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segunda-feira, 14 de abril de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXI)

 

97. É necessário discernir no Evangelho as coisas que são de conselho e as que são de preceito. Renunciar a tudo o que se tem e sofrer a pobreza por amor a Deus é só de conselho, mas renunciar a si mesmo e ser pobre de coração é de preceito. E, da mesma forma, certas humilhações exteriores podem ser apenas de conselho, mas a humildade de coração é sempre de preceito e, como não só é possível cumprir todos os preceitos de Deus, mas também, com a ajuda da sua graça, torna-se fácil e doce para nós praticá-los; até mesmo os leigos têm muitas grandes oportunidades de se tornarem santos simplesmente pelo exercício da humildade. Para fazer de um homem de mente mundana um santo, basta torná-lo um cristão.

Quando pensamentos como esses surgem nos recônditos secretos do coração: Eu fiz essa fortuna com meu conhecimento, com minha indústria; eu adquiri esse mérito, essa reputação por meu próprio valor, minha virtude, minha engenhosidade, é suficiente elevar o coração a Deus e dizer como o Homem Sábio: 'Como poderia subsistir qualquer coisa, se Vós não o tivésseis querido?' [Sb 11, 25]. Ó meu Deus, como eu poderia ter feito a menor coisa, se Vós não a tivésseis desejado? Essa é a verdadeira humildade e nela reside o verdadeiro conhecimento e a santidade. A alma é santa na medida em que é humilde, porque na mesma medida em que tem santidade, tem-se a graça, e na mesma medida em que tem a graça, tem-se a humildade, porque a graça só é dada aos humildes. Do fundo do meu coração, ó meu Deus, eu vos peço isso, e como o salmista eu exclamo: 'Renova em mim um espírito reto' [Sl 1, 12].

98. Mas o maior motivo que temos para nos obrigar a ser humildes é o exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo, que desceu do céu para nos ensinar a humildade de que tanto necessitamos para curar nosso orgulho, a causa de todos os nossos males e o maior impedimento para nossa salvação eterna. 'Portanto, Cristo' - diz São Tomás - 'nos recomendou a humildade acima de tudo, porque por ela, mais especialmente, todos os obstáculos à salvação dos homens são removidos' [2a 2æ, qu. clxxi, art. 5 ad 3].

E, na verdade, Ele nos ensinou de forma excelente, não apenas por palavras, mas por ações. Meditemos sobre a vida de nosso Senhor na terra, desde a gruta de Belém até a cruz do Calvário; tudo respira humildade. Mais de uma vez, Ele declarou no Evangelho que veio não para cumprir a sua própria vontade, mas a do seu Pai celestial; não para buscar a sua própria glória, mas a do seu Pai celestial; e assim como pregou, assim viveu. Ele poderia ter glorificado a Majestade Divina de diversas outras maneiras, mas, em sua infinita sabedoria, escolheu o caminho da humildade como o mais adequado para render a Deus, por sua própria humildade, a honra da qual o orgulho do homem o privou.

Que humildade nascer em um estábulo... Aquele que era o Rei da Glória! Que humildade nele, que era a própria inocência, aparecer como pecador na circuncisão! Que humildade na fuga para o Egito para escapar da perseguição de Herodes, como se Ele fosse incapaz de se salvar de outra forma que não fosse pela fuga! Que humildade em sua sujeição a Maria e José, Ele que era o Rei de todo o universo! Que humildade em viver por trinta anos uma vida oculta de pobreza, Ele que poderia ter sido cercado por todo o esplendor do mundo! Com que humildade Ele suportou todos os insultos e calúnias que recebeu em troca das verdades que pregou e dos milagres que realizou, sem nunca reclamar ou lamentar os males que lhe foram feitos, nem a injustiça que lhe foi mostrada! Oh, se alguém pudesse olhar em seu coração, veria que a sua humildade não era obrigatória, mas voluntária, 'porque era a sua própria vontade' [cf Is 53,7].

Ele desejou humilhar-se dessa forma para que pudéssemos torná-lo nosso modelo, e Ele diz a cada um de nós: 'Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também' [Jo 13,15], o que significa que Ele nos deu esse exemplo para que pudéssemos aprender a nos humilhar, assim como Ele se humilhou de coração. Ah, será que esses exemplos de um Deus que se tornou homem e se humilhou não são suficientes para despertar em nós o desejo de nos tornarmos humildes também? 'Que o homem tenha vergonha de ser orgulhoso' - diz Santo Agostinho - 'por causa de quem um Deus se tornou humilde' [Enarr. in Ps. xviii].

99. E que lições de humildade não podemos aprender com a sagrada Paixão de nosso Senhor? São Pedro nos diz que Jesus Cristo sofreu por nós, deixando-nos o seu exemplo para que pudéssemos imitá-lo: 'Também Cristo sofreu por nós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos' [1Pd 2,21]. Ele não pretende que devamos imitá-lo sendo açoitados, coroados de espinhos ou pregados na cruz. Não; mas em toda a sua vida, e especialmente durante a sua Paixão, Ele repete a importante exortação de que devemos aprender com Ele a ser humildes: 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração' [Mt 11,29].

Que a nossa alma possa contemplar o Crucificado, 'que suportou a cruz, desprezando a vergonha' [Hb 12,2] e, ao confrontar assim a sua humildade com o nosso orgulho, ficaremos cheios de vergonha e confusão. E aprendamos ainda outra lição. Parece-lhe bem adorar a humildade de Jesus Crucificado e não desejar imitá-lo? Professar seguir Jesus Cristo em sua religião, que se baseia na humildade, e ainda assim sentir aversão e até mesmo ódio por essa mesma humildade? Mas quando tantas vezes ouvimos dizer e pregar que todo aquele que deseja ser salvo deve imitar o Salvador, em que imaginamos que essa imitação, que nos é ordenada e que é necessária para nossa salvação, deveria consistir senão na humildade? É muito bom dizer que devemos imitar Jesus, mas em que devemos imitá-lo senão nessa humildade que é o resumo de toda a doutrina e dos exemplos da sua vida?

Pois aquele Humilde na Cruz será o nosso Juiz e sua humildade será o padrão pelo qual se verá se seremos predestinados por tê-la imitado ou eternamente condenados por tê-la rejeitado. É necessário que estejamos firmemente convencidos dessa verdade. Deus não nos propõe que todos nós imitemos o seu Filho encarnado em todos os mistérios da sua vida. A solidão e a austeridade que Ele suportou no deserto são reservadas apenas para a imitação dos anacoretas. Em seus ensinamentos, Ele deve ser imitado apenas pelos apóstolos e pregadores do seu Evangelho. Na realização de milagres, só podem imitá-lo aqueles que foram escolhidos por Ele para serem coadjutores no firmamento da fé. Nos sofrimentos e na agonia do Calvário, ninguém pode imitá-lo, a não ser aqueles a quem Ele concedeu o privilégio do martírio.

Mas a humildade de coração praticada por Jesus Cristo em todas as horas da sua vida na Terra é dada a todos nós como um exemplo que somos obrigados a seguir e, a essa imitação, Deus uniu a nossa salvação eterna: 'A menos que você se converta e se torne como uma criancinha' [Mt 18,3]. Podemos acreditar que Jesus Cristo estava comparando-se com uma criancinha que tinha diante de si quando disse então: 'se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus' [Mt 18,3].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 11 de abril de 2025

GALERIA DE ARTE SACRA (XLI)

Apeles de Cós foi um renomado pintor da Grécia antiga, considerado geralmente como o maior pintor da antiguidade. Uma de suas pinturas mais famosas foi 'A Calúnia' que, como as suas demais obras, se perderam por completo, mas cujo tema e detalhes da composição original foram descritos e conservados. Vários pintores renascentistas italianos, ciosos destas descrições, buscaram repetir os seus temas, como esta obra 'A Calúnia' de Sandro Botticelli (1445 - 1510), datada de 1494/95.

A pintura é composta por dez figuras emblemáticas: um rei detentor do poder de juiz, um jovem réu impotente ao veredito e personificações diversas das virtudes e dos vícios que envolvem o julgamento dos homens. A Calúnia - a jovem de azul e branco portando uma tocha acesa - arrasta o jovem inocente pelos cabelos e a nudez dele (que, com as mãos unidas, clama aos Céus por justiça) é uma constatação da sua inocência do crime de calúnia que lhe é imputado (exposto pelo simbolismo do corpo arrastado pelo chão e puxado pelos cabelos). Duas jovens - a Fraude ou Malícia (posicionada atrás da Calúnia) e a Perfídia (trajada em vermelho e amarelo) amparam e sustentam a figura da Calúnia, conformando um núcleo central comum do objeto da difamação. Um passo à frente, como sinal da origem da iniquidade, encontra-se a Inveja, dissimulada no homem encapuçado e acusador.


O juiz iníquo e desonesto é retratado pela aceitação passiva da ousadia da Inveja que empunha o seu braço acusador até a fronte do próprio rei, turvando-lhe a visão. A sentença justa é ainda mais abortada pela ação conjunta da Suspeição (em primeiro plano) e da Estupidez (ou Ignorância) ao fundo, que se precipitam sobre o juiz em seu momento de veredito (mão estendida para a frente, mas subjacente à do acusador). O rei teria, então, grandes orelhas de burro, símbolos de sua tolice e submissão.


Ao fundo da cena, como símbolos ausentes do enquadramento final do processo, a Verdade (nua e crua) e o Arrependimento (simbolizado por uma velha encurvada em vestes negras e desgastadas) agora estão juntos, mas igualmente vencidos. Na abordagem de reconstituição de uma pintura grega antiga, várias estátuas e frisos do período foram introduzidos para compor o cenário de fundo da obra retratada.

Uma reinterpretação do mesmo tema é apresentada na figura abaixo, que consiste na reconstituição da 'Calúnia de Apeles" pelas mãos do pintor holandês Cornelis Cort (1533 - 1578).

sexta-feira, 28 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XX)


93. Esforcemo-nos com todas as nossas forças para adquirir esta santa humildade; e se, com a ajuda de Deus, conseguirmos possuí-la apenas na medida em que o nosso estado de vida o exija, então ou alcançaremos impercetivelmente todas as outras virtudes ou esta humildade, por si só, bastará para compensar todas as nossas deficiências. Muitas pessoas desejam possuir a castidade ou a caridade, a doçura ou a paciência, ou qualquer outra virtude de que sejam mais necessitadas, e estão muito ansiosas por saber como devem adquiri-la; consultam vários diretores espirituais para saber que meios devem tomar, mas muito poucos exercem a devida prudência na escolha desses meios.

Desejais conhecer os meios mais eficazes para adquirir essas virtudes? Começai então por procurar adquirir a humildade; impregnai-vos de humildade, e vereis que todas as outras virtudes se seguirão sem qualquer esforço da vossa parte, e exclamareis com grande alegria 'com ela me vieram todos os bens' [Sb 7,11]. E mesmo quando, devido à fragilidade da tua própria natureza, fores deficiente em alguma virtude particular, humilha-te e essa humildade compensará plenamente as tuas outras deficiências.

Há quem se perturbe porque as suas orações estão cheias de distrações. Isso provém do orgulho, que é bastante presunçoso para se espantar com a fraqueza e a impotência do espírito. Quando perceberdes que o vosso pensamento está a divagar, fazei um ato de humildade e exclamai: 'Ó meu Deus, que criatura abjeta sou eu, não podendo fixar o meu pensamento em Vós, nem sequer por alguns instantes'. Renovai este ato de humildade todas as vezes que estas distrações ocorrerem e, se está escrito sobre a caridade que 'ela cobre uma multidão de pecados' (1Pd 4,8), o mesmo se aplica à humildade e contribui grandemente para a nossa perfeição. 'O próprio conhecimento da nossa imperfeição' - diz Santo Agostinho - 'tende ao louvor da humildade' [Lib. 3 ad Bonif., c. vii].

94. Temos mais oportunidades de praticar a humildade do que qualquer outra virtude. Quantas ocasiões temos de nos humilhar secretamente, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as ocasiões: para com Deus, para com os nossos semelhantes e até para conosco mesmos! Em relação a Deus: de quanto nos devemos envergonhar na nossa ignorância e ingratidão para com Ele, recebendo como recebemos contínuos benefícios da sua infinita bondade. Conhecendo a sua suprema e infinita majestade, merecedora de todo o temor; a sua infinita bondade, digna de todo o amor; quanto nos devemos humilhar ao pensar no pouco temor e amor que lhe temos! Em relação ao nosso próximo: se ele for mau, podemos humilhar-nos, pensando que somos capazes de nos tornarmos subitamente piores do que ele, e que, de fato, podemos considerar-nos já piores, se o orgulho predominar em nós. Se ele for bom, devemos humilhar-nos pensando que ele corresponde melhor do que nós à graça de Deus e é melhor do que nós por causa da sua humildade de coração. Em relação a nós mesmos, nunca nos faltam ocasiões de humildade quando recordamos os nossos pecados passados, ou consideramos as faltas que cometemos atualmente na nossa vida cotidiana, ou ainda quando refletimos sobre as nossas boas obras, todas elas manchadas de imperfeição, ou quando pensamos no futuro tão cheio de tremendas incertezas: 'Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância' [Fp 4,12], diz São Paulo. É necessário que criemos o bom hábito de renovar frequentemente estes atos interiores de humildade. A humildade não é mais do que um hábito virtuoso, mas como adquiri-lo sem fazer repetidos atos de humildade? Como o hábito da humildade, o hábito do orgulho é adquirido pela repetição frequente de seus atos e, à medida que o hábito da humildade se fortalece, o hábito contrário do orgulho se enfraquece e diminui.

95. Lúcifer só pecou uma vez por orgulho de pensamento. Não deveríamos, pois, considerar-nos piores do que Lúcifer, uma vez que o nosso orgulho tornou-se habitual pela repetição frequente de seus atos? Não nos consideramos orgulhosos porque não nos parece que sejamos suficientemente imprudentes em nossas mentes para acreditar que nos assemelhamos a Deus ou para nos rebelarmos contra Deus; mas este é o maior erro que podemos cometer, porque estamos cheios de orgulho e não reconheceremos que somos orgulhosos. Mesmo que não tenhamos orgulho suficiente para nos revoltarmos, para pensarmos ou falarmos contra Deus, devemos estar plenamente conscientes de que o orgulho que nos leva a agir é muito pior do que o orgulho do pensamento, e é aquele orgulho que é tão condenado por São Paulo: 'Eles professam que conhecem a Deus, mas em suas obras o negam' [Tt 1,16].

Como é grande o nosso amor-próprio! Será que alguma vez mortificamos as nossas paixões por amor de Deus, como Ele próprio ordenou? Quantas vezes preferimos seguir a nossa própria vontade em vez da vontade de Deus, e como a sua vontade é contrária à nossa, colocamo-nos em oposição a Ele e desejamos obter a nossa própria vontade em vez de cumprir a sua, valorizando mais a satisfação dos nossos desejos do que a obediência que devemos a Deus! Não será este um orgulho pior do que o de Lúcifer? Pois Lúcifer só queria igualar-se a Deus, ao passo que nós queremos elevar a nossa vontade acima da de Deus. Deves humilhar-te, ó minha alma, até abaixo de Lúcifer, e confessar que és mais orgulhosa do que ele!

96. Podemos comparar-nos àqueles que, sofrendo de mau hálito em consequência de alguma doença, tornam-se desagradáveis aos que deles se aproximam, embora eles próprios não o saibam. Da mesma forma, quando estamos corrompidos pelo orgulho interior, exalamos os sinais exteriores dele em nossas palavras, olhares e gestos e de mil outras maneiras, conforme a ocasião e, no entanto, embora nosso orgulho seja visível para todos os que se aproximam de nós, nós mesmos o ignoramos. Os que me conhecem consideram-me orgulhoso, e não se enganam, pois demonstro isso pela minha vaidade, arrogância, petulância e altivez. Só eu não me conheço tal como sou e se me questiono: sou orgulhoso? 'Não', respondo, oferecendo a mim próprio um incenso que é mais nauseabundo do que qualquer outra coisa.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 24 de março de 2025

quarta-feira, 12 de março de 2025

SOBRE PRESUNÇÃO E PROGRESSO ESPIRITUAL

A razão porque não somos melhores é que não queremos ser melhores; o pecador e o santo diferenciam-se apenas por uma série de pequeninas decisões que se tomam no recôndito do nosso coração. Em parte alguma encontram-se opostos tão próximos como no reino do espírito; um abismo separa o pobre do rico, o qual só se pode transpor com a ajuda de circunstâncias externas e de boa sorte. A linha que divide a ignorância da erudição é também profunda e extensa: tempo livre para o estudo e um espírito bem dotado são necessários para converter um ignorante em um homem culto. Mas a passagem do pecado à virtude, da mediocridade à santidade não precisa de 'sorte' e nem ajuda das circunstâncias externas. Pode realizar-se por um ato eficaz da vontade, em colaboração com a graça de Deus.

Santo Tomás diz-nos que 'não somos santos porque não queremos sê-lo'. Não diz, note-se bem, que não desejamos ser santos; muitos, na verdade, têm veleidades disso. Mas a simples veleidade é o desejo de que alguma coisa aconteça, sem que para isso ponhamos da nossa parte o trabalho. Querer significa que estamos dispostos a pagar as custas necessárias em esforço e em sacrifício. Por vezes iludimo-nos, imaginando que temos buscado ser melhores, quando, na verdade, fizemos muitas reservas e resolvemos não mudar muitos dos nossos modos de proceder.

Então o desejo é simplesmente uma veleidade. O segredo do progresso espiritual encontra-se no Credo: 'Desceu aos infernos; ao terceiro dia ressuscitou'. Cada um de nós também deve descer ao subconsciente, às regiões do nosso espírito que a treva envolve, porque é aqui que se ocultam as secretas reservas. Estas reservas não são facilmente vistas por nós, mas dão cor a tudo o que vemos; são como essas janelas coloridas que fazem chegar ao nosso intelecto a verdade da realidade externa mudada. A realidade é deformada, se temos reservas tais como preconceitos, hábitos de pecado, orgulho, avareza e inveja; qualquer destas coisas pode tornar-nos impossível um juízo honesto. A verdade é, então, distorcida, para a ajustar às nossas imperfeições; mentimos a nós próprios, para não ter de mudar, nem de abandonar estes hábitos tão estimados de pecado.

Muitos de nós passamos a nossa vida tendo de nós uma falsa ideia, que de modo nenhum queremos ceder; receamos a amargura de nos encontrarmos menos nobres do que gostamos de nos julgar. Coamos a realidade através de um crivo de amor-próprio, pondo de lado toda a verdade que nos incomode. Usar este critério pessoal de verdade é tão errado e vão como seria deixar às nossas preferências decidir qual tecla do piano é o lá médio. Podíamos fazer de conta que uma tecla mais fácil de tocar fosse esse lá médio, e agir de acordo com essa preferência; mas resultaria daí a desarmonia, não a harmonia. A realidade não pode ser forçada a adaptar-se aos nossos desejos.

Essas reservas a que nos prendemos, estas atitudes que teimamos em não abandonar ou mudar, afetam os nossos juízos e tornam-se falsos. Antes de podermos, algum dia, levantar-nos para alegria da realidade de Deus, temos de descer ao inferno, onde escondemos estas faltas que queremos desconhecer. Isto exige de nós uma análise plena de nós próprios à luz das imutáveis leis de Deus.

Há expressões da gíria, ou ditos populares, que recomendam que não se tenha presunção. Nada, de fato, se opõe tanto ao nosso progresso para Deus como o egoísmo, e o egoísta está sempre cheio de ilusões voluntárias, a respeito de si mesmo, de faltas 'sagradas', a que não quer renunciar, que nem mesmo quer confessar que as tem. Eis porque o egoísta, que existe em todos nós, tem necessidade urgente de uma inspeção desapiedada a todos os ângulos e cantos escondidos do espírito. Importa sobremaneira ver o que na realidade somos e não o que julgamos ser. Devemos amar mais a Verdade do que o nosso eu; devemos estar dispostos a renunciar a todas as nossas faltas que ainda não descobrimos se, enfim, queremos realmente nos tornar aptos para ver a Verdade como ela é.

Nada faz coxear tanto a nossa vida espiritual como estes 'parasitas' escondidos no motor da nossa alma. Podem ser uma ou outra das nossas faltas comuns, tais como a ganância, a acrimônia para com os outros, a inveja e o ódio. Aqueles que se esforçam por se aproximar cada vez mais de Deus sem autoanálise, admiram-se de sofrer tão frequentes derrotas: é invariavelmente por causa do Cavalo de Troia que está dentro deles, o defeito dominante ainda não reconhecido. Enquanto não for extirpado e confessado diante de Deus, com o desejo de o destruir, não existirá real progresso espiritual. Com justeza se exprimia Santo Agostinho, quando dizia: 'O Vosso melhor servo, Senhor, não é aquele que procura ouvir de Vós aquilo que ele mesmo quer, mas antes aquele que procura querer o que ouve de Vós'.

(Excertos da obra 'Rumo à Felicidade' do Venerável Fulton Sheen)

segunda-feira, 10 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XIX)


87. O erro está em termos uma opinião demasiado elevada daquilo a que o mundo chama de honra, estima e fama. Por mais que o mundo me louve ou honre, isso não pode aumentar nem um pouco o meu mérito ou a minha virtude; e também, se o mundo me vituperar, não pode tirar de mim nada do que tenho ou do que sou em mim mesmo. Conhecerei a vaidade da verdade à luz dessa vela bendita que terei na mão à hora da minha morte. De que me servirá, então, ter sido estimado e honrado por todo o mundo, se a minha consciência me convencer de pecado diante de Deus? Ah, que loucura seria para um nobre, possuidor de talentos que o tornariam querido pelo seu rei e o fariam um favorito na corte, se ele procurasse antes ser adulado por seus servos e servas, e encontrasse prazer em tal adulação miserável. Mas é uma loucura muito maior para um cristão, que poderia ganhar o louvor e a honra de Deus e de todos os anjos e santos no céu, procurar antes ser louvado e honrado pelos homens e gloriar-se nisso. Pela humildade, posso agradar a Deus, aos anjos e aos santos; portanto, não é um orgulho desprezível que me faz desejar a estima, o louvor e a aprovação dos homens, quando nos é dito que 'é aprovado aquele a quem Deus recomenda?' [2Cor 10,18].

O pensamento da morte é proveitoso para adquirir a humildade; e a humildade ajuda-nos muito a obter uma morte santa. Santa Catarina de Sena, pouco antes da sua morte, foi tentada a ter pensamentos de orgulho e vanglória por causa da sua própria santidade; mas a esta tentação ela respondeu: 'Dou graças a Deus por nunca ter sentido, em toda a minha vida, qualquer vanglória'. Oh, como é belo poder exclamar no leito de morte: 'Nunca conheci a vanglória'.

88. Mesmo admitindo o valor da estima e da fama do mundo, pelo simples fato de a amarmos e desejarmos no nosso coração, podemos deduzir daí quão grande é a virtude da humildade, pois, oferecendo a Deus tudo o que temos de tão precioso, juntamente com o nosso amor-próprio, oferecemos-lhe algo que estimamos muito. O voto de castidade é considerado heroico, porque assim sacrificamos a Deus os prazeres dos sentidos. O martírio é considerado heroico, porque o mártir oferece assim a sua vida em holocausto a Deus. E também é considerado heroico dar todos os seus bens aos pobres. Mas a nossa autoestima é certamente o que temos de mais precioso do que o dinheiro, a satisfação dos sentidos, ou mesmo a própria vida, porque muitas vezes arriscamos todas estas coisas em nome da nossa reputação. Assim, ao oferecermos a Deus a nossa autoestima com humildade, oferecemos aquilo que consideramos mais precioso.

Isto é verdadeiramente oferecer a Deus 'o sacrifício, o incenso e o perfume da lembrança' [Eclo 40,15]. Os que vivem no mundo podem muitas vezes ter mais mérito pela sua humildade de coração do que os que fazem votos de pobreza e castidade no claustro sagrado, porque é pela prática desta humildade que formamos em nós a 'nova criatura', sem a qual São Paulo nos diz que 'nem a circuncisão nem a incircuncisão valem nada' [Gl 6,15], o que equivale a dizer que, quer sejais sacerdote ou leigo, o vosso estado nada pode valer sem a humildade. A humildade sem a virgindade pode ser agradável a Deus, mas nunca a virgindade sem a humildade. As cinco virgens loucas não lhe foram desagradáveis? Vanitate superbiæ - diz Santo Agostinho. E se a própria Virgem agradou a Deus pela sua virgindade, mereceu também ser escolhida para ser sua Mãe pela sua humildade, como diz São Bernardo: 'Pela sua virgindade agradou a Deus, pela sua humildade o concebeu' [Hom. I sup. Missus est].

89. É muito fácil uma pessoa orgulhosa cair em pecados graves e terríveis; e, depois de ter caído, encontrar grande dificuldade em acusar-se deles no sacramento da penitência; porque, amando demasiado a sua autoestima e reputação e temendo perdê-las aos olhos do seu confessor, prefere cometer um sacrilégio a revelar a sua fraqueza. Procura um confessor que lhe seja desconhecido, para não se envergonhar; mas, se não se envergonhava de pecar, por que se envergonharia tanto de confessar o seu pecado, se não fosse por motivos de orgulho? Minha alma, dize a ti mesma: 'A razão pela qual não sinto verdadeira dor pelos meus pecados é a minha falta de humildade, pois é impossível que o coração sinta arrependimento ou contrição se não for humilde. Falta-me humildade, e é por isso que não tenho coragem de confessar os meus pecados com franqueza e sem desculpas'. Pede a Deus humildade; e, à medida que o teu coração se tornar mais humilde, sentirás uma dor mais profunda por o teres ofendido, e dessa humildade sincera as palavras fluirão sem dificuldade para os teus lábios, porque 'quem magoa um coração, nele excita a sensibilidade' [Eclo 22,24]. 

É o orgulho que nos compele a reter os nossos pecados no confessionário e a procurar amenizar a sua maldade com muitas desculpas. Ó orgulho maldito, causa de inúmeros sacrilégios! Mas, ó bendita humildade! O rei Davi foi humilde no seu arrependimento, porque não desculpou os seus pecados, mas acusou-se publicamente deles; nem pôs a culpa dos seus pecados nos outros, mas atribuiu-os apenas à sua própria maldade: 'Eu sou aquele que pecou' [2Rs 24,17]. Também Madalena, no seu arrependimento, não procurou Jesus Cristo num lugar escondido, mas procurou-o na casa do fariseu e quis mostrar-se pecadora diante de todos os convidados. Santo Agostinho, sendo verdadeiramente humilde no seu arrependimento, fez a confissão dos seus pecados a todo o mundo para sua maior confusão e vergonha.

90. É difícil para nós darmo-nos conta do nosso nada, e é difícil também referir todas as coisas a Deus sem reservar nada para nós mesmos, porque não é realmente nosso o nosso trabalho, a nossa diligência e a cooperação da nossa vontade? Admitamo-lo, mas se tirarmos a luz, a ajuda e a graça recebidas de Deus, o que é que nos resta de todas estas coisas? As nossas ações naturais só se tornam meritórias quando são amparadas espiritualmente por Cristo Jesus. É Jesus Cristo que eleva e enobrece todas as nossas ações que, por si sós, seriam totalmente insuficientes para nos proporcionar a glória da vida eterna.

O modo como a vontade é levada a cooperar com a graça é um mistério que não compreendemos completamente; mas é certo que, se formos para o céu, daremos graças pela nossa salvação unicamente à misericórdia de Deus: 'As misericórdias do Senhor cantarei para sempre' [Sl 88,2]. Podemos, pois, dizer com o santo rei Davi e estar plenamente persuadidos da sua verdade, que a natureza humana é mais fraca e mais impotente do que podemos imaginar, porque na natureza que recebemos de Deus só temos, pela queda de Adão, a ignorância do espírito, a fraqueza da razão, a corrupção da vontade, a desordem das paixões, a doença e a miséria do corpo. Não temos, portanto, nada em que nos gloriar, mas em tudo podemos encontrar motivos de humilhação. 'Humilha-te em todas as coisas' [Eclo 3,20] diz o Espírito Santo e Ele não nos diz para nos humilharmos apenas em algumas coisas, mas em todas - in omnibus.

91. A santa humildade é inimiga de certas especulações sutis; por exemplo: dizes que não podes compreender como é que tu próprio és um mero nada, no fazer e no ser, porque não podes deixar de saber que, na realidade, tu és alguma coisa e podes fazer muitas coisas; que não podes compreender porque é que és o maior de todos os pecadores, porque conheces tantos outros que são maiores pecadores do que tu; nem como é que mereces todos os vitupérios dos homens, quando sabes que não fizeste nenhuma ação digna de culpa mas, pelo contrário, muitas dignas de louvor.

Deves censurar-te por estares ainda tão longe da verdadeira humildade e pensares que podes compreender o sentido destas coisas. O verdadeiro humilde crê que é em si mesmo um simples nada, um pecador maior do que os outros, inferior a todos, digno de ser injuriado por todos por ser, mais do que todos, ingrato para com Deus. Ele sabe que este sentimento da sua consciência é absolutamente verdadeiro, e não se preocupa em investigar como é que isto torna-se verdade; o seu conhecimento é prático, e mesmo que ele não se compreenda a si próprio, e não possa explicar aos outros, com raciocínios sutis o que sente no seu coração, importa-se tão pouco com o fato de não o poder explicar como se importa com o fato de não poder explicar como é que o olho vê, a língua fala, o ouvido ouve. Daí se deduz que não é preciso ter grandes talentos para ser humilde e que, portanto, diante do tribunal de Deus, não será desculpa válida dizermos 'Não fui humilde porque não sabia, porque não compreendia, porque não estudava'. Podemos ter uma boa vontade, um bom coração, e não sermos inteligentes; e não há ninguém que não possa compreender esta verdade, que de Deus vem todo o bem que se possui e que ninguém tem nada de seu, exceto a sua própria malícia. 'A destruição é tua, ó Israel; teu socorro está somente em Mim' [Os 13,9], disse Deus pela boca do seu profeta.

92. A humildade é um meio poderoso de subjugar a tentação e, da mesma forma, as tentações servem para manter a humildade; porque é quando somos tentados que estamos praticamente conscientes de nossa própria fraqueza e da necessidade que temos da graça divina. É por isso que Deus permite que caiamos em tentação, reduzindo-nos por vezes ao próprio limite de sucumbir a ela, para que aprendamos a fraqueza da nossa virtude e o quanto precisamos do auxílio de Deus.

E até nisto podemos ver a infinita sabedoria de Deus, que dispôs que os próprios demônios, espíritos de orgulho, contribuíssem para nos tornar humildes, se soubéssemos aproveitar bem as nossas tentações. No entanto, devemos lembrar-nos de que, em todas as nossas tentações, a primeira coisa a fazer é exercitar a humildade que deriva de um conhecimento prático de nós mesmos e de como somos propensos ao mal, se Deus não estender a sua mão para nos refrear através da sua graça. Não esperemos para conhecer a nossa fraqueza até termos caído; mas conheçamo-la de antemão, e o conhecimento dela será um meio eficaz para nos impedir de cair. 'Antes da doença, toma-se um remédio; antes da doença, humilha-te' [Eclo 18, 20-21], diz a Sagrada Escritura. Os humildes nunca carecerão de graça no tempo da tentação e, com a ajuda dessa graça, tirarão proveito dessas mesmas tentações; pois a misericordiosa providência de Deus dispôs as coisas de tal modo que, com a ajuda especial da sua graça, Ele 'não deixará que nenhuma tentação se apodere de vós' [1Cor 10,13].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

AS TRÊS FASES DA VERDADEIRA MISERICÓRDIA


1. A misericórdia começa por ver o infortúnio do próximo

Não ver a miséria é coibir a misericórdia. A cegueira sobre o infortúnio do outro pode ser provocada pelo egoísmo e pelo individualismo, que nos tornam indiferentes. Não cuidar dos outros e do que os atinge: eis a razão principal dessa insensibilidade.

Para ser misericordioso verdadeiramente, o cristão deve fixar sobre os homens um olhar de fé. A fé leva a compreender profundamente o mal das almas. Por ela, a misericórdia focará em um pecado, uma desordem moral. Ao contrário, uma misericórdia falsificada pelo relativismo pretende ver no pecado e no erro apenas fraquezas, um bem menor. 

2. A visão da miséria do outro produz na alma um movimento de tristeza que a leva a se compadecer dessa miséria

Porém, a emoção da verdadeira misericórdia não é aquela da filantropia. A misericórdia cristã nasce da caridade, ela é teologal, em razão de Deus. Em particular, ela é tomada de compaixão pelos pecadores. E compadecer-se pelo pecado do outro não é certamente encorajá-lo em sua falta. É contemplar a santidade de Deus ofendida pela falta, e pensar na pena eterna que espera o pecador endurecido. 

3. A compaixão não basta a si mesma; a compaixão autêntica passa aos atos, ela tende a aliviar essa miséria, ela faz o que está ao seu alcance para socorrer o outro de modo eficaz

Aqui também o olhar da fé permite discernir as verdadeiras misérias do próximo. Algumas pessoas generosas gostariam de aliviar todas as misérias do mundo, mas se limitam às misérias materiais. Ora, o maior mal é o afastamento de Deus. 

A obra de misericórdia por excelência é, portanto, o testemunho da fé, o que chamamos de misericórdia da verdade. Somente o ensino da verdadeira religião tirará os homens da grande desgraça na qual eles se fecharam, por sua ignorância involuntária ou culposa. O liberalismo e o relativismo que se calam e mantém os homens em suas ilusões não são somente erros, mas uma assustadora indiferença.

(Pe. Hervé Gresland, texto publicado originalmente no blog Dominus Est)

sábado, 22 de fevereiro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XVIII)

79. Na verdade, ninguém deseja ser considerado orgulhoso pois, mesmo segundo os critérios mundanos, a maior acusação que se pode fazer a um homem é dizer que ele é orgulhoso. E, no entanto, poucos tentam evitar exatamente aquilo de que menos gostariam de ser acusados pelos outros. Se sentimos satisfação interna quando somos creditados com uma humildade que não possuímos, por que não nos esforçamos para adquirir aquilo com o qual gostamos de ser creditados? Se buscamos a sombra vã da humildade, isso significa que nos importamos muito pouco com a substância dessa virtude. Um homem que se contentaria com a aparência da virtude sem tentar adquiri-la de fato se assemelharia a um mercador que valoriza pérolas e gemas falsas mais do que as reais.

Ó minha alma, talvez tu também estejas entre aqueles que, sendo orgulhosos, ressentem-se da acusação de orgulho e desejam ser considerados humildes! Isso seria mentir para tua própria consciência, mentir para Deus, para os seus anjos e para os homens. Como diz São Paulo: 'Somos feitos um espetáculo para o mundo, para os anjos e para os homens' [1Cor 4,9]. É vergonhoso para nós desejar parecermos humildes quando não o somos. Há certas ocasiões em que, em nossos atos interiores, devemos praticar a humildade; mas devemos vigiar sobre nós mesmos cuidadosamente, para que ao praticá-la não queiramos ser considerados humildes. E é por isso que os atos ocultos de humildade são mais seguros do que os exteriores. Mas se há orgulho no desejo de que a humildade que temos seja reconhecida e conhecida, que medida de presunção não haveria no desejo de ser considerado humilde quando não temos humildade? Cuidemos para que as palavras da Sagrada Escritura não se apliquem a nós: 'Há aquele que se humilha perversamente, e seu interior está cheio de engano' [Eclo 19,23].

80. Quanto mais refletimos sobre essa grande virtude da humildade, mais devemos aprender a amá-la e honrá-la. É natural para a alma amar um bem que ela reconhece como tal, e não há dúvida de que amaremos a humildade quando reconhecermos seu valor intrínseco e o bem que dela resulta. Nosso amor pelo que é bom é medido pelo nosso conhecimento dele, e na mesma medida em que amamos, desejamos obtê-lo, e na medida em que o desejamos, abraçamos os meios mais apropriados e eficazes para adquiri-lo. Foi assim que o Sábio agiu para obter sabedoria. Ele a amou, desejou e orou por ela, e aplicou toda sua mente para possuí-la, tamanha era a estima em que a tinha: 'Por isso desejei, e a inteligência me foi dada, e a preferi aos reinos e tronos, e estimei as riquezas como nada em comparação com ela' [Sb 7,7].

É necessário compreender completamente essa doutrina, porque nunca conseguiremos adquirir humildade a menos que realmente a desejamos obtê-la; nem a desejaremos a menos que tenhamos aprendido a amá-la, nem a amaremos a menos que tenhamos percebido o que a humildade realmente é um grande e precioso bem, absolutamente essencial para o nosso bem-estar eterno. Considere por um momento em que estima você tem a humildade. Você a ama? Você a deseja? O que você faz para adquiri-la? Você pede essa virtude a Deus em suas orações? Você recorre à intercessão da Bem-aventurada Virgem? Você lê com vontade aqueles livros que tratam da humildade ou as vidas dos santos mais notáveis por sua humildade? 'Há uma certa vontade' - diz São Tomás - 'que é melhor ser chamada de desejo de querer do que a vontade absoluta em si mesma' [3ª parte, q. xxi, art. 4], pela qual parece que podemos querer uma coisa e ainda assim não querer. Portanto, examine-se e veja se seu desejo de humildade é apenas uma simples vontade passageira ou realmente está em sua vontade. 

81. Para ser humilde, devemos nos conhecer; e esse autoconhecimento é difícil, mas apenas por causa de nosso orgulho, cujo efeito principal é nos cegar. Portanto, para adquirir a virtude da humildade, devemos primeiro lutar contra e subjugar seu inimigo, o orgulho; e para superá-lo - tendo orado a Deus, como a valente Judite: 'Fazei, ó Senhor, que o seu orgulho seja cortado' [Jd 9,12] - três outras coisas são necessárias. Primeiramente, ao meditar sobre o assunto, devemos sentir ódio e aversão ao nosso orgulho, porque nunca conseguiremos nos livrar de todos os males que afetam nossa alma enquanto continuarmos a amá-los. Em segundo lugar, devemos fazer uma firme resolução de emenda a todo custo, porque, sob qualquer aspecto que consideremos, isso sempre será para nosso benefício. Em terceiro lugar, devemos imediatamente nos esforçar para arrancar todos os nossos hábitos de orgulho, especialmente os mais predominantes, pois é bem sabido que quanto mais tempo permitimos que um mau hábito cresça, mais forte ele se tornará, e maior será a nossa dificuldade em erradicá-lo: 'E eu disse, agora comecei' [Sl 76,11].

Não devemos perder o ânimo nem nos desanimar, mas confiar na misericórdia de Deus, o que é, acima de tudo, mais necessário: 'Confia ao Senhor a tua sorte, espera nele, e ele agirá' [Sl 36,5]. É pela graça de Deus que podemos vencer nossas numerosas paixões malignas, e é através dEle que podemos esperar subjugar nosso orgulho. Portanto, clamemos a Ele com o Rei Davi: 'meu benfeitor e meu refúgio, minha cidadela e meu libertador, meu escudo e meu asilo, que submete a mim os povos' [Sl 143,2]. 

82. Não é bom aplicarmos nossos esforços para erradicar um defeito, quando sabemos que, ao fazê-lo, nossos corações se alegrarão? E, portanto, não é verdade que, uma vez subjugado o nosso orgulho, que é a causa de tantos dos nossos problemas, seremos muito mais felizes? Sentimos uma aversão natural pelos orgulhosos e não podemos amá-los; mas será que este instinto de aversão que temos pelos orgulhosos não pode ser sentido por outros em relação a nós? Pois é verdade que 'o orgulho é prejudicial sempre' [Eclo 10,7]. Às vezes lamentamos que os outros não nos amem ou nos estimem. Vamos examinar a causa, e veremos que ela provém do nosso orgulho. Por outro lado, não vemos a afeição que geralmente é demonstrada aos humildes? Todos buscam sua companhia, todos depositam confiança neles, todos desejam o bem deles. Isso também aconteceria conosco se fôssemos humildes; e que felicidade sentiríamos ao amar e ser amados por todos! A princípio parece que esta é uma questão de respeito humano; mas é inspirada pela caridade, vem de Deus e do desejo de nos assemelhar a Ele. A humildade veste o mesmo traje que a caridade, que, como diz São Paulo, 'é paciente, é bondosa, não inveja, não se ufana, não é ambiciosa' [1Cor 13,4]. E é fácil revestir a humildade com as mesmas intenções virtuosas da caridade.

83. O orgulho é a raiz de todos os nossos vícios, de modo que, quando o arrancarmos de uma vez por todas, esses vícios desaparecerão, pouco a pouco, também. Esta é a verdadeira razão pela qual temos que acusar-nos dos mesmos pecados repetidamente em nossas confissões, porque nunca confessamos o orgulho, que é a raiz de todos eles. Não nos espantamos ao ver a figueira dando seus figos ano após ano e a macieira as suas maçãs. Não; porque cada árvore dá o seu próprio fruto. Da mesma forma, o orgulho está enraizado como uma árvore em nossos corações; e nossos pecados de ira, inveja, ódio, malícia, falta de caridade e julgamentos precipitados sobre os outros, que confessamos repetidamente, são o fruto do orgulho; mas como nunca atacamos a raiz desse orgulho, esses mesmos pecados, como galhos podados, sempre brotam novamente. Vamos nos esforçar para erradicar o orgulho de maneira completa, seguindo o conselho de São Bernardo: 'Coloque o machado na raiz' [Sermão 2 de Assunção], e então teremos grande alegria e consolação em nossa própria consciência.

Devemos considerar o orgulho como o rei de todos os vícios e seguir o sábio conselho dado pelo rei da Síria aos seus capitães: 'Não lutareis contra ninguém, grande ou pequeno, mas contra o rei somente' [1 Rs 23,31]. Judite também, ao matar o orgulhoso Holofernes, conquistou todo o exército assírio. E Davi triunfou sobre todos os filisteus ao matar o orgulhoso Golias; da mesma forma, também triunfaremos, porque ao conquistar o orgulho, teremos subjugado todos os outros vícios. O rei Davi errou em uma coisa, pois sabendo que Absalão era o chefe dos rebeldes, ainda assim ordenou que ele não fosse morto nem ferido: 'Salve-me o menino Absalão' [2Rs  17, 15]. Ai, quantos imitadores ele encontrou! Sabemos muito bem que o orgulho é o principal rebelde entre todas as nossas paixões, mas, no entanto, é o que mais parecemos respeitar, e quase temos medo de ofendê-lo, chegando até mesmo a demonstrar uma tendência a incentivá-lo.

84. Existem certos pecados que raramente ou nunca mencionamos em nossas confissões, seja porque nossa consciência é muito tranquila e flexível, ou talvez porque realmente não desejamos nos corrigir. O orgulho é um desses pecados; são poucos os que se acusam dele; mas aqueles que realmente desejam corrigir suas vidas devem torná-lo um assunto especial de seu exame e confissão, a fim de aprender a odiá-lo e se arrepender dele; e fazer resoluções firmes de emenda para o futuro.

Quem deseja fazer uma boa confissão não deve apenas confessar os seus pecados, mas também a razão e a ocasião do pecado; dizendo, por exemplo: 'Acuso-me de ter me deleitado com pensamentos impuros, causados pela falta de guarda dos olhos, liberdade excessiva de palavras e comportamento frívolo'. E, da mesma forma, devemos confessar nossos pecados de orgulho, dizendo: 'Acuso-me de ter me irritado e incomodado com aqueles ao meu redor, e a única razão da minha ira e incômodo foi o meu orgulho. Acuso-me de ter invejado e até de ter tomado o que pertencia a outros, apenas para satisfazer o meu orgulho e vaidade. Também falei com desprezo do meu próximo, e isso novamente por causa do meu orgulho, que não suporta que ninguém seja considerado superior a mim'. Continue examinando todos os seus defeitos da mesma forma, e você encontrará a verdade nas palavras inspiradas:

'O espírito se eleva antes da queda' [Pv 16,18] e 'Antes da destruição, o coração do homem se exalta' [Pv 18,12]. Para subjugar o nosso orgulho, é bom mortificá-lo e envergonhá-lo por meio dessas acusações, que também são atos de virtuosa humildade, mas é mais necessário ainda insistir em nossa própria emenda, pois 'De que adianta humilhar-se aquele que faz o mesmo novamente?' [Eclo 34,31]. Não basta confessarmos nossos pecados, diz as Sagradas Escrituras, mas também é necessário emendá-los para obter a misericórdia de Deus: 'Quem confessar seus pecados e os abandonar, obterá misericórdia' [Pv 28,13].

85. A humildade de coração, ensina São Tomás, não tem limite pois, diante de Deus, podemos sempre nos humilhar mais e mais, até a total nulidade, e podemos fazer o mesmo em relação aos nossos semelhantes. Mas no exercício desses atos exteriores de humildade, é necessário agir com discrição para não cair em uma extravagância que possa parecer excessiva. 'A humildade' - diz São Tomás - 'reside principalmente na alma', e, portanto, um homem pode se submeter a outro no que diz respeito aos seus atos interiores, e é isso que São Agostinho quer dizer quando afirma: 'Diante de Deus, um prelado é colocado sob seus pés mas, nos atos exteriores de humildade, é necessário observar a devida moderação' [2a 2æ, q. clxi, art. 3 ad 3].

Uma profunda humildade deve existir em todo estado de vida, mas os atos exteriores de humildade não são aconselháveis para todos. Por isso, as Escrituras Sagradas dizem: 'Cuidado para não ser enganado pela loucura e ser humilhado' [Eclo 13,10]. Podemos aprender com a piedosa Ester como praticar a humildade de coração em meio à pompa e aos louvores: 'Tu sabes da minha necessidade' - ela clamou a Deus 'que abomino o sinal do meu orgulho' [Est 14,16]. Eu me visto com essa roupa rica e com essas joias porque minha posição exige, mas Tu, Senhor, vês o meu coração, que pela Tua graça não tenho apego a essas coisas nem a essa vestimenta, e que só as uso por necessidade. Aqui, de fato, está um grande exemplo daquela verdadeira humildade interior que pode ser praticada e sentida em meio à grandeza externa. Mas agora chegamos ao ponto. Esta humildade de coração deve realmente existir diante de Deus, cujos olhos contemplam os movimentos mais ocultos do coração; e se ela não existir, que desculpa podemos alegar diante do tribunal de Deus para nos justificarmos por não tê-la? E quanto mais facilmente a teríamos adquirido agora, mais inaceitável será para nós no dia do Juízo.

86. A malícia do orgulho reside, na realidade, no desprezo prático que mostramos pela vontade de Deus ao desobedecê-la. Assim, diz São Agostinho, há orgulho em todo pecado cometido, 'pelo qual desprezamos os mandamentos de Deus' [Lib. de. Salut. docum. c. xix]. E São Bernardo explica da seguinte forma: 'Deus nos manda fazer a sua vontade, Deus deseja que a sua vontade seja feita'; e o pecador, em seu orgulho, prefere a sua própria vontade à vontade de Deus: 'E o homem orgulhoso deseja que sua própria vontade seja feita'.

E é esse orgulho que aumenta tanto a gravidade do pecado; e quão grande deve ser o nosso pecado quando, sabendo em nossas mentes que Deus merece ser obedecido por nós, nos opomos à nossa vontade, à vontade de Deus, a quem sabemos ser digno de toda obediência. Que maldade há em dizer a Deus: 'Não servirei' [Jr 2,20] quando sabemos que todas as coisas servem a Ele [Sl 128,91]. Para ilustrar isso, imaginemos uma pessoa dotada das qualidades mais nobres possíveis, como saúde, beleza, riquezas e nobreza e com todo talento natural e graça do corpo e da alma. Agora, pouco a pouco, vamos retirar dessa pessoa todos esses dons que vêm de Deus. A saúde e a beleza são dons de Deus; as riquezas e a posição social, o conhecimento e a sabedoria, e todas as outras virtudes vêm de Deus; o corpo e a alma pertencem a Deus. E, sendo assim, o que resta para essa pessoa de sua própria posse? Nada; porque tudo o que é mais do que nada pertence a Deus.

Mas quando essa pessoa diz de si mesma: 'Eu tenho riquezas, tenho saúde e tenho conhecimento', o que significa esse 'eu'? Nada e, no entanto, esse 'eu', esse nada, que deriva tudo o que possui de Deus, ousa desconsiderar esse mesmo Deus desobedecendo aos seus soberanos mandamentos, dizendo-lhe, se não em palavras, certamente em atos, o que é muito pior: 'Não servirei'; não, não obedecerei. Ah, orgulho, orgulho! Mas, ó minha alma, 'por que teu espírito se exalta contra Deus?' [Tb 15,13]. Não estou certo em pregar e recomendar essa humildade a ti? Cada vez que tu pecas, és como o orgulhoso Faraó que, quando foi instruído a obedecer aos mandamentos de Deus, disse: 'Quem é esse Deus? Eu não o conheço' [Ex 5,2].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

NOLI TIMERE!

O apóstolo que não logra entender bem qual deva ser a alma de seu apostolado achará incompreensível esta frase de Bossuet: 'Quando Deus quer que uma obra seja toda de sua mão, tudo reduz à impotência e a nada, e depois, opera'. Nada ofende tanto a Deus como o orgulho. Ora, na procura de bons êxitos, podemos, por falta de pureza de intenção, chegar a ponto de nos erigirmos como que em uma divindade, princípio e fim de nossas obras. Deus tem horror desta idolatria. Por isso, quando vê que a atividade do apóstolo carece dessa impessoalidade que sua glória exige da criatura, deixa, às vezes, o campo livre às causas segundas e o edifício não tarda em desmoronar-se.

Ativo, inteligente, dedicado, votou-se o operário ao trabalho com todo o entusiasmo de sua natureza. Conheceu, quiçá, êxitos brilhantes, alegrou-se com eles, olhou-os com complacência. É sua obra. A sua! Veni, vidi, vici [Vim, vi, venci]. Quase chegou a apropriar-se dessa frase célebre. Esperemos um pouco. Qualquer acontecimento permitido por Deus, uma ação direta de Satanás ou do mundo vingam atingir a obra ou a própria pessoa do apóstolo: ruína total! Mais lamentável, porém, é ainda a devastação interior, causada pela tristeza e pelo desânimo desse esforçado de ontem. Quanto mais exuberante havia sido a alegria, tanto mais profundo é agora o abatimento! 

Só nosso Senhor poderia reparar essas ruínas: 'Vamos, coragem' - diz Ele ao desanimado - 'em vez de operares sozinho, recomeça o trabalho comigo, por mim e em mim'. Mas o infeliz já não escuta essa voz. Tão exteriorizado anda que, para ouvi-la, precisaria de um verdadeiro milagre da graça; mas já não tem o direito de contar com ele, devido ao acúmulo de infidelidades. Só uma vaga convicção na onipotência de Deus e em sua providência é que paira sobre a desolação desse desditoso e e essa convicção não é suficiente para dissipar as ondas de tristeza que continuam a assaltá-lo. 

Quão diferente é o espetáculo do verdadeiro sacerdote, cujo ideal é reproduzir Nosso Senhor! Os dois grandes meios de ação, assim sobre o coração de Deus, como sobre o coração dos homens, são sempre, para esse sacerdote, a oração e a santidade. Certo é que ele dispende forças e com muita generosidade. Mas julga a miragem do bom êxito perspectiva indigna de verdadeiro apóstolo. Sobrevêm as borrascas, pouco importa a causa segunda que as originou. Como trabalhou apenas com Nosso Senhor, em meio das ruínas amontoadas, esse apóstolo ouve retinir no fundo de seu coração o mesmo Noli timere! [Não temais!] que outrora, durante a tempestade, restituía a paz e a segurança aos discípulos atemorizados.

(Excertos da obra 'A Alma de Todo Apostolado', de Jean-Baptiste Chautard)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O QUE É PRECISO PARA SE ALCANÇAR A SALVAÇÃO

1. É necessário esforçar-se violentamente: 'o Rei­no dos Céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam', disse Jesus Cristo (Mt 11, 12). Em outro lugar, Ele disse: 'Esforçai-vos por entrar pela porta estreita' (Lc 13, 24). E acrescentou: 'Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia e siga-me' (Lc 9, 23).

2. É preciso morrer: 'Quem quiser salvar a sua alma, há de perdê-la', disse Jesus Cristo (Mt 16, 25), ou seja, devemos nos dedicar à prática da mortificação e de todas as virtudes.

3. É preciso avançar sempre: 'Correi de tal maneira que alcanceis o prêmio', disse São Paulo (1Cor 9, 24). 'Todos os atletas se impõem a si muitas privações; e o fazem para alcançar uma coroa corruptível. Nós o fazemos por uma coroa incorruptível. Assim, eu corro, mas não sem rumo certo. Dou golpes, mas não no ar. Ao contrário, castigo o meu corpo e o mantenho em servidão' (1Cor 9, 25-27).

4. Não olhar para trás: 'Qualquer um que põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus', disse Jesus Cristo (Lc 9, 62).

5. Ter temor e tremor: 'É necessário trabalhar para a nossa salvação com temor e tremor', disse o grande apóstolo (Fp 2, 12).

6. Esquecer a terra e pensar no Céu: Disse São Paulo: 'Prossigo o meu curso para alcançar aquilo para o qual fui chamado por Cristo Jesus. Não penso que o tenha alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficam para trás e estendendo-me para as que estão adiante de mim, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação celestial de Deus em Cristo Jesus' (Fp 3, 12-14).

7. Aproveitar o tempo favorável, que é o presente: Disse São Paulo: 'Vede agora o tempo aceitável; vede agora o dia da salvação' (2Cor 6, 2).

8. É preciso viver para Jesus Cristo: Disse o grande Apóstolo: 'É necessário viver para aquele que morreu por todos, a fim de que os que vivem não vivam para si mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles' (2Cor 5, 15).

9. É necessário lutar pela fé: 'Combate o bom combate da fé. Conquista a vida eterna, para a qual foste chamado', escreveu São Paulo a Timóteo (1Tm 6, 12).

10. É preciso sofrer as provações com paciência: Disse São Paulo: 'Através de muitas tribulações devemos entrar no reino de Deus' (At 14, 21).

11. É necessário fugir, guardar silêncio e retiro: Devemos empregar os meios dados a São Arsênio por um anjo; veja-os aqui: 'Arsênio, fuja, guarde o silêncio e o retiro; estes são os princípios da salvação' (In Vit. Patr.).

12. É preciso ser prudente: 'A alma imprudente perde a sua salvação', dizem os Provérbios (Pv 19, 2). A prudência é o que a Sabedoria chama de 'ciência dos santos' (Sb 9, 10) e o anjo, em São Lucas (Lc 1, 17) de 'sabedoria dos justos'.

13. É preciso ter compaixão da alma e vigiá-la: 'Tem misericórdia de tua alma, tornando-a agradável a Deus, e modera-te', diz o Eclesiástico (Eclo 30, 24).

14. Devemos pensar no juízo: 'Deus' - diz Orígenes - 'confiou e recomendou à vossa alma a sua imagem e semelhança, e deveis devolvê-la tão intacta como Ele a deu, este tão precioso depósito' (In Cant.).

15. É preciso recomeçar, marchar e ter apenas a Deus como meta: Quando São Carlos Borromeu foi perguntado sobre os melhores meios para agradar a Deus e assegurar a salvação, ele traçou as seguintes regras: (i) é necessário começar cada dia, ou seja, devemos nos esforçar a cada dia em servir a Deus com tanto fervor como se estivéssemos começando de novo; (ii) marchar no momento presente na presença de Deus; (iii) ter somente a Deus como fim em todas e cada uma das ações (In ejus vita).

16. Devemos guardar a alma com solicitude: Como diz o Deuteronômio (Dt 4, 15): 'Guardai diligentemente as vossas almas'.

17. É necessário observar a lei de Deus: 'Se quereis alcançar a vida, guardai os mandamentos', disse Jesus Cristo (Mt 19, 17). 'Quem guarda os mandamentos de Deus, salva a sua alma', dizem os Provérbios (Pv 19, 16). Jesus Cristo disse ainda: 'Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai é que entrará no reino dos céus' (Mt 7, 21).

18. É preciso querer salvar-se e querer com firmeza: Quando São Tomás de Aquino foi perguntado por sua irmã o que ela deveria fazer para se salvar, ele respondeu: 'Querendo, ou seja, você poderá se salvar se quiser eficazmente; pois essa vontade eficaz, que é o fim da salvação, a forçará a adotar com ardor todos os meios necessários para alcançá-la'. E, quando a sua irmã lhe perguntou o que ele mais desejava nesta vida, ele respondeu: 'Morrer bem' (Bene mori. 4. p.q. art. 9).

(Cornélio à Lapide)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XVII)

 

73. Muitas pessoas, ao se prepararem para a confissão, angustiam-se porque não sentem contrição suficiente por seus pecados; e, para obtê-la, batem no peito tentando excitar em si mesmas sentimentos de pesar. Mas isso é orgulho, pois nos fazem entender que podem alcançar a contrição por si mesmas. Você deseja ter um verdadeiro arrependimento por seus pecados? Então, esteja certo de que isso é um dom singular de Deus, e que não há meio melhor de obtê-lo do que humilhar-se diante dEle. A humildade gera confiança e Deus nunca recusa a sua graça àqueles que vêm a Ele com humildade e confiança. 

Diga, portanto, a Deus: Posso permanecer aqui o tempo que quiser e fazer tudo o que puder para obter arrependimento pelos meus pecados, mas é impossível para mim alcançá-lo por meus próprios esforços, se Vós não me concedereis, ó meu Deus! Eu não o mereço, mas Jesus Cristo o mereceu por mim, e é pelos seus méritos que o peço, e por vossa infinita bondade que espero obtê-lo. Coloque-se nessa disposição humilde de espírito e você será feliz, pois está escrito sobre Deus: 'Ele consola os humildes' [2Cor 7,6] e 'atendeu à oração dos humildes e não desprezou a sua súplica' [Sl 101,18]. Esse arrependimento ou contrição pelo qual a alma é santificada é uma das maiores graças que Deus pode nos dar, e seria presunção, temeridade e orgulho de nossa parte pretendermos essa graça sem antes tê-la pedido com a devida humildade.

74. Pode surgir uma dúvida em nossa mente: já que, para obter a graça da humildade, devemos pedi-la a Deus, e pedi-la com humildade para que Ele ouça nossa oração, como podemos pedir com humildade se é precisamente essa humildade que não temos e pela qual estamos pedindo? Não nos percamos em tais especulações, que são inúteis na prática, pois 'a simplicidade de coração é o que o Senhor deseja de nós' [Sb 1,1]. Existem certas virtudes eficazes que Deus infundiu em nossas almas no santo Batismo, independentemente de nossas próprias disposições. 'Principalmente por infusão no Batismo', diz São Tomás. Tal, por exemplo, é a fé, e tal também é essa humildade que nos é necessária para que possamos acreditar e orar como devemos. Exercitemos, portanto, em nossas orações essa humildade infundida e, ao fazer bom uso dela, adquiriremos com o tempo aquela outra virtude evangélica que é necessária para nossa salvação e que só pode ser obtida com nossa própria cooperação.

A oração, diz Santo Agostinho, é essencialmente o recurso daquele que sabe que é pobre e necessitado: 'A oração é apenas para os necessitados' - Oratio non est nisi indigentium (Enarr. in Ps. xxvi). Reconheçamos e confessemos nossa pobreza e indigência diante de Deus e, por essa confissão, exercitaremos a humildade. Os verdadeiramente pobres não precisam ser ensinados a pedir esmolas humildemente. A necessidade é seu mestre e, se o homem pode se humilhar diante de outro homem, por que não deveria também se humilhar diante de Deus?

75. Se quisermos discernir o que pertence a Deus e o que nos pertence, basta refletirmos que, ao render a Deus tudo o que é dEle, nada resta para nós além do nada. De modo que podemos verdadeiramente dizer com o profeta: 'Fui reduzido a nada' [Sl 72,21]. Esta é uma verdade: tudo o que há em nós além do nada pertence a Deus e Ele pode tirar o que é seu quando quiser, sem nos fazer nenhuma injustiça. Portanto, em que podemos nos orgulhar, se Deus pode nos tirar qualquer coisa no momento em que começarmos a nos gloriar dela? Pois aquele que se gloria em sua riqueza pode logo tornar-se pobre; aquele que se gloria em sua saúde pode repentinamente adoecer; aquele que se gloria em seu conhecimento pode subitamente enlouquecer; aquele que se gloria em sua santidade pode cair de repente em um grande pecado. Que vaidade, que loucura, então, gloriar-se naquilo que não nos pertence, nem está em nosso poder conservar - 'Que tens tu que não tenhas recebido?' [1Cor 4,7].

Essa reflexão, por si só, deveria bastar para nos tornar humildes e pode-se dizer que toda verdadeira humildade depende de perseverarmos seriamente nesse pensamento. Ó minha alma, serás humilhada quando, como Deus diz pelo profeta, Ele 'separar o precioso do vil' [Jr 15,19]. Assim, a essência da humildade consiste em saber discernir corretamente aquilo que me pertence e aquilo que pertence a Deus. Todo o bem que faço vem de Deus e nada me pertence senão meu próprio nada. O que eu era no abismo da eternidade? Um mero nada. E o que fiz por mim mesmo para emergir desse nada? Nada. Se Deus não me tivesse criado, onde eu estaria? No nada. Se Deus não me sustentasse a cada instante, para onde eu retornaria? Ao nada. Portanto, é claro que nada possuo de mim mesmo, exceto o nada. Mesmo em meu ser moral, nada possuo além de minha própria maldade. Quando faço o mal, isso é inteiramente obra de minha própria perversidade; quando faço o bem, isso pertence somente a Deus. O mal é fruto de minha maldade; o bem é fruto da misericórdia de Deus. Assim, separamos o precioso do vil; esta é a arte das artes, a ciência das ciências e a sabedoria dos santos.

76. Imaginemos um homem que possui muitos animais de carga que comprou para transportar os fardos que necessita. Os animais estão carregados: um com ouro, outro com livros de filosofia, matemática, teologia e direito; outro com armas; outro com vasos sagrados e vestes da Igreja; e outro com relicários contendo relíquias preciosas dos santos, e assim por diante.

Agora, se esses animais pudessem falar entre si, você acha que aquele carregado de ouro se vangloriaria de sua riqueza, e aquele carregado de livros de seu conhecimento? E que, da mesma forma, os outros se gabariam de sua bravura ou santidade, conforme a natureza de sua carga? Não seriam tais pretensões vãs e ridículas? Certamente que sim, pois os fardos ricos e preciosos carregados por esses animais pertencem ao dono e não à besta. O dono poderia ter carregado com esterco aquele que carregou com ouro ou outras coisas preciosas, e sendo seu proprietário, poderia descarregar cada animal sempre que quisesse, de modo que cada um se apresentaria diante dele como realmente é: um simples animal de carga.

Ou, como diz Santo Agostinho, imaginemos o jumento sobre o qual Jesus Cristo montou quando foi recebido pela multidão com ramos de palmeira, sendo aclamado com gritos de: 'Hosana ao Filho de Davi, Hosana!' [Mt 21,9] Quem seria tão tolo a ponto de imaginar que essas honras foram dadas ao jumento? Esses louvores não foram dados ao animal, mas a Cristo, que estava montado nele. 'O jumento deveria ser louvado? O jumento estava carregando alguém, mas Aquele que era carregado é quem estava sendo louvado' [Enarr. in Ps. xxxiii]. Apliquemos essa comparação a nós mesmos, dizendo, com Davi: 'Fiquei como um animal diante de Ti' [Sl 72,22]. E qualquer que seja o objeto de nosso orgulho, usemos essa analogia para exercitar-nos na humildade. 

77. Podemos dizer, com São Tomás [12, qu. iv, art. 2], que esse nosso desejo de ser estimado, respeitado e honrado é um efeito do pecado original, assim como a concupiscência que permanece em nós mesmo após o Batismo. Mas Deus ordenou que esses apetites e desejos permanecessem em nós para que tivéssemos ocasião de nos mortificar e, por esses meios, pudéssemos conquistar o Reino dos Céus. Não devemos nos espantar nem nos entristecer ao sentir esses instintos dentro de nós. Eles pertencem à maldade de nossa natureza corrompida e são resquícios da tentação de nossos primeiros pais pela serpente, quando lhes disse: 'E vós sereis como deuses' [Gns 3,5]. Portanto, repito que esses desejos, que surgem da fraqueza e depravação de nossa natureza humana, devem ser suportados com paciência. Se esses desejos nos dominam, é porque os incentivamos e cedemos a eles; e um mau hábito que criamos por nós mesmos só pode ser curado por nós mesmos. 

Portanto, a mortificação disso cabe a nós. Essa mortificação dos sentidos, inspirada pela humildade, é ensinada por Cristo na renúncia que Ele nos impôs ao dizer: 'Se alguém quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo' [Mt 16,24]. E, portanto, devo concluir que, se não me mortificar com humildade — ou seja, esmagar meu amor-próprio e minha ânsia por estima — serei excluído como seguidor de Jesus Cristo, e, por essa exclusão, também perderei a sua graça e serei eternamente banido da participação em sua glória. Mas para praticá-la, é necessário que eu faça violência a mim mesmo, como está escrito: 'O Reino dos Céus sofre violência, e os violentos o arrebatam'" [Mt 11,12]. Quem pode obter a salvação senão fazendo violência a si mesmo? 

78. Vamos ouvir, às portas do inferno, os lamentos dos condenados eternamente. Eles exclamam: 'Que proveito nos trouxe o orgulho?' [Sb 5,8]. Que uso ou vantagem nos trouxe nosso orgulho? Tudo passa e desaparece como uma sombra, e de todos aqueles males passados, nada nos resta senão a vergonha eterna de termos sido orgulhosos. Seu remorso é vão, porque é o remorso do desespero. Portanto, enquanto ainda há tempo, consideremos seriamente a questão e digamos: 'Que vantagem tirei de todo o meu orgulho? Ele me torna odioso para o Céu e para a terra, e se eu não insistir em mortificá-lo, ele me tornará odioso a mim mesmo por toda a eternidade no inferno'. Levantemos os nossos olhos para o Céu e, contemplando os santos, exclamemos: 'Vejam quanto a humildade os beneficiou! Oh, quanta glória eles ganharam por sua humildade!' Agora, a humildade é vista como loucura pelo mundo, digna apenas de desprezo e zombaria; mas chegará o tempo em que todos serão obrigados a reconhecer sua virtude e a exclamar, ao ver a glória dos humildes: 'Vejam como foram contados entre os filhos de Deus' [Sb 5,5].

Se eu for humilde, serei exaltado com aquela glória à qual Deus exalta os humildes. Ó meu Deus, humilha este louco orgulho que predomina dentro de mim. 'Tu multiplicarás a força em minha alma' [Sl 137,3] pois 'minha força me abandonou' [Sl 37,11]. E eu não quero, nem posso fazer nada sem a vossa ajuda. Em Vós coloco toda a minha confiança e vos suplico que me ajudeis. 'Mas eu sou pobre e necessitado; ó Deus, ajudai-me. Vós sois o meu auxílio e meu libertador: ó Senhor, não demoreis' [Sl 69,6].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

PROTOCOLOS DO INFERNO CONTRA DEUS

Assim que Lúcifer foi autorizado a prosseguir com essas questões e se erguer da consternação em que ficou por algum tempo, ele começou a propor aos seus companheiros demônios novos planos de sua arrogância. Para isso, convocou todos e, colocando-se em uma posição elevada, falou-lhes: 'A vós, que por tantas eras seguis e ainda seguis meus estandartes em vingança das minhas injúrias, é conhecido o dano que sofri agora nas mãos deste Homem-Deus, e como, por trinta e três anos, Ele me guiou em engano, escondendo sua Divindade e ocultando as operações de sua alma, e como agora Ele triunfou sobre nós pela própria Morte que nós lhe trouxemos. Antes de assumir a carne, Eu o odiava e me recusava a reconhecê-lo como mais digno do que eu de ser adorado por toda a criação. Embora, por causa dessa resistência, tenha sido expulso do céu com vocês e degradado a esta condição abominável, tão indigna da minha grandeza e beleza anteriores, sou ainda mais atormentado ao me ver assim vencido e oprimido por este Homem e por sua Mãe. Desde o dia em que o primeiro homem foi criado, procurei sem descanso encontrá-los e destruí-los; ou, se não pudesse destruí-los, ao menos queria trazer destruição sobre todas as suas criaturas e induzi-las a não reconhecê-lo como seu Deus, e que nenhum delas jamais tirasse qualquer benefício de suas obras.

Este foi o meu intento, para isso toda a minha solicitude e esforços foram dirigidos. Mas em vão, pois Ele me venceu pela sua humildade e pobreza, me esmagou pela sua paciência, e, por fim, me despojou da soberania do mundo pela sua Paixão e morte terrível. Isso me causa uma dor tão excruciante que, mesmo que eu conseguisse lançar-lhe fora da destra do seu Pai, onde Ele se assenta triunfante, e se eu conseguisse arrastar todas as almas redimidas para este inferno, minha ira não seria saciada nem minha fúria apaziguada.

É possível que a natureza humana, tão inferior à minha, seja exaltada acima de todas as criaturas! Que seja tão amada e favorecida, a ponto de se unir ao Criador na pessoa do Verbo eterno! Que Ele devesse primeiro fazer guerra contra mim antes de executar essa obra, e depois me sobrecarregar com tal confusão! Desde o princípio, vi essa humanidade como meu maior inimigo; sempre me preencheu com uma aversão intolerável. Ó homens, tão favorecidos e dotados pelo vosso Deus, que eu abomino, e tão ardentemente amados por Ele! Como hei de impedir vossa boa sorte? Como hei de trazer sobre vós a minha infelicidade, já que não posso destruir a existência que recebestes? O que devemos agora começar, ó meus seguidores? Como restauraremos o nosso reinado? Como recuperaremos o nosso poder sobre os homens? Como os venceremos? Pois se os homens, a partir de agora, não forem os mais insensatos e ingratos, se não estiverem mais dispostos do que nós mesmos contra este Deus-homem, que os redimiu com tanto amor, é claro que todos eles o seguirão com zelo; nenhum notará os nossos enganos; eles abominarão as honras que insidiosamente lhes oferecemos e amarão o desprezo; buscarão a mortificação da carne e descobrirão o perigo do prazer e do descanso carnais; desprezarão as riquezas e os tesouros, e amarão a pobreza tão honrada por seu Mestre; e tudo o que pudermos oferecer aos seus apetites será abominado, imitando seu verdadeiro Redentor. Assim será destruído o nosso reinado, pois ninguém se somará ao nosso número neste lugar de confusão e tormentos; todos alcançarão a felicidade que perdemos, todos se humilharão até o pó e sofrerão com paciência; e minha ira e altivez não me servirão de nada.

Ah, ai de mim, que tormento causa esse erro em mim! Quando o tentei no deserto, o único resultado foi dar-lhe uma oportunidade de deixar o exemplo dessa vitória, por meio do qual os homens podem vencer com muito mais facilidade. As minhas perseguições apenas evidenciaram mais claramente a sua doutrina de humildade e paciência. Ao persuadir Judas a traí-lo, e aos judeus a sujeitá-lo à morte cruel da Cruz, apressei apenas a minha ruína e a salvação dos homens, enquanto a doutrina que eu procurava apagar foi apenas mais firmemente implantada. Como poderia Aquele que é Deus humilhar-se a tal ponto? Como poderia Ele suportar tanto dos homens, que são maus? Como poderia eu mesmo ter sido levado a ajudar tanto para tornar essa salvação tão copiosa e maravilhosa? Ó quão divina é a força daquele Homem, que poderia me atormentar e enfraquecer-me assim! E pode essa Mulher, sua Mãe e minha Inimiga, ser tão poderosa e invencível em sua oposição a mim? Tal poder é novo em uma mera criatura, e sem dúvida Ela o derivou do Verbo divino, a quem Ela revestiu com a carne humana. Através desta Mulher, o Todo-Poderoso tem guerreado incessantemente contra mim, embora Eu a tenha odiado em meu orgulho desde o momento em que a reconheci em sua imagem ou sinal celestial.

Mas se a minha indignação orgulhosa não deve ser acalmada, nada me aproveita a minha guerra perpétua contra esse Redentor, contra a sua Mãe e contra os homens. Agora então, demônios que me seguis, agora é o momento de ceder à nossa ira contra Deus. Venham todos para tomar conselho sobre o que devemos fazer; pois desejo ouvir as vossas opiniões'.

Alguns dos principais demônios deram suas respostas a essa proposta terrível, incentivando Lúcifer a sugerir diversos esquemas para impedir os frutos da Redenção entre os homens. Todos concordaram que não seria possível prejudicar a pessoa de Cristo, diminuir o valor imenso dos seus méritos, destruir a eficácia dos Sacramentos ou falsificar ou abolir a doutrina que Cristo havia pregado; ainda assim, resolveram que, de acordo com a nova ordem de assistência e favor estabelecida por Deus para a salvação dos homens, agora deveriam buscar novas maneiras de dificultar e impedir a obra de Deus por enganos e tentações muito maiores.

Referente a esses planos, alguns dos demônios astutos e maliciosos disseram: 'É verdade que agora os homens têm à sua disposição uma nova e poderosa doutrina e lei, novos e eficazes Sacramentos, um novo Modelo e Instrutor de virtudes, um poderoso Intercessor e Advogada nesta Mulher; ainda assim, as inclinações e paixões naturais da carne permanecem as mesmas, e as criaturas sensíveis e deleitosas não mudaram sua natureza. Vamos então, aproveitando-nos dessa situação com astúcia aumentada, frustrar tanto quanto pudermos os efeitos do que esse Deus-homem fez pelos homens. Comecemos uma guerra enérgica contra a humanidade, sugerindo novas atrações, excitando-os a seguir suas paixões, esquecendo tudo o mais. Assim, os homens, envolvidos com essas coisas perigosas, não poderão atentar para o contrário'.

Agindo segundo esse conselho, redistribuíram as esferas de trabalho entre si, de forma que cada esquadrão de demônios pudesse, com astúcia especializada, tentar os homens a diferentes vícios. Resolveram continuar propagando a idolatria no mundo, para que os homens não chegassem ao conhecimento do verdadeiro Deus e da Redenção. Onde a idolatria falhasse, concluíram, estabeleceriam seitas e heresias, para as quais escolheriam os mais perversos e depravados da raça humana como líderes e mestres do erro.

Foi então que, entre esses espíritos malignos, foi tramada a seita de Maomé, as heresias de Ário, Pelágio, Nestório, e quaisquer outras heresias que surgiram no mundo desde os primeiros tempos da Igreja até agora, junto com aquelas que têm em prontidão, mas que não é necessário nem apropriado mencionar aqui. Lúcifer se mostrou satisfeito com esses conselhos infernais, por se oporem à verdade divina e destruírem os próprios alicerces da salvação do homem, a saber, a fé divina. Ele lavrou elogios lisonjeiros e cargos elevados àqueles demônios que se mostraram dispostos e que se encarregaram de encontrar os ímpios originadores desses erros.

Alguns dos demônios se encarregaram de perverter as inclinações das crianças desde sua concepção e nascimento; outros de induzir os pais a negligenciarem a educação e instrução de seus filhos, seja por amor desordenado ou aversão, e a causar o ódio entre pais e filhos. Outros ofereceram-se para criar ódio entre maridos e esposas, para colocá-los no caminho do adultério, ou para fazer pouco da fidelidade prometida aos seus parceiros conjugais. Todos concordaram em semear entre os homens as sementes de discórdia, ódio e vingança, pensamentos orgulhosos e sensuais, desejo de riquezas ou honrarias, e sugerir razões sofísticas contra todas as virtudes que Cristo ensinou; acima de tudo, pretendiam enfraquecer a lembrança da sua Paixão e Morte, dos meios de salvação e das penas eternas do inferno. Por esses meios, os demônios esperavam sobrecarregar todos os poderes e faculdades dos homens com solicitude por assuntos terrenos e prazeres sensuais, deixando-lhes pouco tempo para pensamentos espirituais e para a própria salvação.

(Excertos da obra ‘A Cidade Mística de Deus’, da Venerável Maria de Ágreda)