Este nada, do qual dizemos que nada passa para a conta, é o que agora havemos de examinar.
Pergunto: se nada passa para a conta, parece que também o nada pode ser chamado a Juízo? E se
acaso for chamado, escapará da conta o nada por ser nada? Creio que todos estão dizendo que sim.
Mas é certo, e de fé, que também o nada, por mais qualificado que seja, há de ser chamado a Juízo, e
porque nada passa para a conta, nem o mesmo nada há de passar sem ela, e muito rigorosa.
Ninguém foi
mais qualificado na lei da natureza que Jó, e ninguém mais qualificado na lei da graça que São Paulo: e
que dizia de si um e outro? Jó dizia que nada tinha feito contra Deus: Quia nihil impium fecerim. São Paulo dizia que nada havia na sua consciência, de que ela o acusasse: Nihil mihi conscius sum. E este
nada de Jó, e este nada de São Paulo escaparam porventura da conta e do Juízo? Eles mesmos
confessam, que de nenhum modo. Jó dizia que Deus o tinha posto a questão de tormento, como réu,
para averiguar se o que ele tinha por nada, verdadeiramente era nada: Ut quoeras iniquitatem meam,
ei peccatum meum scruteris, et scias, quia nihil impium fecerim. E São Paulo dizia, que ele se não dava
por justificado do que na sua consciência reputava por nada, porque desse nada não havia ele de ser o
juiz, senão Deus: Nihil mihi conscius sum, sed non in hoc justificatus sum; qui autem judicat me,
Dominus est. Eis aqui quão manifesta e provada verdade é, que nada passa para a conta, pois até do
mesmo nada a há de tomar Deus, e tão estreita.
Mas qual é ou pode ser a razão por que onde dois homens tão grandes, tão qualificados e tão santos,
como Jó e São Paulo, não reconhecem nada de culpa e para esta haja de arguir Deus e lhes pedir conta?
A
primeira razão é da parte de Deus (a qual só pode ignorar quem o não conhece), porque ainda nas
coisas mais interiores nossas, conhece Deus muito mais de nós, do que nós de nós. Quando Cristo na
mesa da última Ceia revelou aos apóstolos, que um deles o havia de entregar: Amen dico vobis, quia
uns vestrum me traditurus est, diz o evangelista, que muito tristes todos com tal notícia, começou cada
um a perguntar: Nunquid ego num, Domine? Porventura, Senhor, sou eu esse? Pedro, André, João e
os demais, exceto Judas, bem sabia cada um de si, que não era o traidor, nem tal coisa lhe passara
pelo pensamento; pois por que se não deixam estar muito seguros na boa fé da sua lealdade, mas
pondo em dúvida o que não duvidavam, pergunta cada um a Cristo se é ele o traidor: Nunquid ego
sum?
Porque ainda que a própria consciência os não acusava, sabiam todos que sabia Cristo mais de
cada um deles, do que eles de si. Eles conheciam-se, como homens, Cristo conhecia-os, como Deus.
Esse foi o erro e engano de São Pedro, que estava à mesma mesa! Pedro disse, que se fosse necessário
daria a vida por Cristo; Cristo pelo contrário disse, que três vezes o havia de negar naquela noite. E
por que foi esta a verdade? Porque Pedro falou pelo que ignorava de si, e Cristo pelo que conhecia
dele. Hoc illi Christus pracnuntiabat qued in se ipse ignorabat, diz Santo Agostinho. E como o juiz
daquele dia conhece mais de nós, do que nós de nós, não é muito que ele nos condene pelo que nós
ignoramos, e que no seu juízo seja culpa, o que no nosso parece inocência.
A segunda razão é da parte nossa porque, assim como Deus sabe tanto de nós, assim nós sabemos
muito pouco de Deus; e por isso as nossas razões não podem alcançar as suas. Um dia, depois de
Cristo entrar triunfante em Jerusalém, vindo de Betânia para a mesma cidade, teve fome; e
como visse ao longe uma figueira verde e copada, encaminhou as passos até ela, para ver se acaso
tinha algum fruto: Si quid forte inveniret in ea. Mas porque não achou mais que folhas, lançou-lhe o
Senhor maldição de que eternamente não desse fruta: Nunquam ex te fructus nascatur in
sempiternum; e no mesmo momento se secou a árvore desde as folhas até as raízes.
É porém muita de
notar neste caso, coma nota São Marcos, que não era tempo de figos: Non enim erat tempus ficorum.
Pois se não era tempo de aquela árvore ter fruto, por que a amaldiçoa Cristo, e a seca, não só para
aquele ano, senão para sempre? Podia haver causa, ou desculpa mais natural de não ter fruto, que não
ser tempo dele? Da árvore a que é comparado o justo, diz Davi, que dará o seu fruto no seu tempo: Et
fructum suum dabit in tempore suo. Pois se é louvor nas melhores árvores darem a seu fruto, como foi
culpa nesta não se achar nela fruto, quando não era tempo? O mesmo evangelista São Marcos diz que
esta sentença de Cristo foi a resposta que o Senhor deu à árvore: Et respondens dixit ei: Jam non
amplius in aeternum ex te fructum quisquam manducet .
Se a sentença de Cristo foi resposta que deu
à árvore, sinal é que a ouviu primeiro, e ela alegou de sua justiça. Reparem aqui os juízes, ou
condenadores, que nem a um tronco irracional e insensível condena Deus sem o ouvir. Mas que é a
que alegou a árvore? Alegou o mesmo texto do evangelista; e estava. como dizendo maduramente ao
Senhor: Eu bem tomara estar carregada de frutos maduros e sazonados, para os oferecer a meu
Criador; porém a causa e impedimento natural de me achar sem eles, é por não ser ainda chegado o
tempo: Non erat tempus ficorum. E que sem embargo desta réplica, ao parecer tão justificada, a
condenasse Cristo, e com condenação eterna: in sempiternum!
Assim foi. Mas com que fundamento,
ou justiça? Entre todos os expositores da Escritura, mais letrados e de maior engenho, nenhum houve
até agora que desse satisfação cabal a esta dúvida. E a razão de se lhe não achar razão, é porque as
razões dos homens não alcançaram as de Deus, e onde não sabe descobrir culpa o juízo humano, a
pode achar o divino. Por que não compreende o homem a Deus? Porque Deus é incompreensível. Pois
também por isso os juízos humanos não compreendem os divinos, porque os divinos são
incompreensíveis: Quam incomprehensibilia judicia ejus!
Sobre estes dois princípios tão manifestos, um da ciência de Deus para conosco, outro da nossa
ignorância para com Deus, fica satisfeita e emudecida toda a admiração de que Deus haja de julgar até
o que reputamos por nada, e nesse mesmo nada haja de arguir e achar culpas de que pedir e tomar
conta no dia do Juízo. Só resta um escrúpulo, que ainda não acaba de se aquietar, e não menos que
acerca da justiça com que Deus nos haja de castigar pelo que não conhecemos. É verdade que Deus
sabe de nós o que nós ignoramos de nós, mas essa mesma ignorância nossa não só parece que nos
desculpa, mas nos livra de ser pecado o que não conhecemos como tal. Sem vontade não há culpa,
sem conhecimento não há vontade; como logo pode ser pecado, e castigado como pecado o que eu
não conheço?
Bem tinha decifrado esta teologia o autor do nosso provérbio: 'Quem ignorantemente
peca, ignorantemente vai ao inferno'. Uma só ignorância escusa do pecado, que é a invencível. Mas
esta poucas vezes se acha. Os demais não só pecam no pecado, mas na ignorância com que o não
conhecem. Não pecaram gravissimamente os judeus na morte de Cristo? E contudo diz São Pedro que
eles e os seus príncipes o fizeram ignorantemente: Scio quia per ignorantiam fecistis, sicut et
Principes vestri . E o mesmo Cristo quando disse: Pater, ignosce illis, non enim sciunt quid faciunt;
justamente alegou por eles a ignorância, e pediu para eles o perdão.
Se a ignorância os livrara do
pecado, não tinham necessidade de perdão; mas pediu-lhes o Senhor o perdão, quando lhe confessou a
ignorância, porque tão fora estiveram de ficar isentos do pecado, pela ignorância com que o
cometeram, que antes a mesma ignorância lhes acrescentou um pecado sobre outro pecado. Um
pecado, porque tiraram a vida. ao Messias não conhecido, e outro pecado, porque o não conheceram,
tendo tanta obrigação como evidência para o conhecer.
Isto mesmo é o que se vê hoje entre os que conhecem e adoram Cristo; e não por acontecimento raro,
senão comumente; nem só nas vidas, serão também nas mortes.
Quantos pecados vemos, e quão
grandes, nem emendados na vida, nem confessados na morte, os quais não só Deus, mas todo o
mundo está conhecendo, e só os mesmos que os cometem os não conhecem! Não os conhecem,
porque a largueza e relaxação da vida escurece a consciência e cega a alma; não os conhecem, porque
o amor-próprio sempre escusa e aligeira o que nos condena; não os conhecem, porque os interesses e
conveniências deste mundo trazem consigo o esquecimento do outro; não os conhecem, porque os não
querem examinar, nem consultar com quem deviam; não os conhecem, finalmente, porque com
ignorância afetada os não querem conhecer para os não emendar: Noluit inteligere, ut bene ageret,
vede agora se castigará Deus justamente no dia do Juízo os pecados não conhecidos, se por cometidos
merecem um castigo, e por não conhecidos outro maior?
Porém se até aquele dia estarão
desconhecidos e sepultados nas trevas desta maliciosa e ignorante ignorância, então ressuscitarão,
sairão à luz, porque o mesmo juiz universal, como diz São Paulo, com os resplendores de sua presença
alumiará as consciências de todos os homens, e descobrirá manifestamente a cada um tudo o que
nelas estava escondido e às escuras: Quoadusque veniat Domínus, qui et illuminabit abscondita
tenebrarum. Por meio desta luz, desenganadas então, e assombradas as mesmas consciências do muito
que verão sair debaixo do nada, que não viam ou não quiseram ver, nenhuma terá que estranhar, nem
replicar à sentença, ainda que seja de eterna condenação, e todas dirão convencidas: Justus es,
Domine, et rectum judicium tuum.
(Excertos da obra 'Sermões', do Pe. Antônio Vieira)