PARTE I
No Paraíso há muitos santos que nunca deram esmolas na terra: a sua pobreza por si só os justificava. Há muitos santos que nunca mortificaram o seu corpo com jejuns, nem usaram cilícios: as suas enfermidades corporais os desculpavam. Há também muitos santos que não eram virgens: a sua vocação era outra. Mas no Paraíso não há nenhum santo que não tenha sido humilde.
1. Deus expulsou os Anjos do Paraíso por causa da sua soberba; portanto, como podemos pretender entrar nele, se não nos mantivermos num estado de humildade? Sem humildade, diz São Pedro Damião [Sermão 45], nem a própria Virgem Maria, com a sua incomparável virgindade, poderia ter entrado na glória de Cristo; e nós devemos convencer-nos desta verdade: embora destituídos de algumas das outras virtudes, podemos ser salvos, mas nunca sem humildade. Há pessoas que se lisonjeiam de ter feito muito conservando a castidade imaculada, e realmente a castidade é um belo adorno; mas como diz o angélico São Tomás: 'Falando absolutamente, a humildade excede a virgindade' [4 dist. qu. xxxiii, art. 3 ad 6; et 22, qu. clxi, art. 5]
Muitas vezes estudamos diligentemente para nos precavermos e corrigirmos dos vícios da concupiscência que pertencem a uma natureza sensual e animal, e este conflito interior que o corpo trava adversus carnem [Gl 5,17] é verdadeiramente um espetáculo digno de Deus e dos seus Anjos. Mas, infelizmente, quão raramente usamos esta diligência e cautela para vencer os vícios espirituais, dos quais o orgulho é o primeiro e o maior de todos e que, por si só, bastou para transformar um Anjo num demônio!
2. Jesus Cristo chama-nos a todos à sua escola para aprendermos, não a fazer milagres nem a maravilhar o mundo com empreendimentos maravilhosos, mas a sermos humildes de coração. 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração'. Ele não chamou todos para serem doutores, pregadores ou sacerdotes, nem concedeu a todos o dom de restituir a vista aos cegos, curar os doentes, ressuscitar os mortos ou expulsar os demônios, mas a todos disse: 'Aprendei de Mim a ser humildes de coração' e a todos Ele deu o poder de aprender a humildade dEle. Inúmeras coisas são dignas de serem imitadas no Filho de Deus encarnado, mas Ele só nos pede que imitemos a sua humildade. E então? Devemos supor que todos os tesouros da Sabedoria Divina que estavam em Cristo devem ser reduzidos à virtude da humildade? 'É certamente assim' - responde Santo Agostinho. A humildade contém todas as coisas, porque nessa virtude está a verdade; portanto, Deus também deve habitar nela, pois Ele é a verdade.
O Salvador poderia ter dito: 'Aprendei de mim a ser castos, humildes, prudentes, justos, sábios, abstêmios...'. Mas Ele só disse: 'Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração' e só na humildade Ele inclui todas as coisas, porque, como diz Santo Tomás, 'a humildade adquirida é, em certo sentido, o maior bem'. Por isso, quem possui esta virtude pode dizer-se que possui todas as virtudes, no que diz respeito à sua disposição próxima, e quem carece dela, carece de todas.
3. Lendo as obras de Santo Agostinho, encontramos em todas elas que sua única idéia era a exaltação de Deus acima da criatura, tanto quanto possível, e tanto quanto possível a humilde sujeição da criatura a Deus. O reconhecimento desta verdade deveria encontrar lugar em cada espírito cristão, estabelecendo-se - segundo a agudeza e a penetração da nossa inteligência - uma conceção sublime de Deus e uma conceção humilde e vil da criatura. Mas isso só se consegue com humildade.
A humildade é, na realidade, uma confissão da grandeza de Deus, que, depois de seu auto-aniquilamento voluntário, foi exaltado e glorificado; por isso, a Sagrada Escritura diz: 'porque só a Deus pertence a onipotência, e é somente pelos humildes que ele é verdadeiramente honrado' [Eclo 3, 21].
Foi por esta razão que Deus se comprometeu a exaltar os humildes, e continuamente derrama novas graças sobre eles em troca da glória que Ele constantemente recebe deles. Por isso, a palavra inspirada nos lembra novamente: 'Sê humilde, e perante Deus acharás misericórdia' [Eclo 3, 20]. O homem mais humilde honra mais a Deus por sua humildade, e tem a recompensa de ser mais glorificado por Deus, que disse: 'Quem me honrar, Eu glorificá-lo-ei' [Eclo 3,20]. Ah se pudéssemos ver quão grande é a glória dos humildes no Céu!
4. A humildade é uma virtude que pertence essencialmente a Cristo, não apenas como homem, mas mais especialmente como Deus, porque para Deus ser bom, santo e misericordioso não é virtude, mas natureza, e a humildade é apenas uma virtude. Deus não pode exaltar-se acima do que é, no seu altíssimo Ser, nem pode aumentar a sua vasta e infinita grandeza; mas pode humilhar-se, como de fato se humilhou e rebaixou. 'Humilhou-se e esvaziou-se a si mesmo' [Fp 2,7-8], revelando-se-nos, pela sua humildade, como o Senhor de todas as virtudes, o vencedor do mundo, da morte, do inferno e do pecado.
Nenhum exemplo maior de humildade pode ser dado do que o do Filho Único de Deus quando 'o Verbo se fez Carne'. Nada pode ser mais sublime do que as palavras do Evangelho de São João: 'No princípio era o Verbo'. E nenhuma humilhação pode ser mais profunda do que a que se segue: 'E o Verbo se fez carne'. Por esta união do Criador com a criatura, o mais alto foi unido ao mais baixo. Jesus Cristo resumiu toda a sua doutrina celeste na humildade e, antes de a ensinar, quis praticá-la perfeitamente. Como diz Santo Agostinho: 'Ele não estava disposto a ensinar o que Ele mesmo não era, Ele não estava disposto a ordenar o que Ele mesmo não praticava' [Lib. de sancta virginit. c. xxxvi].
Mas com que objetivo fez Ele tudo isto, senão para que todos os seus seguidores aprendessem a humildade através de um exemplo prático? Ele é o nosso Mestre, e nós somos os seus discípulos; mas que proveito retiramos dos seus ensinamentos, que são práticos e não teóricos? Que vergonha seria para alguém, depois de ter estudado durante muitos anos numa escola de arte ou de ciência, sob o ensino de excelentes mestres, se continuasse a ser absolutamente ignorante! A minha vergonha é realmente grande, porque vivi tantos anos na escola de Jesus Cristo e, no entanto, não aprendi nada daquela santa humildade que Ele procurou tão ardentemente ensinar-me. 'Tende piedade de mim segundo a vossa Palavra. Vós sois bom, e na vossa bondade ensinai-me as vossas justificações. Dai-me entendimento, e aprenderei os vossos mandamentos' [Sl 118, 58. 68.73].
5. Há uma espécie de humildade que é de conselho e de perfeição, como aquela que deseja e procura o desprezo dos outros; mas há também uma humildade que é de necessidade e de preceito, sem a qual, diz Cristo, não podemos entrar no reino dos Céus: 'Não entrarás no reino dos Céus'. E esta consiste em não nos estimarmos e em não querermos ser estimados pelos outros acima do que realmente somos. Ninguém pode negar esta verdade, que a humildade é essencial para todos aqueles que desejam ser salvos: 'Ninguém chega ao reino dos Céus senão pela humildade' - diz Santo Agostinho [Lib. de Salut. cap. xxxii].
Mas, pergunto eu, que humildade é essa que é tão necessária? Quando nos é dito que a fé e a esperança são necessárias, também nos é explicado o que devemos crer e esperar. Do mesmo modo, quando se diz que a humildade é necessária, em que deve consistir a sua prática, senão na mais baixa opinião de nós mesmos? É neste sentido moral que a humildade do coração foi explicada pelos pais da Igreja. Mas posso dizer com verdade que possuo essa humildade que reconheço como necessária e obrigatória? Que cuidado ou solicitude demonstro para a adquirir? Quando uma virtude é de preceito, também o é a sua prática, como ensina Santo Tomás. E, portanto, como há uma humildade que é de preceito, 'ela tem a sua regra na mente, isto é, que não se deve estimar a si mesmo como estando acima daquilo que realmente se é' [22, quo xvi, 2, art. 6].
Como e quando pratico os seus atos, reconhecendo e confessando a minha indignidade diante de Deus? A oração frequente de Santo Agostinho era a seguinte: Noscam te, noscam me - 'Que eu Te conheça, que eu me conheça a mim mesmo!' E com esta oração ele pedia a humildade, que não é outra coisa senão um verdadeiro conhecimento de Deus e de si mesmo. Confessar que Deus é o que é, o Onipotente: 'Grande é o Senhor e muito digno de ser louvado' [Sl 47,2] e declarar que não passamos do nada perante Ele: 'A minha substância é como nada diante de Vós' [Sl 38,6] - isto é ser humilde.
6. Não há desculpa válida para não ser humilde, porque temos sempre, dentro e fora de nós, razões abundantes para a humildade: 'E a tua humilhação estará no meio de ti' [Mq 6,14]. É o Espírito Santo que nos envia esta advertência pela boca do seu profeta Miqueias. Quando consideramos bem o que somos no corpo e o que somos na alma, parece-me muito fácil humilharmo-nos, e mesmo muito difícil sermos orgulhosos. Para ser humilde, basta que eu alimente dentro de mim aquele sentimento correto que pertence a todo o homem que é honrado aos olhos do mundo, de se contentar com o que é seu sem privar injustamente o nosso próximo do que é dele. Portanto, como não tenho nada de meu a não ser o meu nada, é suficiente para a humildade que eu me contente com esse nada. Mas se sou orgulhoso, torno-me como um ladrão, apropriando-me do que não é meu, mas de Deus. E, sem dúvida, é maior pecado roubar a Deus o que lhe pertence do que roubar ao homem o que é do homem.
Para sermos humildes, ouçamos a revelação do Espírito Santo, que é infalíve: 'Eis que tu não és nada, e a tua obra é do que não tem existência'. Mas quem está realmente convencido do seu próprio nada? É por esta razão que na Sagrada Escritura é dito: 'Todo homem é um mentiroso'. Pois não há homem que, de tempos a tempos, não alimente uma incrível autoestima e forme uma falsa opinião sobre o seu ser, ou ter, ou alcançar algo mais do que é possível ao seu próprio nada.
Para sabermos o que é, na realidade, o nosso corpo, basta-nos olhar para o túmulo, porque, pelo que lá vemos, temos de concluir inevitavelmente que, tal como acontece com esses corpos decaídos, assim será em breve conosco. E, com essa reflexão, devo dizer a mim mesmo: 'Por que é que a terra e as cinzas são orgulhosas?' Eis a glória do homem, porque a sua glória é esterco e vermes; hoje é elevado, e amanhã não será encontrado, porque voltou à sua terra, e o seu pensamento é reduzido a nada [1 Mc 2, 62 - 63]. Ó minha alma, sem ir mais longe para procurar a verdade, entra em pensamento no coração da tua morada que é o teu corpo! 'Entra e fecha-te no meio da tua casa'. Entra e olha bem ao teu redor, e não encontrarás nada além de corrupção. 'Vai ao barro e pisa-o'. Para onde quer que te voltes, não verás nada além de putrefação acontecendo.
7. Para sabermos o que realmente somos, examinemos a nossa própria consciência. E, encontrando nela apenas a nossa própria malícia e a capacidade de cometer toda a espécie de iniquidade, não diremos todos a nós mesmos: 'Por que te glorias na malícia, tu que és poderoso na iniquidade?' Que tens tu, alma minha, para te glorificares? Tu, que és um vaso de iniquidade e um poço de pecado e vício? Não é toda essa autoglorificação - quer seja pelos teus dons corporais ou espirituais, quer seja pelo que buscas construir para ti uma reputação - senão vaidade e engano?
Ó como é verdade que todo homem é um mentiroso, pois é preciso ter apenas um pouco de orgulho para ser um mentiroso, e não há ninguém que não tenha herdado, por meio de nossos primeiros pais, algo desse orgulho que eles aprenderam ao ouvir a promessa enganosa da serpente: 'E sereis como deuses' [Gn 3,5]. Também se pode dizer que todo o homem é mentiroso neste sentido - que não raro preza mais a Terra do que o Céu, mais o corpo do que a alma, mais as coisas temporais do que as eternas, mais a criatura do que o Criador - e é por isso que Davi exclama: 'Ó filhos dos homens, porque amais a vaidade e procurais a mentira?' [Sl 4,3] e 'Os homens não passam de um sopro, e de uma mentira os filhos dos homens' [Sl 61,10].
Mas, na realidade, a mentira reside essencialmente no orgulho que nos faz estimarmo-nos acima do que somos. Quem se considera mais do que o nada está cheio de orgulho e é um mentiroso. É a afirmação de São Paulo: 'Se alguém se julga alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo' [Gl 6,3]. Sempre que me estimo a mim mesmo, preferindo-me aos outros, engano-me com esta auto-adulação e cometo um erro contra a verdade.
8. Basta que uma virgem tenha caído uma unica vez para que perca a virgindade; e basta que uma esposa tenha sido infiel apenas uma vez para que seja perpetuamente desonrada; mesmo que depois ela possa realizar muitas obras nobres, ainda assim sua desonra nunca poderá ser apagada, e o aguilhão e a dolorosa lembrança de sua vergonha e culpa devem permanecer para sempre em sua consciência.
E assim, mesmo que em todo o curso da minha vida eu tenha cometido apenas um pecado, o fato permanecerá sempre que eu pequei e cometi a pior e mais ignominiosa ação. E mesmo que eu viva uma vida de penitência contínua, e esteja certo do perdão de Deus, e que o pecado já não exista na minha consciência, ainda assim terei sempre motivo de vergonha e humilhação pelo fato de ter pecado: 'O meu pecado está sempre diante de mim; pequei e fiz o que era mau aos vossos olhos' [Sl 50, 5-6].
9. Que diríamos se víssemos o carrasco público a andar pelas ruas e a pretender ser estimado, respeitado e honrado? Consideraríamos sua desfaçatez tão insuportável quanto sua vocação é infame. E tu, minha alma, cada vez que pecaste mortalmente, foste como um carrasco, pregando na Cruz o Filho de Deus! Assim, São Paulo descreve os pecadores como 'crucificando novamente para si mesmos o Filho de Deus' [Hb 6,6].
E com este caráter de infâmia que trazes dentro de ti, ainda te atreves a exigir honra e estima? Ainda terás a coragem de dizer: 'Insisto em ser honrado e respeitado, não serei menosprezado'? Por mais que o orgulho me tente a vangloriar-me e a procurar estima, tenho motivos de sobra para corar de vergonha quando ouço a voz da consciência a reprovar-me pela minha ignomínia e pelos meus pecados, e a reprovar-me por ser um pérfido e ingrato rebelde contra Deus, um traidor e um carrasco que cooperou na Paixão e Morte de Jesus Cristo: 'Continuamente estou envergonhado, a confusão cobre-me a face, por causa dos insultos e ultrajes de um inimigo cheio de rancor.' [Sl 43, 16-17].
10. Temos de reconhecer que uma das cinco razões pelas quais não vivemos nesta humildade necessária é o fato de não temermos a justiça de Deus. Vede um criminoso, como ele se apresenta humildemente diante do juiz, com os olhos baixos, o rosto pálido e a cabeça inclinada: ele sabe que foi condenado por crimes atrozes; sabe que, com isso, mereceu a pena capital e pode, com justiça, ser condenado à forca, e por isso teme, e seu temor o mantém humilde, expulsando de seu cérebro todo pensamento de ambição e vanglória. Assim, a alma, consciente dos numerosos pecados que cometeu, consciente de que mereceu de fato o Inferno, e que de um momento para o outro pode ser condenada ao Inferno pela justiça Divina, teme a ira de Deus, e este temor faz com que a alma permaneça humilde perante Ele; e se não sente esta humildade, só pode ser porque falta o temor de Deus: 'Não há temor de Deus diante de seus olhos' [Sl 35,2]. Assim clamai a Deus de coração: 'estremeço pois vossos decretos inspiram-me temor' [Sl 118,120].
E esse santo temor, que é o princípio da sabedoria, será também o princípio da verdadeira humildade; pois, como diz a Palavra inspirada, a humildade e a sabedoria são companheiras inseparáveis: 'Onde está a humildade, aí também está a sabedoria' [Pv 11,2].
('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)