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terça-feira, 30 de dezembro de 2025

'É A VOSSA FACE QUE EU PROCURO!'

Vamos, coragem, pobre homem! Foge um pouco de tuas ocupações. Esconde-te um instante do tumulto de teus pensamentos. Põe de parte os cuidados que te absorvem e livra-te das preocupações que te afligem. Dá um pouco de tempo a Deus e repousa nele.

Entra no íntimo de tua alma, afasta tudo de ti, exceto Deus ou o que possa ajudar-te a procurá-lo; fecha a porta e põe-te à sua procura. Agora fala, meu coração, abre-te e dize a Deus: 'Busco a vossa face; Senhor, é a vossa face que eu procuro' (Sl 26,8). E agora, Senhor meu Deus, ensinai a meu coração onde e como vos procurar, onde e como vos encontrar.

Senhor, se não estais aqui, se estais ausente, onde vos procurarei? E se estais em toda parte, por que não vos encontro presente? É certo que habitais numa luz inacessível, mas onde está essa luz inacessível e como chegarei a ela? Quem me conduzirá e nela me introduzirá, para que nela eu vos veja? E depois, com que sinais e sob que aspecto vos devo procurar? Nunca vos vi, Senhor meu Deus, não conheço a vossa face.

Que pode fazer, altíssimo Senhor, que pode fazer este exilado longe de vós? Que pode fazer este vosso servo, sedento do vosso amor, mas tão longe da vossa presença? Aspira ver-vos, mas vossa face se esconde inteiramente dele. Deseja aproximar-se de vós, mas vossa morada é inacessível. Aspira encontrar-vos, mas não sabe onde estais. Tenta procurar-vos, mas desconhece a vossa face.

Senhor, vós sois o meu Deus, o meu Senhor, e nunca vos vi. Vós me criastes e redimistes, destes-me todos os meus bens e ainda não vos conheço. Fui criado para vos ver e ainda não fiz aquilo para que fui criado.

E vós, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, nos esquecereis, até quando nos ocultareis a vossa face? Quando nos olhareis e nos ouvireis? Quando iluminareis os nossos olhos, e nos mostrareis a vossa face? Quando voltareis a nós?

Olhai-nos, Senhor, ouvi-nos, mostrai-vos a nós. Dai-nos novamente a vossa presença para sermos felizes, pois sem vós somos tão infelizes! Tende piedade dos rudes esforços que fazemos para alcançar-vos, nós que nada podemos sem vós.

Ensinai-me a vos procurar e mostrai-vos quando vos procuro; pois não posso procurar-vos se não me ensinais nem encontrar-vos se não vos mostrais. Que desejando eu vos procure, procurando vos deseje, amando vos encontre, e encontrando vos ame.

(Excertos da obra 'Proslógion', de Santo Anselmo)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

O ESPÍRITO DA CRUZ

Irmãos, há muito tempo que não me vedes aqui; não venho aqui com frequência. Vou falar-vos de uma coisa da qual nunca falei, nem aqui, nem algures. E essa coisa desejo-a a todos; sei bem que o meu desejo não chegará a todos. Vou falar-vos do espírito da Cruz.

Quando o Bom Deus cria um corpo humano, dá-lhe uma alma, é um espírito humano; quando o Bom Deus dá a uma alma a graça do batismo, ela tem o espírito Cristão. O espírito da Cruz é uma graça de Deus. Há a graça que faz apóstolos, e assim por diante. O que é o espírito da Cruz?

O espírito da Cruz é uma participação do próprio espírito de Nosso Senhor levando a sua Cruz, pregado à Cruz, morrendo na Cruz. Nosso Senhor amava a sua Cruz, desejava-a. Que pensava Ele levando a sua Cruz, morrendo na Cruz? Há aí grandes mistérios: quando se tem o espírito da Cruz, entra-se na inteligência destes mistérios. Existem poucos Cristãos com o espírito da Cruz, vêm-se as coisas de modo diferente do comum dos homens.

O espírito da Cruz ensina a paciência; ensina a amar o sofrimento, a fazer sacrifícios. Quando se tem o espírito da Cruz, é-se paciente, ama-se o sofrimento, fazem-se generosamente os sacrifícios que o Bom Deus nos pede. Quer-se a vontade de Deus, e ama-se; acha-se bem o que nos pede.

Os santos queixavam-se muito a Deus que Ele não lhes dava bastante sofrimento; desejavam sofrer. Por que? Porque no sofrimento se pareciam mais com Nosso Senhor. Na vida de Santa Isabel da Hungria, é dito que, depois de a terem despojado de todos os seus bens, ainda a expulsaram de casa: quando viu que nada mais possuía, foi aos Frades Menores mandar cantar um Te Deum para agradecer a Deus por lhe ter tirado tudo. Tinha o espírito da Cruz.

A Imitação diz alguma coisa do que faz o espírito da Cruz: ama mais ter menos do que mais, ama mais estar em baixo do que em cima. Ama ser desprezado. É isto o espírito da Cruz; por isso, é muito raro. Não o tendes muito, o espírito da Cruz. Posso bem dizer-vo-lo, há muito tempo que vos conheço, desde que estou convosco. Tende-lo menos do que o tivestes outrora.

Logo que tendes algum sofrimento, depressa dizeis: 'Meu Deus, livrai-me disto, livrai-me disto'; fazeis novenas para vos libertardes. É preciso amar um pouco mais o sofrimento, e não pedir tão depressa para se ver livre dele. Se tivésseis o espírito da Cruz, veríamos muitas coisas que não vemos; e há as que vemos, que talvez não víssemos.

É preciso ter um pouco mais do espírito da Cruz; é preciso pedi-lo. Tratemos de amar a Cruz, de amar a vontade de Deus.

(Excertos do último sermão do Padre Emmanuel-André, proferido em 14 de setembro de 1902)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (IX)

 

PARTE II - O JUÍZO FINAL

II. Sobre Como Todos os Homens Aguardarão a Vinda de Cristo no Vale de Josafá

Contemplemos agora as multidões reunidas no lugar do julgamento. Toda a humanidade, todos os seres humanos que já viveram na Terra, bem como todos os espíritos rebeldes que foram expulsos do Céu, serão obrigados a comparecer aqui perante o tribunal de Cristo.

Quem pode tentar enumerar essas multidões incontáveis? O número de habitantes da Terra que vivem nesta época da humanidade é de cerca de 1.400.000.000 [atuais 8.230.000.000]. Essa vasta multidão terá desaparecido em menos de meio século, e outra geração, não menos numerosa, terá tomado seu lugar e preenchido a Terra novamente. Assim continuará até o Dia do Juízo Final. Que multidões incontáveis serão levadas perante o tribunal de Cristo!

Os bons estarão todos juntos, regozijando-se na certeza de sua salvação eterna. Eles estão adornados com vestes gloriosas e brilham como as estrelas do céu. Eles se conhecem, se cumprimentam e trocam felicitações mútuas por sua sorte feliz.

Mas não assim com os maus. Os bons estão à direita e os maus à esquerda. Infelizmente, o número dos maus é muito, muito maior do que o dos bons. Tanto antes como depois da vinda de Cristo, o príncipe das trevas dominou um número muito maior de súditos do que o próprio Cristo. Ai de mim, meu Deus, que multidão imensa haverá à esquerda! O luto e a miséria entre eles serão tão incomparáveis que os bons que estão à direita ficariam, se fosse possível, profundamente comovidos com compaixão.

Pois todos esses incontáveis milhões de seres humanos derramarão sua tristeza e angústia excessivas em lamentações piedosas. Aguardando a vinda do Juiz supremo, eles permanecem juntos, separados dos justos, cheios de confusão por sua própria hediondez e, especialmente, por sua pecaminosidade, agora evidente para todos.

No entanto, acima e além de toda essa miséria, está a consternação que prevalece por causa da vinda do Juiz; é algo que está além do poder das palavras expressar. Pois agora essas criaturas infelizes se tornam plenamente conscientes de quão terríveis são os julgamentos de Deus, aos quais deram tão pouca atenção durante a sua vida. Agora, pela primeira vez, reconhecem que vergonha terrível é para eles terem seus pecados manifestados na presença de todos os Anjos e Santos, na presença também dos demônios e dos condenados. Agora, pela primeira vez, estão conscientes da natureza terrível da sentença que lhes será imposta pelo Juiz, a quem muitas vezes desprezaram insolentemente. Essas e muitas outras coisas contribuem para imbui-los de um medo indescritível da vinda do seu Juiz, de modo que tremem de terror e quase desmaiam de apreensão e alarme. 

Dirão uns aos outros em tom lamentoso: 'Ai de nós, o que fizemos! Como nos enganamos terrivelmente! Por causa das poucas e transitórias alegrias da terra, teremos que passar por uma eternidade de angústia. De que nos servem agora todas as riquezas, os prazeres voluptuosos, o orgulho, as honras do mundo? Nós, tolos, desperdiçamos os bens celestiais e eternos pelas coisas pobres e insignificantes da terra. Ai de nós, o que será de nós quando nosso Juiz aparecer! Ó montanhas, caiam sobre nós; ó colinas, cubram-nos, pois verdadeiramente seria menos intolerável para nós sermos esmagados sob o vosso peso do que ficar diante do mundo inteiro cobertos de vergonha e confusão, e contemplar o rosto irado do justo Juiz!

Pecador infeliz, quem quer que seja você que esteja lendo este texto, não se iluda com a vã esperança de que esta descrição da miséria dos perdidos seja exagerada. Eles reclamarão mil vezes mais alto, e sua dor e miséria serão indescritíveis. Aproveite o curto e precioso tempo de sua existência terrena, faça penitência, faça agora tudo o que você desejaria ter feito no Dia do Juízo Final. Peça a Deus a graça de corrigir sua vida pecaminosa, para que o dia da vinda de Cristo não seja um dia de terror indescritível para você.

Meu Deus, reconheço que, por minha vida pecaminosa, mereço ser banido da vossa presença para sempre. No entanto, me arrependo sinceramente dos meus pecados e vos peço a graça de uma verdadeira conversão, para que eu não espere a vossa vinda entre os condenados. Amém.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

sábado, 6 de dezembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (VIII)

     

PARTE II - O JUÍZO FINAL

II. Sobre Como os Bons e os Maus Serão Conduzidos ao Local do Julgamento 

De acordo com a opinião geralmente aceita, o julgamento final será realizado no vale de Josafá, não muito longe de Jerusalém. Essa opinião se baseia nas palavras do profeta Joel: 'reunirei todas as nações e as farei descer ao vale de Josafá' (Jl 4,2). E ainda: 'De pé, nações! Subi ao vale de Josafá, porque é ali que vou sentar-me para julgar todos os povos ao redor!' (Jl 4,12). Não é difícil alegar uma razão pela qual Cristo deveria realizar o julgamento final neste lugar, pois ali está perto do local onde Ele sofreu, e não é justo que, no mesmo lugar, Ele apareça como nosso Juiz? O Monte das Oliveiras, cenário da sua agonia, foi também o da sua gloriosa Ascensão.

Pode-se, no entanto, objetar que o vale de Josafá não poderia conter os milhões e milhões de seres humanos que serão reunidos para o julgamento. Mas quando um local é indicado como o provável teatro do Juízo Final, isso não significa necessariamente que toda a humanidade será reunida nesse espaço limitado.

Consideraremos agora de que maneira seremos reunidos para o julgamento final. Se os justos e os ímpios forem encontrados juntos nos cemitérios e em outros lugares, acontecerá o que Nosso Senhor predisse: 'Assim será no fim do mundo: os Anjos sairão e separarão os maus dos justos' (Mt 13, 49). Pois, uma vez que os bons repousam entre os ímpios, segue-se que, na ressurreição, eles serão encontrados entre os maus. Assim, após a Ressurreição Geral, os santos Anjos virão e separarão os eleitos dos réprobos. São Paulo, falando sobre isso, diz: 'Porque o próprio Senhor descerá do céu com ordem, e com voz de arcanjo, e com trombeta de Deus; e os mortos que estão em Cristo ressuscitarão primeiro. Então nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para encontrar Cristo nos ares' (1Ts 4,15-16). Ou seja, todos os justos serão levados nas nuvens com esplendor e grande glória pelos anjos ao lugar do julgamento. Agora imagine que visão maravilhosa será quando os santos, com seus corpos glorificados, brilhando como ouro polido à luz do sol, forem transportados pelo ar, escoltados por seus anjos da guarda! Com que exultação e alegria eles seguirão seu caminho triunfal!

E quando todos se reunirem no vale de Josafá, eles se cumprimentarão com amor e se abraçarão com alegria mútua. Pense por um momento, ó cristão, como você se alegraria se tivesse a sorte de se encontrar entre o número dos abençoados. Essa felicidade ainda está ao seu alcance; se você realmente a desejar com toda a força de sua vontade, será contado nessa feliz companhia. Esforce-se para cumprir todos os seus deveres bem e fielmente, e você também um dia se juntará a essa gloriosa e triunfante procissão.

Consideraremos agora como os ímpios serão transportados para o vale de Josafá e o que os aguarda lá. Ai de mim! Seu destino é tão triste que mal me atrevo a descrevê-lo em detalhes. O que esses infelizes pecadores pensarão, o que dirão quando virem os santos anjos levando os eleitos de entre eles e transportando-os com glória e esplendor pelo ar? O Sábio nos dá uma ideia de seus pensamentos quando nos diz: 'Estes, vendo isso, ficarão perturbados com um medo terrível e se surpreenderão com a rapidez da salvação inesperada dos justos; dizendo dentro de si mesmos, arrependidos e gemendo de angústia de espírito: Estes são aqueles que nós outrora ridicularizávamos e tomávamos como parábola de opróbrio. Nós, tolos, considerávamos a vida deles loucura e o seu fim sem honra. Vede como eles estão contados entre os filhos de Deus, e o seu destino está entre os santos' (Sb 5,2-5). Como lhes causará tristeza ver aqueles que antes desprezavam tão profundamente agora honrados e amados pelos Anjos de Deus, e conduzidos por eles em glória e triunfo para encontrar Cristo. E aqueles que antes exibiam suas riquezas, que desprezavam todos os seus semelhantes em seu orgulho arrogante, agora estão entre os Anjos caídos, pobres, miseráveis, desprezados.

Quando os Anjos tiverem conduzido todos os eleitos ao vale de Josafá, eles continuarão a conduzir todos os réprobos para lá, com os espíritos malignos que se misturam com eles. Eles gritarão em alta voz: 'Fora daqui, fora para o julgamento! O Juiz dos vivos e dos mortos ordena que vocês compareçam diante Dele'. Que grito lancinante de angústia essas criaturas infelizes emitirão! Farão o possível para resistir à ordem dos Anjos, mas lutarão em vão; devem obedecer à ordem dos mensageiros de Deus. Juntamente com os espíritos malignos, os condenados serão levados à força para o lugar do julgamento. Que viagem terrível! O ar está repleto de gritos de raiva. Os espíritos das trevas, com malícia e crueldade diabólicas, já descarregam seu rancor atormentando as criaturas infelizes que o pecado tornou suas vítimas. Ouçamos o grito de desespero arrancado dos seres miseráveis: 'Que tolos fomos! Tolos impensados! Aonde nos levou o caminho da transgressão? Ai de nós! Ele nos trouxe ao severo, ao terrivelmente severo tribunal de Deus!'

Ouça, ó pecador, as lamentações dolorosas e as autoacusações dessas pobres criaturas. Cuidado para que você também não se torne um deles. Ore a Deus para que o preserve de um destino tão chocante e diga: 'Deus misericordioso, lembrai-vos do alto preço que pagou por mim e do quanto sofreu por mim. Por causa desse preço inestimável, não permitais que eu me perca, resgatai-me e acolhei-me entre as ovelhas do seu rebanho para que, com elas, eu possa louvar e glorificar a vossa bondade amorosa por toda a eternidade'.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

SOBRE A VIRTUDE DA PENITÊNCIA

Certas almas, mesmo piedosas, ao ouvir a palavra penitência ou mortificação, que exprimem a mesma ideia, experimentam às vezes um sentimento de repulsa. De onde isso provém? Não deve surpreender-nos; tal sentimento tem uma origem psicológica. A nossa vontade busca necessariamente o bem em geral, a felicidade, ou algo que parece sê-lo. Pois bem, a mortificação que refreia algumas das tendências dos nossos sentidos, alguns dos nossos desejos mais naturais, aparece a tais almas como algo contrário à felicidade, daí, pois, esta repugnância instintiva na presença de tudo o que constitui a prática da renúncia de si mesmo. 

Além disso, vemos muitas vezes na mortificação um fim, quando não é mais do que um meio, meio necessário sem dúvida, indispensável, mas afinal meio. Não minimizamos o Cristianismo, ao reduzir a papel de meio a renúncia de si mesmo. O Cristianismo é um mistério de morte e de vida, mas a morte não tem outro objetivo senão o de salvaguardar a vida divina em nós: 'Não é Deus de mortos, mas de vivos'. 'Cristo, ao morrer, destruiu a morte, e ao ressuscitar, restituiu-nos a vida' (Prefácio da Missa da Páscoa). A obra essencial do Cristianismo, o fim último que persegue por si só, é uma obra de vida; o Cristianismo é a reprodução da vida de Cristo na alma. 

Assim, como já vos disse, a existência de Cristo oferece este duplo aspecto: 'entregou-se à morte pelos nossos pecados, ressuscitou a fim de nos comunicar a vida da graça' (Rm 4,25). O cristão morre a tudo o que é pecado, para viver mais intensamente da vida de Deus; a penitência, consequentemente, não é, em princípio, senão um meio para conseguir a vida. São Paulo notou isso muito bem quando disse: 'Levai sempre nos vossos corpos a mortificação de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste em nós' (2Cor 4,10). 

Que a vida de Cristo, que tem o seu princípio na graça e a sua perfeição no amor, aumente sempre em nós: esse é o objetivo e não há outro. Para conseguir isso, é necessária a mortificação; por isso, diz São Paulo: 'Os que pertencem a Cristo, em cujo número, pelo nosso batismo, nos contamos, crucificam a sua carne com os seus vícios e concupiscências' (Gl 5,24). E em outro lugar, diz ainda com linguagem mais explícita: 'Se viverdes segundo os instintos da carne, fareis morrer em vós a vida da graça; mas se mortificardes as vossas más inclinações, vivereis uma vida divina' (Rm 8,13).

(Excertos da obra 'Jesus Cristo, Vida da Alma, de Dom Columba Marmion)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

PALAVRAS ETERNAS (XXV)

 

'No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica. Na eternidade, o Céu!'

(Manuscrito da Irmã Lúcia, excertos da obra 'Um caminho sob o olhar de Maria',
publicado pelo Carmelo de Coimbra, 2013)

terça-feira, 25 de novembro de 2025

A CIÊNCIA DE DEUS (IX)

Blaise Pascal (1623-1662) foi um matemático, físico, filósofo e inventor católico, com contribuições relevantes na geometria, mecânica dos fluidos, acústica, teoria das probabilidades, filosofia, teologia e no desenvolvimento do método científico. Em honra a tantas e relevantes contribuições científicas, o nome Pascal foi dado à unidade de pressão no Sistema Internacional de Unidades, como lei física (princípio geral da hidrostática), ao triângulo de Pascal e à famosa Aposta de Pascal, argumento filosófico formulado na sua obra Pensées (Pensamentos) que, embora não tenta provar que Deus existe, mostra que crer em Deus seria a escolha mais racional, considerando risco e benefício (como uma tomada de decisão baseada no critério da incerteza).

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

CARTAS DO CLAUSTRO



Madre Maria José de Jesus nasceu em 1882, sob o nome de batismo de Honorina de Abreu, sendo a filha primogênita do historiador Capistrano de Abreu. Perdeu a mãe aos 9 anos. Em janeiro de 1911, aos 29 anos de idade, decidiu afastar-se da vida mundana para assumir a rigorosa vida monástica no Convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde viveu por 48 anos, até a sua morte, em 1959.

Madre Maria José de Jesus falava sete idiomas, entre eles o latim. Traduziu para o português as obras completas de Santa Teresa d'Ávila e a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis. Foi priora do Carmelo de Santa Teresa por 27 anos, espaçados em 9 triênios, época em que liderou um importante processo de renovação dos costumes monásticos e fundação de novos conventos. Atualmente é considerada Serva de Deus pela Igreja Católica em vista dos trâmites que buscam sua beatificação.

A opção religiosa promoveu um sensível desgosto e desaprovação no pai, de formação racionalista e agnóstico, como ele mesmo confidenciou ao amigo Mário de Alencar, em carta datada de 18 de janeiro de 1911:

Acho porém o caso dela pior que a morte: a morte é fatal; chega a hora inadiável; em resoluções como a de agora há sempre a crença, certamente errônea, de que o desenlace podia ser outro, e é isto que dói. Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos sentimentos mais contraditórios, desde a indignação até as lágrimas. Só com os filhos, à hora do jantar, converso sobre ela. O receio de que qualquer estranho se possa referir ao assunto dá-me arrepios... Mas basta de Honorina. Peço-lhe que nunca mais se refira a e te assunto, se eu em primeiro lugar não o abordar.

A correspondência constituía-se no único meio possível para uma comunicação entre pai e filha, pois Capistrano, contrário ao ingresso de Honorina na vida religiosa, mostrava-se irredutível em não mais retornar ao Convento de Santa Teresa. Nas cartas enviadas ao pai, Madre Maria José buscava confortá-lo pela dor sofrida com a separação imposta pelo claustro, assegurando-lhe ter alcançado a felicidade pessoal, como nesta carta de 10 de janeiro de 1925:

Ah, meu pai, o amor paterno é essencialmente desinteressado, por isso não lamente a dor que lhe causei, porque foi a minha felicidade neste mundo e espero que também no outro. Seu sacrifício foi bem recompensado ... Creia, meu bom pai, que me sinto tão feliz na vida religiosa que constantemente estou dizendo comigo mesma: se eu, em vez de ser uma, fosse mil, não deixaria um só dos meus eus no mundo, consagraria todos a Deus; e o mesmo digo se fosse milhões e milhões, quer de mulheres, quer de homens, e ainda que tivesse segura a salvação eterna, fosse qual fosse o estado que abraçasse. Veja, meu querido pai, que sua filha está contente, e fique também contente, pois a felicidade dos filhos é a felicidade dos pais.

Mas é a conversão do pai à fé católica que vai mover Honorina em orações, devoções e pedidos diretos feitos ao pai, por meio de cartas sucessivas e recorrentes ao tema em 1913, 1914, 1917, 1919, 1923, 1924, 1925 (foram 4 cartas abordando o assunto), 1926 e 1927 (mais duas cartas).

Meu Pai tenho duas coisas a pedir-lhe, ambas espirituais. A primeira é que se aliste na Confraria de Nossa Senhora das Vitórias, que há no Colégio dos Jesuítas. O Pe. Semadini disse-me que eu o convidasse. As obrigações são só dar o nome e rezar uma Ave-Maria todos os dias. Ora, eu tenho confiança que por essa Ave-Maria, V. se venha a converter, como a tantos outros tem acontecido (11 de agosto de 2013)

Não há [nada] como a devoção a Nossa Senhora. Eu, enquanto não amei a esta boa mãe, vivi uma vida péssima, e, se não perdi minha alma, foi porque Nosso Senhor, em sua misericórdia, me conservou a vida; logo que a ela recorro, tudo o que me parecia impossível se me tornou fácil e suave, e eu não só pude viver como boa cristã, mas logo aspirei à perfeição da vida religiosa. Desde então sempre tenho amado a minha Mãe do Céu o mais possível. A Ela recorro em tudo, e Ela me tem valido sempre. Experimente, meu querido Pai, e verá como Maria se mostrará Mãe de Deus pela sua onipotência, e Mãe nossa pelo seu amor.

Eu conheci alguma coisa do que o mundo em sua inexperiência da verdadeira felicidade chama prazer, goro, alegria, e louvo infinitos milhões de vezes a Misericórdia Divina que em sua predileção gratuita para comigo não me deixou conhecer mais; entretanto, eu digo, mil vezes mais feliz fui chorando meus pecados com tanta dor, que o coração quase se me partia, do que nos concertos, nos teatros, nos passeios, nessas diversas vaidades que enleiam o espírito mas não lhe dão verdadeira felicidade [...] Quantas vezes me tem acontecido dormir apenas poucas horas durante a noite e de madrugada, quando o corpo mais precisado estava de descanso, ser despertada pela matraca e pular da cama logo com grande alegria, feliz de começar o dia com sacrifício. Como é feliz nossa vida toda de sacrifício, de silêncio, de oração! Não me canso de louvar a Deus que tão misericordiosamente me escolheu para tanto bem, e peço à Sua Divina Majestade que algum dia toda a minha família partilhe a mesma felicidade de conhecer, amar e servir a Deus (23 de outubro de 1917)

Não fique aborrecido comigo e permita que lhe peça, meu bom Pai, que ao menos reze todos os dias, de manhã e de noite, uma Ave-Maria encomendando a Nossa Senhora a hora de sua morte (24 de fevereiro de 1925).

Capistrano de Abreu morreu em 13 de agosto de 1927, no Rio de Janeiro, sem ter-se convertido à fé católica, a despeito de todos os esforços e sacrifícios de Honorina em favor de sua conversão. Tamanhas divergências com o pai, deixaram Madre Maria José profundamente pesarosa, mas nem assim a religiosa arrefeceu em sua esperança. No mesmo dia em que o pai faleceu, Madre Maria José escreveu à sua irmã Matilde, indicando os fundamentos de seu consolo: 

Agora, vamos rezar muito por nosso Paizinho, não é, Matilde, na certeza de que Nosso Senhor não deixou de atender a tantos sacrifícios feitos por ele durante tantos anos e principalmente nestes últimos dias (13 de agosto de 1927). 

(com excertos do artigo 'Cartas do Claustro', de Virgínia Buarque, 2004)

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (VII)

    

PARTE II - O JUÍZO FINAL

II. Sobre a Ressurreição dos Mortos

O leitor talvez não leve muito a sério o que foi dito no capítulo anterior, porque nutre a esperança de não estar vivo durante esse período terrível. Mas o que estamos prestes a falar diz respeito a todos, seja quem for. Portanto, que se leia isso com atenção e com séria reflexão.

O primeiro evento que se seguirá ao fim do mundo é a ressurreição geral dos mortos. Todos os homens, sejam eles quem forem, e onde quer que tenham vivido, sem excluir os bebês cuja existência foi apenas um breve momento, ressuscitarão. Com o som solene de uma trombeta, Deus fará com que todos os homens sejam convocados para o Juízo Final. A respeito disso, Cristo disse: 'Ele enviará os seus anjos com trombeta e grande voz, e eles reunirão os seus eleitos dos quatro cantos, desde a extremidade do céu até os confins da terra' (Mt 24,31). E São Paulo nos diz: 'Todos ressuscitaremos, mas nem todos seremos transformados. Num momento, num piscar de olhos, ao som da última trombeta; pois a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis: e nós seremos transformados' (1Cor 15,51-52).

Após a grande conflagração, Deus enviará os seus anjos, que tocarão suas trombetas com um som tão poderoso que ecoará por todo o mundo. O som dessa trombeta será tão solene que fará a terra tremer. Sua voz poderosa despertará os mortos, chamando-os: 'Levantai-vos, ó mortos, e vinde ao julgamento! Levantai-vos, ó mortos, e vinde ao julgamento! Levantai-vos, ó mortos, e vinde ao julgamento!' Alto, contínuo e solene será o som dessa trombeta.

Quão aterrorizados ficarão todos os espíritos malignos e as almas perdidas quando ouvirem esse chamado! Eles uivarão e lamentarão, pois a hora fatal finalmente chegou, a hora que eles esperavam há tanto tempo e com um medo indescritível. Haverá tanta comoção no inferno, tanta raiva, fúria e terror, que se poderia imaginar que os demônios estivessem se despedaçando uns aos outros. 'Ai, ai!' - gritarão em seu desespero -  'Como poderemos enfrentar o rosto de nosso Juiz irado? Como poderemos suportar a vergonha, a agonia que será a nossa parte? Se pudéssemos permanecer aqui, com que alegria o faríamos, por maiores que sejam os tormentos que agora temos de suportar!' Mas todos os seus desejos serão vãos, todas as suas lutas serão inúteis.

Eles não podem escolher, pois devem obedecer à voz da trombeta. A ressurreição geral começa enquanto seu som ainda ecoa por todo o globo. Não pare para perguntar como isso pode ser, pois sabemos que assim será, com base na autoridade irrefutável da onipotência de Deus e a sua palavra, que não pode enganar. Por mais tempo que o corpo de um homem tenha se transformado em pó, quaisquer que sejam as mudanças pelas quais tenha passado, cada parte e cada partícula se unirão para formar novamente o mesmo corpo que era dele durante sua vida. 'E o mar entregou os mortos que nele havia, e a morte e o inferno entregaram os mortos que neles havia' (Ap 20,13).

Considere esta verdade solene, ó cristão, pois ela lhe diz respeito diretamente. Tão certo quanto você está vivo agora, tão certo é que um dia você ressuscitará da sepultura. Coloque este momento terrível vividamente diante de você. Mesmo que você seja piedoso e termine seus dias na graça de Deus, ainda assim, de acordo com o testemunho da Sagrada Escritura e da Igreja Católica, o medo e o tremor se apoderarão de você. Considerando o quão inconcebivelmente rigoroso Deus será em seu julgamento dos homens, até mesmo os justos terão motivos para temer ao comparecerem diante do seu tribunal, como mostraremos a seguir. E se os homens bons e justos têm medo, qual será o medo que você, pobre pecador, sentirá quando a trombeta o chamar para o julgamento! Portanto, corrija seus caminhos e faça as pazes agora com seu Juiz severo, por meio de obras de penitência, enquanto ainda há tempo. Agora, para que te prepares para essa terrível hora da ressurreição, descreveremos primeiro a ressurreição dos bons e, em seguida, a dos réprobos.

Despertadas pelo som solene da trombeta, todas as almas dos justos descerão do Céu e, acompanhadas por seus Anjos da Guarda, se dirigirão ao local onde seus restos mortais foram enterrados. Os túmulos estarão abertos e neles os corpos serão vistos deitados, incorruptos, mas sem vida. O corpo de cada homem bom repousará no túmulo como se estivesse adormecido; estará florido como uma rosa, perfumado como um lírio, brilhante como uma estrela, belo como um anjo e perfeito em todos os seus membros. O que dirá a alma quando contemplar o corpo que lhe pertence deitado diante dela com tanta beleza? Ela dirá: 'Salve, corpo abençoado e amado, como me alegro mais uma vez por me reunir a ti! Como és adorável, como és glorioso, como és agradável, como és perfumado! Vem a mim, para que eu possa casar-me contigo por toda a eternidade'. Então, pelo poder de Deus, o corpo se reunirá à alma e, naquele mesmo instante, voltará à vida.

Ó meu Deus, qual será o espanto do corpo quando se encontrar vivo novamente e moldado em uma forma tão bela! A alma e o corpo se cumprimentarão com amor e se abraçarão com afeto e emoção sincera. A alma dirá assim ao corpo: 'Como eu ansiava por ti, como eu desejava ver este dia! Agora vou conduzi-lo às regiões da bem-aventurança celestial para que possamos nos regozijar juntos para sempre'. E o corpo responderá: 'Bem-vinda, querida alma; é realmente uma alegria sincera para mim estar com você novamente. Quanto maior foi a dor que nossa separação passada me causou, maior é o prazer que nossa reunião agora proporciona'.

Então a alma falará novamente e dirá ao corpo: 'Bendito sejas, meu companheiro escolhido, que me foste tão fiel. Benditos sejam teus sentidos e todos os teus membros, pois sempre se abstiveram do mal'. E o corpo responderá: 'Bendita sejas tu, ó alma querida, pois foi por tua instigação que assim fiz, e tu me incitaste a tudo o que era bom. É a ti que devo minha felicidade atual, portanto, eu te louvo e te engrandeço, e te louvarei e engrandecerei por toda a eternidade'. Assim, o corpo e a alma se regozijarão juntos com uma satisfação inexprimível.

Então, os santos anjos guardiões felicitarão esses seres abençoados e exultarão com eles por sua alegre ressurreição. Em todos os cemitérios e lugares onde muitas pessoas estão enterradas, os abençoados ressuscitarão primeiro com corpos glorificados resplandecentes. Que eles terão precedência sobre os outros pode ser deduzido das palavras de Cristo, quando Ele diz: 'Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a voz do Filho de Deus. E os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, mas os que fizeram o mal ressuscitarão para o juízo' (Jo 5, 28-29).

E como em todo cemitério há muitas pessoas para ressuscitar, e entre elas uma proporção considerável será boa e justa, imagine o prazer que será para elas se verem novamente, revestidas de corpos tão brilhantes e gloriosos. Que Deus permita que eu seja contado entre o número desses indivíduos felizes! Como eu lhe agradecerei de coração se Ele atender ao meu pedido!

A ressurreição dos ímpios seguirá imediatamente a dos justos; mas, como será diferente! Em todos os cemitérios, todas as almas perdidas cujos corpos foram enterrados ali se reunirão e serão obrigadas a assumi-los novamente e a se reunir a eles. Mas quanta relutância, que repulsa elas sentirão ao fazer isso! Quando a alma vir seu próprio corpo, ela recuará com a maior repulsa, tão hediondo ele será, e sentirá que prefere ir direto para o inferno a se unir novamente a ele. Pois os corpos dos réprobos se assemelharão mais a demônios do que a homens, tão assustadores, tão repugnantes, tão ofensivos serão. No entanto, por mais que a alma resista e se oponha à reunião com seu corpo, agora tão hediondo, ela deve se submeter a isso, pois Deus a obriga a isso.

Quem pode descrever o desespero que toma conta do corpo quando, reanimado pelo retorno da alma, ele desperta para a consciência de que está perdido para sempre? Com um grito de raiva, ele exclamará: 'Ai de mim, ai de mim por toda a eternidade! Melhor teria sido para mim mil vezes nunca ter nascido, do que ter chegado a esta ressurreição de miséria!' Então a alma responderá: 'Corpo amaldiçoado, já tive de suportar durante várias centenas de anos os tormentos do Inferno, e agora devo regressar contigo ao fogo eterno. Tu és o culpado por toda esta infelicidade; dei-te bons conselhos, mas tu não os seguiste. Por isso, estás perdido para sempre. Ai de mim, alma infeliz que sou! Ai de mim, agora e para sempre! Tu foste o meio que me trouxe a esta miséria sem fim. Por isso, execro a hora em que vim morar contigo pela primeira vez'. E então o corpo responderá à alma desta maneira: 'Ó alma amaldiçoada, que direito tens de me anatematizar, quando tu mesma és a causa de toda essa miséria? Tu deverias ter me governado com mais firmeza e me impedido de praticar o mal, pois foi com esse objetivo que Deus te uniu a mim. Em vez de te associares a mim em obras de penitência, tu te deleitavas comigo em prazeres pecaminosos. Cabe a mim, portanto, amaldiçoar-te por toda a eternidade, porque foste tu quem nos levou a ambos à perdição eterna'. Assim, a alma e o corpo se amaldiçoarão mutuamente. Tais são as circunstâncias infelizes que acompanharão a ressurreição dos corpos dos condenados em todos os cemitérios e sepulcros, quando eles deixarem a sepultura e entrarem em uma segunda vida.

E agora, leitor, tente imaginar a vergonha e a confusão que pesarão sobre essas pobres criaturas quando se virem novamente pela primeira vez. Maridos e esposas se encontrarão, irmãos e irmãs, pais e filhos, amigos e conhecidos; aqueles que viveram na mesma cidade ou na mesma aldeia e se conheceram desde a infância. Sua vergonha será tão avassaladora que preferirão suportar qualquer tortura física a serem expostos a ela. E seus corpos serão tão horrivelmente feios, tão repugnantes na aparência, que eles estremecerão ao se verem. Quem pode descrever o luto e o lamento que prevalecerão entre essas criaturas infelizes! Sua miséria é realmente indescritível.

Pense, quem quer que seja que leia ou ouça isto, que desespero terrível tomaria conta de você se estivesse entre essas almas perdidas. Em que tom lamentável você choraria com eles seu destino infeliz. 'Ai de nós! O que fizemos? Ai de nós, os mais miseráveis; quem dera nunca tivéssemos nascido! Maldita seja você, minha esposa, que me provocou ao pecado! Malditos sejam vocês, meus filhos, que são a causa da minha condenação! Malditos sejam vocês, meus amigos e conhecidos, pois vocês foram a causa desta calamidade que se abateu sobre mim! Malditos sejam para sempre todos aqueles que foram parceiros da minha vida e parceiros do meu pecado!'

Pense nisso, ó pecador, e deixe seu coração endurecido se abrandar. Sempre que passares pelo cemitério do lugar onde vives, lembra-te de que talvez em breve sejas colocado ali para descansar na sepultura até à ressurreição geral. Por isso, faz bom uso do breve período da vida, para que sejas contado entre os justos e ressuscites com eles para a felicidade eterna, e não com os réprobos para os tormentos eternos. Reze frequentemente assim em seu coração: 'Ó meu Jesus, pela vossa infinita misericórdia, eu vos imploro, pela vossa amarga Paixão e morte e pelo Juízo Final, no qual sereis o Juiz de todo o mundo, concedei-me a graça de viver de tal maneira que, na ressurreição, eu possa ressuscitar na vossa alegria e não na vergonha da perdição. Amém'.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

terça-feira, 18 de novembro de 2025

A FACE DIABÓLICA DA FALSA TOLERÂNCIA

Nada é mais óbvio do que isso: a espada da divisão dividiu o mundo inteiro em duas partes antagônicas e visceralmente opostas: bem e mal, virtude e pecado, Cristo e Anticristo. São dois exércitos imensos, dotados de armas poderosas e eficientes, marcados pelo confronto de inimigos mortais. Trata-se do triunfo de um diante do aniquilamenro do outro; há vida para quem vencer e morte para quem perder. Mas não há meio termo, pois não há a mínima possibilidade de coexistência de ambos: um proclama a Verdade e o outro quer o inferno de verdade.

Três coisas a ponderar. A primeira, mais óbvia do que a situação já tão óbvia, é que o Bem e a Verdade triunfarão - 'Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará': as palavras de Nossa Senhora em Fátima ratificam as próprias palavras de Jesus: 'Edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela' (Mt 16,18); a Igreja de Cristo é invencível e nenhum poder espiritual ou humano conseguirá destruí-la. O que será destruído é o mal, o aporte da iniquidade, os cultores do pecado e de todas as misérias humanas.

A segunda coisa a ponderar é que a subserviência e a ingenuidade de legiões em campo de batalha são equívocos terríveis e fatais. Não se recolhem espadas contra espadas desembainhadas. Não se removem escudos contra arcos retesados. Não se permite às tropas cair em sono pesado contra inimigos à espreita. O ecumenimo é uma farsa e uma insensatez tremenda. Conciliar com quem nos odeia mortalmente é fingir que o sol e as trevas podem ser irmãs siameses da mesma hora do dia. Não há 'nós' entre os habitantes da terra, movidos pela música suave e insípida de ideias comuns de um idílio religioso, político, social ou ambiental. Somos apenas e tão somente 'uns' e 'outros'.

A terceira coisa a ponderar é que, na guerra de fim de mundo em campo aberto que vivemos hoje, o exército do mal atua dos dois lados. E a matança maior é interna e ocorre nas flanges do primeiro exército, pelos infiltrados do exército inimigo. E a arma maior - a que mais mata - chama-se tolerância agindo com a mais extrema intolerância. Em nome de um novo conceito de liberdade, de democracia, de direitos humanos, da verborragia da mãe terra ou das mudanças climáticas, do globalismo à ideologia de gênero, e por mais algumas centenas de palavras ressignificadas de vazios, um exército clama pelo diálogo, pela paz, pela interação, pela fraternidade e fomenta, na semântica ensandecida da iniquidade, a guerra e a matança desenfreada da doutrina de Cristo. E ai de quem ousar impor-se contra a abominação de uma tolerância universal! A face diabólica desta falsa tolerância está exposta, nua e crua, diante de todos, em todos os lugares do mundo, basta olhar em volta. 

Jesus também disse: 'Onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração' (Mt 6,21). Que o tesouro dos homens de Cristo, hoje e sempre, seja o testemunho inabalável e perseverante da Verdade, sem trejeitos de ambiguidade e servilismos, sem a traça e a ferrugem, sem tolerância e afagos com os inimigos que nos podem matar a alma. A couraça, o escudo e a espada que moldam um soldado do exército de Cristo não se moldam por figurinos quaisquer, mas são armas poderosas de combate, do 'bom combate' da verdadeira santidade, forjadas num coração que ama a Deus acima de todas as coisas.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (VI)

   

PARTE II - O JUÍZO FINAL

I. Sobre os Sinais que Precederão o Juízo Final

Jesus Cristo, Juiz dos vivos e dos mortos que, na sua primeira vinda apareceu na terra com toda  quietude e tranquilidade, sob uma forma gentil e humilde, voltará pela segunda vez para julgar os homens com grande majestade e glória.

Para que a sua vinda não nos encontre despreparados, Ele enviará antecipadamente muitos e terríveis sinais para nos alertar a abandonar nossa vida pecaminosa. Sobre esses sinais, Ele mesmo diz: 'Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; e, na terra, angústia das nações, os homens desfalecendo de medo e expectativa do que sobrevirá ao mundo inteiro' (Lc 21, 25-26)... Porque então haverá grande tribulação, como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, nem jamais haverá. E, se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria' (Mt 24,21-22). Que anúncio terrível! Que profecia terrível!

Poderia haver alguma previsão mais terrível para nós do que esta que vem dos lábios da Verdade Eterna? Quando Deus estava prestes a destruir a cidade de Jerusalém, Ele anunciou sua queda por meio de vários sinais. Um cometa, semelhante a uma espada de fogo, brilhou sobre a cidade, e exércitos de guerreiros armados foram vistos lutando no ar. Jerusalém poderia, no último momento, ter interpretado corretamente esses sinais e feito penitência para a salvação. Mas Jerusalém não soube o tempo da sua visitação. Se Deus fez com que sinais tão maravilhosos aparecessem antes da destruição de uma única cidade, não anunciará Ele o fim do mundo que se aproxima e os castigos que virão sobre ele, por meio de sinais terríveis e assustadores? 

Há, portanto, todas as razões para acreditar que, um tempo considerável antes do Dia do Juízo Final, sinais temíveis aparecerão em toda a terra e nos céus. Cristo parece indicar isso nas palavras: 'Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; os homens definharão de medo e expectativa do que virá sobre o mundo inteiro'. Esses sinais se tornarão mais numerosos a cada dia, e os homens ficarão tão aterrorizados que, se Deus não encurtasse esses dias, até mesmo os eleitos começariam a se desesperar. Então, como diz São Jerônimo, os céus ficarão nublados com nuvens pesadas e uma tempestade terrível se levantará.

A força do vento derrubará os habitantes da terra e os lançará no ar; árvores serão arrancadas, casas ficarão sem telhado. Longos estrondos de trovões ressoarão nos céus, os relâmpagos, como serpentes de fogo, iluminarão o céu e, com suas línguas bifurcadas, brincando ao redor das moradias da humanidade, acenderão uma conflagração geral, em meio ao estrondo dos trovões. As águas do oceano ficarão tão agitadas que suas ondas se elevarão como montanhas, quase alcançando as nuvens. O rugido e a fúria das ondas varridas pela tempestade durarão algum tempo. Todos os animais da terra levantarão a voz, e seus uivos sombrios encherão o ar, de modo que os corações dos homens ficarão paralisados de terror.

No entanto, isso é apenas o começo da tristeza, diz-nos Nosso Senhor. O que acontecerá a seguir, Ele descreve com estas palavras: “Imediatamente após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua luz, as estrelas cairão do céu e os poderes do céu serão abalados' (Lc 21, 25-26). Este escurecimento do sol ocorrerá em plena luz do meio-dia. E assim como seus raios dourados iluminando a face da natureza alegram tanto os homens quanto os animais, a retirada repentina de sua luz causará tristeza e angústia a toda a criação. E isso ainda mais porque a lua deixará de brilhar, e sua luz suave e pacífica não mais iluminará as sombras da noite. Todas as estrelas que salpicam o firmamento e lançam um brilho sobre a terra desaparecerão de seu lugar habitual. Essa terrível escuridão causará tal alarme e angústia no coração de todas as criaturas vivas, tanto homens quanto animais, que o luto e o lamento serão universais.

Com o lamento de angústia que ascende dos habitantes da Terra, os uivos dos espíritos malignos no ar se misturarão em um concerto hediondo, pois eles perceberão por esses sinais que o Dia do Juízo Final está próximo; eles sabem que em breve terão que comparecer perante o rigoroso tribunal de Deus; eles sabem que serão lançados no Inferno por toda a eternidade. Daí sua fúria, sua raiva e seus delírios frenéticos.

Aqui podemos repetir as palavras ditas por Cristo: 'Este é apenas o começo da dor', e podemos acrescentar que não haverá fim para ela. Pois, após a terrível escuridão, tudo estará perturbado e em desordem, e os elementos serão liberados, de modo que os homens temerão que os céus caiam e a terra afunde sob seus pés. É isso que Cristo quer dizer quando afirma: ' Os poderes do céu serão abalados e as estrelas cairão do céu'. Pois, de acordo com a vontade divina, o firmamento com todas as suas estrelas, o sol com seus planetas, a atmosfera com seu véu de nuvens, serão tão fortemente abalados e feitos tremer que sons terríveis de colisões, quebras e explosões assustadoras serão ouvidos em todos os lugares. As estrelas serão expulsas de suas órbitas e, assim, os grandes poderes do céu entrarão em conflito uns com os outros.

Quais serão os sentimentos do homem que viver esses eventos? Como toda a humanidade, todos os seres criados lamentarão! O próprio Cristo nos diz que assim será: 'Na terra haverá angústia das nações, por causa da confusão do rugido do mar e das ondas; os homens definharão de medo e expectativa do que virá sobre o mundo inteiro' (Lc 21,25-26). E em outro lugar Ele diz: 'Haverá então grande tribulação, como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, nem jamais haverá. E, se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria' (Mt 24, 21-22). Nosso Senhor não poderia ter usado expressão mais forte para descrever a miséria absoluta dos mortais infelizes do que dizer que eles definharão de medo e apreensão pelas coisas que ainda estão por vir sobre o mundo. 

Como é possível que os homens que estarão vivos naquela época não desanimem, não se desesperem, diante de tamanha miséria insondável? Mesmo a fé e a coragem de um apóstolo seriam duramente provadas para suportar tamanha infelicidade indescritível. Todos os homens terão a aparência de quem viu um fantasma. Seus cabelos ficarão em pé, seus joelhos baterão um no outro, eles tremerão de medo, seu terror os privará da capacidade de falar, seus corações morrerão dentro deles por causa da tribulação, perderão a razão e a consciência, ninguém ajudará o seu vizinho, ninguém confortará o seu próximo, ninguém trocará uma palavra com os seus amigos; apenas todos se unirão em choro e lamentação, e correrão para se esconder nas cavernas da terra.

Quando essa lamentação tiver durado algum tempo, o Deus da justiça porá fim à sua miséria, e tudo o que estiver sob o firmamento do Céu será destruído pelo fogo. Pois o fogo cairá do Céu e incendiará tudo com que entrar em contato. Em muitos lugares, também, chamas brotarão do solo e aterrorizarão os mortais infelizes a tal ponto que eles não saberão como escapar delas. Alguns buscarão abrigo em porões e cavernas, outros mergulharão em rios e lagos. As chamas devoradoras se espalharão tão rapidamente que as florestas serão incendiadas, e as cidades e vilas serão incluídas na destruição. Por fim, toda a Terra estará em chamas e ocorrerá uma conflagração geral, como nunca se viu ou se ouviu falar. O calor das chamas violentas será tão intenso que as pedras e rochas derreterão, e o mar e todas as águas da terra ferverão e se converterão em vapor.

Todos os homens então vivos, todos os animais da terra e todos os peixes do mar serão destruídos nesta conflagração universal. Assim, o mundo inteiro chegará a um fim terrível, e tudo nesta terra será consumido ou purificado pelo fogo. Depois que tudo isso acontecer, a aparência da terra será completamente renovada.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

O MAIOR DE TODOS OS PECADOS

Se odiássemos o pecado como deveríamos odiá-lo; puramente, profundamente, valentemente, deveríamos fazer mais penitência, infligir em nós próprios maiores castigos, deveríamos chorar os nossos pecados mais abundantemente. Pois a suprema deslealdade para com Deus é a heresia. É o pecado dos pecados, a mais repugnante das coisas que Deus desdenha neste mundo enfermo. No entanto, quão pouco entendemos da sua enorme odiosidade! É a poluição da verdade de Deus, o que é a pior de todas as impurezas.

Porém, quão pouca importância damos à heresia! Fitamo-la e permanecemos calmos... Tocamo-la e não trememos. Misturamos-nos com ela e não temos medo. Vemo-la tocar nas coisas sagradas e não temos nenhum sentido do sacrilégio. Inalamos seu odor e não mostramos qualquer sinal de abominação ou de nojo. Entre nós, alguns simpatizam com ela e alguns até atenuam a sua culpa. Não amamos a Deus o suficiente para nos enraivecermos por causa da sua glória. Não amamos os homens o suficiente para sermos caridosamente verdadeiros por causa das suas almas.

Tendo perdido o tato, o paladar, a visão e todos os sentidos das coisas celestiais, somos capazes de morar no meio desta praga odiosa, impertubavelmente tranquilos, reconciliados com a sua repulsividade, e não sem proferirmos declarações em que nos gabamos de uma admiração liberal, talvez até com uma demonstração solícita de simpatia tolerante.

Por que estamos tão abaixo dos antigos santos, e até dos modernos apóstolos destes últimos tempos, na abundância das nossas conversões? Porque não temos a antiga firmeza! Falta-nos o velho espírito da Igreja, o velho gênio eclesiástico. A nossa caridade não é sincera porque não é severa, e não é persuasiva porque não é sincera.

Falta-nos a devoção à verdade enquanto verdade, enquanto verdade de Deus. O nosso zelo pelas almas é fraco, porque não temos zelo pela honra de Deus. Agimos como se Deus ficasse lisonjeado pelas conversões, e não pelas almas trêmulas, salvas por uma abundância de misericórdia.

Dizemos aos homens a metade da verdade, a metade que melhor convém à nossa própria pusilanimidade e aos seus próprios preconceitos. E, então, admiramo-nos que tão poucos se convertam e que, desses tão poucos, tantos apostatem.

Somos tão fracos a ponto de nos surpreendermos que a nossa meia-verdade não tenha tanto sucesso como a verdade completa de Deus. Onde não há ódio à heresia, não há santidade. Um homem, que poderia ser um apóstolo, torna-se uma úlcera na Igreja por falta de reta indignação.

(Excertos da obra 'O Preciosíssimo Sangue ou o Preço da Nossa Salvação', do Pe. Frederick William Faber)

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A CIÊNCIA DE DEUS (VIII)

A razão ou proporção áurea é uma constante real algébrica irracional, obtida pela divisão do comprimento total de um segmento dividido em duas partes (a e b) pela parte maior. Esse resultado é sempre constante, designada pela letra grega φ (phi - lê-se 'fi"), com valor aproximado de 1,61803398875. O matemático italiano Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci (1170 - 1250) ratificou no Ocidente conhecimentos prévios de que, numa sequência de números crescentes em que um dado número é a soma dos seus dois precedentes [0,1,1,2,3,5,8,13,21,34,55,89,144,233,377…], ao se dividir qualquer número pelo anterior, o resultado tende sempre para o número φ, com aproximação cada vez maior quanto maiores forem os números [por exemplo, a razão entre 5 e 3 é 1,666, mas a razão de 377 por 233 é de 1,618025]. 


A razão áurea é recorrente na geometria, na anatomia humana e na natureza de maneira geral, sendo, por isso, chamada de 'número de Deus'. O segmento ab, com suas partes a e b, constituindo partes integrantes de uma única coisa, representam a Santíssima Trindade; a razão áurea não admite um valor racional assim como Deus não pode ser definido com palavras humanas; não pode ser alterado de valor assim como Deus é imutável. Quando se aplicam os princípios da Razão Áurea e da sequência de Fibonacci para as dimensões de um retângulo, obtém-se a chamada 'Espiral Áurea', que corresponde à linha traçada seguindo a direção dos quadrados formados nos retângulos áureos.


O 'número de Deus' expressa a perfeição da beleza, da geometria, do arranjo, da anatomia humana (distâncias entre as diferentes partes do corpo regidas pela razão áurea), nas artes e no universo como um todo. Como φ não é um número racional, esssa perfeição nunca pode ser obtida em completude, mas sempre com níveis maiores ou menores de aproximação (como nas razões entre os números da sequência de Fibonacci).






terça-feira, 28 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLIII/Final)

 

149. A vaidade consiste em um apetite desmedido por elogios e no desejo de que nossos méritos brilhem com glória, e essa glória pode ser considerada vaidosa e perversa de três maneiras diferentes.

Primeiro, quando buscamos ser elogiados por uma virtude ou qualquer outro dom do corpo ou da alma que não possuímos, ou então por alguma posse frágil e transitória que não é digna de elogios, como saúde, beleza e outros dons do corpo, riquezas, pompa e outros bens que são chamados de dons da fortuna. Segundo, quando, ao buscar elogios, valorizamos a estima e a aprovação de alguém cujo julgamento não é confiável. Em terceiro lugar, quando não usamos esse elogio para a honra de Deus ou para o bem do próximo, e isso é sempre pecar contra os ditames da Sagrada Escritura: 'Não nos tornemos desejosos de vaidade' [Fl 2,3] e pode ser um pecado mortal quando buscamos ser elogiados por algum mal que fizemos ou temos a intenção de fazer, ou por algum outro mal que nunca fizemos e não pensamos em fazer, ou ainda aceitar elogios por um bem que não fizemos e que queremos que os outros acreditem que fizemos; também pode ser um pecado mortal se fizermos o bem apenas por respeito humano, com a intenção de sermos vistos e elogiados.

Em resumo, este é sempre um pecado muito perigoso, não tanto por sua gravidade, mas por suas graves consequências e porque impede a alma de receber a ajuda da graça e a dispõe a vários pecados mortais: 'Diz-se que a vaidade é um pecado perigoso, não tanto por causa de sua gravidade, mas porque é uma disposição para pecados graves, na medida em que gradualmente dispõe o homem à perda de todo o bem interior' [D.Th. 2a 2æ,qu. cxxxii, art. 3].

Aquele que sofre de vaidade corre o risco de perder também a sua fé, de acordo com as palavras de Cristo: 'Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?' [Jo 5,44]. Santo Agostinho, refletindo sobre isto e sobre o quão pouco se conhece este grande mal, afirma que ninguém é mais sábio do que aquele que sabe que este amor pelo louvor é um vício: 'Vê melhor aquele que vê que o amor pelo louvor é um vício' [Lib. 5, De Civ. Dei., cap. xiii ]; ver também São Tomás [2a 2æ, qu. xxi, art. 4; et qu cccv, art. 1; et qu. cxxxi, per tot.; et qu. clxxviii, art. 2].

150. A vaidade é um vício pelo qual o homem, desejando ser supremamente honrado acima de todos os outros, começa a elogiar e exaltar a si mesmo, exagerando e ampliando as coisas de modo a fazer com que seu próprio mérito pareça maior do que é. Também é chamada de ostentação, autoelogio ou atrevimento; e Santo Agostinho a chama de 'a pior de todas as pragas' [Lib. 1 De Ord. cap. xi] e Santo Ambrósio a chama de rede lançada pelo diabo para capturar os mais fortes e espirituais: 'O diabo lança armadilhas que prendem os mais fortes' [Lib. in Luc.]. Este é um vício que não tem medida porque, ao nos vangloriarmos do que não temos, mentimos à nossa própria consciência e a Deus; e como Deus disse de Moab pelo profeta: 'Conheço-lhe a presunção – oráculo do Senhor – a jactância e a vaidade' [Jr 48,30].

Pode ser um pecado mortal quando nos gabamos de algum pecado que cometemos; quando nos elogiamos, desprezando os outros; ou ainda quando nos elogiamos e exaltamos por meio de um excesso de orgulho que nos inunda o coração. O Doutor Angélico observa que este é um caso comum e não raro, e que o hábito é facilmente formado [2a 2æ, qu. lxii, art. 1. Ver também 2a 2æ, qu. cx, art. 2; qu. cxii, art. 1; et qu. cxxxii, art. 5 ad 1; et qu. clxii, art. 4 ad 2].

151. A hipocrisia é um vício pelo qual fingimos demonstrar externamente uma virtude e uma santidade que não possuímos; e é realmente hipócrita aquele que, estando cheio de maldade por dentro, finge ser bom na sua aparência exterior.

Não há vício contra o qual Jesus Cristo tenha protestado tanto em seu Evangelho quanto contra este [Mt 6, Mt 7, Mt 15, Mt 21], condenando-o com oito gritos de 'Ai de vós', que são oito maldições. E São Gregório observa que os hipócritas, cegos pelo orgulho e endurecidos em seus pecados, geralmente morrem impenitentes, sem nunca terem sido iluminados, por uma razão que talvez tenha sido tirada de São Pedro Crisólogo, porque, embora possamos ver que os remédios para a correção de outros vícios fazem bem, a doença da hipocrisia é tão pestilenta que afeta os próprios remédios, de modo que eles só servem para fomentar e aumentar o mal. 'Irmãos' - diz o santo - 'essa pestilência deve ser evitada, pois transforma remédios em doenças, medicamentos em enfermidades, santidade em vício, piedade em pecado'.

A hipocrisia é sempre um pecado mortal quando fingimos ser espirituais e santos e tentamos parecer assim, quando não o somos no coração, preocupando-nos mais com a opinião dos homens do que com a opinião de Deus; e é ainda pior quando afetamos santidade para promover nosso próprio avanço e adquirir crédito para alcançar e praticar o mal; ou então para obter alguma honra ou outro bem temporal.

Dessa forma, também pecamos gravemente por hipocrisia quando nos mostramos muito escrupulosos com obras ou com certas observâncias minuciosas, sem temer, ao mesmo tempo, transgredir os deveres essenciais da religião e do nosso próprio estado de vida, 'tendo abandonado as coisas mais importantes da lei', como aqueles escribas e fariseus que Cristo repreendeu, dizendo que 'filtram um mosquito e engolem um camelo' [Mt 23, 24]. Também quando, em todas as funções relacionadas com o serviço de Deus, fingimos ter uma intenção pura quando não a temos: 'E procuramos agradar não a Deus, mas aos homens; não a conversão, mas o favor do povo' [D. Th. 2a 2æ, qu. lxi, art. 2].

Os Padres da Igreja geralmente chamam a hipocrisia de perversidade, iniquidade, impiedade; e é fácil não apenas cair nesse pecado, mas também acostumar-se tanto a ele que nos leva ao ateísmo. Muitas vezes começamos servindo a Deus com um certo grau de fervor sagrado, mas quando este diminui, deixamos de servir a Deus e apenas fingimos servi-lo para manter as aparências: 'Ai de vós, hipócritas!' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xi, per tot.].

152. A desobediência é um pecado pelo qual violamos a ordem de nossos superiores, tratando-os com desprezo, e pode ser um pecado mortal mesmo em pequenas coisas; porque, como diz São Bernardo, não devemos considerar a natureza da coisa ordenada nem a simples transgressão do preceito, mas o orgulho da vontade que não se submete quando deveria: 'Não é a simples transgressão do desejo, mas a contenda orgulhosa da vontade que cria a desobediência criminosa' [Lib. de Præcept et Dispens., cap xi] e a gravidade do pecado pode ser julgada sob três aspectos diferentes.

Primeiro, a posição do superior, porque quanto mais elevada for a posição de quem ordena, mais grave é a desobediência. É um pecado maior desobedecer a Deus do que desobedecer ao homem, um pecado maior desobedecer ao papa do que a um bispo, ou a um pai e a uma mãe do que a outros parentes; e é também um pecado maior desobedecer com desprezo pela pessoa que ordena do que apenas com desprezo pelo mandamento.

Em segundo lugar, em relação à natureza das coisas ordenadas, porque quando estas são de maior importância, especialmente nas leis de Deus, a desobediência é maior; portanto, é um pecado mais grave desobedecer aos preceitos que impõem o amor a Deus do que aqueles que nos ordenam amar o próximo.

Em terceiro lugar, no que diz respeito à forma da ordem, pela qual o superior expressa sua intenção de que deseja ser obedecido em tal ou tal assunto, mas é principalmente o orgulho que agrava a desobediência, pois a vontade se recusa a se submeter como deveria à lei divina [São Tomás, 2a 2æ, qu. lxix, art. 1; et qu. cv per tot.].

153. A discórdia é uma discrepância da vontade que a impede de se conformar à vontade de Deus em assuntos em que deveria se conformar para a glória de Deus e o bem do próximo; e é um pecado grave, porque São Paulo os inclui entre os pecados que excluem aqueles que os cometem do reino dos Céus [Gl 5,20]. E Deus declara seu ódio e repulsa por todos aqueles que disseminam discórdia entre seus pares [Pv 6,9]. As dissensões geralmente surgem do orgulho, que nos leva a nos superestimar e a colocar nosso próprio bem-estar e opiniões contra os dos outros, e disso surgem as brigas, litígios, obstinação, calúnias, facções, ódio, contendas e muitos outros males sem número e sem fim [São Tomás 22, qu. xxxvii, art. 1 et 2; et qu. xxxviii, art. 2; et qu. cxxxii, art. 5].

Recolha-se, pois, interiormente, examine-se e, tendo constatado que, sob um ou outro destes títulos, o orgulho realmente o domina, julgue quão necessário é lutar contra ele com humildade, porque, se o orgulho for vencido, uma série de outros pecados também serão vencidos. E, para se dar coragem, lembre-se disto: perante o tribunal de Deus, os orgulhosos serão condenados, e somente os humildes podem esperar encontrar misericórdia. Dizer que somos humildes é o mesmo que dizer que estamos entre os eleitos e seremos salvos; e dizer que somos orgulhosos é o mesmo que dizer que somos réprobos e perdidos, como afirma São Gregório: 'O orgulho é um sinal certo dos réprobos, assim como a humildade é o sinal dos eleitos' [Hom. 7 in Evang.; et lib. 3, Mor. cap xviii].

E, assim, concluímos esse trabalho. Louvado seja Jesus Cristo!

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

SOBRE O AMOR CRISTÃO


No ano de 1219, durante a Quinta Cruzada, São Francisco de Assis reuniu-se, em meio ao conflito, com o Sultão do Egito Al-Malik Al-Kamel na cidade de Damieta, quando este apresentou ao santo a seguinte questão:

'Se Vosso Senhor ensina no Evangelho que vós não podeis retribuir o mal com o mal, e que não podeis recusar o manto a quem vos quiser tirar a túnica, como, vós cristãos, podeis invadir as nossas terras?

Respondeu-lhe então São Francisco:

'Parece-me que não haveis lido todo o Evangelho. De fato, em outro texto, se diz: Se o teu olho é para ti ocasião de escândalo, arranca-o e lança-o para longe. E com isto, o Senhor quer nos ensinar que, mesmo que um homem seja amigo ou parente, ou até tão caro quanto a pupila dos olhos, devemos estar dispostos a separá-lo, a removê-lo, a arrancá-lo de nós, se ele nos tentar afastar da fé e do amor de Nosso Senhor. E precisamente por este motivo, os cristãos agem conforme a justiça quando invadem as vossas terras e vos combatem, porque vós blasfemais o nome de Cristo e trabalhais para afastar o maior número possível de homens da sua Religião. Mas se em vez disso, vós quisésseis conhecer, confessar e adorar o Criador e Redentor do mundo, então eles vos amariam como a si mesmos'.