terça-feira, 25 de março de 2025

ORAÇÃO PARA ANTES DA COMUNHÃO


Deus eterno e todo-poderoso, eis que me aproximo do sacramento do vosso Filho único, Nosso Senhor Jesus Cristo. Impuro, venho à fonte da misericórdia; cego, à luz da eterna claridade; pobre e indigente, ao Senhor do céu e da terra. Imploro, pois, a abundância da vossa liberalidade, para que vos digneis curar a minha fraqueza, lavar as minhas manchas, iluminar a minha cegueira, enriquecer a minha pobreza, vestir a minha nudez.

Que eu receba o Pão dos Anjos, o Rei dos reis e o Senhor dos senhores, com o respeito e a humildade, a contrição e a devoção, a pureza e a fé, o propósito e a intenção que convêm à salvação da minha alma.

Dai-me que receba não só o sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, mas também o seu efeito e a sua força. Ó Deus de mansidão, fazei-me acolher com tais disposições o Corpo que o vosso Filho único, Nosso Senhor Jesus Cristo, recebeu da Virgem Maria, que seja incorporado ao seu Corpo Místico e contado entre os seus membros. 

Ó Pai cheio de amor, fazei que, recebendo agora o vosso Filho sob o véu do sacramento, possa na eternidade contemplá-la face a face. Vós, que viveis e reinais na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.

(São Tomás de Aquino)

segunda-feira, 24 de março de 2025

domingo, 23 de março de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'O Senhor é bondoso e compassivo' (Sl 102)

Primeira Leitura (Ex 3,1-8a.13-15) - Segunda Leitura (1Cor 10,1-6.10-12) -  Evangelho (Lc 13,1-9)

  23/03/2025 - TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA

A FIGUEIRA ESTÉRIL

Neste Terceiro Domingo da Quaresma, o Evangelho nos exorta a viver contínua e decididamente o caminho da plena conversão. E a busca da conversão exige de nós o afastamento incondicional do pecado e a via da santificação plena, como receptáculos abertos a toda a graça de Deus. Entre a retidão de nossos propósitos e a misericórdia do Pai, encontra-se o nosso lugar no portal da eternidade.

E Jesus nos fala primeiro que a grande tragédia humana é o pecado: 'Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?' (Lc 13,2). Jesus falava dos galileus que tinham sido assassinados no templo por ocasião da Páscoa, a mando de Pilatos. Ele mesmo responderia que não, da mesma forma que não eram mais pecadores as 18 pobres vítimas da queda da torre de Siloé. A justiça divina não é amalgamada pelo castigo em si, mas pela resistência persistente e obstinada aos tesouros da graça. Não são desgraçados os que morrem em tragédias humanas, são miseráveis os que perdem a alma e a vida eterna consumidos na tragédia pessoal de apenas querer ganhar o mundo. 'Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo' (Lc 13, 5).

Jesus ratifica estes ensinamentos com a parábola da figueira estéril, que não produz bons frutos, ano após ano, símbolo da alma fechada a todas as graças recebidas. Mas o Senhor busca incessantemente a volta da ovelha desgarrada e a espera e a consome de favores e bênçãos, porque o 'Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo' (Sl 102). É como o vinhateiro que nunca descuida da planta bruta, cultiva o solo, dispõe o adubo, rega a terra, acompanha ciosa e pacientemente os seus primeiros frutos. No nosso caminho de vida espiritual, o vinhateiro é o próprio Cristo, é Nossa Senhora, é a Santa Igreja, são os santos intercessores, é o nosso próprio Anjo da Guarda. Um derramamento abundante de graças à espera de nosso arrependimento sincero, de nossa dor ao pecado, de nossa conversão definitiva.

Mas o Evangelho termina também com uma determinação explícita: 'Se (a figueira) não der (fruto), então tu a cortarás’ (Lc 13,9). Assim, uma vez desprezados todos os limites da graça e tornados vãos todos os esforços do vinhateiro, a figueira torna-se inútil e a tragédia humana se consome na perda eterna das almas criadas para a glória de Deus.

sábado, 22 de março de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVIII)

 

Capítulo XCVIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Estímulo à Devoção e Probabilidade do Purgatório - Meios de se Evitar o Purgatório - Conselho de Santa Catarina de Gênova

Se os santos religiosos passam pelo Purgatório, embora não fiquem retidos nele, não devemos temer que não só passemos por ele, mas também permaneçamos por mais ou menos tempo? Podemos viver numa segurança que seria, para dizer o mínimo, muito imprudente? A nossa fé e a nossa consciência dizem-nos que o nosso medo do Purgatório é bem fundamentado. Vou ainda mais longe, caro leitor, e digo que, com um pouco de reflexão, tu mesmo deves reconhecer que é muito provável, e quase certo, que irás para o Purgatório. Não é verdade que, ao deixar esta terra, a tua alma entrará numa dessas três moradas que a fé nos indica: Inferno, Céu ou Purgatório? Ireis para o Inferno? Não é provável, porque tendes horror ao pecado mortal, e por nada no mundo o cometeríeis, nem o teríeis na consciência depois de o terdes cometido. Ireis para o Céu? Respondeis imediatamente que vos julgais indignos de tal favor. Resta, então, o Purgatório; e deveis reconhecer que é muito provável, quase certo, que ireis para esse lugar de expiação.

Ao colocar esta grave verdade diante dos vossos olhos, não penseis, caro leitor, que queremos assustar-vos, ou tirar-vos toda a esperança de entrar no Céu sem o Purgatório. Pelo contrário, esta esperança deve permanecer sempre profundamente impressa nos nossos corações, pois é o espírito de Jesus Cristo, que não deseja de modo algum que os seus discípulos tenham necessidade de uma expiação futura. Ele até instituiu sacramentos e estabeleceu todos os tipos de meios para nos ajudar a fazer plena satisfação neste mundo. Mas esses meios são muitas vezes negligenciados; e é especialmente por um temor salutar que somos estimulados a fazer uso deles.

Ora, quais são os meios que devemos empregar para evitar, ou pelo menos abreviar, o nosso Purgatório e atenuar o seu rigor? São, evidentemente, os exercícios e as boas obras que mais nos ajudam a satisfazer as nossas faltas neste mundo e a encontrar misericórdia diante de Deus, a saber: a devoção à Santíssima Virgem Maria e a fidelidade no uso do seu escapulário; a caridade para com os vivos e os mortos; a mortificação e a obediência; a piedosa recepção dos sacramentos, especialmente quando se aproxima a morte; a confiança na Divina Misericórdia; e, finalmente, a santa aceitação da morte em união com a morte de Jesus na cruz.

Estes meios são suficientemente poderosos para nos preservar do Purgatório, mas é preciso fazer uso deles. Ora, para empregá-los seriamente e com perseverança, uma condição é necessária: formar uma firme resolução de satisfazer [o purgatório pessoal] neste mundo e não no outro. Essa resolução deve ser baseada na fé, que nos ensina quão fácil é a satisfação nesta vida, quão terrível é o Purgatório. Enquanto estiveres no caminho com o teu adversário, diz Jesus Cristo, faze um acordo com ele, para que, porventura, o teu adversário não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e sejas lançado na prisão. Em verdade vos digo que não sairás dali até que pagueis o último ceitil (Mt 5,25).

Reconciliarmo-nos com o nosso adversário no caminho significa, na boca de Nosso Senhor, apaziguar a Justiça Divina, e satisfazermo-nos no caminho da vida, antes de chegarmos àquele fim imutável, àquela eternidade onde toda a penitência é impossível, e onde teremos de nos submeter a todos os rigores da Justiça. Não é este conselho do nosso Divino Salvador muito sábio?

Poderemos comparecer diante do tribunal de Deus, carregados de uma dívida enorme, que poderíamos tão facilmente ter saldado com algumas obras de penitência, e que depois teremos de pagar com anos de tormento? 'Aquele que se purifica de suas faltas na vida presente' - diz Santa Catarina de Gênova - 'satisfaz com um centavo uma dívida de mil ducados; e aquele que espera até a outra vida para saldar suas dívidas, consente em pagar mil ducados por aquilo que antes poderia ter pago com um centavo'. Devemos, portanto, começar com a firme e eficaz resolução de dar satisfação neste mundo; essa é a pedra fundamental. Uma vez lançado esse alicerce, devemos empregar todos os meios acima enumerados.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 21 de março de 2025

SOBRE A ATIVIDADE HUMANA NO MUNDO

Por seu trabalho e inteligência, o homem procurou sempre desenvolver mais a sua vida. Hoje em dia, porém, ajudado antes de tudo pela ciência e pela técnica, ele estendeu continuamente o seu domínio sobre quase toda a natureza; e, principalmente, graças aos meios de transporte de toda espécie entre as nações, a família humana pouco a pouco se regulariza e se constitui como uma só comunidade no mundo inteiro. Por isso, muitos bens que o homem esperava antigamente obter sobretudo de forças superiores, hoje os conseguem pelos seus próprios meios.

Diante deste enorme esforço, que já penetra em toda a humanidade, surgem muitas perguntas entre os homens. Qual é o sentido e o valor desta atividade? Como todas essas coisas devem ser usadas? Quais são esses esforços, sejam eles individuais ou coletivos? A Igreja, guardiã do depósito da palavra de Deus, que é a fonte dos seus princípios de ordem religiosa e moral, embora ainda não tenha uma resposta imediata para todos os problemas, deseja no entanto unir a luz da revelação à competência de todos, para iluminar o caminho no qual a humanidade entrou recentemente.

Para os fiéis é pacífico que a atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decorrer dos séculos, buscaram melhorar suas condições de vida, consideradas em si mesmo, correspondem ao plano de Deus. Com efeito, o homem, criado à imagem de Deus, recebeu a missão de dominar a terra com tudo o que ela contém e de governar o mundo na justiça e na santidade, isto é, confirmando a Deus como Criador de todas as coisas, orientando para ele o seu ser e todo o universo; assim, com todas as coisas impostas ao homem, o nome de Deus seja glorificado na terra inteira.

Isto diz respeito também aos trabalhos cotidianos. Pois os homens e as mulheres que, ao procurarem o sustento para si e suas famílias, exercem suas atividades de maneira a bem servir à sociedade, têm razão para ver no seu trabalho um prolongamento da obra do Criador, um serviço aos seus irmãos e uma contribuição pessoal para a realização do plano de Deus na história.

Portanto, bem longe de pensar que as obras produzidas pelo talento e esforço dos homens se opõem ao poder de Deus, ou consideram a criatura racional como rival do Criador, os cristãos, pelo contrário, são reforçados de que as vitórias do gênero humano são um sinal da grandeza de Deus e fruto dos seus inefáveis ​​​​desígnios. Quanto mais, porém, cresce o poder dos homens, tanto mais aumenta a sua responsabilidade, seja pessoal seja comunitária. Conclui-se, pois, que a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo nem os leva a negligenciar o bem de seus semelhantes; mas, antes, os impele a sentir esta obrigação como um verdadeiro dever.

(Excertos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes)

quinta-feira, 20 de março de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (IX)

P. 19 - Esta é, de fato, uma prescrição completa da bondade Divina; mas há algumas partes dela que precisam ser explicadas; primeiro, como as Escrituras nos apresentam que Deus dá a toda a humanidade as graças aqui mencionadas com vista à sua salvação?

Isto é manifesto a partir de três fortes razões registadas nas Escrituras: Primeiro, as Escrituras asseguram-nos que Deus quer que todos os homens sejam salvos, e que nenhum se perca. Assim, 'por minha vida' - diz o Senhor Deus - 'não quero a morte do ímpio, mas que o ímpio se converta do seu caminho e viva' (Ez 33,11). Assim declara nosso Salvador: 'Não é da vontade de nosso Pai, que está nos céus, que um só destes pequeninos pereça' (Mt 18,14). 'Deus tem paciência por vós' - diz São Pedro - 'não querendo que nenhum pereça, mas que todos se arrependam' (2Pd 3,9). E São Paulo afirma-o expressamente: 'Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade' (1Tm 2,4). Ele quer que todos os homens se salvem e que cheguem ao conhecimento da verdade, como condição essencial da salvação. Ora, desta vontade sincera de Deus para a salvação de todos os homens, segue-se como consequência necessária que Ele dá a todos os homens tais ajudas da sua graça que são suficientes, se eles fizerem um bom uso delas, para levá-los tanto ao conhecimento da verdade quanto à salvação; pois como eles são absolutamente incapazes de dar qualquer passo em direção a este fim sem a sua ajuda, se Ele quer este propósito, Ele deve também aplicar os meios de tal maneira que, se o fim não for realizado, não é devido a Ele. Se Deus não fizesse isso, não poderíamos concebê-lo afirmando que Ele quer que todos os homens sejam salvos e que não quer a morte dos ímpios.

Em segundo lugar, as Escrituras declaram que Jesus Cristo morreu para a redenção de toda a humanidade, sem exceção. Assim, 'Jesus Cristo deu-se a si mesmo em redenção por todos' (1Tm 2,6). 'Se um morreu por todos, logo todos estão mortos, e Cristo morreu por todos' (2CorR 5,15). 'Esperamos no Deus vivo, que é o Salvador de todos os homens, principalmente dos fiéis' (1Tm 4,10). 'Se alguém pecar, temos um advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o justo, e Ele é a propiciação pelos nossos pecados; e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo' (1Jo 2,1). Por isso, São João Batista disse dele: 'Eis o Cordeiro de Deus, eis Aquele que tira os pecados do mundo' (Jo 1,29). E Ele mesmo diz: 'O pão que Eu darei é a Minha carne, para a vida do mundo' (Jo 6,52). E mais: 'O Filho do Homem veio buscar e salvar o que estava perdido' (Lc 19,10) e 'Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo' (Jo 12,47). São Paulo diz ainda: 'Uma palavra fiel e digna de toda a aceitação, que Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores' (1Tm 1,15). Mas como todos estavam perdidos, como todos, sem exceção, eram pecadores, portanto Jesus Cristo veio para procurar e salvar todos. Agora, disto também se segue, como uma consequência necessária, que todos, sem exceção, devem receber, em algum grau ou outro, tais frutos e benefícios da sua redenção, seja direta ou indiretamente, mediata ou imediatamente, como são suficientes para obter sua salvação, se eles cooperarem com eles. Se alguém, então, não for realmente salvo, isso não pode ser devido a qualquer deficiência da parte de Jesus Cristo, mas ao seu próprio abuso das suas graças; pois seria trivial dizer que Ele é o Salvador de todos, se todos não recebessem os frutos da sua redenção com vistas à sua salvação.

Em terceiro lugar, as Escrituras asseguram-nos que todos os homens recebem efetivamente de Deus, no grau, maneira e proporção que Ele considera adequados, de acordo com o seu estado atual, tais ajudas das suas graças que lhes permitiriam assegurar a sua salvação, se cooperassem com elas. Pois, em primeiro lugar, Deus Todo-Poderoso, por seu sincero desejo pela salvação de todos, 'enviou o seu Filho ao mundo, para que o mundo pudesse ser salvo por Ele' (Jo 3,17). São Paulo expressa claramente este argumento: 'Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, mas o entregou por todos nós, como não nos deu também com ele todas as coisas?' (Rm 8,32); pelo menos todas as coisas absolutamente necessárias para a nossa salvação, e sem as quais nunca estaria em nosso poder alcançá-la? Ora, como Ele entregou o seu Filho para todos, sem exceção, e com este mesmo objetivo, 'para que o mundo', isto é, toda a humanidade, 'possa ser salva por Ele': portanto, a todos, sem exceção, Ele dá a todos tais ajudas e graças que, mediata ou imediatamente, direta ou indiretamente, colocam em poder deles a salvação.

Por outro lado, as Escrituras declaram que Cristo 'é a verdadeira luz, que ilumina todo homem que vem a este mundo' (Jo 1,9). Conseqüentemente, todo homem que vem a este mundo participa da sua luz em tal grau e proporção que Ele acha apropriado dar e em tal tempo, lugar e maneira que Ele acha adequado. Pois, 'a cada um de nós é dada graça de acordo com a medida da doação de Cristo' (Ef 4,7) e 'manifestou-se a graça de Deus como fonte de salvação para todos os homens' (Tt 2,11). A bondade e a misericórdia de Deus para com toda a humanidade é assim exposta nas Escrituras: 'Tendes compaixão de todos, porque vós podeis tudo; e para que se arrependam, fechais os olhos aos pecados dos homens. Porque amais tudo que existe, e não odiais nada do que fizestes, porquanto, se o odiásseis, não o teríeis feito de modo algum. Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada? Mas poupais todos os seres, porque todos são vossos, ó Senhor, que amais a vida.' (Sb 11,23-26). Ora, como se poderia dizer que Ele 'poupa todos os seres' e que 'tem compaixão de todos', por causa do arrependimento, se Ele não desse a todos as graças que são absolutamente necessárias para ajudá-los e levá-los ao arrependimento? 

Finalmente, o próprio Salvador diz: 'Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e me abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo; e ao que vier por acréscimo, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono' (Ap 3,20). Ele bate em todas as portas, em todos os corações, pelos movimentos da sua santa graça; e se qualquer homem abrir e cooperar com esta graça, de modo a se superar, tudo estará bem. Disto é manifesto que todos os homens, sem exceção, em qualquer estado que estejam, em algum momento ou outro recebem graças de Deus, como frutos da redenção de Jesus, com vistas à sua salvação eterna e que, mediata ou imediatamente, os levariam a esse fim, se fizessem um uso adequado delas; se, portanto, não forem salvos, a culpa é inteiramente deles. As graças, na verdade, não são dadas no mesmo grau e proporção a todos, mas 'de acordo com a medida da doação de Cristo', pois 'cada um tem de Deus o seu próprio dom: um este; outro, aquele' (1Cor 7,7). Na distribuição dos talentos, um recebeu cinco, outro dois, e outro apenas um, pois Deus, sendo senhor dos seus próprios dons, pode dar mais abundantemente a um do que a outro, como lhe apraz; mas o que cada um recebe é suficiente para o seu propósito atual, e aquele que recebeu apenas um talento tinha pleno poder de obter a mesma recompensa que os outros dois, se tivesse aperfeiçoado seu talento como eles fizeram; mas como ele foi negligente e inútil, foi justamente condenado pela sua preguiça.

P. 20 - Como se pode demonstrar que, se um homem cooperar com as graças que Deus a ele concede, receberá sempre mais e mais dEle?

Isso é evidente pelos seguintes motivos: (i) pelo próprio fim que Deus tem em dá-las; pois todas as graças que Deus concede ao homem, através dos méritos de Cristo, são dadas com vistas à sua salvação e pelo desejo de salvá-lo. Se o homem não coloca nenhum obstáculo de sua parte, ele pode ser salvo. Se o homem, portanto, não coloca nenhum obstáculo de sua parte, mas melhora a graça presente, o mesmo desejo ardente que Deus tem pela sua salvação, e que o moveu a dar a primeira graça, deve também movê-lo a dar uma segunda, uma terceira, e assim por diante, até que Ele aperfeiçoe a grande obra para a qual Ele as dá; é por isso que a Escritura diz: 'aquele que iniciou em vós esta obra excelente lhe dará o acabamento até o dia de Jesus Cristo' (Fp 1,6). É uma verdade indubitável, então, que Deus nunca falhará de sua parte em nos dar todos os outros auxílios necessários, se fizermos um bom uso daqueles que Ele já deu; pois Ele nunca nos abandonará, se nós não o abandonarmos primeiro. Por isso, o mesmo santo apóstolo nos exorta: 'trabalhai na vossa salvação com temor e tremor... porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar' (Fp 2,12-13), mostrando-nos que Deus não faltará se fizermos a nossa parte, e trabalharmos, com temor e tremor, de acordo com as graças que Ele concede. Daí, também, as frequentes exortações do mesmo apóstolo: 'Não negligenciar a graça de Deus' (1Tm 4,14); 'reavivar a chama do dom de Deus que recebeste' (2Tm 1,6); 'não receber a graça de Deus em vão' (2Cor 6,1) e 'olhar diligentemente para que ninguém tenha falta da graça de Deus' (Hb 12,15).

(ii) pelos testemunhos das Escrituras onde nos é assegurado que, se servirmos a Deus e obedecermos a Ele, avançaremos em seu amor e na união com Ele, pois servi-lo e obedecê-lo é fazer um bom uso das graças que Ele nos dá; e ser mais amado por Ele e unido a Ele é receber dEle graças ainda maiores. Assim, o nosso Salvador diz: 'Se alguém me ama, guardará a minha palavra' (isto é, fará a minha vontade, corresponderá à minha graça) e 'meu Pai amá-lo-á, e nós viremos a ele e faremos a nossa morada com ele' (Jo 14,23). Assim também São Tiago diz: 'Aproximai-vos de Deus, e ele se aproximará de vós. Lavai as mãos, pecadores, e purificai os vossos corações, ó homens de dupla atitude. Reconhecei a vossa miséria, afligi-vos e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto e a vossa alegria em tristeza. Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará (Tg 4, 8-10). Por isso, São Pedro exorta-nos a não cairmos da nossa própria firmeza, mas a crescermos na graça e no conhecimento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2Pd 3,17-18), porque a perseverança no seu serviço, correspondendo à sua graça, é o caminho seguro para obtermos mais dEle.

(iii) pela declaração expressa de Jesus Cristo, que disse: 'Eu sou a videira, e meu Pai é o lavrador... todo ramo que em mim der fruto, ele o purificará, para que dê mais fruto' (Jo 15,1). Também na parábola das moedas, Ele ordenou que a moeda fosse tirada do servo inútil, e dada ao outro que tinha dez moedas, e então acrescentou: 'a todo aquele que tiver, lhe será dado mais' (Lc 19,26), isto é, a todo aquele que tem e faz bom uso do que tem; pois o patrão, ao partir, deu uma moeda a cada um de seus servos, 'e disse-lhes: negociai o dinheiro até que eu venha' (Lc 19,13). E quando voltou, descobriu que um tinha ganhado dez moedas, mas o servo preguiçoso não tinha ganhado nada, pois tinha guardado a moeda que tinha recebido num guardanapo; de modo que a única diferença entre esses dois era que um tinha melhorado o que tinha recebido de seu mestre, e o outro não; e, portanto, para aquele que tinha melhorado sua renda, mais e mais foi dado, para que tivesse em abundância. A mesma expressão é repetida por nosso Salvador em diferentes ocasiões, mas particularmente em (Mc 4), onde, considerando a grande graça concedida aos judeus, ao comunicar-lhes a sua santa Palavra, Ele os exorta a serem cuidadosos em fazer um amplo retorno a Deus, melhorando essa graça, e prometendo que, se o fizessem, mais lhes seria dado: 'Atendei ao que ouvis: com a medida com que medirdes, vos medirão a vós, e ain­da se vos acrescentará. Pois, ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que tem' (Mc 4,24-25). Da mesma forma, o Deus Todo-Poderoso diz a todos os pecadores cujos corações Ele toca com as suas repreensões e com o controle de suas consciências: 'Convertei-vos à Minha repreensão; eis que Eu espalharei sobre vós o meu espírito, e vos mostrarei as minhas palavras' (Pv 1,23). Se cooperarem com a graça da sua repreensão e se converterem, Ele conceder-lhes-á maiores favores.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 19 de março de 2025

19 DE MARÇO - SÃO JOSÉ

    

São José, esposo puríssimo de Maria Santíssima e pai adotivo de Jesus Cristo, era de origem nobre e sua genealogia remonta a Davi e de Davi aos Patriarcas do Antigo Testa­mento. Pouquíssimo sabemos da vida de José, além de suas atividades de carpinteiro em Nazaré. Mesmo o seu local de nascimento é ignorado: poderia ser Nazaré ou mesmo Belém, por ter sido a cidade de Davi. Ignora-se igualmente a data e as condições da morte de São José, mas existem fortes razões para afirmar que isso deve ter ocorrido an­tes da vida pública de Jesus. Com certeza, José já teria falecido quando da morte de Jesus, uma vez que não se explicaria, então, a recomendação feita aos cuidados mútuos à mãe e ao filho, dados, da cruz, por Jesus a Maria e a São João Evangelista.

Não existem quaisquer relíquias de São José e se desconhece o local do seu sepultamento. Muitos pais da Igreja defendiam que, devido à sua missão e santidade, São José, a exemplo de São João Batista, teria sido consagrado antes do nasci­mento e já gozava de corpo e alma da glória de Deus no céu, em companhia de Jesus e sua santíssima Esposa. As virtudes e as graças concedidas a São José foram extraordinárias, pela enorme missão a ele confiada pelo Altíssimo. A dig­nidade, humildade, modéstia e pobreza, a amizade íntima com Je­sus e Maria e o papel proeminente no plano da Redenção, são atributos e méritos extraordinários que lhe garantem a influência e o poder junto ao tro­no de Deus. Pedir, portanto, a intercessão de São José, é garantia de ser ouvido no mais alto dos céus. Santa Tereza, ardorosa devota de São José, dizia: 'Não me lembro de ter-me dirigido a São José sem que tivesse obtido tudo que pedira'.

A devoção a São José na Igreja Ca­tólica é antiquíssima. A Igreja do Oriente celebra esta festa, desde o século nono, no domingo depois do Natal. Foram os carmelitas que in­troduziram esta solenidade na Igreja Ocidental; os franciscanos, já em 1399, festejavam a comemoração do Santo Pa­triarca. Xisto IV inseriu-a no bre­viário e no missal; Gregório XV ge­neralizou-a em toda a Igreja. Cle­mente XI compôs o ofício, com os hinos, para a celebração da Festa de São José em 19 de março e colocou as missões na China sob a proteção do Santo. Pio IX introdu­ziu, em 1847, a festa do Patrocínio de São José e, em 1871, declarou-o Pa­droeiro da Igreja; muitos pontífices promoveram solenemente a devoção a São José, por meio de orações, homilias, encíclicas e devoções diversas.

terça-feira, 18 de março de 2025

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XXIV)

Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos
QUEMADMODUM DEUS [08 de dezembro de 1870]

Papa Pio IX (1846 - 1878)

proclamação de São José como Patrono da Igreja


Da mesma maneira que Deus havia constituído José, gerado do patriarca Jacó, superintendente de toda a terra do Egito para guardar o trigo para o povo, assim, chegando a plenitude dos tempos, estando para enviar à terra o seu Filho Unigênito Salvador do mundo, escolheu um outro José, do qual o primeiro era figura, o fez Senhor e Príncipe de sua casa e propriedade e o elegeu guarda dos seus tesouros mais preciosos.

De fato, ele teve como sua esposa a Imaculada Virgem Maria, da qual nasceu pelo Espírito Santo, Nosso Senhor Jesus Cristo, que perante os homens dignou-se ter sido considerado filho de José, e lhe foi submisso. E Aquele que tantos reis e profetas desejaram ver, José não só viu, mas com Ele conviveu e com paterno afeto abraçou e beijou; e além disso, nutriu cuidadosamente Aquele que o povo fiel comeria como pão descido dos céus para conseguir a vida eterna. Por esta sublime dignidade, que Deus conferiu a este fidelíssimo servo seu, a Igreja teve sempre em alta honra e glória o Beatíssimo José, depois da Virgem Mãe de Deus, sua esposa, implorando a sua intercessão em momentos difíceis.

E agora, nestes tempos tristíssimos em que a Igreja, atacada de todos os lados pelos inimigos, é de tal maneira oprimida pelos mais graves males, a tal ponto que homens ímpios pensam ter finalmente as portas do Inferno prevalecido sobre ela, é que os Veneráveis e Excelentíssimos Bispos de todo o mundo católico dirigiram ao Sumo Pontífice as suas súplicas e as dos fiéis por eles guiados, solicitando que se dignasse constituir São José como Patrono da Igreja Católica. Tendo depois no Sacro Concílio Ecumênico do Vaticano insistentemente renovado as suas solicitações e desejos, o Santíssimo Senhor Nosso Papa Pio IX, consternado pela recentíssima e funesta situação das coisas, para confiar a si mesmo e os fiéis ao potentíssimo patrocínio do Santo Patriarca José, quis satisfazer os desejos dos Excelentíssimos Bispos e solenemente declarou-o Patrono da Igreja Católica, ordenando que a sua festa, marcada em 19 de março, seja de agora em diante celebrada com rito duplo de primeira classe, porém sem oitava, por causa da Quaresma.

Além disso, ele mesmo dispôs que tal declaração, por meio do presente Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos, fosse tornada pública neste santo dia da Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus e Esposa do castíssimo José. Rejeite-se qualquer coisa em contrário.

segunda-feira, 17 de março de 2025

SOBRE O FUNDAMENTO DA FÉ

A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê. Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados. Pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela Palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível.

Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício bem superior ao de Caim, e mereceu ser chamado justo, porque Deus aceitou as suas ofertas. Graças a ela é que, apesar de sua morte, ele ainda fala. Pela fé Henoc foi arrebatado, sem ter conhecido a morte: e não foi achado, porquanto Deus o arrebatou; mas a Escritura diz que, antes de ser arrebatado, ele tinha agradado a Deus. Ora, sem fé é impossível agradar a Deus, pois para se achegar a ele é necessário que se creia primeiro que ele existe e que recompensa os que o procuram. 

Pela fé na Palavra de Deus, Noé foi avisado a respeito de aconteci­mentos imprevisíveis; cheio de santo temor, construiu a arca para salvar a sua família. Pela fé ele condenou o mundo e se tornou o herdeiro da justificação mediante a fé. Foi pela fé que Abraão, obedecendo ao apelo divino, partiu para uma terra que devia receber em herança. E partiu não sabendo para onde ia. Foi pela fé que ele habitou na terra prometida, como em terra estrangeira, habitando aí em tendas com Isaac e Jacó, coer­deiros da mesma promessa. Porque tinha a esperança fixa na cidade assentada sobre os fundamentos (eternos), cujo arquiteto e construtor é Deus.

Foi pela fé que a própria Sara cobrou o vigor de conceber, apesar de sua idade avançada, porque acreditou na fidelidade daquele que lhe havia prometido. Assim, de um só homem quase morto nasceu uma posteridade tão numerosa como as estrelas do céu e inumerável como os grãos de areia da praia do mar.

Foi na fé que todos (nossos pais) morreram. Embora sem atingir o que lhes tinha sido prometido, viram-no e o saudaram de longe, confessando que eram só estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Dizendo isto, declaravam que buscavam uma pátria. E se se referissem àquela donde saíram, ocasião teriam de tornar a ela. Mas não. Eles aspiravam a uma pátria melhor, isto é, à celestial. Por isso, Deus não se envergonha de ser chamado o seu Deus; de fato, ele lhes preparou uma cidade.

Foi pela sua fé que Abraão, submetido à prova, ofereceu Isaac, seu único filho, depois de ter recebido a promessa e ouvido as palavras: Uma posteridade com o teu nome te será dada em Isaac. Estava ciente de que Deus é poderoso até para ressuscitar alguém dentre os mortos. Assim, ele conseguiu que seu filho lhe fosse devolvido. E isso é um ensinamento para nós!

Foi inspirado pela fé que Isaac deu a Jacó e a Esaú uma bênção em vista de acontecimentos futuros. Foi pela fé que Jacó, estando para morrer, abençoou cada um dos filhos de José e venerou a extremidade do seu bastão.Foi pela fé que José, quando estava para morrer, fez menção da partida dos filhos de Israel e dispôs a respeito dos seus despojos.

Foi pela fé que os pais de Moisés, vendo nele uma criança encantadora, o esconderam durante três meses e não temeram o edito real. Foi pela fé que Moisés, uma vez crescido, renunciou a ser tido como filho da filha do faraó, preferindo participar da sorte infeliz do povo de Deus, a fruir dos prazeres culpáveis e passageiros. Com os olhos fixos na recompensa, considerava os ultrajes por amor de Cristo como um bem mais precioso que todos os tesouros dos egípcios. 

Foi pela fé que deixou o Egito, não temendo a cólera do rei, com tanta segurança como estivesse vendo o invisível. Foi pela fé que mandou celebrar a Páscoa e aspergir (os portais) com sangue, para que o anjo exterminador dos primogênitos poupasse os filhos de Israel. Foi pela fé que os fez atravessar o mar Vermelho, como por terreno seco, ao passo que os egípcios que se atreveram a persegui-los foram afogados.

Foi pela fé que desabaram as muralhas de Jericó, depois de rodea­das por sete dias. Foi pela fé que Raab, a mere­triz, não pereceu com aqueles que resistiram, por ter dado asilo aos espias. Que mais direi? Irá me faltar o tempo, se falar de Gedeão, Barac, Sansão, Jefté, Davi, Samuel e dos profetas. Graças à sua fé conquistaram reinos, praticaram a justiça, viram se realizar as promessas. Taparam bocas de leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam a fio de espada, triun­faram de enfermidades, foram corajosos na guerra e puseram em debandada exércitos estrangeiros. Devolveram vivos às suas mães os filhos mortos. Alguns foram torturados, por recusarem ser libertados, movidos pela esperança de uma ressurreição mais gloriosa.

Outros sofreram escárnio e açoites, cadeias e prisões. Foram apedrejados, massacrados, serrados ao meio, mortos a fio de espada. Andaram errantes, vestidos de pele de ovelha e de cabra, necessitados de tudo, perseguidos e maltratados, homens de que o mundo não era digno! Refugiaram-se nas solidões das montanhas, nas cavernas e em antros subterrâneos. E, no entanto, todos estes mártires da fé não conheceram a realização das promessas! Porque Deus, que tinha para nós uma sorte melhor, não quis que eles chegassem sem nós à perfeição (da felicidade).

(Hb 11,1-40)

domingo, 16 de março de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor é minha luz e salvação' (Sl 26)

Primeira Leitura (Gn 15,5-12.17-18) - Segunda Leitura (Fl 3,17-4,1) -  Evangelho (Lc 9,28b-36)

  16/03/2025 - SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA

A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR

Jesus acabara de fazer o anúncio de sua Paixão aos discípulos e eles experimentavam, naquele momento, o peso das tribulações e das adversidades futuras que certamente teriam de enfrentar. O Filho do Homem se revelara vítima pascal e não senhor de um exército dominador: o Reino de Deus não é deste mundo e a redenção teria que perpassar necessariamente pela subida do Calvário. Aqueles homens precisavam, mais do que nunca, da fortaleza da graça sobrenatural. E, três deles, Pedro, Tiago e João, a receberiam com abundância extrema.

Neste Segundo Domingo da Quaresma, meditamos esta extraordinária experiência sobrenatural vivida pelos três apóstolos no alto do Monte Tabor. Jesus os levou consigo para subir a montanha 'para rezar' (Lc 9,28), pois é a oração que nos coloca plenamente sob o repositório das graças divinas. A fragilidade humana tomou frente a princípio pelo sono de todos e pelas palavras desarticuladas de Pedro: 'vamos fazer três tendas' (Lc 9,33). Mas esvaiu-se de vez quando os três apóstolos foram inundados pela claridade luminosa emanada dos corpos gloriosos de Jesus, Moisés e Elias.

Naquele lugar, e ainda que por um breve tempo, os três apóstolos puderam contemplar na terra a glória de Deus. E testemunhar que a história humana evolui pelos tempos confirmada pela Lei (presença de Moisés) e pelos Profetas (presença de Elias). A Transfiguração do Senhor é um evento extraordinário da manifestação divina de Jesus aos homens, um olhar da história humana no espelho da eternidade.

'Este é o meu Filho, o escolhido. Escutai o que Ele diz' (Lc 9, 35). Solícitos na oração, firmes na fé, tornamo-nos oratórios dignos das abundantes graças de Deus. Somos movidos, pela coragem, a superar as adversidades, as tentações, as dores humanas; pela fortaleza, impõe-se seguir em frente, avançar para águas mais profundas, subir a montanha das graças e da transfiguração de nossa imensa fragilidade humana. E também, descer outra vez a montanha, voltar ao caminho de Jerusalém e do Gólgota, repetir quantas vezes, e por quanto tempo for, o itinerário contínuo de enfrentar e vencer o mundo, oportuna ou inoportunamente, até o Tabor definitivo de nosso encontro com Deus na eternidade.

sábado, 15 de março de 2025

TESOURO DE EXEMPLOS II (01/03)


01. FOI AVISADO DE QUE MORRERIA

Rapazes, até quando continuareis zombando da autoridade de Deus? Até quando desprezareis o seu preceito de ir à missa aos domingos, à confissão, à comunhão? Tendes saúde, sois fortes, alegres, adulados, amados de vossos pais, estimados por  vossoss colegas, bem sucedidos nos estudos, ricos e afortunados... Mas uma coisa eu vos digo: de Deus não se zomba. Se nao fazeis caso da religião, se não cumpris vossos deveres morais e religiosos, se continuais na libertinagem, nao duvideis que o castigo virá. Como? De que maneira? Quando? A estas perguntas nao podemos responder: sao mistérios de Deus. O certo, porém, é que Ele anunciou temerosos castigos contra os profanadores dos dias santos. E esses castigos, nesta ou na outra vida, virão infalivelmente. 

Escutem o que nos diz o grande doutor da Igreja Santo Afonso de Ligório. Era - diz ele - o dia 24 de novembro de 1668. Dois amigos passeavam juntos nos jardins de Palermo. Um deles, chamado  César, era ator dramático. 
➖ César - disse-lhe o amigo - você está triste!
➖ Muito. 
➖ Por que não conversas?
➖ Não posso. 
➖ Tens alguma preocupação?
➖ Sim; e muito grande. 
➖ Podes contar o que é?
➖ Sim; como és um bom amigo, vou abrir-te o meu coração...

Já sabes que minha mãe era uma pessoa muito boa. Educou-me na piedade. Mais tarde, porém, abandonei tudo e tornei-me um libertino. Dediquei-me ao teatro; tenho tido muitos sucessos, mas, também, tenho dado muitos escândalos. Um dia, estando eu em Nápoles, passei por uma praça abarrotada de povo. Parei. Era um missionário que estava pregando. Ouvi-lhe o sermão sobre o inferno e tive medo. Converti-me, confessei-me com ele e, ao terminar, ele me disse: 'Não voltes ao vômito do pecado, porque, se voltares (digo-te da parte de Deus), só terás mais doze anos de vida'. 
➖ Isso te disse o padre?
➖ Exatamente.
➖ E por que hoje te lembras disso?
➖ Porque hoje, exatamente, vai fazer doze anos...
➖ Qual nada! Não  te vejo com cara de moribundo!
➖ Sim; hoje estou melhor do que nunca.
➖ Então; deixa-te de tolices. Eu te profetizo, sem ser missionário, que esta noite terás um dos maiores sucessos de tua vida. E viverás ainda muito, até caires de velhice.
➖ Deus te ouça, meu amigo; mas asseguro-te que tenho medo, muito medo. 

Chegou a noite. Começou a peça de teatro. César atuava no palco e todos o aplaudiam em delírio. De repente, cambaleou e caiu. Acercaram-se dele e tentaram erguê-lo... mas estava morto! Realizava-se, assim, a tremenda profecia do missionário. 

Nao sou eu, mas o próprio Deus, quem vos diz: Rapazes, frequentai a missa! Porque, se não observais a minha lei e se  profanais as minhas festas, contra vós enviarei terríveis castigos quer nesta, quer na outra vida.

02. QUEM QUER DISCUTIR RELIGIÃO?

Viajava num trem um douto e modesto frade. Ele lia o seu Breviário e nao prestava atenção ao que os vizinhos conversavam, embora tivesse percebido que andavam a gracejar sobre a religião. Uma senhora, mais petulante que os outros, intrigada com o silêncio do frade, voltou-se para ele e disse:
➖ Saiba, padre, que eu sou incrédula!
➖ Então a senhora não admite a revelação divina?
➖ Ah! não; isso de revelação divina não passa de fábula. 
➖ A senhora já estudou algumas provas da revelação?
➖ Não, senhor.
➖ Terá lido alguma obra de São Tomás ou de Balines?
➖ Também não.
➖ E não passou a vista por alguma obra de apologética fundamental, a de Hilaire, por exemplo?
➖ Não, senhor. 
➖ Pois então, minha senhora, permita-me que lhe diga a verdade: a senhora não é incrédula, a senhora é analfabeta!

É por aí mesmo. Certos 'incrédulos' posam como tal, dizendo ou escrevendo disparates contra a religião e, no entanto, não passam de pobres analfabetos em assuntos religiosos. Que lhes aproveite, pois, esta lição!

03. AH! ESSAS MODAS...

Regressava das missões da África um missionário de barba longa e veneranda. Todos no navio o tratavam com respeito. Durante o dia, enquanto os passageiros se divertiam, ele permanecia no convés, rezando e contemplando o belo céu. Comparava a sua paz com aquele torvelinho, cada dia mais se alegrava de ter escolhido a melhor parte, ou seja, o sacerdócio. 

Uma tarde desceu para a refeição e modestamente ocupou o seu lugar à mesa. Em frente dele, sentou-se uma senhora vestida muito à moda, isto é, quase como Eva no paraíso. O missionário lançou-lhe um olhar sério e guardou silêncio. Durante toda a refeição, manteve-se constrangido. Compreendia a obrigação que tinha de advertir aquela senhora, mas queria fazê-lo de forma caridosa e polida para que sua repreensão fosse mais eficaz. 

Ainda estava indeciso, quando chegou a sobremesa. A senhora tomou delicadamente uma maçã da bandeja e a ofereceu ao padre.
➖ Desculpe-me, senhora - disse ele - mas preferiria que a senhora mesmo a comesse. 
➖ Não não, faça-me o favor...
➖ De modo nenhum, pois é à senhora que compete comer essa maçã.
➖ Mas por que, padre?
➖ Para que se repita o caso descrito na Sagrada Escritura, lembra-se?: Eva tomou uma maçã, levou-a à boca e deu-lhe uma dentada e, então, abriram-se-lhe os olhos e compreendeu que estava desnuda!

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos' - Volume II, do Pe. Francisco Alves, 1960; com adaptações)

QUANDO O INFERNO É AQUI...

Recentes ataques contra cristãos e contra a etnia muçulmana alauita resultaram no massacre de centenas de civis na Síria, pelas forças de segurança da maioria sunita, alçada ao poder em dezembro de 2024, quando a perseguição religiosa tornou-se recorrente no país. Este fato corrobora o aumento crescente da perseguição aos cristãos em todo o mundo, traduzida pela realidade atual e brutal desta hierarquia anti-cristã apresentada na lista abaixo.

(clicar sobre a imagem)
portasabertas.org.br

sexta-feira, 14 de março de 2025

AS GRANDES HERESIAS: ARIANISMO

Na construção da civilização cristã, certamente um dos primeiros e mais relevantes debates foi pautado sobre a divindade de Jesus Cristo. Jesus era Deus ou não? Jesus era realmente Deus feito homem ou Jesus era um ser criado? O Arianismo é a heresia que nega a divindade de Cristo e proclama que Jesus foi criado por Deus como um primeiro ato da sua criação e que a natureza de Cristo era distinta da natureza divina. A heresia recebeu esta designação por ter sido defendida inicialmente por Ário, um sacerdote de Alexandria/ Egito no início do século IV.

O arianismo proclama, portanto, que Jesus é um ser criado finito com alguns atributos divinos, mas Ele não é eterno e não é divino em Si mesmo, ou seja, Jesus não seria nem totalmente Deus e nem totalmente humano e as limitações de Jesus como ser humano não têm impacto em sua natureza divina ou em sua eternidade. Nesta concepção, Jeus seria subordinado a Deus Pai, negando por princípio a consubstancialidade entre Deus Pai e Jesus Cristo. Assim, a mera interpretação direta e equivocada dos textos bíblicos revela aos arianistas que Jesus não podia 'sentir fome' ou 'ficar cansado' sendo Deus, como se tais expressões não fossem asserivas à natureza humana de Jesus. Nesta mesma linha de contestação, a expressão 'filho primogênito' dada a Jesus seria uma prova incontestável de que o Filho de Deus seria um ato de criação direta de Deus Pai.

O sofisma absurdo de Ário foi que ele ter imposto a noção de tempo à natureza eterna (atemporal) de Deus. É óbvio que, para a natureza humana, o pai existe antes do filho, pois os humanos vivem no tempo. Gerar para os seres humanos é um ato embutido no tempo e na matéria. Como Deus é eterno, o Pai dá a sua natureza espiritual, divina e atemporal ao seu Filho Unigênito e, portanto, 'antes' e 'depois' não têm nenhum sentido. Uma vertente da heresia, chamada semi-arianismo, buscou abrandar a posição ariana original, proclamando que o Filho era de uma substância semelhante ao Pai, ainda que não fosse 'da mesma substância'.

A 'lógica' herética de Ário rapidamente ganhou muitos seguidores e teve um impacto tremendo na Igreja Primitiva. O Arianismo não se limitou a influenciar vários teólogos dos primeiros séculos do cristianismo; seu impacto afetou o próprio aparecimento da Ortodoxia (o ordenamento padrão da Fé Católica) e constituiu a primeira grande controvérsia da Fé Cristã a ser decidida por um concílio ecumênico. Depois de ser excomungado em Alexandria, Ário fugiu para Cesareia, onde o bispo Eusébio o ajudou a espalhar os seus erros. Em 325, no Primeiro Concílio de Niceia, o arianismo foi condenado formalmente como heresia, proclamando que o Filho é consubstancial ao Pai, como posteriormente explicitado no Credo Niceno-Constantinopolitano.  Santo Atanásio foi o grande defensor da Fé Cristã contra essa heresia que permaneceu ainda como uma séria  ameaça à Igreja por mais de meio século e que ainda permanece viva atualmente, em muitos aspectos, entre os ensinamentos dos mórmons e das Testemunhas de Jeová.

quinta-feira, 13 de março de 2025

BREVIÁRIO DIGITAL - ICONOLOGIA CRISTÃ (IV)

 

CRISTO DA HUMILDADE PERFEITA

Quando exposto ao jugo do orgulho e da vanglória, responda com a nudez da imolação e da pobreza. Diante às perseguições injustas, recline a cabeça. Face às zombarias, infâmias e falsas acusações, cruze os braços sobre o coração e receba com humilde acolhimento o que é oferecido com despeito. E quando confrontado com a pergunta: 'Até onde devo tolerar tamanha vergonha e tanta injustiça?', lembre-se de que a resposta é 'até o túmulo'. O ícone nos direciona e nos incentiva buscar pela humildade a perfeita Imitação de Cristo.

quarta-feira, 12 de março de 2025

SOBRE PRESUNÇÃO E PROGRESSO ESPIRITUAL

A razão porque não somos melhores é que não queremos ser melhores; o pecador e o santo diferenciam-se apenas por uma série de pequeninas decisões que se tomam no recôndito do nosso coração. Em parte alguma encontram-se opostos tão próximos como no reino do espírito; um abismo separa o pobre do rico, o qual só se pode transpor com a ajuda de circunstâncias externas e de boa sorte. A linha que divide a ignorância da erudição é também profunda e extensa: tempo livre para o estudo e um espírito bem dotado são necessários para converter um ignorante em um homem culto. Mas a passagem do pecado à virtude, da mediocridade à santidade não precisa de 'sorte' e nem ajuda das circunstâncias externas. Pode realizar-se por um ato eficaz da vontade, em colaboração com a graça de Deus.

Santo Tomás diz-nos que 'não somos santos porque não queremos sê-lo'. Não diz, note-se bem, que não desejamos ser santos; muitos, na verdade, têm veleidades disso. Mas a simples veleidade é o desejo de que alguma coisa aconteça, sem que para isso ponhamos da nossa parte o trabalho. Querer significa que estamos dispostos a pagar as custas necessárias em esforço e em sacrifício. Por vezes iludimo-nos, imaginando que temos buscado ser melhores, quando, na verdade, fizemos muitas reservas e resolvemos não mudar muitos dos nossos modos de proceder.

Então o desejo é simplesmente uma veleidade. O segredo do progresso espiritual encontra-se no Credo: 'Desceu aos infernos; ao terceiro dia ressuscitou'. Cada um de nós também deve descer ao subconsciente, às regiões do nosso espírito que a treva envolve, porque é aqui que se ocultam as secretas reservas. Estas reservas não são facilmente vistas por nós, mas dão cor a tudo o que vemos; são como essas janelas coloridas que fazem chegar ao nosso intelecto a verdade da realidade externa mudada. A realidade é deformada, se temos reservas tais como preconceitos, hábitos de pecado, orgulho, avareza e inveja; qualquer destas coisas pode tornar-nos impossível um juízo honesto. A verdade é, então, distorcida, para a ajustar às nossas imperfeições; mentimos a nós próprios, para não ter de mudar, nem de abandonar estes hábitos tão estimados de pecado.

Muitos de nós passamos a nossa vida tendo de nós uma falsa ideia, que de modo nenhum queremos ceder; receamos a amargura de nos encontrarmos menos nobres do que gostamos de nos julgar. Coamos a realidade através de um crivo de amor-próprio, pondo de lado toda a verdade que nos incomode. Usar este critério pessoal de verdade é tão errado e vão como seria deixar às nossas preferências decidir qual tecla do piano é o lá médio. Podíamos fazer de conta que uma tecla mais fácil de tocar fosse esse lá médio, e agir de acordo com essa preferência; mas resultaria daí a desarmonia, não a harmonia. A realidade não pode ser forçada a adaptar-se aos nossos desejos.

Essas reservas a que nos prendemos, estas atitudes que teimamos em não abandonar ou mudar, afetam os nossos juízos e tornam-se falsos. Antes de podermos, algum dia, levantar-nos para alegria da realidade de Deus, temos de descer ao inferno, onde escondemos estas faltas que queremos desconhecer. Isto exige de nós uma análise plena de nós próprios à luz das imutáveis leis de Deus.

Há expressões da gíria, ou ditos populares, que recomendam que não se tenha presunção. Nada, de fato, se opõe tanto ao nosso progresso para Deus como o egoísmo, e o egoísta está sempre cheio de ilusões voluntárias, a respeito de si mesmo, de faltas 'sagradas', a que não quer renunciar, que nem mesmo quer confessar que as tem. Eis porque o egoísta, que existe em todos nós, tem necessidade urgente de uma inspeção desapiedada a todos os ângulos e cantos escondidos do espírito. Importa sobremaneira ver o que na realidade somos e não o que julgamos ser. Devemos amar mais a Verdade do que o nosso eu; devemos estar dispostos a renunciar a todas as nossas faltas que ainda não descobrimos se, enfim, queremos realmente nos tornar aptos para ver a Verdade como ela é.

Nada faz coxear tanto a nossa vida espiritual como estes 'parasitas' escondidos no motor da nossa alma. Podem ser uma ou outra das nossas faltas comuns, tais como a ganância, a acrimônia para com os outros, a inveja e o ódio. Aqueles que se esforçam por se aproximar cada vez mais de Deus sem autoanálise, admiram-se de sofrer tão frequentes derrotas: é invariavelmente por causa do Cavalo de Troia que está dentro deles, o defeito dominante ainda não reconhecido. Enquanto não for extirpado e confessado diante de Deus, com o desejo de o destruir, não existirá real progresso espiritual. Com justeza se exprimia Santo Agostinho, quando dizia: 'O Vosso melhor servo, Senhor, não é aquele que procura ouvir de Vós aquilo que ele mesmo quer, mas antes aquele que procura querer o que ouve de Vós'.

(Excertos da obra 'Rumo à Felicidade' do Venerável Fulton Sheen)

terça-feira, 11 de março de 2025

FRASES DE SENDARIUM (XLVIII)

'O Calvário proclama que as nossas dores serão santificadas, se unidas à Cruz de Cristo'

 (São Josemaria Escrivá)

Senhor, não vos peço não ter tentações ou sofrimentos e nem que se cumpra as minhas humanas vontades, mas que o teu propósito para mim se realize em plenitude em cada dia da minha vida.

segunda-feira, 10 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XIX)


87. O erro está em termos uma opinião demasiado elevada daquilo a que o mundo chama de honra, estima e fama. Por mais que o mundo me louve ou honre, isso não pode aumentar nem um pouco o meu mérito ou a minha virtude; e também, se o mundo me vituperar, não pode tirar de mim nada do que tenho ou do que sou em mim mesmo. Conhecerei a vaidade da verdade à luz dessa vela bendita que terei na mão à hora da minha morte. De que me servirá, então, ter sido estimado e honrado por todo o mundo, se a minha consciência me convencer de pecado diante de Deus? Ah, que loucura seria para um nobre, possuidor de talentos que o tornariam querido pelo seu rei e o fariam um favorito na corte, se ele procurasse antes ser adulado por seus servos e servas, e encontrasse prazer em tal adulação miserável. Mas é uma loucura muito maior para um cristão, que poderia ganhar o louvor e a honra de Deus e de todos os anjos e santos no céu, procurar antes ser louvado e honrado pelos homens e gloriar-se nisso. Pela humildade, posso agradar a Deus, aos anjos e aos santos; portanto, não é um orgulho desprezível que me faz desejar a estima, o louvor e a aprovação dos homens, quando nos é dito que 'é aprovado aquele a quem Deus recomenda?' [2Cor 10,18].

O pensamento da morte é proveitoso para adquirir a humildade; e a humildade ajuda-nos muito a obter uma morte santa. Santa Catarina de Sena, pouco antes da sua morte, foi tentada a ter pensamentos de orgulho e vanglória por causa da sua própria santidade; mas a esta tentação ela respondeu: 'Dou graças a Deus por nunca ter sentido, em toda a minha vida, qualquer vanglória'. Oh, como é belo poder exclamar no leito de morte: 'Nunca conheci a vanglória'.

88. Mesmo admitindo o valor da estima e da fama do mundo, pelo simples fato de a amarmos e desejarmos no nosso coração, podemos deduzir daí quão grande é a virtude da humildade, pois, oferecendo a Deus tudo o que temos de tão precioso, juntamente com o nosso amor-próprio, oferecemos-lhe algo que estimamos muito. O voto de castidade é considerado heroico, porque assim sacrificamos a Deus os prazeres dos sentidos. O martírio é considerado heroico, porque o mártir oferece assim a sua vida em holocausto a Deus. E também é considerado heroico dar todos os seus bens aos pobres. Mas a nossa autoestima é certamente o que temos de mais precioso do que o dinheiro, a satisfação dos sentidos, ou mesmo a própria vida, porque muitas vezes arriscamos todas estas coisas em nome da nossa reputação. Assim, ao oferecermos a Deus a nossa autoestima com humildade, oferecemos aquilo que consideramos mais precioso.

Isto é verdadeiramente oferecer a Deus 'o sacrifício, o incenso e o perfume da lembrança' [Eclo 40,15]. Os que vivem no mundo podem muitas vezes ter mais mérito pela sua humildade de coração do que os que fazem votos de pobreza e castidade no claustro sagrado, porque é pela prática desta humildade que formamos em nós a 'nova criatura', sem a qual São Paulo nos diz que 'nem a circuncisão nem a incircuncisão valem nada' [Gl 6,15], o que equivale a dizer que, quer sejais sacerdote ou leigo, o vosso estado nada pode valer sem a humildade. A humildade sem a virgindade pode ser agradável a Deus, mas nunca a virgindade sem a humildade. As cinco virgens loucas não lhe foram desagradáveis? Vanitate superbiæ - diz Santo Agostinho. E se a própria Virgem agradou a Deus pela sua virgindade, mereceu também ser escolhida para ser sua Mãe pela sua humildade, como diz São Bernardo: 'Pela sua virgindade agradou a Deus, pela sua humildade o concebeu' [Hom. I sup. Missus est].

89. É muito fácil uma pessoa orgulhosa cair em pecados graves e terríveis; e, depois de ter caído, encontrar grande dificuldade em acusar-se deles no sacramento da penitência; porque, amando demasiado a sua autoestima e reputação e temendo perdê-las aos olhos do seu confessor, prefere cometer um sacrilégio a revelar a sua fraqueza. Procura um confessor que lhe seja desconhecido, para não se envergonhar; mas, se não se envergonhava de pecar, por que se envergonharia tanto de confessar o seu pecado, se não fosse por motivos de orgulho? Minha alma, dize a ti mesma: 'A razão pela qual não sinto verdadeira dor pelos meus pecados é a minha falta de humildade, pois é impossível que o coração sinta arrependimento ou contrição se não for humilde. Falta-me humildade, e é por isso que não tenho coragem de confessar os meus pecados com franqueza e sem desculpas'. Pede a Deus humildade; e, à medida que o teu coração se tornar mais humilde, sentirás uma dor mais profunda por o teres ofendido, e dessa humildade sincera as palavras fluirão sem dificuldade para os teus lábios, porque 'quem magoa um coração, nele excita a sensibilidade' [Eclo 22,24]. 

É o orgulho que nos compele a reter os nossos pecados no confessionário e a procurar amenizar a sua maldade com muitas desculpas. Ó orgulho maldito, causa de inúmeros sacrilégios! Mas, ó bendita humildade! O rei Davi foi humilde no seu arrependimento, porque não desculpou os seus pecados, mas acusou-se publicamente deles; nem pôs a culpa dos seus pecados nos outros, mas atribuiu-os apenas à sua própria maldade: 'Eu sou aquele que pecou' [2Rs 24,17]. Também Madalena, no seu arrependimento, não procurou Jesus Cristo num lugar escondido, mas procurou-o na casa do fariseu e quis mostrar-se pecadora diante de todos os convidados. Santo Agostinho, sendo verdadeiramente humilde no seu arrependimento, fez a confissão dos seus pecados a todo o mundo para sua maior confusão e vergonha.

90. É difícil para nós darmo-nos conta do nosso nada, e é difícil também referir todas as coisas a Deus sem reservar nada para nós mesmos, porque não é realmente nosso o nosso trabalho, a nossa diligência e a cooperação da nossa vontade? Admitamo-lo, mas se tirarmos a luz, a ajuda e a graça recebidas de Deus, o que é que nos resta de todas estas coisas? As nossas ações naturais só se tornam meritórias quando são amparadas espiritualmente por Cristo Jesus. É Jesus Cristo que eleva e enobrece todas as nossas ações que, por si sós, seriam totalmente insuficientes para nos proporcionar a glória da vida eterna.

O modo como a vontade é levada a cooperar com a graça é um mistério que não compreendemos completamente; mas é certo que, se formos para o céu, daremos graças pela nossa salvação unicamente à misericórdia de Deus: 'As misericórdias do Senhor cantarei para sempre' [Sl 88,2]. Podemos, pois, dizer com o santo rei Davi e estar plenamente persuadidos da sua verdade, que a natureza humana é mais fraca e mais impotente do que podemos imaginar, porque na natureza que recebemos de Deus só temos, pela queda de Adão, a ignorância do espírito, a fraqueza da razão, a corrupção da vontade, a desordem das paixões, a doença e a miséria do corpo. Não temos, portanto, nada em que nos gloriar, mas em tudo podemos encontrar motivos de humilhação. 'Humilha-te em todas as coisas' [Eclo 3,20] diz o Espírito Santo e Ele não nos diz para nos humilharmos apenas em algumas coisas, mas em todas - in omnibus.

91. A santa humildade é inimiga de certas especulações sutis; por exemplo: dizes que não podes compreender como é que tu próprio és um mero nada, no fazer e no ser, porque não podes deixar de saber que, na realidade, tu és alguma coisa e podes fazer muitas coisas; que não podes compreender porque é que és o maior de todos os pecadores, porque conheces tantos outros que são maiores pecadores do que tu; nem como é que mereces todos os vitupérios dos homens, quando sabes que não fizeste nenhuma ação digna de culpa mas, pelo contrário, muitas dignas de louvor.

Deves censurar-te por estares ainda tão longe da verdadeira humildade e pensares que podes compreender o sentido destas coisas. O verdadeiro humilde crê que é em si mesmo um simples nada, um pecador maior do que os outros, inferior a todos, digno de ser injuriado por todos por ser, mais do que todos, ingrato para com Deus. Ele sabe que este sentimento da sua consciência é absolutamente verdadeiro, e não se preocupa em investigar como é que isto torna-se verdade; o seu conhecimento é prático, e mesmo que ele não se compreenda a si próprio, e não possa explicar aos outros, com raciocínios sutis o que sente no seu coração, importa-se tão pouco com o fato de não o poder explicar como se importa com o fato de não poder explicar como é que o olho vê, a língua fala, o ouvido ouve. Daí se deduz que não é preciso ter grandes talentos para ser humilde e que, portanto, diante do tribunal de Deus, não será desculpa válida dizermos 'Não fui humilde porque não sabia, porque não compreendia, porque não estudava'. Podemos ter uma boa vontade, um bom coração, e não sermos inteligentes; e não há ninguém que não possa compreender esta verdade, que de Deus vem todo o bem que se possui e que ninguém tem nada de seu, exceto a sua própria malícia. 'A destruição é tua, ó Israel; teu socorro está somente em Mim' [Os 13,9], disse Deus pela boca do seu profeta.

92. A humildade é um meio poderoso de subjugar a tentação e, da mesma forma, as tentações servem para manter a humildade; porque é quando somos tentados que estamos praticamente conscientes de nossa própria fraqueza e da necessidade que temos da graça divina. É por isso que Deus permite que caiamos em tentação, reduzindo-nos por vezes ao próprio limite de sucumbir a ela, para que aprendamos a fraqueza da nossa virtude e o quanto precisamos do auxílio de Deus.

E até nisto podemos ver a infinita sabedoria de Deus, que dispôs que os próprios demônios, espíritos de orgulho, contribuíssem para nos tornar humildes, se soubéssemos aproveitar bem as nossas tentações. No entanto, devemos lembrar-nos de que, em todas as nossas tentações, a primeira coisa a fazer é exercitar a humildade que deriva de um conhecimento prático de nós mesmos e de como somos propensos ao mal, se Deus não estender a sua mão para nos refrear através da sua graça. Não esperemos para conhecer a nossa fraqueza até termos caído; mas conheçamo-la de antemão, e o conhecimento dela será um meio eficaz para nos impedir de cair. 'Antes da doença, toma-se um remédio; antes da doença, humilha-te' [Eclo 18, 20-21], diz a Sagrada Escritura. Os humildes nunca carecerão de graça no tempo da tentação e, com a ajuda dessa graça, tirarão proveito dessas mesmas tentações; pois a misericordiosa providência de Deus dispôs as coisas de tal modo que, com a ajuda especial da sua graça, Ele 'não deixará que nenhuma tentação se apodere de vós' [1Cor 10,13].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

domingo, 9 de março de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Em minhas dores, ó Senhor, permanecei junto de mim!' (Sl 90)

Primeira Leitura (Dt 26,4-10) - Segunda Leitura (Rm 10,8-13) -  Evangelho (Lc 4,1-13)

  09/03/2025 - PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA

O JUGO DAS TENTAÇÕES 


Se há algo que liga de forma admirável todo o universo da criação é o zelo imposto à fidelidade e à obediência aos desígnios de Deus. O que significa dizer que criatura alguma não perpassou por tais provas de fidelidade sem o jugo das tentações. A primeira prova foi imposta aos anjos e uma miríade deles se condenou. Depois, Adão e Eva sucumbiram à tentação e o pecado deles marcou indelevelmente a história humana. Sob o jugo cotidiano de tentações diversas, todos nós percorremos nosso vale de lágrimas.

Mas Jesus, embora não possuindo a mais remota imperfeição, também foi tentado. E não, uma, duas ou três vezes como nos revelam as Sagradas Escrituras, mas muitas outras vezes naqueles 'quarenta dias no deserto' (Lc 4, 2). Aquele que disse de si 'Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida' (Jo 14,6) foi sempre exemplo. Sabendo de nossas imperfeições e da ação diabólica sobre a natureza humana, Jesus quis mostrar as provas e os riscos de nossa caminhada terrena: seremos tentados, mas temos todos os meios disponíveis para superar a malícia do tentador. Assim, Jesus submeteu-se às tentações do demônio no deserto para 'compadecer-Se de nossas fraquezas' e, em tudo, menos no pecado, assumir incondicionalmente a dimensão do homem.

E este Primeiro Domingo da Quaresma nos lembra as três tentações sofridas por Jesus e descritas nos Evangelhos. Depois de quarenta dias, em jejum e oração, Jesus teve fome. Jesus teve fome, como qualquer ser humano privado de alimento por longo tempo. A manifestação maligna ousou, então, tentar Jesus: diante a suspeição de ser Jesus o Filho de Deus pairava a incontestável condição humana de um homem debilitado pela fome. E, por isso, a primeira tentação tem essa via, em que o vômito maligno titubeia por ânsias de dubiedade: 'Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se converta em pão' (Lc 4,3). Ao que Jesus, citando as Escrituras, responde: 'Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra de Deus' (Lc 4,4), porque Jesus poderia alcançar o seu sustento por vias naturais mas, principalmente, para mostrar a ascensão da vida espiritual sobre a dimensão puramente física.

A segunda tentação foi a tentativa de idolatria, diante da soberba do poder diabólico, exposta pelo brilho feérico e a falsa concessão de 'todos os reinos do mundo'. Quantos homens não se perdem nessa vereda diante de migalhas de luxo e esplendor mesquinhos? Jesus vai responder ao espírito maligno: 'Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás' (Lc 4,8). Satanás sentiria reverberar em seus ouvidos a sentença de Miguel: 'Quem, como Deus?'. E chegaria a ousadia satânica a uma terceira tentação, misto de vanglória e desmedido orgulho, ainda mais abominável porque supostamente amparada nos próprios textos das Escrituras: 'Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz... Eles te levarão nas mãos para que não tropeces em alguma pedra' (Lc 4, 9.11). Jesus, uma vez mais, se submete ao desvario diabólico, para desmascarar suas ciladas e malícias e reduzi-lo como macaqueador de Deus: 'Não tentarás o senhor teu Deus' (Lc 4,12). A lição do Mestre sobre os benefícios das tentações e das provas humanas torna-se cristalina: não devemos temer o demônio, mas sim, o pecado, pois é o pecado que nos deixa à mercê da ação maligna de todos os demônios.