldado com algumas obras de penitência, e que depois teremos de pagar com anos de tormento? 'Aquele que se purifica de suas faltas na vida presente' - diz Santa Catarina de Gênova - 'satisfaz com um centavo uma dívida de mil ducados; e aquele que espera até a outra vida para saldar suas dívidas, consente em pagar mil ducados por aquilo que antes poderia ter pago com um centavo'. Devemos, portanto, começar com a firme e eficaz resolução de dar satisfação neste mundo; essa é a pedra fundamental. Uma vez lançado esse alicerce, devemos empregar todos os meios acima enumerados.

Capítulo LVIII

Meios de se Evitar o Purgatório - Devoção Especial à Santíssima Virgem - O Uso Cotidiano do Escapulário do Carmo

Um Servo de Deus resume estes meios e os reduz a dois, dizendo: 'Purifiquemos as nossas almas pela água e pelo fogo'; isto é, pela água das lágrimas e pelo fogo da caridade e das boas obras. De fato, podemos classificá-los todos nestes dois exercícios, e isto é conforme à Sagrada Escritura, onde vemos que as almas são limpas das suas manchas e purificadas como o ouro no crisol. Mas como devemos procurar acima de tudo ser práticos, sigamos o método que indicamos e que foi praticado, com tanto sucesso, pelos santos e por todos os cristãos fervorosos.

Em primeiro lugar, para obter uma grande pureza de alma e, por conseguinte, ter poucos motivos para temer o Purgatório, devemos nutrir uma grande devoção para com a Santíssima Virgem Maria. Esta boa Mãe ajudará de tal modo os seus queridos filhos a purificar as suas almas e a abreviar o seu Purgatório, que eles poderão viver com a maior confiança. Ela deseja mesmo que eles não se preocupem com este assunto e que não se deixem desanimar por um medo excessivo, como ela própria se dignou declarar ao seu servo Jerônimo Carvalho, de quem já falamos. 'Tem confiança, meu filho' - disse-lhe ela - 'Eu sou a Mãe de Misericórdia para os meus queridos filhos no Purgatório, assim como para os que ainda vivem na terra'. Nas Revelações de Santa Brígida, lemos algo semelhante: 'Eu sou' - disse-lhe a Santíssima Virgem - 'a Mãe de todos aqueles que estão no lugar de expiação; as minhas orações mitigam os castigos infligidos a eles por suas faltas' (Livro 4, cap. 1).

Aqueles que usam o santo escapulário têm um direito especial à proteção de Maria. A devoção do santo escapulário, ao contrário da do Rosário, não consiste na oração, mas na prática piedosa de usar uma espécie de hábito, que é como a veste da Rainha do Céu. O escapulário de Nossa Senhora do Carmo, de que aqui falamos, tem a sua origem no século XIII, e foi pregado pela primeira vez pelo Beato (São) Simão Stock, quinto Geral da Ordem do Carmo. Este célebre servo de Maria, nascido em Kent, na Inglaterra, no ano de 1165, quando ainda era jovem, retirou-se para uma floresta solitária para se dedicar à oração e à penitência. Escolheu como morada o oco de uma árvore, ao qual fixou um crucifixo e uma imagem da Santíssima Virgem, a quem honrava como sua Mãe e não cessava de invocar com o mais terno afeto. Durante doze anos, suplicou-lhe que lhe dissesse o que poderia fazer de mais agradável ao seu Divino Filho, quando a Rainha do Céu lhe disse que entrasse na Ordem do Carmo, que era particularmente dedicada ao seu serviço. Simão obedeceu e, sob a proteção de Maria, tornou-se um religioso exemplar e o ornamento da Ordem do Carmo, da qual foi eleito Superior Geral em 1245.

Um dia - era o dia 16 de julho de 1251 - a Virgem Santíssima apareceu-lhe rodeada por uma multidão de espíritos celestes e, com o rosto radiante de alegria, apresentou-lhe um escapulário de cor castanha, dizendo: 'Recebe, meu querido filho, este escapulário da tua Ordem; é o distintivo da minha Confraria e o penhor de um privilégio que obtive para ti e para os teus irmãos do Carmo. Aqueles que morrerem devotamente vestidos com este hábito serão preservados do fogo eterno. É o sinal da salvação, uma salvaguarda no perigo, um penhor de paz e de proteção especial, até ao fim dos tempos'. O feliz ancião divulgava por toda a parte o favor que recebera, mostrando o escapulário, curando os doentes e fazendo outros milagres em prova da sua maravilhosa missão. Imediatamente, Eduardo I, rei de Inglaterra e Luís IX, rei de França e, depois do seu exemplo, quase todos os soberanos da Europa, bem como um grande número dos seus súditos, receberam o mesmo hábito. A partir desse momento começa a célebre Confraria do Escapulário, que pouco depois foi erigida canonicamente pela Santa Sé.

Não contente com a concessão deste primeiro privilégio, Maria fez outra promessa em favor dos membros da Confraria do Escapulário, assegurando-lhes uma rápida libertação dos sofrimentos do Purgatório. Cerca de cinquenta anos após a morte do Beato Simão, o ilustre Pontífice João XXII, quando estava a rezar de manhã cedo, viu a Mãe de Deus aparecer rodeada de luz e com o hábito do Monte Carmelo. Entre outras coisas, ela lhe disse: 'Se entre os Religiosos ou membros da Confraria do Carmo houver alguns que, por causa das suas faltas, estejam condenados ao Purgatório, eu descerei para o meio deles como uma terna Mãe no sábado depois da sua morte; livrá-los-ei e conduzi-los-ei ao monte santo da vida eterna'. São estas as palavras que o Pontífice coloca nos lábios de Maria na sua célebre Bula de 3 de março de 1322, vulgarmente chamada Bula Sabatina. Ele conclui com estas palavras: 'Aceito, pois, esta santa indulgência; ratifico-a e confirmo-a na terra, como Jesus Cristo graciosamente a concedeu no céu pelos méritos da Santíssima Virgem'. Este privilégio foi depois confirmado por um grande número de Bulas e Decretos dos Soberanos Pontífices.

Tal é a devoção do santo escapulário. É sancionada pela prática das almas piedosas em todo o mundo cristão, pelo testemunho de vinte e dois papas, pelos escritos de um número incalculável de autores piedosos, e por milagres multiplicados durante os últimos 600 anos; de modo que, como nos diz o ilustre Bento XIV: 'aquele que ousa por em causa a validade da devoção do escapulário ou negar os seus privilégios, seria um orgulhoso desdenhador da religião'.

Capítulo LIX

Meios de se Evitar o Purgatório - Privilégios do Santo Escapulário: Preservação dos Tormentos do Inferno e Libertação do Primeiro Sábado - Exemplos do Cumprimento destas Promessas

De acordo com o que dissemos, a Santíssima Virgem anexou dois grandes privilégios ao Santo Escapulário; por sua vez, os Soberanos Pontífices acrescentaram a eles as mais ricas indulgências. Não falaremos aqui sobre as duas indulgências, mas consideramos útil dar a conhecer esses dois preciosos privilégios, um sob o nome de Preservação, o outro sob o nome de Libertação.

O primeiro é a isenção dos tormentos do inferno: In hoc moriens aeternum non patietur incendium - Aquele que morrer usando este hábito não sofrerá o fogo do inferno. É evidente que aquele que morrer em pecado mortal, mesmo usando o escapulário, não estará isento da condenação; e não é esse o significado da promessa de Maria. Essa boa Mãe prometeu misericordiosamente dispor todas as coisas de tal modo que aquele que morrer usando esse santo hábito receberá uma graça eficaz digna de confessar e lamentar as suas faltas; ou, se for surpreendido por uma morte súbita, terá tempo e vontade para fazer um ato de perfeita contrição. Poderíamos encher um volume com os eventos milagrosos que comprovam o cumprimento dessa promessa. Basta relatar alguns deles.

Venerável [Santo] Padre de la Colombiere nos conta que uma jovem, que era muito piedosa e usava o santo escapulário, teve a infelicidade de se desviar do caminho da virtude. Em consequência da má literatura e de companhias perigosas, ela caiu nas maiores desordens e estava prestes a perder a sua honra. Em vez de se voltar para Deus e recorrer à Santíssima Virgem, que é o refúgio dos pecadores, ela se abandonou ao desespero. O demônio logo sugeriu um remédio para os seus males - o terrível remédio do suicídio, que poria fim às suas misérias temporais para mergulhá-la em tormentos eternos. Ela correu para um rio e, ainda usando o escapulário, jogou-se na água. Mas - ó maravilha de Deus! - ela flutuou em vez de afundar e, assim, não conseguiu encontrar a morte que procurava. Um pescador, que a viu, apressou-se em ajudá-la, mas a infeliz criatura o impediu: arrancando o escapulário, ela o jogou longe de si e afundou imediatamente. O pescador não conseguiu salvá-la, mas encontrou o escapulário e reconheceu que essa vestimenta sagrada, enquanto havia sido usada, havia impedido a pecadora de cometer suicídio.

No hospital de Toulon, havia um oficial, um homem muito ímpio, que se recusava a ver um padre. A morte se aproximava e ele caiu em uma espécie de letargia. Os assistentes aproveitaram esse fato para colocar um escapulário em seu pescoço, sem que ele soubesse. Ao se recuperar logo depois, ele gritou com fúria: 'Por que vocês colocaram fogo em mim, um fogo que me queima? Tirem-no daqui, tirem-no daqui!' Então, invocaram a Santíssima Virgem e tentaram novamente colocar nele o escapulário. Ele percebeu isso, arrancou-o com raiva, jogou-o longe de si e, com uma horrível blasfêmia nos lábios, expirou.

O segundo privilégio, o Sabatino ou da Libertação, consiste em ser liberado do Purgatório pela Santíssima Virgem no primeiro sábado após a morte. Para desfrutar desse privilégio, certas condições devem ser cumpridas. Primeiro, observar a castidade de nosso estado. Segundo, recitar o Pequeno Ofício da Santíssima Virgem. Aqueles que recitam o Ofício Canônico satisfazem essa condição. Aqueles que não sabem ler devem, em vez de rezar o Ofício, observar os jejuns prescritos pela Igreja e abster-se de carne em todas as quartas-feiras, sextas-feiras e sábados. Terceiro, em caso de necessidade, a obrigação de recitar o Ofício, a abstinência e o jejum podem ser comutados em outras obras piedosas, por aqueles que têm o poder de conceder tais dispensas. Esse é o privilégio Sabatino ou da Libertação, com as condições necessárias para desfrutá-lo. Se nos lembrarmos do que foi dito sobre os rigores do Purgatório e sua duração, veremos que esse privilégio é muito precioso e suas condições muito fáceis des erem aplicadas. Sabemos que foram levantadas dúvidas quanto à autenticidade da Bula Sabatina, mas, além da tradição constante e da prática piedosa dos fiéis, o grande Papa Bento XIV, cuja eminente erudição e moderação de opiniões são bem conhecidas, pronunciou-se a seu favor.

Em Otranto, uma cidade do reino de Nápoles, uma senhora de alta posição teve grande prazer em assistir aos sermões de um padre carmelita que era um grande promotor da devoção a Maria. Ele assegurava a seus ouvintes que todos os cristãos que usassem piedosamente o escapulário e cumprissem as condições pré-estabelecidas veriam a Mãe Divina em sua partida deste mundo, e que essa grande consoladora dos aflitos viria no sábado após a morte para libertá-los do Purgatório e levá-los para a morada dos bem aventurados. Impressionada com essas preciosas vantagens, essa senhora imediatamente vestiu a túnica da Santíssima Virgem, firmemente decidida a observar fielmente as regras da Confraria. Sua piedade progrediu rapidamente. Ela rezava a Maria dia e noite, depositava nela toda a sua confiança e lhe prestava todas as homenagens possíveis. Entre outros favores que pediu, implorou que morresse em um sábado, para que pudesse ser libertada mais cedo do Purgatório. 

Suas preces foram ouvidas. Alguns anos depois, tendo adoecido, apesar da opinião contrária de seu médico, ela declarou que sua doença a levaria ao túmulo. 'Eu bendigo a Deus' - acrescentou - 'na esperança de estar logo unida a Ele no Céu'. Sua doença progrediu tão rapidamente que os médicos declararam unanimemente que ela estava à beira da morte e que não conseguiria viver até o fim do dia, que era quarta-feira. 'Vocês estão novamente enganados' - disse a senhora doente - 'viverei mais três dias e não morrerei até sábado'. O evento justificou suas palavras. Considerando os dias de sofrimento que lhe restavam como um tesouro inestimável, ela os aproveitou para purificar sua alma e aumentar seus méritos. Quando chegou o sábado, ela entregou a sua alma nas mãos do Criador.

Sua filha, que também era muito piedosa, estava inconsolável em seu luto. Enquanto orava em seu oratório pela alma de sua querida mãe e derramava lágrimas abundantes, um grande servo de Deus, que era habitualmente favorecido com comunicações sobrenaturais, foi até ela e disse: 'Pare de chorar, minha filha, ou melhor, deixe que sua dor se transforme em alegria. Venho assegurar-lhe, da parte de Deus, que hoje, sábado, graças aos privilégios concedidos aos membros da Confraria do Escapulário, sua mãe foi para o céu e está entre os eleitos. Fiquem consolados e abençoem a Virgem Augustíssima, a Mãe da Misericórdia'.

Capítulo CX

Meios de se Evitar o Purgatório - Caridade e Misericórdia - Palavras das Sagradas Escrituras - São Pedro Damião e o Exemplo de Caridade de João Patrizzi para com os Pobres

Acabamos de ver o primeiro meio de se evitar o Purgatório, uma terna devoção a Maria; o segundo consiste na caridade e em obras de misericórdia de todo tipo. Muitos pecados lhe foram perdoados, disse Nosso Senhor, falando de Madalena, porque ela amou muito (Lc 7,47). Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia (Mt 5,1). Não julgueis, e não sereis julgados. Não condeneis, e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoado (Lc 6,37). Se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai Celestial vos perdoará também as vossas ofensas (Mt 6, 14). Dai a todo aquele que vos pedir; dai, e dar-se-vos-á; porque com a mesma medida com que medirdes, vós sereis medidos (Lc 6, 30.38). Fazei-vos amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar [quando deixardes este mundo], eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16,9). E o Espírito Santo diz pela boca do Profeta Real [Davi]: 'Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará' (Sl 40,2).

Todas essas palavras indicam claramente que por nossa Caridade, Misericórdia e Benevolência, seja para com os pobres ou pecadores, para com nossos inimigos e aqueles que nos ferem, ou para com os falecidos que estão em grande necessidade de nossa assistência, encontraremos misericórdia no tribunal do Soberano Juiz. Os ricos deste mundo têm muito a temer. 'Ai de vós, que sois ricos - diz o Filho de Deus - 'porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós que estais fartos, porque tereis fome. Ai de vocês que agora riem, porque hão de se lamentar e chorar (Lc 6,24-25). Certamente, essas palavras de Deus deveriam fazer com que os ricos eleitores deste mundo tremessem; mas, se quisessem, a própria riqueza poderia se tornar para eles um grande meio de salvação; eles poderiam redimir seus pecados e pagar suas terríveis dívidas por meio de abundantes esmolas. 

Que o meu conselho, ó rei, te seja agradável, disse Daniel ao orgulhoso Nabucodonosor, e redime os teus pecados com esmolas e as tuas iniqüidades com obras de misericórdia para com os pobres (Dn 4,24). Pois a esmola livra de todo pecado e da morte, e não permite que a alma entre em trevas. A esmola será uma grande confiança diante do Deus Altíssimo para todos os que a derem, disse Tobias a seu filho (Tb 4,11-12). Nosso Salvador confirma tudo isso e vai ainda mais longe quando diz aos fariseus: 'Mas, quanto ao mais, dai esmolas, e eis que tudo vos será limpo' (Lc 11,41]. Quão grande, então, é a insensatez dos ricos, que têm em mãos um meio tão fácil de garantir seu bem-estar espiritual futuro e, ainda assim, negligenciam seu uso! Que loucura não fazer bom uso dessa fortuna da qual terão de prestar contas a Deus! Que tolice ir arder no Inferno ou no Purgatório e deixar uma fortuna para herdeiros avarentos e ingratos, que não concederão ao falecido nem uma oração, uma lágrima ou mesmo um pensamento passageiro! Mas, ao contrário, quão felizes são os cristãos que entendem que são apenas os distribuidores, diante de Deus, dos bens que receberam dele, que pensam apenas em dispor deles de acordo com os desígnios de Jesus Cristo, a quem devem prestar contas e, em suma, que fazem uso deles apenas para obter amigos, defensores e protetores na eternidade!

São Pedro Damião, em um de seus tratados, relata o seguinte fato. Um senhor romano, chamado João Patrizzi, morreu. Sua vida, embora cristã, tinha sido como a da maioria dos ricos, muito diferente da do seu Divino Mestre, pobre, sofredor, coroado de espinhos. Felizmente, porém, ele tinha sido muito caridoso com os pobres, a ponto de doar suas roupas para vesti-los. Alguns dias após sua morte, um santo sacerdote, estando em oração, foi arrebatado em êxtase e transportado para a Basílica de Santa Cecília, uma das mais famosas de Roma. Lá ele viu várias virgens celestiais, Santa Cecília, Santa Inês, Santa Ágata e outras, agrupadas em torno de um trono magnífico, no qual estava sentada a Rainha do Céu, cercada por anjos e espíritos abençoados.

Naquele momento, apareceu uma pobre mulher, vestida com uma roupa miserável, mas com uma capa de pele cara sobre os ombros. Ela se ajoelhou humildemente aos pés da Rainha Celestial e, unindo as mãos, com os olhos cheios de lágrimas, disse com um sorriso: 'Mãe de Misericórdia, em nome de tua inefável bondade, peço-te que tenhas piedade do infeliz João Patrizzi, que acaba de morrer e que sofre cruelmente no Purgatório'. Três vezes ela repetiu a mesma oração, cada vez com mais fervor, mas sem receber nenhuma resposta. 'A senhora sabe muito bem, ó rainha misericordiosa, que eu sou aquela mendiga que, na entrada de sua grande basílica, pedia esmolas em pleno inverno, sem nada para me cobrir além de meus trapos. Ó como eu tremia de frio! Então João, a quem eu pedia em nome de Nossa Senhora, tirou do seu ombro essa pele cara e a deu a mim, privando-se dela em meu favor. Será que um ato de caridade tão grande, realizado em seu nome, ó Maria, não merece alguma indulgência?'

Diante desse apelo comovente, a Rainha do Céu lançou um olhar de amor para a mulher suplicante. 'O homem por quem você reza' - respondeu ela' - 'está condenado por muito tempo ao mais terrível sofrimento, por causa de seus numerosos pecados. Mas como ele tinha duas virtudes especiais, a misericórdia para com os pobres e a devoção aos meus altares, condescenderei em lhe dar a minha ajuda'. Diante dessas palavras, a santa assembleia testemunhou sua alegria e gratidão para com a Mãe de Misericórdia. Patrizzi foi trazido: ele estava pálido, desfigurado e carregado de correntes, que lhe haviam causado feridas profundas. A Virgem Santa olhou para ele por um momento com terna compaixão, depois ordenou que suas correntes fossem retiradas e que lhe fossem colocadas vestes de glória, para que ele pudesse se juntar aos santos e espíritos abençoados que rodeavam o seu trono. Essa ordem foi executada imediatamente, e toda visão se desvaneceu. O santo sacerdote que teve essa visão não deixou, a partir daquele momento, de pregar a clemência de Nossa Senhora para com as pobres almas sofredoras, especialmente para com aqueles que haviam se dedicado a seu serviço e que tinham grande caridade para com os pobres.

Capítulo CXI

Meios de se Evitar o Purgatório - Santa Margarida Maria e as Almas Sofredoras - As Consolações de Deus para com as Almas Caridosas

Entre as revelações de Nosso Senhor a Margarida Maria sobre o Purgatório, há uma delas que mostra como são particularmente severas as punições infligidas pelas faltas contra a caridade. 'Um dia' - relata Monsenhor Languet - 'Nosso Senhor mostrou à sua serva várias almas privadas da assistência da Santíssima Virgem e dos santos e até mesmo das visitas de seus anjos da guarda; isso era em castigo por sua falta de união com seus superiores e por certos mal-entendidos. Muitas dessas almas estavam destinadas a permanecer por muito tempo em chamas terríveis. A abençoada irmã reconheceu também muitas almas que haviam vivido na religião e que, por causa de sua falta de união e caridade com seus irmãos, foram privadas de seus sufrágios e não receberam nenhum alívio'.

Se é verdade que Deus castiga tão severamente aqueles que falharam na caridade, Ele será infinitamente misericordioso para com aqueles que praticaram essa virtude tão querida ao seu Coração. Mas, antes de tudo, Ele nos diz pela boca do seu Apóstolo, São Pedro, que tenhamos uma caridade mútua constante entre nós, pois a caridade cobre uma multidão de pecados (1Pd 4,8).

Ouçamos novamente Monsenhor Languet na Vida de Margarida Maria. É o caso da Madre Grefiber, diz ele, que, nas memórias que escreveu após a morte da abençoada irmã, atesta o seguinte fato. 'Não posso omitir a causa de certas circunstâncias particulares que manifestam a verdade de uma revelação feita nesta ocasião à serva de Deus. O pai de uma das noviças foi a causa disso. Este senhor havia falecido algum tempo antes e fora recomendado às orações da comunidade. A caridade da Irmã Margarida, então Mestra das Noviças, a levou a rezar mais especialmente por ele. Alguns dias depois, a noviça foi recomendá-lo às suas orações. 'Minha filha', disse sua santa mestra - 'fique perfeitamente tranquila; seu pai já está em condições de rezar por nós. Pergunte a sua mãe qual foi a ação mais generosa que seu pai realizou antes de morrer; essa ação lhe rendeu um julgamento favorável de Deus'.

'A ação a que ela se referia era desconhecida para a noviça; ninguém em Paray sabia das circunstâncias de uma morte que havia ocorrido tão longe daquela cidade. A noviça só viu sua mãe muito tempo depois, no dia de sua profissão. Ela então perguntou qual foi a ação cristã generosa que seu pai realizou antes de morrer. 'Quando o Santo Viático lhe foi levado' - respondeu sua mãe - 'o açougueiro juntou-se àqueles que acompanhavam o Santíssimo Sacramento e colocou-se em um canto da sala. O doente, ao percebê-lo, chamou-o pelo nome, disse-lhe para se aproximar e, apertando-lhe a mão com uma humildade incomum em pessoas de sua posição, pediu perdão por algumas palavras duras que lhe dirigira de vez em quando e desejou que todos os presentes fossem testemunhas da reparação que ele lhe fazia'. A irmã Margarida soube apenas por Deus o que havia acontecido, e a noviça soube, por isso, da verdade consoladora do que ela lhe havia dito a respeito do estado feliz de seu pai na outra vida. Acrescentemos que Deus, por meio dessa revelação, nos mostrou mais uma vez como a caridade cobre uma multidão de pecados e nos fará encontrar misericórdia no dia da justiça.

A bem-aventurada [santa] Margarida Maria recebeu de nosso Divino Senhor outra comunicação relativa à caridade. Ele lhe mostrou a alma de uma pessoa falecida que teve de sofrer apenas um leve castigo e lhe disse que, entre todas as boas obras que essa pessoa havia realizado no mundo, Ele havia levado em consideração especial certas humilhações a que ela se submetera no mundo, porque as havia sofrido com espírito de caridade, não apenas sem murmurar, mas mesmo sem sequer falar delas. Nosso Senhor acrescentou que, em recompensa, Ele lhe havia dado um julgamento brando e muito favorável.

Capítulo LXII

Meios de se Evitar o Purgatório - A Mortificação Cristã - A Mortificação Cotidiana dos Afazeres Comuns - O Valor de uma Pequena Mortificação Imposta pela Beata Emily de Verceil

O terceiro meio de satisfação neste mundo é a prática da mortificação cristã e da obediência religiosa. Carregamos em nosso corpo a mortificação de Jesus, diz o Apóstolo, para que a vida de Jesus também se manifeste em nossos corpos (2Cor 4, 10). Esta mortificação de Jesus, que o cristão deve carregar em si é, no seu sentido mais amplo, a parte que ele deve assumir nos sofrimentos do seu Divino Mestre, suportando em união com Ele as provações que possa ter de enfrentar nesta vida ou o sofrimento que voluntariamente inflige a si mesmo. A primeira e melhor mortificação é aquela que está ligada aos nossos deveres diários, às dores que temos de suportar, ao esforço que devemos fazer para cumprir adequadamente os deveres do nosso estado e para suportar as contradições de cada dia. Quando São João Berchmans disse que a sua principal mortificação era a vida comum, não disse nada mais do que isto, porque para ele a vida comum abrangia todos os deveres do seu estado.

Além disso, aquele que santifica os deveres e sofrimentos de cada dia e que, assim, pratica a mortificação fundamental, logo avançará e imporá a si mesmo privações e sofrimentos voluntários para escapar das dores da outra vida. As menores mortificações, os sacrifícios mais insignificantes, especialmente quando feitos por obediência, têm grande valor aos olhos de Deus.

Beata Emily, dominicana e prioresa do mosteiro de Santa Maria em Vercelli, inspirou suas religiosas com um espírito de perfeita obediência em vista do Purgatório. Um dos pontos da Regra proibia as religiosas de beber entre as refeições sem a permissão expressa da superiora. Ora, esta última, sabendo, como vimos, do valor do sacrifício de um copo de água aos olhos de Deus, costumava recusar essa permissão, para dar às suas irmãs a oportunidade de praticar uma mortificação fácil, mas suavizava sua recusa dizendo-lhes para oferecerem sua sede a Jesus, atormentado por uma sede cruel na cruz. Ela então as aconselhava a sofrer essa leve privação com o objetivo de diminuir os seus tormentos nas chamas expiatórias do Purgatório.

Havia em sua comunidade uma irmã chamada Maria Isabel, que era muito leviana, gostava de conversar e de outras distrações externas. A consequência era que ela tinha pouco gosto pela oração, era negligente na recitação do Ofício e só cumpria seu dever principal com as maiores reservas. Assim, ela nunca tinha pressa em ir para o coro e, assim que o ofício terminava, era a primeira a sair. Um dia, enquanto se apressava para sair do coro, ela passou pela cabine da prioresa, que a deteve: 'Onde você vai com tanta pressa, minha boa irmã?' - disse ela - 'e por que você está tão ansiosa para sair antes das outras irmãs?' A irmã, pega de surpresa, primeiro observou um silêncio respeitoso, depois reconheceu com humildade que o Ofício era cansativo para ela e parecia muito longo. 'Tudo bem' - respondeu a prioresa - 'mas se lhe custa tanto cantar louvores a Deus sentada confortavelmente no meio de suas irmãs, o que você fará no Purgatório, onde será obrigada a permanecer no meio das chamas? Para poupá-la dessa terrível provação, minha filha, ordeno que você saia do seu lugar a partir de agora por último'. 

A irmã submeteu-se com simplicidade, como uma criança verdadeiramente obediente; ela foi recompensada. O desgosto que ela havia experimentado até então pelas coisas de Deus transformou-se em devoção e alegria espiritual. Além disso, como Deus revelou à Beata Emily, tendo morrido algum tempo depois, ela obteve uma grande diminuição do sofrimento que a esperava na outra vida. Deus contou como tantas horas no Purgatório foram poupadas pelas horas que ela passou em oração por meio de um espírito de obediência.

Capítulo LXIII

Meios de se Evitar o Purgatório - Os Sacramentos - Efeitos Espirituais e Medicinais da Extrema Unção [Unção dos Enfermos]

Indicamos, como quarto meio de satisfação neste mundo, o uso dos sacramentos, e especialmente a recepção santa e cristã dos últimos sacramentos na aproximação da morte.

O Divino Mestre nos adverte no Evangelho para nos prepararmos bem para a morte, a fim de que ela seja preciosa aos seus olhos e a coroação digna de uma vida cristã. Seu amor por nós faz com que Ele deseje ardentemente que deixemos este mundo inteiramente purificados, despojados de toda dívida para com a Justiça Divina; e que, ao comparecermos diante de Deus, sejamos considerados dignos de ser admitidos entre os eleitos, sem necessidade de passar pelo Purgatório. É para esse fim que Ele normalmente nos envia as dores da doença antes da morte e que instituiu os sacramentos, para nos ajudar a santificar os nossos sofrimentos e nos dispor mais perfeitamente a comparecer diante de sua face.

Os sacramentos que recebemos em tempo de doença são três: a Confissão, que podemos receber assim que desejarmos; o Santo Viático e a Extrema Unção, que podemos receber assim que houver perigo de morte. Esta circunstância do perigo de morte deve ser entendida no sentido amplo da palavra. Não é necessário que haja um perigo iminente de morte e que toda a esperança de recuperação esteja perdida; nem mesmo é necessário que o perigo de morte seja certo; basta que seja provável e prudentemente presumido, mesmo quando não há outra enfermidade além da velhice.

Os efeitos dos sacramentos, bem recebidos, correspondem a todas as necessidades, a todos os desejos legítimos dos doentes. Esses remédios divinos purificam a alma de seus pecados e aumentam seu tesouro de graça santificante; fortalecem o doente e o capacitam a suportar seus sofrimentos com paciência, a triunfar sobre os ataques do demônio no último momento e a fazer um generoso sacrifício de sua vida a Deus. Além disso, além dos efeitos que produzem sobre a alma, os sacramentos exercem uma influência salutar sobre o corpo. A extrema-unção, em especial, conforta o doente e alivia os seus sofrimentos; e até mesmo restaura sua saúde, se Deus julgar conveniente para sua salvação.

Os sacramentos são, portanto, para os fiéis, uma ajuda imensa, um benefício inestimável. Não é de se surpreender, portanto, que o inimigo das almas tenha como objetivo principal privá-las de um bem tão grande. Não podendo roubar os sacramentos da Igreja, ele se esforça para mantê-los longe dos doentes, seja fazendo com que eles os negligenciem completamente, seja fazendo com que os recebam tão tarde que percam todos os seus benefícios. Ai de mim! Quantas almas se deixam levar por essa armadilha! Quantas almas, por não receberem prontamente os sacramentos, caem no inferno ou no abismo mais profundo do purgatório!

Para evitar tal desgraça, a primeira preocupação de um cristão, em caso de doença, deve ser pensar nos sacramentos e recebê-los o mais rápido possível. Dizemos que ele deve recebê-los prontamente, enquanto ainda está em posse do uso de suas faculdades, e insistimos nessa circunstância pelas seguintes razões:

(i) Ao receber os sacramentos prontamente, o paciente, ainda com forças suficientes para se preparar adequadamente, obtém todos os frutos deles.

(ii) Ele precisa receber o mais rápido possível a assistência divina, a fim de suportar os seus sofrimentos, vencer a tentação e santificar o tempo precioso da doença.

(iii) É somente recebendo os óleos sagrados a tempo que podemos experimentar os efeitos de uma cura corporal.

E devemos aqui observar um ponto importante: o remédio sacramental da santa unção produz seu efeito sobre o doente da mesma maneira que os remédios médicos. Assemelha-se a um medicamento requintado que auxilia a natureza, na qual ainda se supõe haver um certo vigor; de modo que a extrema-unção não pode exercer uma virtude medicinal quando a natureza tornou-se muito fraca e a vida está quase extinta. Assim, um grande número de pessoas doentes morre porque adia a recepção dos sacramentos até estar em estado terminal; enquanto não é incomum ver aqueles que se apressam em recebê-los se recuperarem totalmente.

Santo Afonso nos fala de um doente que adiou receber a Extrema Unção até que fosse quase tarde demais, pois morreu pouco depois. Deus revelou, diz o santo doutor, que se ele tivesse recebido esse sacramento mais cedo, teria recuperado a saúde. No entanto, o efeito mais precioso dos últimos sacramentos é aquele que eles produzem na alma; eles a purificam dos resquícios do pecado e tiram, ou pelo menos diminuem, sua dívida de punição temporal; eles a fortalecem para suportar o sofrimento de maneira santa; eles a enchem de confiança em Deus e a ajudam a aceitar a morte em união com a de Jesus Cristo.

Capítulo LXIV

Meios de se Evitar o Purgatório - Confiança na Misericórdia de Deus - Palavras de São Francisco de Sales - São Filipe Néri: 'O Paraíso é seu!'

O quinto meio para obter o favor diante do tribunal de Deus é ter grande confiança em sua misericórdia. 'Junto de vós, Senhor, me refugio. Não seja eu confundido para sempre (Sl 30,2). Certamente Aquele que disse ao bom ladrão: 'Hoje estarás comigo no Paraíso', merece bem que tenhamos uma confiança ilimitada nele. São Francisco de Sales confessou que, se considerasse apenas a sua miséria, mereceria o inferno; mas, cheio de humilde confiança na misericórdia de Deus e nos méritos de Jesus Cristo, esperava firmemente compartilhar a felicidade dos eleitos. 'E o que Nosso Senhor faria com sua vida eterna' - disse ele - 'se não fosse dá-la a nós, pobres, pequenas e insignificantes criaturas que somos, que não temos outra esperança senão a sua bondade? Bendito seja Deus! Tenho esta firme confiança no fundo do meu coração, de que viveremos eternamente com Deus. Um dia estaremos todos unidos no Céu. Tenham coragem; em breve estaremos lá!'

'Devemos' - disse ele também - 'morrer entre dois travesseiros: um, da humilde confissão de que não merecemos nada além do inferno; o outro, da confiança total de que Deus, em sua misericórdia, nos dará o paraíso'. Tendo encontrado um dia um senhor que estava cheio de medo excessivo dos julgamentos de Deus, ele lhe disse: 'Aquele que tem um desejo verdadeiro de servir a Deus e evitar o pecado não deve, de forma alguma, permitir-se ser atormentado pelo pensamento da morte e do julgamento. Se eles devem ser temidos, não é com aquele medo que desanima e deprime o vigor da alma, mas com um medo temperado pela confiança e, portanto, salutar. Espere em Deus: quem espera nele nunca será confundido'.

Lemos na Vida de São Filipe Néri que, tendo ido um dia ao Convento de Santa Marta, em Roma, uma das religiosas, chamada Escolástica, desejou falar com ele em particular. Essa senhora estava há muito tempo atormentada por um pensamento de desespero, que não ousava revelar a ninguém; mas, cheia de confiança no santo, resolveu abrir seu coração a ele. Quando ela se aproximou dele, antes que tivesse tempo de dizer uma palavra, o homem de Deus disse-lhe com um sorriso: 'Você está muito enganada, minha filha, ao acreditar que está destinada às chamas eternas: o Paraíso pertence a você!' 'Não consigo acreditar, padre!' - respondeu ela com um profundo suspiro. 'Você não acredita? Isso é loucura da sua parte, você verá. Diga-me, Escolástica, por quem Jesus morreu?' 'Ele morreu pelos pecadores'. 'Então, pois, me diga, você é uma santa? 'Ai de mim!' - respondeu ela chorando, 'sou uma grande pecadora'. 'Portanto, Jesus morreu por você, e certamente foi para abrir o Céu para você. Assim, fica claro que o Céu é seu. Quanto aos seus pecados, você os detesta, não tenho dúvidas'. A boa religiosa ficou comovida com essas palavras. A luz entrou em sua alma, a tentação desapareceu e, a partir daquele momento, aquelas doces palavras - 'o Paraíso é seu!' - a encheram de confiança e alegria.

Capítulo LXV

Meios de se Evitar o Purgatório - A Santa Aceitação da Morte - O Exemplo do Padre Aquitanus - A Prudência de se Informar o Paciente de sua Condição Crítica - Resignação ou Não à Vontade Divina Diante da Morte: Exemplos Diversos - São João da Cruz e a Doce Morte da Alma que Ama a Deus 

O sexto meio de se evitar o Purgatório é a aceitação humilde e submissa da morte como expiação dos nossos pecados: é um ato generoso, pelo qual oferecemos nossa vida a Deus, em união com o sacrifício de Jesus Cristo na Cruz.

Deseja um exemplo dessa santa resignação da vida nas mãos do Criador? Em 2 de dezembro de 1638, morreu em Brisach, na margem direita do Reno, o Padre Jorge Aquitanus, da Companhia de Jesus. Duas vezes ele havia dedicado sua vida ao serviço dos atingidos pela peste. Aconteceu que, em duas ocasiões diferentes, a peste se alastrou com tal fúria que era quase impossível aproximar-se dos doentes sem ser contaminado. Todos fugiram, abandonando os moribundos à sua infeliz sorte. Mas o Padre Aquitanus, entregando sua vida nas mãos de Deus, fez-se servo e apóstolo dos doentes; ocupava-se exclusivamente em aliviar seus sofrimentos e administrar-lhes os sacramentos.

Deus o preservou durante a primeira onda da peste; mas quando ela voltou com violência redobrada, e o homem de Deus foi chamado pela segunda vez a dedicar-se aos enfermos, Deus desta vez aceitou seu sacrifício. Quando, vítima de sua caridade, ele jazia em seu leito de morte, perguntaram-lhe se oferecia de bom grado sua vida a Deus. 'Oh!' - respondeu, cheio de alegria - 'se eu tivesse um milhão de vidas para oferecer a Ele, Ele sabe com que prontidão eu as daria'. Tal ato, como se pode compreender, é muito meritório aos olhos de Deus. Não se assemelha ele ao supremo ato de caridade realizado pelos mártires que morreram por Jesus Cristo e que, como o batismo, apaga todos os pecados e cancela todas as dívidas? 'Ninguém tem maior amor do que este: dar a vida por seus amigos' (Jo 15,13), disse Nosso Senhor.

Para fazer esse ato durante uma enfermidade, é útil - senão necessário - que o paciente compreenda sua condição e saiba que o fim se aproxima. Por isso, é um grande erro esconder-lhe essa verdade por uma falsa delicadeza. 'Devemos' - diz Santo Afonso - 'com prudência informar o doente sobre o perigo que corre'. Se o paciente tenta se enganar com ilusões ou se, em vez de se resignar nas mãos de Deus, pensa apenas na cura, mesmo que receba todos os sacramentos, comete um grave erro.

Lemos na vida da Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento, religiosa de Pamplona, que uma alma foi condenada a um longo purgatório por não ter tido verdadeira submissão à Vontade Divina em seu leito de morte. Era uma jovem muito piedosa, mas quando a mão gelada da morte a tocou na flor da juventude, a natureza recuou, e ela não teve coragem de se entregar às mãos sempre amorosas de seu Pai Celeste – não queria morrer ainda. Morreu, contudo, e a Venerável Madre Francisca, que recebia visitas frequentes das almas do purgatório, soube que essa alma teria de expiar, com longos sofrimentos, sua falta de submissão aos decretos do Criador.

A vida do Venerável Padre Caraffa nos oferece um exemplo mais consolador. O Padre Vicente Caraffa, Geral da Companhia de Jesus, foi chamado para preparar para a morte um jovem nobre que havia sido condenado à execução e que acreditava ter sido condenado injustamente. Morrer na flor da idade, sendo rico, feliz, e quando o futuro sorri para nós, é algo difícil, devemos reconhecer; no entanto, um criminoso que é atormentado pelo remorso de consciência pode se resignar e aceitar a morte como um castigo expiatório por seu crime. Mas o que dizer de uma pessoa inocente?

O padre, portanto, tinha uma tarefa difícil a cumprir. Contudo, assistido pela graça divina, soube lidar com sabedoria com aquele infeliz jovem. Falou com tal unção sobre as faltas de sua vida passada e sobre a necessidade de satisfazer à Justiça Divina, fez-lhe compreender tão profundamente como Deus permitia aquele castigo temporal para o seu bem, que domou a natureza rebelde e transformou completamente os sentimentos de seu coração. O jovem passou a ver sua sentença como uma expiação que lhe obteria o perdão de Deus e subiu ao cadafalso não apenas com resignação, mas com verdadeira alegria cristã. Até o último momento, mesmo sob o machado do carrasco, bendizia a Deus e implorava por sua misericórdia, para grande edificação de todos os que assistiam à sua execução.

No momento em que sua cabeça caiu, o Padre Caraffa viu a sua alma subir triunfante ao Céu. Imediatamente foi até a mãe do jovem para consolá-la, relatando o que havia presenciado. Estava tão tomado de alegria que, ao retornar à sua cela, não cessava de exclamar: 'Ó homem feliz! Ó homem feliz!'  A família desejava mandar celebrar grande número de missas pelo repouso de sua alma. 'É supérfluo' - respondeu o padre - 'devemos antes agradecer a Deus e alegrar-nos, pois declaro-lhes que sua alma nem sequer passou pelo Purgatório'. Outro dia, enquanto trabalhava, ele parou de repente, seu semblante mudou, e ele olhou para o Céu; então foi ouvido exclamando: 'Ó sorte feliz! Ó sorte feliz!' E quando um companheiro lhe pediu explicação sobre essas palavras, respondeu: 'Ah! meu caro padre, era a alma daquele condenado que me apareceu em glória. Ó como foi proveitosa para ele sua resignação!'

A Irmã Maria de São José, uma das quatro primeiras carmelitas que abraçaram a reforma de Santa Teresa, foi uma religiosa de grande virtude. O fim de sua carreira se aproximava, e Nosso Senhor, desejando que a sua esposa fosse recebida no Céu em triunfo ao exalar seu último suspiro, purificou e embelezou sua alma pelos sofrimentos que marcaram o fim de sua vida. Durante os últimos quatro dias que passou na terra, perdeu a fala e os sentidos; foi atormentada por uma agonia terrível e as religiosas ficaram profundamente comovidas ao vê-la naquele estado. A Madre Isabel de São Domingos, priora do convento, aproximou-se da religiosa enferma e sugeriu-lhe que fizesse muitos atos de resignação e total abandono nas mãos de Deus. A Irmã Maria de São José ouviu-a e fez esses atos interiormente, embora não pudesse manifestar nenhum sinal exterior disso.

Morreu nessas santas disposições e, no próprio dia de sua morte, enquanto a Madre Isabel ouvia missa e rezava pelo repouso de sua alma, Nosso Senhor mostrou-lhe a alma de sua fiel esposa coroada de glória, e disse: 'Ela pertence ao número daqueles que seguem o Cordeiro'. A Irmã Maria de São José, por sua vez, agradeceu à Madre Isabel por todo o bem que lhe havia feito na hora da morte. Acrescentou que os atos de resignação que lhe havia sugerido lhe haviam merecido grande glória no Paraíso e a haviam isentado das penas do Purgatório.

Que felicidade é deixar esta vida miserável para entrar na única vida verdadeira e bem-aventurada! Todos nós podemos alcançar essa felicidade, se usarmos os meios que Jesus Cristo nos deu para satisfazer nesta vida e preparar nossas almas perfeitamente para comparecer diante dEle. A alma assim preparada é tomada, na última hora, pela mais doce confiança; ela tem, por assim dizer, um antegosto do Céu - experiências estas descritas por São João da Cruz na sua obra Chama Viva de Amor, ao falar da morte de um santo.

'O amor perfeito de Deus' - diz ele - 'torna a morte agradável, fazendo a alma experimentar a maior doçura naquele momento. A alma que ama é inundada por um torrente de delícias na aproximação daquele instante em que está prestes a entrar na posse plena de seu Amado. À beira de ser libertada desta prisão do corpo, ela já parece contemplar as glórias do Paraíso, e tudo dentro dela se transforma em amor'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)