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sábado, 14 de junho de 2025

MEDITAÇÃO SOBRE O INFERNO


Todo o Inferno está nestas palavras de Jesus Cristo: 'Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno'.

1. O Inferno é a separação, a perda de Deus - 'Afasta-te de mim, pecador'. É assim que Deus repele para longe de si a alma pecadora. É a perda de Deus, a perda da suma beleza, da suma bondade, do sumo bem. Enquanto a nossa alma estiver presa no cárcere da carne, não poderá nunca compreender a imensidade desta desgraça que, na frase dos santos, constitui o inferno dos infernos.

2. O Inferno é a maldição de Deus - 'Afasta-te pecador maldito', é tal a maldição eficaz de um Deus todo-poderoso. Se é terrível a maldição de um pai, de uma mãe, o que será a maldição de Deus? Pecador maldito, maldito no corpo, maldito na alma. Olhos, língua, mãos, pés, inteligência, coração, vontade, tudo é maldito, porque tudo serviu de instrumento ao pecado.

3. O Inferno é o fogo - 'Afasta-te pecador maldito, para o fogo'. Quando os profetas falam do Inferno, logo se lhes apresenta à imaginação o mar, o mar sem limites e sem fundo, e os condenados, nadando e mergulhando neste abismo de fogo. O fogo os envolve, penetra-os, circula em suas veias, insinua-se até à medula dos ossos.

4. O Inferno é a eternidade  - 'Afasta-te pecador maldito, para o fogo'. A eternidade... quem pode compreendê-la! É um tempo que não acaba. Mil anos, milhões de anos, mil milhões de anos. Contai as gotas de água do oceano, os grãos de areia das praias, as folhas das árvores... a eternidade tem mais anos, mais séculos. Sempre! Nunca! Sempre queimar, sempre sofrer! Nunca o menor alívio, a menor esperança!

Se os condenados que estão no Inferno pudessem voltar à Terra, o que fariam? Procurariam outra vez a ocasião do pecado, as danças, os espetáculos, as tabernas, as casas de perdição? Não! Correriam para a igreja, ao pé do altar do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora, ao pé do confessor principalmente, para alcançar o perdão dos seus pecados. O que os condenados não podem mais, vós o podeis. Não estais no Inferno, mas talvez estejais no caminho do Inferno. Quanto antes, voltai para trás; talvez amanhã seja tarde.

(Excertos da obra 'O Pequeno Missionário', do Pe. Guilherme Vaessen, 1953)

sábado, 7 de junho de 2025

PALAVRAS ETERNAS (XXII)

 

'Minha misericórdia é maior que os seus pecados e os do mundo inteiro. Quem pode medir a extensão da minha bondade? Por você, desci do céu à terra; por você, deixei que me pregassem na cruz; por você, deixei que o meu Sagrado Coração fosse transpassado por uma lança, abrindo assim para você a fonte da misericórdia. Venha, então, com confiança, extrair graças desta fonte. Eu nunca rejeito um coração contrito. Sua miséria desaparece nas profundezas da minha misericórdia. Por que haveria então de discutir comigo a sua miséria? Você me dará alegria se me entregar todos os seus problemas e tristezas, pois Eu acumularei sobre elas os tesouros da minha graça'.

(Excertos do Diário de Santa Faustina)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXIV)

 

Exame sobre a Humildade para com Deus - Parte II

108. Há algumas pessoas que, sob o pretexto de praticar atos de humildade, desejam, de vez em quando, acusar-se na confissão de algum pecado grave e vergonhoso de sua vida passada. Se por acaso você estiver entre essas pessoas, cuidado para que isso não resulte mais de um desejo de parecer humilde do que de ser humilde na realidade. O amor próprio é astuto e sabe agir secretamente. Esta falta foi denunciada por São Bernardo: 'Quanto mais sutil é a confissão vaidosa, mais perigosamente prejudicial ela é, como quando, por exemplo, não temos vergonha de revelar nossos atos vergonhosos, não porque somos humildes, mas para parecermos ser assim. O que há de mais perverso ou vergonhoso do que a confissão, guardiã da humildade, servir sob a bandeira do orgulho?' [Serm. vi in Cant.].

Esse tipo de humildade nem sempre é desejável, mesmo fora do confessionário, porque pode facilmente nos levar a criar escândalo ao falar de certos pecados que nem deveriam ser mencionados. Se você tem essa estranha falta, não há razão para se orgulhar dela, mas sim para se envergonhar; pois, como diz o santo abade: 'Que espécie de orgulho é esse que você deseja ser melhor pelo que parece ser pior? Que você não pode ser considerado santo sem parecer ser mau?'

109. E também, após a confissão, você deve lembrar-se dos pecados que cometeu, a fim de despertar em seu coração sentimentos de vergonha e tristeza, humilhando-se diante de Deus. Mas você se lembra de exercitar-se nessa humildade? Esta é uma humildade de preceito. 'Toda a vida do cristão deve ser uma longa penitência' [Ses. I, cap. ii]. Assim fala o santo Concílio de Trento, onde toda a Igreja de Cristo se reuniu, e seus dogmas são infalíveis não menos em questões de moralidade do que em questões de fé.

O Concílio de Trento diz 'deve ser', que é uma fórmula não de exortação, mas de necessidade; e não prescreve penitências como flagelações, cilícios ou jejuns, mas fala de maneira geral; e não podemos interpretar o sentido dessas palavras com mais discrição do que dizendo: Se você não pode realizar certas penitências exteriores, não deve, contudo, negligenciar as penitências interiores que consistem na contrição e humilhação do coração, dizendo como Davi: 'Tem misericórdia de mim, ó Deus... porque pequei contra Vós' [Sl 41,4] e 'Um coração contrito e humilde, ó Deus, tu não desprezarás' [Sl 50,19]. Você pratica essa humildade penitencial? Ó meu Deus! Seus pecados são tão numerosos e, no entanto, você vive em absoluto esquecimento deles, como se fosse inocente! Você se lembra da obrigação que tem que pensar frequentemente: 'O que eu fiz? Que grande mal eu cometi para ofender a Deus'?' Reze a Deus para que Ele lhe dê luz para conhecer a gravidade do seu pecado, e você terá aquele contínuo pesar que o rei Davi tinha, se puder dizer com ele: 'Eu reconheço as minhas iniquidades'.

110. A sua própria fé pode ensinar-lhe como a humildade é necessária para que você se aproxime dignamente da Sagrada Comunhão. Mas, na sua preparação para esse Sacramento Divino e na sua ação de graças, você pratica os devidos atos de humildade? É verdade que você se ajoelha com toda a humildade exterior e bate no peito ao dizer Domine non sum dignus - Senhor, eu não sou digno - mas você tem realmente aquela verdadeira humildade de coração que convém a uma função tão sagrada?

O centurião foi santificado quando recebeu Jesus Cristo em sua própria casa, porque se preparou para recebê-lo com profunda humildade e disse, mais com o coração do que com os lábios: 'Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa'1 [Mt 8, 8]. Este mistério, mais do que outros, exige humildade, e quando o Filho de Deus se encarnou no ventre da Bem-Aventurada Virgem Maria, foi especialmente em virtude da humildade dela, 'porque Ele considerou a humildade da sua serva' [Lc 1,48]. Ó se você refletisse que é um Deus que você vai receber; mas você pensa nisso como o próprio Deus o exorta a fazer? - 'Aquietai-vos e vede que Eu sou Deus' [Sl 45,11].

111. Como você humilha o seu intelecto em relação aos mistérios da fé católica? Você tem curiosidade em buscar e desejar conhecer as razões das coisas que a Igreja propõe para sua crença, inclinando-se a se render mais ao raciocínio humano do que à autoridade divina? Em questões de fé, é muito necessário praticar a humildade, e quanto mais humilde for nossa crença, mais honra ela dá a Deus.

É por esta razão que a Sagrada Escritura, depois de ter dito que Deus é honrado pelos humildes, nos exorta enfaticamente a humilhar nosso intelecto: 'Ele é honrado pelos humildes. Não busque as coisas que são muito elevadas para você, e não investigue as coisas que estão acima de sua capacidade; mas as coisas que Deus lhe ordenou, pense nelas sempre, e em muitas de suas obras não seja curioso' [Eclo 3, 22]. Quando se trata de fé, o Apóstolo nos ensina que não devemos procurar saber o porquê e o motivo, mas humilhar qualquer dimensão do nosso entendimento em reverência humilde a Jesus Cristo, 'levando cativo todo entendimento à obediência a Deus' [2Cor 10,5]. Isso é extremamente necessário. E, especialmente quando temos tentações contra a fé, é necessário que nos humilhemos imediatamente, sem entrar em discussão ou disputa com o diabo. Mas você é prudente em tomar essas medidas imediatamente e diz como o rei Davi: 'Senhor, meu coração não se enche de orgulho, meu olhar não se levanta arrogante. Não procuro grandezas, nem coisas superiores a mim'? [Sl 130,1].

112. Mas se somos obrigados a humilhar nosso intelecto nas coisas que dizem respeito à nossa fé, não devemos humilhar menos nossa vontade de fazer aquilo que nos é ordenado. Nisso consiste principalmente a essência da verdadeira humildade, mas como você a observa? Você se humilha prontamente em obediência aos mandamentos divinos, convencido de que foi colocado neste mundo apenas para fazer a vontade de Deus e não a sua própria? Quando você recita o Pai Nosso, que pensamento você dá a estas palavras: 'Seja feita a tua vontade'? [Mt 6,10]. Quantas vezes você as diz apenas com os lábios e não com o coração?

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DO MÊS

sexta-feira, 23 de maio de 2025

SOBRE AS MÁS CONFISSÕES

Uma só coisa pode viciar a nossa confissão e torná-la 'má' ou sacrílega: omitir consciente e deliberadamente a manifestação de um pecado que temos a certeza de ser mortal e que deveríamos confessar. Proceder assim é não querer cumprir uma das condições que Deus nos pede para nos conceder o seu perdão. Se não nos 'abrimos' a Deus, Deus não abrirá o seu tribunal ao perdão. O trágico de uma má confissão é que produz uma reação em cadeia de pecados. 

A não ser que – e até que - retifiquemos a confissão inválida, cada confissão e cada comunhão posteriores serão um novo sacrilégio e um novo pecado se acrescentará ao anterior. Com o passar do tempo, a consciência poderá insensibilizar-se, mas nunca poderá ter verdadeira paz. Felizmente, uma má confissão pode ser corrigida com facilidade, desde que o penitente decida emendar-se. 

Basta que diga ao sacerdote: 'Certa vez fiz uma má confissão e agora quero corrigi-la'. O confessor tomará esta declaração como ponto de partida e, interrogando com compreensão, ajudará o pecador a descarregar-se do seu pecado. É necessário sublinhar a frase 'interrogando com compreensão'. A nossa relutância em confessar uma ação vergonhosa será muito menor se tivermos presente que aquele a quem nos dirigimos está cheio de compreensão e afeto. 

O sacerdote sentado do outro lado da grade do confessionário não está cheio de si nem disposto a franzir o sobrolho a cada falta que lhe comuniquemos. Ele também é humano. Ele também se confessa. Em vez de nos desprezar pelo que temos a dizer-lhe, admirará a humildade com que estaremos vencendo a nossa vergonha. Quanto maior for o nosso pecado, mais alegria daremos ao sacerdote com o nosso arrependimento. Se o sacerdote chegasse a saber quem é o penitente, seu apreço por ele não diminuiria; ao contrário, aumentaria pela sinceridade e confiança depositada no confessor.

(Excertos da obra 'A Fé Explicada', de Leo Trese)

quarta-feira, 21 de maio de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXIII)


Exame sobre a Humildade para com Deus - Parte I

102. O primeiro ato de humildade, diz São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 2 ad 3 ; et qu. clxii, art. 5], consiste em nos submetermos inteiramente a Deus com a maior reverência pela sua Majestade infinita, diante da qual somos como nada: 'Todas as nações estão diante dEle como se não tivessem existência alguma' [Is 6,17]. Mas alguma vez consideraste o teu nada diante de Deus? E que todo o ser que tens, vem de Deus? E que, por necessidade intrínseca, dependes tão inteiramente de Deus que, sem Ele, não podes fazer nada de bom - 'porque sem Mim nada podeis fazer' [Jo 15,5] - que, sem Deus, não pensas, nem dizes, nem fazes nada de bom?

Isto é artigo de fé. 'Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo' [1Cor 12, 3]. 'Não que sejamos capazes por nós mesmos de ter algum pensamento, como de nós mesmos. Nossa capacidade vem de Deus' [2Cor 3, 5].  'Porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar' [Fp 2,13]. Não basta dizer apenas que sei todas estas coisas, mas é necessário realizá-las para se tornar realmente humilde.

O Doutor Angélico ensina que a razão pela qual a humildade tende principalmente a tornar a alma submissa a Deus é porque esta virtude está mais próxima das virtudes teologais, e como não basta apenas saber em que coisas devemos acreditar ou esperar, mas que também é necessário que façamos atos de fé e de esperança, assim também devemos fazer atos semelhantes de humildade. O próprio Cristo ensinou a humildade do coração, e o coração não deve ficar ocioso, nem deixar de produzir os atos necessários. E que atos de humildade praticais perante Deus? Com que frequência os fazeis? Quando os fizeste? Há quanto tempo não os fazeis?

Seria absurdo esperar a recompensa que é prometida aos humildes sem ser humilde ou pelo menos sem o desejo de ser humilde; e sem fazer atos de humildade; humildade de coração sem que o coração se humilhe a si mesmo - que loucura! E sois suficientemente tolos para acreditar que isso pode ser feito? Às vezes, pronunciais certas palavras que parecem tender para a vossa humilhação; dizeis que sois um miserável desprezível, que não servis para nada, mas dizeis essas coisas sinceramente, de coração? Se receias mentir a ti mesmo, confirmando-as na tua mente, ouve o que São Tomás [Loc. cit. art. 6 ad 1] nos diz para nossa instrução, que cada um pode dizer e crer de si mesmo, com verdade, que é um miserável desprezível, remetendo para Deus toda a sua capacidade e talento.

103. Mas como devemos fazer estes atos práticos de humildade perante Deus? Vou dar-vos alguns exemplos. Podes imaginar-te agora na presença de Deus como um condenado que se humilha e implora misericórdia para o perdão dos seus pecados: 'Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia' [Sl 1,1]; ou como um mendigo miserável e necessitado que se humilha e pede uma esmola para o ajudar na sua necessidade: 'O pão nosso de cada dia nos dai hoje'; ou como o doente junto ao tanque de Betsaida, que se humilha perante o Salvador para ser curado da sua doença incurável: 'Senhor, não tenho ninguém...' [ Jo 5,7]; ou como aquele cego que se humilhou para que sua escuridão pudesse ser iluminada: 'Senhor, para que eu possa ver'; ou como a mulher cananeia que se humilhou e exclamou: 'Tem piedade de mim, Senhor, ajuda-me!' [Mt 15,22.25] e não se envergonha de se comparar aos cães que não são dignos de comer o pão do seu dono, mas se contentam em comer as migalhas que caem da sua mesa. A humildade do coração é ingênua e, da mesma forma que o nosso coração ama sem precisar de ser ensinado a amar, ele humilha-se sem precisar de ser ensinado a humilhar-se.

104. Há casos em que somos obrigados a fazer atos de virtude - como atos de fé, a esperança e caridade - que alguma necessidade, circunstância ou dever do nosso estado de vida nos exija, e há casos em que devemos fazer atos de humildade no nosso coração. Em primeiro lugar, é necessário humilharmo-nos quando nos aproximamos de Deus com a oração para obter alguma graça, porque Deus não olha, nem atende, nem dá a sua graça senão aos humildes. 'O Senhor olha para os humildes' [Sl 137,6 ]; 'sempre vos foram aceitas as preces dos mansos e humildes' [Jd 9,16]; 'Deus dá sua graça aos humildes' [Tg 4,6]. Quando, pois, vindes pedir a Deus alguma graça do corpo ou da alma, lembrai-vos sempre de praticar esta humildade?

Quando rezamos, e sobretudo quando dizemos o 'Pai Nosso', dirigimo-nos a Deus; e quantas vezes, ao dizerdes as vossas orações, vos dirigis a Deus com menos respeito do que se estivésseis a falar com um dos vossos semelhantes? Quantas vezes, quando estais na igreja, que é a casa de Deus, ouvis um sermão, que é a Palavra de Deus, e assistis às funções do serviço sem qualquer reverência? A humildade de coração, diz São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 2] é acompanhada pela reverência exterior, e faltar a esta é faltar à humildade e é, portanto, um pecado de orgulho.

105. Mas quanto mais essencial é para nós a graça que pedimos a Deus, tanto mais necessária é a humildade. Antes de ires ao tribunal da penitência, humilhas-te e pedes a Deus que te dê a dor dos teus pecados, necessária para a validade do sacramento? Como esta dor deve ser sobrenatural, é certo que nunca a poderias alcançar por ti mesmo, por mais que te esforçasses por senti-la. Só Deus pode dá-la, e é igualmente certo que não se trata de uma dívida que Ele tem para convosco, mas de uma grande graça que lhe apraz conferir-vos por sua bondade e sem qualquer mérito da vossa parte. Se, porém, desejais receber esta graça, deveis pedi-la com humildade, protestando de coração que não a mereceis, que não sois dignos de a receber e que só a esperais pelos méritos de Jesus Cristo. Mas praticais esta humildade, que é, pode-se dizer, de preceito para vós, porque é um meio essencial para obter a contrição?

106. O mesmo se pode dizer das vossas resoluções, que são igualmente necessárias para tornar válida a confissão. A confissão deve ser constante e eficaz, mas não o pode ser sem a ajuda especial de Deus. Pensais alguma vez em humilhar-vos e pedir esse auxílio, sabendo e confessando a vossa instabilidade e fraqueza, e que não sois capazes, por vós mesmos, de manter a menor resolução, nem de manhã à noite, nem mesmo de uma hora para outra? É por isso que caís tantas vezes nas mesmas faltas, porque vos falta a humildade. O homem verdadeiramente humilde é totalmente desconfiado de si mesmo e, pondo toda a sua confiança em Deus, é por Ele ajudado da maneira mais admirável: 'Humilha-te perante Deus e espera pelas suas mãos' [Eclo 13,9].

Quantas vezes não dizeis: 'Tomei esta firme resolução e tenciono mantê-la, não tenho medo de a quebrar', confiando iniquamente em ti mesmo, sem reconhecer de modo algum a ajuda divina? Cuidado para que não sejas contado entre os réprobos 'que foram destruídos confiando na sua própria força' [Eclo 16,8]. Se, mesmo que seja só um pouquinho, te apossares de ti mesmo, esse pouquinho pode ser a causa de uma grande ruína, segundo a predição de Jó: 'Levantam-se, subitamente já não existem; caem; como os outros' [Jó 24,24].

107. E como praticais a humildade na vossa confissão sacramental? É na vossa confissão que deveis humilhar-vos como um malfeitor culpado na presença do vosso Juiz. 'Humilha a tua alma diante de um ancião'  [Eclo 4, 7] Esse conselho vem do Espírito Santo. Quantas vezes não tentamos parecer inocentes no próprio ato de nos acusarmos de culpa - ora desculpando os nossos pecados, ora encobrindo ou diminuindo a sua malícia, ora pondo a culpa nos outros em vez de a assumirmos nós próprios? É uma verdadeira falta de humildade, e daquela humildade que não é de conselho, mas de preceito. Deveis dizer com Davi: 'Eu disse: confessarei ao Senhor a minha iniquidade' [Sl 31,5]. A vergonha que vos impede de confessar o vosso pecado com clareza e franqueza provém unicamente do orgulho.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 6 de maio de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXII)

 

100. Depois de Jesus Cristo, que é o Rei dos humildes, que belo exemplo de humildade temos na Santíssima Virgem Maria, que é a sua Rainha! Nenhuma criatura a superou em mérito, nem a ultrapassou em humildade. Pela sua humildade mereceu ser a Mãe de Deus, e só pela humildade conservou a dignidade e a honra da sublime Maternidade.

Imaginemos Maria no seu quarto em Nazaré, quando lhe foi anunciado pelo Arcanjo Gabriel que era chegado o momento de o Verbo Eterno se encarnar no seu seio, pela ação do Espírito Santo. Ela não mostra nenhum sinal de orgulho por ter sido abençoada entre as mulheres e escolhida para uma honra tão alta, mas, pelo contrário, ficou angustiada e 'perturbou-se com a sua palavra' [Lc 1,29], sem poder entender por que foi escolhida para uma honra tão grande. E o que é que ela exclama? Eu -  a Mãe de Deus! Eu, uma vil criatura, tornar-me a Mãe de Deus! Não sou senão a sua serva, e seria demasiada honra para mim ser sequer a sua serva. 'Eis aqui a serva do Senhor' [Lc 1,38]. Assim Maria humilhou-se tanto quanto estava ao seu alcance e continuou nesta profunda humildade durante toda a sua vida, comportando-se em todas as coisas como serva do Senhor, sem nunca atribuir a si própria a menor glória por ser sua Mãe. Que belo exemplo para nós! 

Por isso, se temos devoção a Nossa Senhora, devemos procurar imitá-la na sua humildade; e em todas as orações, comunhões e mortificações que fizermos em sua honra, peçamos-lhe sempre que nos obtenha, por sua intercessão, a graça da santa humildade. Não há nenhuma graça que a Virgem Santíssima peça tão prontamente a Jesus para os seus devotos, e que Jesus conceda tão prontamente a Maria, como a graça da humildade, pois tanto Jesus como Maria têm esta virtude em singular afeto. Recomendemo-nos à sua proteção e depositemos nela toda a nossa confiança, suplicando-lhe, pelo amor que ela própria tem à humildade, que nos conceda também a nós sermos verdadeiramente humildes de coração; e não duvidemos de que as nossas preces sinceras serão ouvidas e os nossos desejos atendidos.

Ó minha alma, é pela humildade que chegaremos ao Paraíso. E o que é que faremos no Paraíso? Lá, a prática de todas as outras virtudes cessa e só a caridade e a humildade permanecem. Veremos Deus e, ao vê-lo, saberemos que Ele é o Bem infinito; e este conhecimento perfeito trará consigo um amor mais perfeito, e quanto mais amarmos Deus, melhor o conheceremos, e quanto melhor o conhecermos, mais humildes seremos, praticando a humildade por toda a eternidade, como os antigos, vistos no Apocalipse pelo Apóstolo São João: 'Que se prostraram sobre os seus rostos e adoraram a Deus, dizendo: Graças Te damos, Senhor Deus todo-poderoso, que és, que eras e que hás-de vir' [Ap 11,17]. 

Comecemos a praticar na terra as virtudes que esperamos praticar para todo o sempre, através de todos os séculos, no Céu: 'Nosso Senhor Jesus Cristo humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por esta razão, também Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes' [Fp 2,8-9]. 'Livrai-me, Senhor, do homem mau, resgatai-me do homem injusto' [Sl 139,2]. Quem é esse homem mau e injusto de quem peço para ser libertado? É o meu eu interior, que é todo vício, corrupção e orgulho, isto é o mesmo que eu dizer: 'Livrai-me, Senhor, de mim mesmo, isto é, dai-me a graça de me emendar e de me reformar, a fim de que eu não seja mais a criatura terrena, mundana e orgulhosa que fui até agora, dominada pela paixão, mas que eu seja renovado e conformado ao espírito do meu humilde Mestre e Senhor Jesus Cristo' - 'Livrai-me, Senhor, do homem mau; resgatai-me do homem injusto'.

Oração

Ó Deus, que resistis aos soberbos e dais vossa graça aos humildes, concedei-nos a graça da verdadeira humildade, de que o vosso Filho Unigênito deu exemplo aos fiéis, para que nunca, ensoberbecidos pelo orgulho, incorramos na vossa cólera, mas para que, submissos à vossa vontade, recebamos os dons da vossa graça.

Exame Prático sobre a Virtude da Humildade

Agora que já conheceis a idéia da humildade, da sua necessidade, da sua excelência e dos seus motivos, estou persuadido de que se despertou no vosso coração um desejo ardente de a praticar. Mas, porque, por um lado, não o podeis fazer sem a ajuda especial de Deus e, por outro, Deus nada fará em vós sem a cooperação da vossa vontade, segue-se, portanto, que, depois de terdes invocado o auxílio divino, não duvidando senão de que o recebereis, deveis aplicar-vos a adotar os meios que mais vos ajudem a alcançar essa virtude. E porque todos os mestres de vida espiritual concordam nisto, que é mais eficaz fazer todos os dias um exame particular sobre a virtude que queremos adquirir, vou expor para vosso esclarecimento um exame prático sobre a humildade cristã; e, para que façais bom uso dele, dou-vos três conselhos.

O primeiro é que, ao fazerdes o vosso exame uma vez por dia, pelo menos, para assinalardes as faltas que porventura tenhais cometido contra a humildade, não escolhais mais do que uma ou duas das mais flagrantes que tenhais o hábito de cometer, e assim, depois de vos terdes habituado a emendá-las, passareis pouco a pouco às outras, até que o orgulho seja gradualmente erradicado e a humildade brote no vosso coração.

É assim também que devemos meditar. Certas resoluções gerais, tais como dominar o orgulho e praticar a humildade, nunca servem para nada; pelo contrário, geram frequentemente confusão e criam conflitos na mente: por isso é necessário entrar em pormenores sobre as coisas em que durante o dia fomos mais sensíveis às nossas imperfeições e, mesmo assim, não devemos formar uma intenção geral de não voltar a cair nelas durante toda a nossa vida, mas basta que tomemos a firme resolução de não voltar a cair nelas durante esse dia. Foi assim que o santo rei Davi tomou resoluções e as renovou, não tentando mantê-las de ano para ano, nem de mês para mês, mas de dia para dia: 'Pagarei os meus votos a cada dia' [SL 60,9]. E, para as manter, nunca é demais insistir na necessidade de impor a si mesmo uma penitência e de a cumprir fielmente. Por exemplo, quantas vezes eu não tiver cumprido as minhas resoluções de hoje, tantas vezes beijarei a chaga do lado de Cristo e recitarei devotamente tantas Ave-Marias...

A segunda é tomar estas faltas que constituem o objeto do nosso exame e acusarmo-nos delas nas nossas confissões, para nos envergonharmos ainda mais da nossa soberba diante de Deus, e também porque o sacramento da Penitência confere uma graça singular que nos ajuda a emendar as faltas de que nos acusamos, como ensina São Tomás [P. 3. qu. lxxxiv, art. 8 ad 1]. E embora nenhum desses defeitos possa absolutamente ser chamado de pecado, e sejam simplesmente imperfeições, não se segue que não devamos prestar atenção a eles, porque ou servem para nos manter no vício ou são um impedimento para a virtude.

Quando se trata de humildade, que é a virtude mais necessária para a nossa salvação eterna, é sempre melhor e mais seguro tê-la em excesso do que tê-la em falta. E é certo que aquele que se contenta em ter apenas a quantidade que lhe é absolutamente essencial nunca adquirirá realmente essa virtude. 'Se não vos tornardes como criancinhas, não podereis entrar no reino dos céus', disse o Salvador do mundo, e não temos outro meio de nos tornarmos como criancinhas senão eliminar o nosso amor-próprio pelo exercício vigoroso da humildade.

A terceira é que deves ler frequentemente este exame prático, para refletires seriamente sobre ti mesmo e veres como estás em relação à humildade, para que não sejas daqueles que se julgam humildes e não o são realmente. São Tomás diz que é próprio da humildade examinar as faltas cometidas contra qualquer virtude que seja. Quanto mais, portanto, deve examinar as faltas que se cometem contra essa mesma humildade!

Você encontrará muitos pontos pequenos nesse exame, mas se você se achar defeituoso em muitos deles, não deve considerá-los do ponto de vista de seu tamanho, mas de seu número, e quanto mais você descobrir que eles são habituais em você, mais eles devem enchê-lo de medo e apreensão. E na medida em que descobrir que não é humilde nesse ou naquele ponto, poderá inferir que é orgulhoso; e se esse exame sobre humildade apenas o ensinar a conhecer seu próprio orgulho, não será um ganho pequeno, porque começamos a ser humildes quando abrimos os olhos e reconhecemos que somos orgulhosos.

Muitas coisas consideradas em si mesmas são apenas um conselho; mas, em relação a tais e tais circunstâncias, elas podem, no entanto, ser obrigatórias, e são necessárias também para que não transgridamos o preceito, de acordo com o ensinamento de São Tomás [2a 2æ, qu. lxxii, art. 3; et qu. clxxxvi, art. 2] Em conclusão, você não deve fazer esse exame com escrúpulos ou muita ansiedade, como se toda imperfeição fosse um pecado e como se você tivesse a presunção de querer ser humilde de uma só vez, nem deve rejeitar com desprezo tudo o que não lhe parece positivamente de preceito.

Você deve ser solícito em seu desejo e vontade de adquirir humildade e deve ter diligência e cuidado para não omitir os meios que o levariam a obtê-la, e então, recomendando-se a Deus, continue a fazer esse exame de acordo com a inspiração de Deus e os ditames de sua própria consciência. Como a humildade pode ser considerada sob três aspectos diferentes, em relação a Deus, ao próximo e a nós mesmos, e praticada de duas maneiras, isto é, interior e exteriormente, segue-se, portanto, que podemos pecar dessas várias maneiras, assim como pecamos contra as leis de qualquer outra virtude, seja por nossos pensamentos, palavras, atos ou omissões. 

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 14 de abril de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXI)

 

97. É necessário discernir no Evangelho as coisas que são de conselho e as que são de preceito. Renunciar a tudo o que se tem e sofrer a pobreza por amor a Deus é só de conselho, mas renunciar a si mesmo e ser pobre de coração é de preceito. E, da mesma forma, certas humilhações exteriores podem ser apenas de conselho, mas a humildade de coração é sempre de preceito e, como não só é possível cumprir todos os preceitos de Deus, mas também, com a ajuda da sua graça, torna-se fácil e doce para nós praticá-los; até mesmo os leigos têm muitas grandes oportunidades de se tornarem santos simplesmente pelo exercício da humildade. Para fazer de um homem de mente mundana um santo, basta torná-lo um cristão.

Quando pensamentos como esses surgem nos recônditos secretos do coração: Eu fiz essa fortuna com meu conhecimento, com minha indústria; eu adquiri esse mérito, essa reputação por meu próprio valor, minha virtude, minha engenhosidade, é suficiente elevar o coração a Deus e dizer como o Homem Sábio: 'Como poderia subsistir qualquer coisa, se Vós não o tivésseis querido?' [Sb 11, 25]. Ó meu Deus, como eu poderia ter feito a menor coisa, se Vós não a tivésseis desejado? Essa é a verdadeira humildade e nela reside o verdadeiro conhecimento e a santidade. A alma é santa na medida em que é humilde, porque na mesma medida em que tem santidade, tem-se a graça, e na mesma medida em que tem a graça, tem-se a humildade, porque a graça só é dada aos humildes. Do fundo do meu coração, ó meu Deus, eu vos peço isso, e como o salmista eu exclamo: 'Renova em mim um espírito reto' [Sl 1, 12].

98. Mas o maior motivo que temos para nos obrigar a ser humildes é o exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo, que desceu do céu para nos ensinar a humildade de que tanto necessitamos para curar nosso orgulho, a causa de todos os nossos males e o maior impedimento para nossa salvação eterna. 'Portanto, Cristo' - diz São Tomás - 'nos recomendou a humildade acima de tudo, porque por ela, mais especialmente, todos os obstáculos à salvação dos homens são removidos' [2a 2æ, qu. clxxi, art. 5 ad 3].

E, na verdade, Ele nos ensinou de forma excelente, não apenas por palavras, mas por ações. Meditemos sobre a vida de nosso Senhor na terra, desde a gruta de Belém até a cruz do Calvário; tudo respira humildade. Mais de uma vez, Ele declarou no Evangelho que veio não para cumprir a sua própria vontade, mas a do seu Pai celestial; não para buscar a sua própria glória, mas a do seu Pai celestial; e assim como pregou, assim viveu. Ele poderia ter glorificado a Majestade Divina de diversas outras maneiras, mas, em sua infinita sabedoria, escolheu o caminho da humildade como o mais adequado para render a Deus, por sua própria humildade, a honra da qual o orgulho do homem o privou.

Que humildade nascer em um estábulo... Aquele que era o Rei da Glória! Que humildade nele, que era a própria inocência, aparecer como pecador na circuncisão! Que humildade na fuga para o Egito para escapar da perseguição de Herodes, como se Ele fosse incapaz de se salvar de outra forma que não fosse pela fuga! Que humildade em sua sujeição a Maria e José, Ele que era o Rei de todo o universo! Que humildade em viver por trinta anos uma vida oculta de pobreza, Ele que poderia ter sido cercado por todo o esplendor do mundo! Com que humildade Ele suportou todos os insultos e calúnias que recebeu em troca das verdades que pregou e dos milagres que realizou, sem nunca reclamar ou lamentar os males que lhe foram feitos, nem a injustiça que lhe foi mostrada! Oh, se alguém pudesse olhar em seu coração, veria que a sua humildade não era obrigatória, mas voluntária, 'porque era a sua própria vontade' [cf Is 53,7].

Ele desejou humilhar-se dessa forma para que pudéssemos torná-lo nosso modelo, e Ele diz a cada um de nós: 'Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também' [Jo 13,15], o que significa que Ele nos deu esse exemplo para que pudéssemos aprender a nos humilhar, assim como Ele se humilhou de coração. Ah, será que esses exemplos de um Deus que se tornou homem e se humilhou não são suficientes para despertar em nós o desejo de nos tornarmos humildes também? 'Que o homem tenha vergonha de ser orgulhoso' - diz Santo Agostinho - 'por causa de quem um Deus se tornou humilde' [Enarr. in Ps. xviii].

99. E que lições de humildade não podemos aprender com a sagrada Paixão de nosso Senhor? São Pedro nos diz que Jesus Cristo sofreu por nós, deixando-nos o seu exemplo para que pudéssemos imitá-lo: 'Também Cristo sofreu por nós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos' [1Pd 2,21]. Ele não pretende que devamos imitá-lo sendo açoitados, coroados de espinhos ou pregados na cruz. Não; mas em toda a sua vida, e especialmente durante a sua Paixão, Ele repete a importante exortação de que devemos aprender com Ele a ser humildes: 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração' [Mt 11,29].

Que a nossa alma possa contemplar o Crucificado, 'que suportou a cruz, desprezando a vergonha' [Hb 12,2] e, ao confrontar assim a sua humildade com o nosso orgulho, ficaremos cheios de vergonha e confusão. E aprendamos ainda outra lição. Parece-lhe bem adorar a humildade de Jesus Crucificado e não desejar imitá-lo? Professar seguir Jesus Cristo em sua religião, que se baseia na humildade, e ainda assim sentir aversão e até mesmo ódio por essa mesma humildade? Mas quando tantas vezes ouvimos dizer e pregar que todo aquele que deseja ser salvo deve imitar o Salvador, em que imaginamos que essa imitação, que nos é ordenada e que é necessária para nossa salvação, deveria consistir senão na humildade? É muito bom dizer que devemos imitar Jesus, mas em que devemos imitá-lo senão nessa humildade que é o resumo de toda a doutrina e dos exemplos da sua vida?

Pois aquele Humilde na Cruz será o nosso Juiz e sua humildade será o padrão pelo qual se verá se seremos predestinados por tê-la imitado ou eternamente condenados por tê-la rejeitado. É necessário que estejamos firmemente convencidos dessa verdade. Deus não nos propõe que todos nós imitemos o seu Filho encarnado em todos os mistérios da sua vida. A solidão e a austeridade que Ele suportou no deserto são reservadas apenas para a imitação dos anacoretas. Em seus ensinamentos, Ele deve ser imitado apenas pelos apóstolos e pregadores do seu Evangelho. Na realização de milagres, só podem imitá-lo aqueles que foram escolhidos por Ele para serem coadjutores no firmamento da fé. Nos sofrimentos e na agonia do Calvário, ninguém pode imitá-lo, a não ser aqueles a quem Ele concedeu o privilégio do martírio.

Mas a humildade de coração praticada por Jesus Cristo em todas as horas da sua vida na Terra é dada a todos nós como um exemplo que somos obrigados a seguir e, a essa imitação, Deus uniu a nossa salvação eterna: 'A menos que você se converta e se torne como uma criancinha' [Mt 18,3]. Podemos acreditar que Jesus Cristo estava comparando-se com uma criancinha que tinha diante de si quando disse então: 'se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus' [Mt 18,3].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 11 de abril de 2025

GALERIA DE ARTE SACRA (XLI)

Apeles de Cós foi um renomado pintor da Grécia antiga, considerado geralmente como o maior pintor da antiguidade. Uma de suas pinturas mais famosas foi 'A Calúnia' que, como as suas demais obras, se perderam por completo, mas cujo tema e detalhes da composição original foram descritos e conservados. Vários pintores renascentistas italianos, ciosos destas descrições, buscaram repetir os seus temas, como esta obra 'A Calúnia' de Sandro Botticelli (1445 - 1510), datada de 1494/95.

A pintura é composta por dez figuras emblemáticas: um rei detentor do poder de juiz, um jovem réu impotente ao veredito e personificações diversas das virtudes e dos vícios que envolvem o julgamento dos homens. A Calúnia - a jovem de azul e branco portando uma tocha acesa - arrasta o jovem inocente pelos cabelos e a nudez dele (que, com as mãos unidas, clama aos Céus por justiça) é uma constatação da sua inocência do crime de calúnia que lhe é imputado (exposto pelo simbolismo do corpo arrastado pelo chão e puxado pelos cabelos). Duas jovens - a Fraude ou Malícia (posicionada atrás da Calúnia) e a Perfídia (trajada em vermelho e amarelo) amparam e sustentam a figura da Calúnia, conformando um núcleo central comum do objeto da difamação. Um passo à frente, como sinal da origem da iniquidade, encontra-se a Inveja, dissimulada no homem encapuçado e acusador.


O juiz iníquo e desonesto é retratado pela aceitação passiva da ousadia da Inveja que empunha o seu braço acusador até a fronte do próprio rei, turvando-lhe a visão. A sentença justa é ainda mais abortada pela ação conjunta da Suspeição (em primeiro plano) e da Estupidez (ou Ignorância) ao fundo, que se precipitam sobre o juiz em seu momento de veredito (mão estendida para a frente, mas subjacente à do acusador). O rei teria, então, grandes orelhas de burro, símbolos de sua tolice e submissão.


Ao fundo da cena, como símbolos ausentes do enquadramento final do processo, a Verdade (nua e crua) e o Arrependimento (simbolizado por uma velha encurvada em vestes negras e desgastadas) agora estão juntos, mas igualmente vencidos. Na abordagem de reconstituição de uma pintura grega antiga, várias estátuas e frisos do período foram introduzidos para compor o cenário de fundo da obra retratada.

Uma reinterpretação do mesmo tema é apresentada na figura abaixo, que consiste na reconstituição da 'Calúnia de Apeles" pelas mãos do pintor holandês Cornelis Cort (1533 - 1578).

sexta-feira, 28 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XX)


93. Esforcemo-nos com todas as nossas forças para adquirir esta santa humildade; e se, com a ajuda de Deus, conseguirmos possuí-la apenas na medida em que o nosso estado de vida o exija, então ou alcançaremos impercetivelmente todas as outras virtudes ou esta humildade, por si só, bastará para compensar todas as nossas deficiências. Muitas pessoas desejam possuir a castidade ou a caridade, a doçura ou a paciência, ou qualquer outra virtude de que sejam mais necessitadas, e estão muito ansiosas por saber como devem adquiri-la; consultam vários diretores espirituais para saber que meios devem tomar, mas muito poucos exercem a devida prudência na escolha desses meios.

Desejais conhecer os meios mais eficazes para adquirir essas virtudes? Começai então por procurar adquirir a humildade; impregnai-vos de humildade, e vereis que todas as outras virtudes se seguirão sem qualquer esforço da vossa parte, e exclamareis com grande alegria 'com ela me vieram todos os bens' [Sb 7,11]. E mesmo quando, devido à fragilidade da tua própria natureza, fores deficiente em alguma virtude particular, humilha-te e essa humildade compensará plenamente as tuas outras deficiências.

Há quem se perturbe porque as suas orações estão cheias de distrações. Isso provém do orgulho, que é bastante presunçoso para se espantar com a fraqueza e a impotência do espírito. Quando perceberdes que o vosso pensamento está a divagar, fazei um ato de humildade e exclamai: 'Ó meu Deus, que criatura abjeta sou eu, não podendo fixar o meu pensamento em Vós, nem sequer por alguns instantes'. Renovai este ato de humildade todas as vezes que estas distrações ocorrerem e, se está escrito sobre a caridade que 'ela cobre uma multidão de pecados' (1Pd 4,8), o mesmo se aplica à humildade e contribui grandemente para a nossa perfeição. 'O próprio conhecimento da nossa imperfeição' - diz Santo Agostinho - 'tende ao louvor da humildade' [Lib. 3 ad Bonif., c. vii].

94. Temos mais oportunidades de praticar a humildade do que qualquer outra virtude. Quantas ocasiões temos de nos humilhar secretamente, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as ocasiões: para com Deus, para com os nossos semelhantes e até para conosco mesmos! Em relação a Deus: de quanto nos devemos envergonhar na nossa ignorância e ingratidão para com Ele, recebendo como recebemos contínuos benefícios da sua infinita bondade. Conhecendo a sua suprema e infinita majestade, merecedora de todo o temor; a sua infinita bondade, digna de todo o amor; quanto nos devemos humilhar ao pensar no pouco temor e amor que lhe temos! Em relação ao nosso próximo: se ele for mau, podemos humilhar-nos, pensando que somos capazes de nos tornarmos subitamente piores do que ele, e que, de fato, podemos considerar-nos já piores, se o orgulho predominar em nós. Se ele for bom, devemos humilhar-nos pensando que ele corresponde melhor do que nós à graça de Deus e é melhor do que nós por causa da sua humildade de coração. Em relação a nós mesmos, nunca nos faltam ocasiões de humildade quando recordamos os nossos pecados passados, ou consideramos as faltas que cometemos atualmente na nossa vida cotidiana, ou ainda quando refletimos sobre as nossas boas obras, todas elas manchadas de imperfeição, ou quando pensamos no futuro tão cheio de tremendas incertezas: 'Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância' [Fp 4,12], diz São Paulo. É necessário que criemos o bom hábito de renovar frequentemente estes atos interiores de humildade. A humildade não é mais do que um hábito virtuoso, mas como adquiri-lo sem fazer repetidos atos de humildade? Como o hábito da humildade, o hábito do orgulho é adquirido pela repetição frequente de seus atos e, à medida que o hábito da humildade se fortalece, o hábito contrário do orgulho se enfraquece e diminui.

95. Lúcifer só pecou uma vez por orgulho de pensamento. Não deveríamos, pois, considerar-nos piores do que Lúcifer, uma vez que o nosso orgulho tornou-se habitual pela repetição frequente de seus atos? Não nos consideramos orgulhosos porque não nos parece que sejamos suficientemente imprudentes em nossas mentes para acreditar que nos assemelhamos a Deus ou para nos rebelarmos contra Deus; mas este é o maior erro que podemos cometer, porque estamos cheios de orgulho e não reconheceremos que somos orgulhosos. Mesmo que não tenhamos orgulho suficiente para nos revoltarmos, para pensarmos ou falarmos contra Deus, devemos estar plenamente conscientes de que o orgulho que nos leva a agir é muito pior do que o orgulho do pensamento, e é aquele orgulho que é tão condenado por São Paulo: 'Eles professam que conhecem a Deus, mas em suas obras o negam' [Tt 1,16].

Como é grande o nosso amor-próprio! Será que alguma vez mortificamos as nossas paixões por amor de Deus, como Ele próprio ordenou? Quantas vezes preferimos seguir a nossa própria vontade em vez da vontade de Deus, e como a sua vontade é contrária à nossa, colocamo-nos em oposição a Ele e desejamos obter a nossa própria vontade em vez de cumprir a sua, valorizando mais a satisfação dos nossos desejos do que a obediência que devemos a Deus! Não será este um orgulho pior do que o de Lúcifer? Pois Lúcifer só queria igualar-se a Deus, ao passo que nós queremos elevar a nossa vontade acima da de Deus. Deves humilhar-te, ó minha alma, até abaixo de Lúcifer, e confessar que és mais orgulhosa do que ele!

96. Podemos comparar-nos àqueles que, sofrendo de mau hálito em consequência de alguma doença, tornam-se desagradáveis aos que deles se aproximam, embora eles próprios não o saibam. Da mesma forma, quando estamos corrompidos pelo orgulho interior, exalamos os sinais exteriores dele em nossas palavras, olhares e gestos e de mil outras maneiras, conforme a ocasião e, no entanto, embora nosso orgulho seja visível para todos os que se aproximam de nós, nós mesmos o ignoramos. Os que me conhecem consideram-me orgulhoso, e não se enganam, pois demonstro isso pela minha vaidade, arrogância, petulância e altivez. Só eu não me conheço tal como sou e se me questiono: sou orgulhoso? 'Não', respondo, oferecendo a mim próprio um incenso que é mais nauseabundo do que qualquer outra coisa.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 24 de março de 2025

quarta-feira, 12 de março de 2025

SOBRE PRESUNÇÃO E PROGRESSO ESPIRITUAL

A razão porque não somos melhores é que não queremos ser melhores; o pecador e o santo diferenciam-se apenas por uma série de pequeninas decisões que se tomam no recôndito do nosso coração. Em parte alguma encontram-se opostos tão próximos como no reino do espírito; um abismo separa o pobre do rico, o qual só se pode transpor com a ajuda de circunstâncias externas e de boa sorte. A linha que divide a ignorância da erudição é também profunda e extensa: tempo livre para o estudo e um espírito bem dotado são necessários para converter um ignorante em um homem culto. Mas a passagem do pecado à virtude, da mediocridade à santidade não precisa de 'sorte' e nem ajuda das circunstâncias externas. Pode realizar-se por um ato eficaz da vontade, em colaboração com a graça de Deus.

Santo Tomás diz-nos que 'não somos santos porque não queremos sê-lo'. Não diz, note-se bem, que não desejamos ser santos; muitos, na verdade, têm veleidades disso. Mas a simples veleidade é o desejo de que alguma coisa aconteça, sem que para isso ponhamos da nossa parte o trabalho. Querer significa que estamos dispostos a pagar as custas necessárias em esforço e em sacrifício. Por vezes iludimo-nos, imaginando que temos buscado ser melhores, quando, na verdade, fizemos muitas reservas e resolvemos não mudar muitos dos nossos modos de proceder.

Então o desejo é simplesmente uma veleidade. O segredo do progresso espiritual encontra-se no Credo: 'Desceu aos infernos; ao terceiro dia ressuscitou'. Cada um de nós também deve descer ao subconsciente, às regiões do nosso espírito que a treva envolve, porque é aqui que se ocultam as secretas reservas. Estas reservas não são facilmente vistas por nós, mas dão cor a tudo o que vemos; são como essas janelas coloridas que fazem chegar ao nosso intelecto a verdade da realidade externa mudada. A realidade é deformada, se temos reservas tais como preconceitos, hábitos de pecado, orgulho, avareza e inveja; qualquer destas coisas pode tornar-nos impossível um juízo honesto. A verdade é, então, distorcida, para a ajustar às nossas imperfeições; mentimos a nós próprios, para não ter de mudar, nem de abandonar estes hábitos tão estimados de pecado.

Muitos de nós passamos a nossa vida tendo de nós uma falsa ideia, que de modo nenhum queremos ceder; receamos a amargura de nos encontrarmos menos nobres do que gostamos de nos julgar. Coamos a realidade através de um crivo de amor-próprio, pondo de lado toda a verdade que nos incomode. Usar este critério pessoal de verdade é tão errado e vão como seria deixar às nossas preferências decidir qual tecla do piano é o lá médio. Podíamos fazer de conta que uma tecla mais fácil de tocar fosse esse lá médio, e agir de acordo com essa preferência; mas resultaria daí a desarmonia, não a harmonia. A realidade não pode ser forçada a adaptar-se aos nossos desejos.

Essas reservas a que nos prendemos, estas atitudes que teimamos em não abandonar ou mudar, afetam os nossos juízos e tornam-se falsos. Antes de podermos, algum dia, levantar-nos para alegria da realidade de Deus, temos de descer ao inferno, onde escondemos estas faltas que queremos desconhecer. Isto exige de nós uma análise plena de nós próprios à luz das imutáveis leis de Deus.

Há expressões da gíria, ou ditos populares, que recomendam que não se tenha presunção. Nada, de fato, se opõe tanto ao nosso progresso para Deus como o egoísmo, e o egoísta está sempre cheio de ilusões voluntárias, a respeito de si mesmo, de faltas 'sagradas', a que não quer renunciar, que nem mesmo quer confessar que as tem. Eis porque o egoísta, que existe em todos nós, tem necessidade urgente de uma inspeção desapiedada a todos os ângulos e cantos escondidos do espírito. Importa sobremaneira ver o que na realidade somos e não o que julgamos ser. Devemos amar mais a Verdade do que o nosso eu; devemos estar dispostos a renunciar a todas as nossas faltas que ainda não descobrimos se, enfim, queremos realmente nos tornar aptos para ver a Verdade como ela é.

Nada faz coxear tanto a nossa vida espiritual como estes 'parasitas' escondidos no motor da nossa alma. Podem ser uma ou outra das nossas faltas comuns, tais como a ganância, a acrimônia para com os outros, a inveja e o ódio. Aqueles que se esforçam por se aproximar cada vez mais de Deus sem autoanálise, admiram-se de sofrer tão frequentes derrotas: é invariavelmente por causa do Cavalo de Troia que está dentro deles, o defeito dominante ainda não reconhecido. Enquanto não for extirpado e confessado diante de Deus, com o desejo de o destruir, não existirá real progresso espiritual. Com justeza se exprimia Santo Agostinho, quando dizia: 'O Vosso melhor servo, Senhor, não é aquele que procura ouvir de Vós aquilo que ele mesmo quer, mas antes aquele que procura querer o que ouve de Vós'.

(Excertos da obra 'Rumo à Felicidade' do Venerável Fulton Sheen)

segunda-feira, 10 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XIX)


87. O erro está em termos uma opinião demasiado elevada daquilo a que o mundo chama de honra, estima e fama. Por mais que o mundo me louve ou honre, isso não pode aumentar nem um pouco o meu mérito ou a minha virtude; e também, se o mundo me vituperar, não pode tirar de mim nada do que tenho ou do que sou em mim mesmo. Conhecerei a vaidade da verdade à luz dessa vela bendita que terei na mão à hora da minha morte. De que me servirá, então, ter sido estimado e honrado por todo o mundo, se a minha consciência me convencer de pecado diante de Deus? Ah, que loucura seria para um nobre, possuidor de talentos que o tornariam querido pelo seu rei e o fariam um favorito na corte, se ele procurasse antes ser adulado por seus servos e servas, e encontrasse prazer em tal adulação miserável. Mas é uma loucura muito maior para um cristão, que poderia ganhar o louvor e a honra de Deus e de todos os anjos e santos no céu, procurar antes ser louvado e honrado pelos homens e gloriar-se nisso. Pela humildade, posso agradar a Deus, aos anjos e aos santos; portanto, não é um orgulho desprezível que me faz desejar a estima, o louvor e a aprovação dos homens, quando nos é dito que 'é aprovado aquele a quem Deus recomenda?' [2Cor 10,18].

O pensamento da morte é proveitoso para adquirir a humildade; e a humildade ajuda-nos muito a obter uma morte santa. Santa Catarina de Sena, pouco antes da sua morte, foi tentada a ter pensamentos de orgulho e vanglória por causa da sua própria santidade; mas a esta tentação ela respondeu: 'Dou graças a Deus por nunca ter sentido, em toda a minha vida, qualquer vanglória'. Oh, como é belo poder exclamar no leito de morte: 'Nunca conheci a vanglória'.

88. Mesmo admitindo o valor da estima e da fama do mundo, pelo simples fato de a amarmos e desejarmos no nosso coração, podemos deduzir daí quão grande é a virtude da humildade, pois, oferecendo a Deus tudo o que temos de tão precioso, juntamente com o nosso amor-próprio, oferecemos-lhe algo que estimamos muito. O voto de castidade é considerado heroico, porque assim sacrificamos a Deus os prazeres dos sentidos. O martírio é considerado heroico, porque o mártir oferece assim a sua vida em holocausto a Deus. E também é considerado heroico dar todos os seus bens aos pobres. Mas a nossa autoestima é certamente o que temos de mais precioso do que o dinheiro, a satisfação dos sentidos, ou mesmo a própria vida, porque muitas vezes arriscamos todas estas coisas em nome da nossa reputação. Assim, ao oferecermos a Deus a nossa autoestima com humildade, oferecemos aquilo que consideramos mais precioso.

Isto é verdadeiramente oferecer a Deus 'o sacrifício, o incenso e o perfume da lembrança' [Eclo 40,15]. Os que vivem no mundo podem muitas vezes ter mais mérito pela sua humildade de coração do que os que fazem votos de pobreza e castidade no claustro sagrado, porque é pela prática desta humildade que formamos em nós a 'nova criatura', sem a qual São Paulo nos diz que 'nem a circuncisão nem a incircuncisão valem nada' [Gl 6,15], o que equivale a dizer que, quer sejais sacerdote ou leigo, o vosso estado nada pode valer sem a humildade. A humildade sem a virgindade pode ser agradável a Deus, mas nunca a virgindade sem a humildade. As cinco virgens loucas não lhe foram desagradáveis? Vanitate superbiæ - diz Santo Agostinho. E se a própria Virgem agradou a Deus pela sua virgindade, mereceu também ser escolhida para ser sua Mãe pela sua humildade, como diz São Bernardo: 'Pela sua virgindade agradou a Deus, pela sua humildade o concebeu' [Hom. I sup. Missus est].

89. É muito fácil uma pessoa orgulhosa cair em pecados graves e terríveis; e, depois de ter caído, encontrar grande dificuldade em acusar-se deles no sacramento da penitência; porque, amando demasiado a sua autoestima e reputação e temendo perdê-las aos olhos do seu confessor, prefere cometer um sacrilégio a revelar a sua fraqueza. Procura um confessor que lhe seja desconhecido, para não se envergonhar; mas, se não se envergonhava de pecar, por que se envergonharia tanto de confessar o seu pecado, se não fosse por motivos de orgulho? Minha alma, dize a ti mesma: 'A razão pela qual não sinto verdadeira dor pelos meus pecados é a minha falta de humildade, pois é impossível que o coração sinta arrependimento ou contrição se não for humilde. Falta-me humildade, e é por isso que não tenho coragem de confessar os meus pecados com franqueza e sem desculpas'. Pede a Deus humildade; e, à medida que o teu coração se tornar mais humilde, sentirás uma dor mais profunda por o teres ofendido, e dessa humildade sincera as palavras fluirão sem dificuldade para os teus lábios, porque 'quem magoa um coração, nele excita a sensibilidade' [Eclo 22,24]. 

É o orgulho que nos compele a reter os nossos pecados no confessionário e a procurar amenizar a sua maldade com muitas desculpas. Ó orgulho maldito, causa de inúmeros sacrilégios! Mas, ó bendita humildade! O rei Davi foi humilde no seu arrependimento, porque não desculpou os seus pecados, mas acusou-se publicamente deles; nem pôs a culpa dos seus pecados nos outros, mas atribuiu-os apenas à sua própria maldade: 'Eu sou aquele que pecou' [2Rs 24,17]. Também Madalena, no seu arrependimento, não procurou Jesus Cristo num lugar escondido, mas procurou-o na casa do fariseu e quis mostrar-se pecadora diante de todos os convidados. Santo Agostinho, sendo verdadeiramente humilde no seu arrependimento, fez a confissão dos seus pecados a todo o mundo para sua maior confusão e vergonha.

90. É difícil para nós darmo-nos conta do nosso nada, e é difícil também referir todas as coisas a Deus sem reservar nada para nós mesmos, porque não é realmente nosso o nosso trabalho, a nossa diligência e a cooperação da nossa vontade? Admitamo-lo, mas se tirarmos a luz, a ajuda e a graça recebidas de Deus, o que é que nos resta de todas estas coisas? As nossas ações naturais só se tornam meritórias quando são amparadas espiritualmente por Cristo Jesus. É Jesus Cristo que eleva e enobrece todas as nossas ações que, por si sós, seriam totalmente insuficientes para nos proporcionar a glória da vida eterna.

O modo como a vontade é levada a cooperar com a graça é um mistério que não compreendemos completamente; mas é certo que, se formos para o céu, daremos graças pela nossa salvação unicamente à misericórdia de Deus: 'As misericórdias do Senhor cantarei para sempre' [Sl 88,2]. Podemos, pois, dizer com o santo rei Davi e estar plenamente persuadidos da sua verdade, que a natureza humana é mais fraca e mais impotente do que podemos imaginar, porque na natureza que recebemos de Deus só temos, pela queda de Adão, a ignorância do espírito, a fraqueza da razão, a corrupção da vontade, a desordem das paixões, a doença e a miséria do corpo. Não temos, portanto, nada em que nos gloriar, mas em tudo podemos encontrar motivos de humilhação. 'Humilha-te em todas as coisas' [Eclo 3,20] diz o Espírito Santo e Ele não nos diz para nos humilharmos apenas em algumas coisas, mas em todas - in omnibus.

91. A santa humildade é inimiga de certas especulações sutis; por exemplo: dizes que não podes compreender como é que tu próprio és um mero nada, no fazer e no ser, porque não podes deixar de saber que, na realidade, tu és alguma coisa e podes fazer muitas coisas; que não podes compreender porque é que és o maior de todos os pecadores, porque conheces tantos outros que são maiores pecadores do que tu; nem como é que mereces todos os vitupérios dos homens, quando sabes que não fizeste nenhuma ação digna de culpa mas, pelo contrário, muitas dignas de louvor.

Deves censurar-te por estares ainda tão longe da verdadeira humildade e pensares que podes compreender o sentido destas coisas. O verdadeiro humilde crê que é em si mesmo um simples nada, um pecador maior do que os outros, inferior a todos, digno de ser injuriado por todos por ser, mais do que todos, ingrato para com Deus. Ele sabe que este sentimento da sua consciência é absolutamente verdadeiro, e não se preocupa em investigar como é que isto torna-se verdade; o seu conhecimento é prático, e mesmo que ele não se compreenda a si próprio, e não possa explicar aos outros, com raciocínios sutis o que sente no seu coração, importa-se tão pouco com o fato de não o poder explicar como se importa com o fato de não poder explicar como é que o olho vê, a língua fala, o ouvido ouve. Daí se deduz que não é preciso ter grandes talentos para ser humilde e que, portanto, diante do tribunal de Deus, não será desculpa válida dizermos 'Não fui humilde porque não sabia, porque não compreendia, porque não estudava'. Podemos ter uma boa vontade, um bom coração, e não sermos inteligentes; e não há ninguém que não possa compreender esta verdade, que de Deus vem todo o bem que se possui e que ninguém tem nada de seu, exceto a sua própria malícia. 'A destruição é tua, ó Israel; teu socorro está somente em Mim' [Os 13,9], disse Deus pela boca do seu profeta.

92. A humildade é um meio poderoso de subjugar a tentação e, da mesma forma, as tentações servem para manter a humildade; porque é quando somos tentados que estamos praticamente conscientes de nossa própria fraqueza e da necessidade que temos da graça divina. É por isso que Deus permite que caiamos em tentação, reduzindo-nos por vezes ao próprio limite de sucumbir a ela, para que aprendamos a fraqueza da nossa virtude e o quanto precisamos do auxílio de Deus.

E até nisto podemos ver a infinita sabedoria de Deus, que dispôs que os próprios demônios, espíritos de orgulho, contribuíssem para nos tornar humildes, se soubéssemos aproveitar bem as nossas tentações. No entanto, devemos lembrar-nos de que, em todas as nossas tentações, a primeira coisa a fazer é exercitar a humildade que deriva de um conhecimento prático de nós mesmos e de como somos propensos ao mal, se Deus não estender a sua mão para nos refrear através da sua graça. Não esperemos para conhecer a nossa fraqueza até termos caído; mas conheçamo-la de antemão, e o conhecimento dela será um meio eficaz para nos impedir de cair. 'Antes da doença, toma-se um remédio; antes da doença, humilha-te' [Eclo 18, 20-21], diz a Sagrada Escritura. Os humildes nunca carecerão de graça no tempo da tentação e, com a ajuda dessa graça, tirarão proveito dessas mesmas tentações; pois a misericordiosa providência de Deus dispôs as coisas de tal modo que, com a ajuda especial da sua graça, Ele 'não deixará que nenhuma tentação se apodere de vós' [1Cor 10,13].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

AS TRÊS FASES DA VERDADEIRA MISERICÓRDIA


1. A misericórdia começa por ver o infortúnio do próximo

Não ver a miséria é coibir a misericórdia. A cegueira sobre o infortúnio do outro pode ser provocada pelo egoísmo e pelo individualismo, que nos tornam indiferentes. Não cuidar dos outros e do que os atinge: eis a razão principal dessa insensibilidade.

Para ser misericordioso verdadeiramente, o cristão deve fixar sobre os homens um olhar de fé. A fé leva a compreender profundamente o mal das almas. Por ela, a misericórdia focará em um pecado, uma desordem moral. Ao contrário, uma misericórdia falsificada pelo relativismo pretende ver no pecado e no erro apenas fraquezas, um bem menor. 

2. A visão da miséria do outro produz na alma um movimento de tristeza que a leva a se compadecer dessa miséria

Porém, a emoção da verdadeira misericórdia não é aquela da filantropia. A misericórdia cristã nasce da caridade, ela é teologal, em razão de Deus. Em particular, ela é tomada de compaixão pelos pecadores. E compadecer-se pelo pecado do outro não é certamente encorajá-lo em sua falta. É contemplar a santidade de Deus ofendida pela falta, e pensar na pena eterna que espera o pecador endurecido. 

3. A compaixão não basta a si mesma; a compaixão autêntica passa aos atos, ela tende a aliviar essa miséria, ela faz o que está ao seu alcance para socorrer o outro de modo eficaz

Aqui também o olhar da fé permite discernir as verdadeiras misérias do próximo. Algumas pessoas generosas gostariam de aliviar todas as misérias do mundo, mas se limitam às misérias materiais. Ora, o maior mal é o afastamento de Deus. 

A obra de misericórdia por excelência é, portanto, o testemunho da fé, o que chamamos de misericórdia da verdade. Somente o ensino da verdadeira religião tirará os homens da grande desgraça na qual eles se fecharam, por sua ignorância involuntária ou culposa. O liberalismo e o relativismo que se calam e mantém os homens em suas ilusões não são somente erros, mas uma assustadora indiferença.

(Pe. Hervé Gresland, texto publicado originalmente no blog Dominus Est)

sábado, 22 de fevereiro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XVIII)

79. Na verdade, ninguém deseja ser considerado orgulhoso pois, mesmo segundo os critérios mundanos, a maior acusação que se pode fazer a um homem é dizer que ele é orgulhoso. E, no entanto, poucos tentam evitar exatamente aquilo de que menos gostariam de ser acusados pelos outros. Se sentimos satisfação interna quando somos creditados com uma humildade que não possuímos, por que não nos esforçamos para adquirir aquilo com o qual gostamos de ser creditados? Se buscamos a sombra vã da humildade, isso significa que nos importamos muito pouco com a substância dessa virtude. Um homem que se contentaria com a aparência da virtude sem tentar adquiri-la de fato se assemelharia a um mercador que valoriza pérolas e gemas falsas mais do que as reais.

Ó minha alma, talvez tu também estejas entre aqueles que, sendo orgulhosos, ressentem-se da acusação de orgulho e desejam ser considerados humildes! Isso seria mentir para tua própria consciência, mentir para Deus, para os seus anjos e para os homens. Como diz São Paulo: 'Somos feitos um espetáculo para o mundo, para os anjos e para os homens' [1Cor 4,9]. É vergonhoso para nós desejar parecermos humildes quando não o somos. Há certas ocasiões em que, em nossos atos interiores, devemos praticar a humildade; mas devemos vigiar sobre nós mesmos cuidadosamente, para que ao praticá-la não queiramos ser considerados humildes. E é por isso que os atos ocultos de humildade são mais seguros do que os exteriores. Mas se há orgulho no desejo de que a humildade que temos seja reconhecida e conhecida, que medida de presunção não haveria no desejo de ser considerado humilde quando não temos humildade? Cuidemos para que as palavras da Sagrada Escritura não se apliquem a nós: 'Há aquele que se humilha perversamente, e seu interior está cheio de engano' [Eclo 19,23].

80. Quanto mais refletimos sobre essa grande virtude da humildade, mais devemos aprender a amá-la e honrá-la. É natural para a alma amar um bem que ela reconhece como tal, e não há dúvida de que amaremos a humildade quando reconhecermos seu valor intrínseco e o bem que dela resulta. Nosso amor pelo que é bom é medido pelo nosso conhecimento dele, e na mesma medida em que amamos, desejamos obtê-lo, e na medida em que o desejamos, abraçamos os meios mais apropriados e eficazes para adquiri-lo. Foi assim que o Sábio agiu para obter sabedoria. Ele a amou, desejou e orou por ela, e aplicou toda sua mente para possuí-la, tamanha era a estima em que a tinha: 'Por isso desejei, e a inteligência me foi dada, e a preferi aos reinos e tronos, e estimei as riquezas como nada em comparação com ela' [Sb 7,7].

É necessário compreender completamente essa doutrina, porque nunca conseguiremos adquirir humildade a menos que realmente a desejamos obtê-la; nem a desejaremos a menos que tenhamos aprendido a amá-la, nem a amaremos a menos que tenhamos percebido o que a humildade realmente é um grande e precioso bem, absolutamente essencial para o nosso bem-estar eterno. Considere por um momento em que estima você tem a humildade. Você a ama? Você a deseja? O que você faz para adquiri-la? Você pede essa virtude a Deus em suas orações? Você recorre à intercessão da Bem-aventurada Virgem? Você lê com vontade aqueles livros que tratam da humildade ou as vidas dos santos mais notáveis por sua humildade? 'Há uma certa vontade' - diz São Tomás - 'que é melhor ser chamada de desejo de querer do que a vontade absoluta em si mesma' [3ª parte, q. xxi, art. 4], pela qual parece que podemos querer uma coisa e ainda assim não querer. Portanto, examine-se e veja se seu desejo de humildade é apenas uma simples vontade passageira ou realmente está em sua vontade. 

81. Para ser humilde, devemos nos conhecer; e esse autoconhecimento é difícil, mas apenas por causa de nosso orgulho, cujo efeito principal é nos cegar. Portanto, para adquirir a virtude da humildade, devemos primeiro lutar contra e subjugar seu inimigo, o orgulho; e para superá-lo - tendo orado a Deus, como a valente Judite: 'Fazei, ó Senhor, que o seu orgulho seja cortado' [Jd 9,12] - três outras coisas são necessárias. Primeiramente, ao meditar sobre o assunto, devemos sentir ódio e aversão ao nosso orgulho, porque nunca conseguiremos nos livrar de todos os males que afetam nossa alma enquanto continuarmos a amá-los. Em segundo lugar, devemos fazer uma firme resolução de emenda a todo custo, porque, sob qualquer aspecto que consideremos, isso sempre será para nosso benefício. Em terceiro lugar, devemos imediatamente nos esforçar para arrancar todos os nossos hábitos de orgulho, especialmente os mais predominantes, pois é bem sabido que quanto mais tempo permitimos que um mau hábito cresça, mais forte ele se tornará, e maior será a nossa dificuldade em erradicá-lo: 'E eu disse, agora comecei' [Sl 76,11].

Não devemos perder o ânimo nem nos desanimar, mas confiar na misericórdia de Deus, o que é, acima de tudo, mais necessário: 'Confia ao Senhor a tua sorte, espera nele, e ele agirá' [Sl 36,5]. É pela graça de Deus que podemos vencer nossas numerosas paixões malignas, e é através dEle que podemos esperar subjugar nosso orgulho. Portanto, clamemos a Ele com o Rei Davi: 'meu benfeitor e meu refúgio, minha cidadela e meu libertador, meu escudo e meu asilo, que submete a mim os povos' [Sl 143,2]. 

82. Não é bom aplicarmos nossos esforços para erradicar um defeito, quando sabemos que, ao fazê-lo, nossos corações se alegrarão? E, portanto, não é verdade que, uma vez subjugado o nosso orgulho, que é a causa de tantos dos nossos problemas, seremos muito mais felizes? Sentimos uma aversão natural pelos orgulhosos e não podemos amá-los; mas será que este instinto de aversão que temos pelos orgulhosos não pode ser sentido por outros em relação a nós? Pois é verdade que 'o orgulho é prejudicial sempre' [Eclo 10,7]. Às vezes lamentamos que os outros não nos amem ou nos estimem. Vamos examinar a causa, e veremos que ela provém do nosso orgulho. Por outro lado, não vemos a afeição que geralmente é demonstrada aos humildes? Todos buscam sua companhia, todos depositam confiança neles, todos desejam o bem deles. Isso também aconteceria conosco se fôssemos humildes; e que felicidade sentiríamos ao amar e ser amados por todos! A princípio parece que esta é uma questão de respeito humano; mas é inspirada pela caridade, vem de Deus e do desejo de nos assemelhar a Ele. A humildade veste o mesmo traje que a caridade, que, como diz São Paulo, 'é paciente, é bondosa, não inveja, não se ufana, não é ambiciosa' [1Cor 13,4]. E é fácil revestir a humildade com as mesmas intenções virtuosas da caridade.

83. O orgulho é a raiz de todos os nossos vícios, de modo que, quando o arrancarmos de uma vez por todas, esses vícios desaparecerão, pouco a pouco, também. Esta é a verdadeira razão pela qual temos que acusar-nos dos mesmos pecados repetidamente em nossas confissões, porque nunca confessamos o orgulho, que é a raiz de todos eles. Não nos espantamos ao ver a figueira dando seus figos ano após ano e a macieira as suas maçãs. Não; porque cada árvore dá o seu próprio fruto. Da mesma forma, o orgulho está enraizado como uma árvore em nossos corações; e nossos pecados de ira, inveja, ódio, malícia, falta de caridade e julgamentos precipitados sobre os outros, que confessamos repetidamente, são o fruto do orgulho; mas como nunca atacamos a raiz desse orgulho, esses mesmos pecados, como galhos podados, sempre brotam novamente. Vamos nos esforçar para erradicar o orgulho de maneira completa, seguindo o conselho de São Bernardo: 'Coloque o machado na raiz' [Sermão 2 de Assunção], e então teremos grande alegria e consolação em nossa própria consciência.

Devemos considerar o orgulho como o rei de todos os vícios e seguir o sábio conselho dado pelo rei da Síria aos seus capitães: 'Não lutareis contra ninguém, grande ou pequeno, mas contra o rei somente' [1 Rs 23,31]. Judite também, ao matar o orgulhoso Holofernes, conquistou todo o exército assírio. E Davi triunfou sobre todos os filisteus ao matar o orgulhoso Golias; da mesma forma, também triunfaremos, porque ao conquistar o orgulho, teremos subjugado todos os outros vícios. O rei Davi errou em uma coisa, pois sabendo que Absalão era o chefe dos rebeldes, ainda assim ordenou que ele não fosse morto nem ferido: 'Salve-me o menino Absalão' [2Rs  17, 15]. Ai, quantos imitadores ele encontrou! Sabemos muito bem que o orgulho é o principal rebelde entre todas as nossas paixões, mas, no entanto, é o que mais parecemos respeitar, e quase temos medo de ofendê-lo, chegando até mesmo a demonstrar uma tendência a incentivá-lo.

84. Existem certos pecados que raramente ou nunca mencionamos em nossas confissões, seja porque nossa consciência é muito tranquila e flexível, ou talvez porque realmente não desejamos nos corrigir. O orgulho é um desses pecados; são poucos os que se acusam dele; mas aqueles que realmente desejam corrigir suas vidas devem torná-lo um assunto especial de seu exame e confissão, a fim de aprender a odiá-lo e se arrepender dele; e fazer resoluções firmes de emenda para o futuro.

Quem deseja fazer uma boa confissão não deve apenas confessar os seus pecados, mas também a razão e a ocasião do pecado; dizendo, por exemplo: 'Acuso-me de ter me deleitado com pensamentos impuros, causados pela falta de guarda dos olhos, liberdade excessiva de palavras e comportamento frívolo'. E, da mesma forma, devemos confessar nossos pecados de orgulho, dizendo: 'Acuso-me de ter me irritado e incomodado com aqueles ao meu redor, e a única razão da minha ira e incômodo foi o meu orgulho. Acuso-me de ter invejado e até de ter tomado o que pertencia a outros, apenas para satisfazer o meu orgulho e vaidade. Também falei com desprezo do meu próximo, e isso novamente por causa do meu orgulho, que não suporta que ninguém seja considerado superior a mim'. Continue examinando todos os seus defeitos da mesma forma, e você encontrará a verdade nas palavras inspiradas:

'O espírito se eleva antes da queda' [Pv 16,18] e 'Antes da destruição, o coração do homem se exalta' [Pv 18,12]. Para subjugar o nosso orgulho, é bom mortificá-lo e envergonhá-lo por meio dessas acusações, que também são atos de virtuosa humildade, mas é mais necessário ainda insistir em nossa própria emenda, pois 'De que adianta humilhar-se aquele que faz o mesmo novamente?' [Eclo 34,31]. Não basta confessarmos nossos pecados, diz as Sagradas Escrituras, mas também é necessário emendá-los para obter a misericórdia de Deus: 'Quem confessar seus pecados e os abandonar, obterá misericórdia' [Pv 28,13].

85. A humildade de coração, ensina São Tomás, não tem limite pois, diante de Deus, podemos sempre nos humilhar mais e mais, até a total nulidade, e podemos fazer o mesmo em relação aos nossos semelhantes. Mas no exercício desses atos exteriores de humildade, é necessário agir com discrição para não cair em uma extravagância que possa parecer excessiva. 'A humildade' - diz São Tomás - 'reside principalmente na alma', e, portanto, um homem pode se submeter a outro no que diz respeito aos seus atos interiores, e é isso que São Agostinho quer dizer quando afirma: 'Diante de Deus, um prelado é colocado sob seus pés mas, nos atos exteriores de humildade, é necessário observar a devida moderação' [2a 2æ, q. clxi, art. 3 ad 3].

Uma profunda humildade deve existir em todo estado de vida, mas os atos exteriores de humildade não são aconselháveis para todos. Por isso, as Escrituras Sagradas dizem: 'Cuidado para não ser enganado pela loucura e ser humilhado' [Eclo 13,10]. Podemos aprender com a piedosa Ester como praticar a humildade de coração em meio à pompa e aos louvores: 'Tu sabes da minha necessidade' - ela clamou a Deus 'que abomino o sinal do meu orgulho' [Est 14,16]. Eu me visto com essa roupa rica e com essas joias porque minha posição exige, mas Tu, Senhor, vês o meu coração, que pela Tua graça não tenho apego a essas coisas nem a essa vestimenta, e que só as uso por necessidade. Aqui, de fato, está um grande exemplo daquela verdadeira humildade interior que pode ser praticada e sentida em meio à grandeza externa. Mas agora chegamos ao ponto. Esta humildade de coração deve realmente existir diante de Deus, cujos olhos contemplam os movimentos mais ocultos do coração; e se ela não existir, que desculpa podemos alegar diante do tribunal de Deus para nos justificarmos por não tê-la? E quanto mais facilmente a teríamos adquirido agora, mais inaceitável será para nós no dia do Juízo.

86. A malícia do orgulho reside, na realidade, no desprezo prático que mostramos pela vontade de Deus ao desobedecê-la. Assim, diz São Agostinho, há orgulho em todo pecado cometido, 'pelo qual desprezamos os mandamentos de Deus' [Lib. de. Salut. docum. c. xix]. E São Bernardo explica da seguinte forma: 'Deus nos manda fazer a sua vontade, Deus deseja que a sua vontade seja feita'; e o pecador, em seu orgulho, prefere a sua própria vontade à vontade de Deus: 'E o homem orgulhoso deseja que sua própria vontade seja feita'.

E é esse orgulho que aumenta tanto a gravidade do pecado; e quão grande deve ser o nosso pecado quando, sabendo em nossas mentes que Deus merece ser obedecido por nós, nos opomos à nossa vontade, à vontade de Deus, a quem sabemos ser digno de toda obediência. Que maldade há em dizer a Deus: 'Não servirei' [Jr 2,20] quando sabemos que todas as coisas servem a Ele [Sl 128,91]. Para ilustrar isso, imaginemos uma pessoa dotada das qualidades mais nobres possíveis, como saúde, beleza, riquezas e nobreza e com todo talento natural e graça do corpo e da alma. Agora, pouco a pouco, vamos retirar dessa pessoa todos esses dons que vêm de Deus. A saúde e a beleza são dons de Deus; as riquezas e a posição social, o conhecimento e a sabedoria, e todas as outras virtudes vêm de Deus; o corpo e a alma pertencem a Deus. E, sendo assim, o que resta para essa pessoa de sua própria posse? Nada; porque tudo o que é mais do que nada pertence a Deus.

Mas quando essa pessoa diz de si mesma: 'Eu tenho riquezas, tenho saúde e tenho conhecimento', o que significa esse 'eu'? Nada e, no entanto, esse 'eu', esse nada, que deriva tudo o que possui de Deus, ousa desconsiderar esse mesmo Deus desobedecendo aos seus soberanos mandamentos, dizendo-lhe, se não em palavras, certamente em atos, o que é muito pior: 'Não servirei'; não, não obedecerei. Ah, orgulho, orgulho! Mas, ó minha alma, 'por que teu espírito se exalta contra Deus?' [Tb 15,13]. Não estou certo em pregar e recomendar essa humildade a ti? Cada vez que tu pecas, és como o orgulhoso Faraó que, quando foi instruído a obedecer aos mandamentos de Deus, disse: 'Quem é esse Deus? Eu não o conheço' [Ex 5,2].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)