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sábado, 26 de outubro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXIX) - AS PRAGAS DO EGITO


A Escritura, sem dúvida, apresenta repetidamente as 'Pragas do Egito' como fenômenos milagrosos*. O autor inspirado julga-as como tal e esse deve ser o juízo do exegeta. Por outro lado, quase todos os fatos descritos têm clara analogia com fenômenos naturais que de vez em quando ocorriam no Egito (rās, mosquitos, pústulas, granizos, gafanhotos). Pode deduzir-se daí que o caráter milagroso das 'pragas' algumas vezes não reside na substância, porém no modo. As 'pragas', com efeito, ocorrem como consequência da ordem de Moisés, de maneira mais trágica que o usual, não muito tempo após a outra, poupando de seus efeitos mortíferos os israelitas. 

* Milagre é um fato experimental, que não decorre do jogo usual das forças da natureza, porém, de uma intervenção direta do poder de Deus. Esta intervenção direta de Deus pode manifestar-se de três modos: ou o efeito é totalmente estranho às forças naturais e às leis da natureza e, neste caso, os teólogos falam de milagre quoad substantiam, a saber naquilo que se refere à substância, à própria natureza íntima do fato (p. ex: a glorificação dos corpos ressuscitados); ou o efeito é movido por forças naturais, porém não se aplica a todos os seres (milagres quoad subiectum: p. ex.: a natureza é capaz de fornecer a capacidade visual, porém não a um cego que tenha o órgão da vista irreparàvelmente comprometido, bem como a vida, mas não para um morto); ou trata-se de um efeito possível para a natureza, porém não de um modo corrente ou usual (um tempo prolongado de carência, uma tempestade ou um terremoto ou outro fenômeno natural que ocorra exatamente quando intimado por um profeta); trata-se então de um milagre quoad modum.

O gênero literário desta narrativa apresenta a particularidade estilística das fórmulas fixas, como no primeiro capítulo do Gênesis e a de partes simétricas bipartidas entre comando e execução como na narrativa do Dilúvio. Um exemplo foi citado quando se tratava dos cânones artísticos. Aqui também se trata então de uma narrativa artisticamente esquematizada. Isto não invalida a historicidade dos acontecimentos e da própria narrativa, mas sugere a hipótese de que se possam encontrar disseminados aí modos de dizer 'hiperbólicos' ou 'correlatos', tais como encontramos nas descrições das mesmas 'pragas', no capítulo 17 do Livro da Sabedoria, que se apresentam claramente como ampliações poéticas com finalidade didática; didático e poético realmente é o gênero literário do livro em que se encontram.

Tem-se, ao contrário, uma narrativa esquemática dos mesmos fatos nos Salmos 77 [78] e 104 [105]. Muitos intérpretes colocam entre os milagres quoad substantiam, ou seja quoad subiectum, a água transformada em sangue (ou melhor em aparência de sangue, não sendo necessário incorporar nela glóbulos vermelhos e os outros elementos do sangue vivo), as trevas e a morte dos primogênitos. Pode-se, entretanto, considerar provável a identificação parcial das duas primeiras calamidades com dois fenômenos bem conhecidos no Egito; a saber: a cor vermelho-escura que o Nilo adquire pela presença de inúmeros infusórios no início de julho e a obscuridade que frequentemente ocorre no Egito, nos fins de março, causada pela areia levantada pelo vento do deserto.

Notemos, além disso, como a ordem em que as pragas se sucedem exibe uma coincidência notável com a ordem e a época de aparições de fenômenos naturais correspondentes: primeira: o avermelhamento do Nilo (em julho, a época da inundação); segunda, terceira e quarta: rās e mosquitos, cuja multiplicação coincide com a cheia do Nilo (no verão e outono); quinta e sexta: peste e pústulas, enfermidades do período invernal; sétima: granizos: fenômeno bastante raro, que se verifica quase que exclusivaente em janeiro e fevereiro; oitava: os gafanhotos, bastante raros também (início da primavera); nona: as nuvens de areia (final de março, exatamente à época da Páscoa, em que se dá a partida dos hebreus do Egito); décima: as trevas e a morte dos primogênitos (sem correlação com eventos naturais).

Porém, não obstante estas analogias, fica sempre claro que todas as dez 'pragas' outra coisa não são que milagres, como já dissemos, porque têm início e término por ordem de Moisés com proporções e efeitos preternaturais. As citadas coincidências com os flagelos tipicamente maturais destinam-se apenas para eliminar no leitor a impressão eventual de extravagância dos prodígios e a tornar ainda mais plausível o caráter histórico dos mesmos. 

Quanto aos mágicos egípcios, que no primeiro milagre (Ex 7,9-12) e nas duas primeiras pragas parecem imitar os prodígios de Moisés, tem-se o direito de supor que se trate de alguma ilusão ou de algum hábil artifício, à maneira das técnicas ilusionistas dos atuais faquires. Sua intervenção é assinalada para por em evidência a origem divina dos prodígios de Moisés. Há realmente um clímax e uma sequência crescente: a princípio os mágicos se dão bem, depois não mais são bem sucedidos, depois são obrigados a confessar a presença do 'dedo de Deus' (Ex 8, 15) e, por fim, eles próprios tornam-se vítimas do flagelo das pústulas (Ex 9, 11).

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

terça-feira, 8 de outubro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXVIII) - O DILÚVIO FOI UNIVERSAL?


O autor inspirado apresenta repetidamente o dilúvio como universal: ele leva de roldão a humanidade (Gn 6,7), todos os viventes (Gn 6, 13) e tudo que há sôbre a terra (Gn 6,17), todos os seres (Gn7,4), tudo que respira hálito vital (Gn 7,22), e as águas cobriram todos os montes altos que estão abaixo de todo céu (Gn 7,19).

Estas expressões não são realmente tão categóricas assim, como podem parecer à primeira vista. Há exemplos na linguagem bíblica, em que a palavra 'todo' refere-se a uma parte que o autor considera no seu conjunto. Referindo-se ao próximo ingresso dos hebreus na Palestina, Deus promete ao seu povo: 'hoje principio a esparramar o terror e o medo de ti entre os povos debaixo de todo o céu' (Dt 2,25). Aqui se trata evidentemente apenas dos povos das várias regiões da Palestina. A escassez, ao tempo de José, 'era grande em toda a terra e de todos os países vinham para comprar trigo' (Gn 41,57). Aqui o horizonte é mais amplo que no exemplo anterior, mas não muito mais. A luta entre os fiéis a Davi e os partidários de Absalão alastrou-se 'pela face da terra' (2Sm 18,8). Aqui o horizonte é muitíssimo restrito: trata-se de uma parte da Palestina. Não faltam outros exemplos; e uma tal elasticidade de linguagem aparece também no Novo Testamento, no episódio do Pentecostes, do qual participavam pessoas pertencentes de 'todas as nações que existem sob o céu' (At 2,5), evidentemente no âmbito do Império Romano, como decorre da enumeração que segue (At 9-11).

Afirmar que o autor sagrado, quando diz 'toda a terra' dá a êstes termos o sentido mais óbvio para nós, é abusar de suas palavras: em primeiro lugar porque apreende-se, como se viu, a elasticidade de tal expressão na linguagem bíblica; em segundo lugar porque as palavras 'toda a terra' têm para nós um significado concreto correspondente às nossas adiantadas noções geográficas, que o autor sagrado nem ao menos suspeitava nem podia por isso exprimir por suas palavras. Não há pois que pensar num dilúvio que cobrisse de água todo o globo até o Everest, desde o Alasca até a Nova Zelândia! O Gênesis não conhece nem o Everest nem a Nova Zelândia e nem mesmo o globo. Cabe por isso excluir a universalidade geográfica, não tanto pelos inúmeros e retumbantes milagres que seriam necessários, como porque, realmente, isto não corresponde à intenção do autor sagrado. Mas, qual é então o alcance das palavras bíblicas? Até onde se estende o horizonte dessa universalidade?

Há duas correntes entre os estudiosos católicos. Alguns afirmam: todos os homens (universalidade antropológica) e, portanto, toda a terra então habitada pelos homens e todos os animais que se encontravam naquela região. Realmente o autor apresenta o dilúvio como castigo por causa da conduta dos homens: os animais perecem por se encontrarem na mesma zona e sua ruína é repetidamente lembrada porque acrescenta algo de trágico à grandiosidade do castigo divino. Paralela a essa menção encontra-se, além disso, a dos animais salvos na arca, evidentemente para um rápido repovoamento daquelas terras.

Outros julgam que o autor não pretendia sequer falar da destruição de todos os homens, mas apenas daquela porção de que provém a família de Noé e, portanto, os antepassados do povo eleito (universalidade antropológica relativa), observando que: 

(i) o autor sagrado em todo Gênesis adota o sistema de restringir pouco a pouco o âmbito de sua conjectura. Isto é claro do dilúvio em diante. Depois de ter enumerado os povos descendentes de Jafé, Cam, Sem (Gn 10), abandonando todos os outros ao próprio destino, interessa-se apenas por uma linhagem, aquela que de Sem, através de Arfaxad, conduz a Tare ou Terá (Gn 11). Dos filhos de Tare considera Abraão, e abandona os outros totalmente depois de algumas indicações (Gn 11,27-32; 2,1-5). Abraão tem dois filhos, Ismael e Isaac. Depois de recordar apenas com uma genealogia (Gn 25,12-18) a posteridade de Ismael, o autor prossegue com Isaac (Gn 25,19); Isaac tem dois filhos, Esaú e Jacó; após referir alguns episódios interessantes relativos ao dois patriarcas, o autor apresenta uma longa descendência de Esaú (Gn 36), que assim sai do campo de seu interesse, para prosseguir depois com a história de Jacó e dos seus doze filhos. Assim o horizonte vai aos poucos restringindo-se até abranger somente o povo de Israel. Este plano é maravilhoso e não tem paralelo em nenhuma outra obra do antigo Oriente. Ele mostra que o autor inspirado, antes de se interessar por seu povo, tem em mira a humanidade toda, e que é o mesmo Deus de Israel - Aquele que dirige os destinos do Universo. 

Porém, tal processo eliminatório inicia-se apenas depois da narrativa do dilúvio, ou já antes? Segundo estes estudiosos católicos o autor sagrado, ao dar a descendência de Caim, já elimina um ramo da humanidade; pode-se imaginar que os cainitas não voltarão mais ao horizonte dele. Depois menciona-se Set e outros filhos e filhas de Adão (Gn 5,3-4). Os outros filhos e filhas são abandonados e é tomado em consideração apenas Set. Set gera Enós, e outros filhos e filhas; estes também são desprezados e prossegue-se com Enós. Assim vai até Lamec e Noé. Teremos então, por ocasião do dilúvio, uma humanidade já subdividida em ramos, dos quais o autor sagrado considera apenas a descendência de Set ou suas últimas ramificações em cujo meio vivem os 'filhos de Deus' (Gn 6,2).

(ii) um outro argumento seria oferecido pela listagem dos povos que se segue à narrativa do dilúvio (Gn 10). Aí, o autor sagrado enumera os povos da terra, colocando-os em relação aos três filhos de Noé! Dizemos colocando-os em relação, e não outra coisa, porque aqui, muito mais que em outro qualquer lugar nas genealogias, a palavra 'filho' tem significado muito vago. Realmente os descendentes de Sem, Cam e Jafé ora são indivíduos, mais frequentemente são povos e são, algumas vezes, até cidades. Em certos casos, tratar-se-á de pertinência racial; porém, em outros casos, a relação pode ser puramente extrínseca, como o assimilar da mesma civilização ou o continuar da mesma hegemonia (caso coletivo da descendência jurídica). De qualquer modo estes setenta nomes estranhos, muitos dos quais apenas recentemente foram trazidos à luz pelas escavações arqueológicas (basta pensar nos hititas, amorritas e cretenses), compreende apenas povos do Mediterrâneo, da Ásia Menor, Cáucaso, Mesopotâmia, Arábia e Egito. Todos povos de raça branca (Europóides). Os outros não se acham no horizonte do escritor sagrado* e, portanto, não estariam incluídos por ele no dilúvio. É realmente difícil aceitar que ignorasse a existência dos negros, frequentemente representados nos monumentos egípcios, onde eram também empregados como escravos.

Não é fácil decidir qual das duas hipóteses seja preferível, visto que o texto não fornece elementos suficientes para uma opinião correta. A idéia fundamental do autor sagrado manifesta-se entretanto preservada em ambas interpretações, se bem que, supondo a destruição total da humanidade, esteja-se mais em harmonia com a tonalidade universalística dos capítulos que precedem a história de Abraão.

* que os povos amarelos derivam de Sem, os negros de Cam e oa brancos de Jafé é uma suposição que não encontra qualquer apoio na Bíblia.

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXVII) - AS GENEALOGIAS BÍBLICAS


A pré-história do Gênesis narra pouquíssimos episódios anteriores a Abraão; destes, o dilúvio constitui o ponto central. Para preencher as duas lacunas existentes entre os primeiros homens e o dilúvio, e depois entre este evento e Abraão, o autor sagrado cita duas genealogias. A primeira, desde o primeiro homem (Adão) até o símbolo da humanidade renovada (Noé), conta dez nomes. A segunda, desde Sem, filho de Noé, até Abraão, tronco principal da comunidade hebraica, conta outros dez nomes (Gn 5,1-32; 11,10-32). Tudo isto tem, certamente algo de convencional e lançou os estudiosos à pesquisa de qual fosse o critério dos antigos ao tecer tais genealogias. Tais pesquisas permitem-nos chegar às seguintes conclusões:

1. A genealogia é um gênero literário que tem a finalidade de documentar a pertinência de um indivíduo a um determinado grupo familiar. Sua importância é máxima nas sociedades de estrutura patriarcal, porque é pela genealogia que o indivíduo recebe os seus direitos. Enquanto, nas sociedades mais complexas, como as atuais, o indivíduo tem determinados direitos por ser cidadão de um determinado estado, na patriarcal - como aquela dos pastores nômades — o indivíduo tem, pelo contrário, seus direitos certos enquanto filho ou descendente de um determinado trono. Daí a necessidade de um documento, oral ou escrito, que faça conhecer-lhe a genealogia.

2. Em tal documento genealógico podiam faltar elos intermediários para fins de brevidade e praticidade. Este fato é muito bem caracterizado. São Mateus (Mt 1,8), na genealogia de Jesus escreve: 'Jorão gerou Ozias'; ora, entre Jorão e Ozias acham-se omitidos os reis Ocozias, Joás e Amasias (cf Reis 9, 16; 11, 2-21; 14, 1). O tempo que os hebreus permaneceram no Egito, segundo o Êxodo (Ex 12, 40) foi de 430 anos; pois bem, na genealogia de Moisés, dada pelo mesmo livro (Ex 6,14-), entre Levi, entrado no Egito com seu pai Jacó, e Moisés, o condutor dos israelitas que saíam do Egito, há apenas dois elos intermediários: Levi, Cahat, Amram, Moisés. E assim poderiam ser citados muitos outros exemplos semelhantes a este.

3. A omissão de nomes podia provir do propósito de se obter números simbólicos - como as três séries de 14 nomes na genealogia de Jesus em Mateus (Mt 1,17) - ou números, de outro modo, capazes de se fixar de memória.

4. A palavra gerar, em genealogia, é de significado quase tão amplo quanto a palavra filho, que indica uma pertinência genealógica ainda que muito remota (como o Messias filho de Davi) e, algumas vezes, apenas de direito. Há realmente eqüivalência entre geração e transmissão de direitos. Assim, na genealogia de Jesus, São Mateus escreve: 'Salatiel gerou Zorobabel', concordando com o fato de ser Zorobabel chamado, em outro lugar da Bíblia (Ag 1,1), filho de Salatiel. Mas, na realidade, sabemos de 1 Crônicas (1 Cr 3,19) que Zorobabel é filho de Fadaías, irmão de Salatiel.

5. A genealogia pode ter sido usada para resumir um período histórico, como por exemplo, as genealogias apresentadas no início das 1 Crônicas e no Evangelho de São Mateus; mas não pode absolutamente servir para criar uma cronologia.

Considerando esclarecidos estes pontos, ao examinar as duas genealogias dos patriarcas, anterior e posterior ao dilúvio, devemos concluir que:

1. O autor evidentemente pretende demonstrar, pelas duas genealogias, que Noé é o herdeiro legítimo das promessas feitas a Adão e dos seus ditamess humanos e, pela mesma razão que Abraão, além de ser herdeiro das promessas precedentes, é herdeiro das bênçãos dadas a Sem.

Para este fim, segundo alguns intérpretes, não teria sido necessário nem conhecer as duas séries de nomes pela Revelação, nem entrar a fundo no valor objetivo de tais documentos, mas teria bastado ao autor sagrado introduzir, imutadas, as sequências genealógicas transmitidas pela tradição e, provavelmente já escritas (cf Gn 5,1: 'este é o livro das gerações de Adão...'). Isto é, tratar-se-ia de uma citação , não implícita mas, certamente, explicita, que citaria documentos então conhecidos de todos.

Que o autor não tenha pretendido assumir a responsabilidade dos números indicadores das idades dos Patriarcas ante e pós-diluvianos concluir-se-ia do fato que, enquanto nestas duas listas genealógicas considera comum o gerar em idade pluricentenária, logo depois, na história de Abraão, sublinha insistentemente (Gn 17,17; 18,1) o caráter milagroso do nascimento de Isaac de um pai centenário e de uma mãe nonagenária.

2. O número das gerações - 10 antes do dilúvio e 10 depois do dilúvio - faz pensar numa simplificação sistemática: 10 são os dedos da mão, e 10 é a base do sistema decimal: é muito conveniente pois para fixação da memória. Além disto, desde o inicio do segundo milênio, mesmo os súmeros registraram, pelo menos segundo alguns recenseamentos, os nomes de dez soberanos que precederam o dilúvio.

3. A introdução de números simbólicos em algumas genealogias faz-nos supor que mesmo os outros dados que indicam as idades dos Patriarcas das duas séries, correspondem a um cálculo não objetivo, porém artificioso ou simbólico. A idade de Enoque (365 anos como os dias de um ano solar) e de Lameque (777 anos) dão algum indicio a respeito. Assim, a soma dos anos de vida dos Patriarcas desde Sem a Lameque (Abraão está fora da série) dá 2996, o que, com a única diferença de uma unidade, é igual a (300 x 9) + (30 x 9) + (3 x 9) e que resulta 333 anos em média para cada um. Um processo como este para atingir a um total intencional encontra-se nas várias sequências babilônicas dos dez reis antidiluvianos que reinam cada um dez milhares de anos. 

Note-se, além disso, que entre os samaritanos, os números destas genealogias são diferentes dos retirados do texto hebraico comum e da versão latina de São Jerônimo e exibem sinais evidentes de uma adaptação artificiosa. Esta constatação confirma a hipótese de que, entre os hebreus, aqueles números não tivessem um valor exato mas, por outro lado, demonstra também que eles não foram fielmente transmitidos de maneira que, certamente, é impossível basear-nos sobre eles para descobrir o principio artístico ou simbólico que presidia a sua escolha Com isto não se pretende negar que aqueles antigos, em circunstâncias particularmente favoráveis, pudessem ter vida longa, porém apenas realçar que os números do texto bíblico satisfazem provavelmente a critérios que nos escapam e que, portanto, não nos é possível tirar conclusões exatas concernentes à longevidade dos Patriarcas. Pode além disso acontecer, como se disse acima, que o autor sagrado tenha incluído em seu relato as duas genealogias apenas como citações, sem se comprometer em um juízo sobre as minúcias, apenas com a intenção de preencher 1acunas no fio histórico de sua narrativa.

4. O fato de Set ter a uma determinada idade gerado Enos (Gn 5,6) pode significar simplesmente que Set, numa determinada idade, gerou um filho de quem, depois de uma linha genealógica mais ou menos longa, nasceu Enos. O mesmo se pode dizer dos outros nomes. Nesta hipótese, os 10 nomes seriam tão somente os 10 nomes mais relevantes de uam série muito longa e não necessàriamente linear.

5. Em conclusão, as duas sequências genealógicas resumem dois períodos pré-históricos, mas não nos podem servir para fixar a duração de tais períodos e tampouco, consequentemente, a antiguidade do gênero humano. Sobre a antiguidade do homem, a Bíblia não nos favorece nenhuma conclusão.

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXVI) - O PECADO ORIGINAL


Por que a culpa dos protoparentes torna-se culpa de todos? O antigo israelita que sentia fortemente a solidariedade, mesmo moral, entre os ligados por vínculo sanguíneo, não era atormentado por este problema, demonstrando assim intuir uma realidade que nosso individualismo pode discutir mas não destruir: a saber, a estreitíssima interdependência dos indivíduos em seu ser físico e psíquico. Nossa personalidade é o ponto de encontro de infinitos raios de influência, que começam na vontade de nossos progenitores e chegam até as radiações cósmicas; então é pelo resultado incalculável de inumeráveis causas que somos o que somos, mesmo na inconfundível e irrepetível unidade da pessoa humana.

Entre estas causas, diz-nos a Bíblia, há também o pecado de nosso mais antigo antepassado. Deus poderia ter-nos feito como mônadas absolutamente fechadas a qualquer influxo estranho. Mas então não seríamos homens, seríamos seres de outra estrutura. Nossa estrutura é, ao contrário, a dos seres que são centros de interferências, personalizados por uma alma imortal. 

O conceito católico de Igreja poderá melhor esclarecer-nos sobre os desígnios de Deus relativamente a cada homem. Deus colocou à disposição do homem a elevação ao estado sobrenatural, isto é, o dom da graça santificante que culminará na glória. Ora, são os homens individualmente que atingem êste estado e, no entanto, o dom aparece concedido de modo coletivo. Isto é, cada um alcança a Graça somente pelo fato de se achar inserido, pelo menos virtualmente num organismo suprapessoal, a Igreja, a quem pertence a Graça como coisa própria. Os cristãos não formam uma Igreja pelo fato de estarem unidos ao Cristo, mas, estão unidos a Cristo pelo fato de formarem uma Igreja.

Os Sacramentos e a Liturgia, enquanto vínculos sociais, enquanto ações exteriores que compõem a concatenação da Igreja são, por isso mesmo, os veículos da Graça. A contribuição da vontade pessoal é sem dúvida indispensável, desde o momento em que se torna possível (idade da razão), mas não é essencial, como se infere do batismo das crianças. Entrar a fazer parte da Igreja bem como o próprio subsistir da Igreja, é a resultante de um conjunto de ações interiores e exteriores, das quais o Cristo faz depender seu influxo redentor e vivificante sôbre cada alma. Se, na ordem das causas, o Cristo está em primeiro lugar, todos os outros, desde a hierarquia até os simples fiéis, têm sua responsabilidade e, falhando sua cooperação, a Igreja deixaria de ser como deveria, e muitas almas permaneceriam excluídas.

Este conferir da Graça como dom coletivo à humanidade redimida pelo Cristo é em tudo análogo ao conferir da Graça (e dos privilégios) como dom coletivo a toda humanidade, nos seus primórdios, na pessoa dos progenitores. Aqueles receberam estes dons, não a título de prêmio pessoal, mas a título do bem coletivo de toda a natureza. Bastaria nascer de Adão para, por isso mesmo, ter o dom da Graça, como agora basta estar inserido na Igreja pelo batismo para receber a Graça Cristã. O vínculo que teria ligado toda humanidade, a geração, viria a ser no correr do tempo o canal, a causa da Graça, o vínculo que teria unido cada indivíduo, não apenas aos seus semelhantes, mas também a Deus como fim sobrenatural.

Mas, para que tudo isto não adviesse como algo de fatal, de automático, era conveniente que os primeiros depositários deste dom cooperassem livremente para sua transmissão, bem como, a seu tempo, cada herdeiro deste dom ratificasse livremente — com a fé e as obras — a fortuna que herdou. A culpa pessoal dos progenitores implica a destruição do dom atribuído por Deus como bem coletivo da humanidade, destruição realizada livremente pelos homens que tinham a responsabilidade de transmiti-lo. Assim é que os vínculos da geração não são mais canais da Graça, e a humanidade não é mais, como devia ser, uma única grande Igreja. Deste modo, compreende-se porque o estado de decadência da humanidade seja ingênito em cada um como 'pecado'. Estado de pecado (pecado habitual) é o estado de uma criatura estranha à intimidade com Deus (privação da Graça), por força de uma falta cometida por meio de um ato livre da vontade (ato de pecado).

A grande família humana vai, no seu conjunto, gerando-se em estado de pecado (peccatum naturae), no sentido de que nasce privada da Graça, e esta privação não é apenas um defeito moral, mas subsiste por força do pecado pessoal do progenitor. A minha alma isoladamente, isenta de qualquer responsabilidade individual começou a existir então (e não antes) como parte de um complexo somático e psíquico ligado, por sua vez, sem solução de continuidade, ao resto da família humana. Bem longe de romper esta continuidade biológica e étnica, a alma assumiu-lhe a fisionomia concreta e, com esta, a privação da graça e dos privilégios, e uma tal privação, como encontrada na coletividade dos filhos de Adão, é efeito de uma culpa e, portanto, culpável. 

Ela (a alma) ficou assim ligada a um estado de culpabilidade preexistente, assim como, mais tarde, sendo inserida na Igreja, entrou em comunicação com um estado de Graça preexistente na própria Igreja, por força do Cristo Redentor. Desse modo, pelo pecado original, transmite-se a cada um não apenas uma consequência , ou uma pena pela culpa, mas a própria culpabilidade que recai sobre a natureza globalmente. E, entretanto, a cada um não cabe uma responsabilidade individual, o que seria um disparate. 'Pecado' é o termo que melhor se adapta para exprimir esta realidade inerente a cada homem, pelo próprio fato de sua procedência do primeiro homem e, entretanto, é um termo analógico que não coincide perfeitamente com o sentido dele quando aplicado a um ato pessoal de culpa.

Restaria ainda uma pergunta: por que Deus escolheu um meio coletivo, tanto no caso da elevação da natureza em Adão como no da santificação da Igreja em Cristo, para conferir aos homens estes dons de santificação? Não teria com isso escolhido um meio menos favorável para o indivíduo, que vem assim a depender da responsabilidade dos outros? Respondemos que, sem negar a possibilidade de outras ordens de providência, aquele meio escolhido por Deus parece mais adequado à natureza dos homens.

Uma personalidade, ainda que excepcional, não pode esgotar todas as possibilidades de aperfeiçoamento da natureza humana. O que não é realizado por um é realizado por outro; e, se duas pessoas se acham unidas por uma comunhão de amor, o bem de uma torna-se também o bem da outra. O individualismo, como transposição do indivíduo ao resto da humanidade é também um empobrecimento: o indivíduo afastaria de si todas as riquezas que, por sua natureza, ele não pode possuir inteiramente. Assim como o indivíduo não pode vir à existência sem o concurso de outros, não pode também, muito menos, aperfeiçoar-se por si só. Esta concepção, longe de diminuir a responsabilidade individual, diluindo-a no complexo social, aumenta-a grandemente, tornando cada um responsável também pelos outros.

Se este plano escolhido por Deus teve uma consequência dolorosa no pecado original, não foi contudo impedido o acesso da humanidade ao seu fim último. Este se realiza através de uma via menos aprazível mas não menos gloriosa. A narrativa bíblica deixa uma brecha de esperança — não é definitivo o triunfo alcançado pela serpente — 'Esta (descendente da mulher) te esmagará a cabeça' (Gn 3,15). E esta brecha continuará sempre, alargando-se mais e aclarando-se em sucessivas revelações ('messianismo'), até chegar aquele que dirá: 'Eu sou a ressurreição e a vida' (Jo 11,25), e provocar o clamor da alegria cristã: 'Onde está, ó morte, a tua vitória?' (1Cor 15,35).

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXV) - A CRIAÇÃO


Existem duas narrativas distintas sobre a criação: a primeira, de forma mais estilística, detalhada a seguir, e a segunda, mais formal e didática, na qual a abordagem é exposta sob o ponto de vista humano, visando apresentar, pela própria sucessão dos acontecimentos, a relação que as criaturas, como dons de Deus, têm para com o homem. 

Na primeira narrativa da criação é de evidência imediata a forma estilística particular, cuja lei suprema, no antigo Oriente, era a simetria. Esta simetria, além de utilizar da repetição de fórmulas semelhantes, exigia que se desdobrasse um pensamento ou acontecimento em duas partes que, embora não fossem absolutamente idênticas, esteticamente ficassem em confronto. Uma vez que uma coisa só não pode ser simétrica, sendo duas pelo menos exigidas para isso; se a coisa a ser expressa fosse uma só, era necessário subdividi-la, considerando-a sob dois aspectos diferentes. Por exemplo:

'Não é o discípulo maior que o seu mestre nem o servo maior que o seu patrão; basta ao discípulo tornar-se como o seu mestre e ao servo, como o seu patrão' (Mt 10, 24).

Nesta narrativa artística, o protagonismo da criação é expresso sob a forma de oito quadras sucessivas, repetindo oito vezes os mesmos sete tipos de fórmulas: 1. introdução; 2. mandado; 3. execução; 4. descrição; 5. denominação ou bênção; 6. louvor e 7. conclusão:

1. E disse Deus:
2. faça-se a luz;
3. e a luz foi feita.
4. e separou Deus a lua das trevas.
5. e chamou Deus à luz dia e às trevas chamou noite
6. e viu Deus que a luz era boa
7. e foi tarde e foi manhã, um dia

Estas fórmulas não se repetem uniformemente, mas são quebradas em partes menores (6 ou 5), para se estabelecer um padrão clássico de simetria entre as oito quadras:


Neste contexto de simetria regular, a Bíblia apresenta de forma artística a narrativa da Criação da seguinte forma geral (em 8 quadras):




(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

terça-feira, 26 de abril de 2022

A BÍBLIA EXPLICADA (XXIV): OS 4 PECADOS QUE CLAMAM AO CÉU POR VINGANÇA

 

São quatro os pecados que clamam ao Céu por vingança: assassinato intencional, sodomia, opressão dos pobres e fraude aos trabalhadores em seus salários. Esta categoria de quatro pecados graves não constitui uma classe dos piores pecados possíveis, pois nenhum deles se opõe diretamente a Deus, mas são pecados que tendem a provocar a ira de Deus de uma forma diversa daquela que seria atribuída à sua ira divina contra muitos outros pecados. As Sagradas Escrituras mencionam estes pecados como uma classificação à parte e imperativos a Deus por vingança:

'O Senhor disse [a Caim]: 'Que fizeste! Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra. De ora em diante, serás maldito e expulso da terra, que abriu sua boca para beber de tua mão o sangue do teu irmão' (Gn 4, 10-11).

'Vamos destruir este lugar [Sodoma], visto que o clamor que se eleva dos seus habitantes é enorme dian­te do Senhor, o qual nos enviou para exterminá-los' (Gn 19, 13).

'O Senhor disse: Eu vi, eu vi a aflição de meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa de seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos' [Ex 3,7].

'Eis que o salário, que defraudastes aos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, clama, e seus gritos de ceifadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos' [Tg 5,4].

Nos quatro pecados mencionados acima, a ofensa se opõe diretamente à natureza e aos instintos naturais e, portanto, à ordem que, neste mundo, Deus teve o supremo cuidado de estabelecer. Assim, o homicídio doloso se opõe diretamente à soberania de Deus, que é o único senhor da vida; a sodomia é uma perversão do verdadeiro instinto sexual natural, destinado a perpetuar a raça; a opressão dos pobres extingue o sentimento de piedade arraigado no coração humano; e a fraude aos trabalhadores dos seus salários se opõe ao instinto social que salvaguarda a propriedade dos membros do corpo político. Todos estes pecados clamam ao Céu por vingança porque se opõem diretamente contra a obra da Criação e tendem à destruição da raça humana.

[Excertos da obra 'Moral and Pastoral Theology', Rev. Henry Davis, 1943; com base em publicação original pelo blog Rorate Caeli)

sábado, 10 de outubro de 2020

A BÍBLIA EXPLICADA (XXIII): A TRAVESSIA DO MAR VERMELHO

O Senhor disse a Moisés: 'Dize aos israelitas que mudem de direção e venham acampar diante de Piairot, entre Magdol e o mar, defronte de Baal Sefon: acampareis defronte desse lugar, perto do mar. O faraó vai pensar: os israelitas perderam-se no país, e o deserto fechou-lhes a passagem. Endurecerei o coração do faraó, e ele os perseguirá; mas eu triunfarei gloriosamente sobre o faraó e sobre todo o seu exército, e os egípcios saberão que eu sou o Senhor' (Ex 14, 1-4).


Na epopeia da saída e fuga do Egito, o povo de Israel foi personagem de um dos mais extraordinários eventos narrados nos textos bíblicos, a chamada 'travessia do Mar Vermelho', descrito e detalhado no Livro do Êxodo. A jornada inicial é bem conhecida: os israelitas, liderados por Moisés, deixam o Egito em direção ao Monte Sinai. Durante o dia, Deus provê uma coluna de nuvens para guiar o seu povo na direção correta. À noite, é uma coluna de fogo que os guiam, provendo luz e condições seguras para a continuidade da jornada mesmo após o pôr-do-sol.

Cerca de três dias após o Êxodo, o Faraó se arrepende amargamente de ter permitido a saída dos israelitas de seu país e decide partir ao encalço deles, de forma a capturá-los e fazê-los retornar à força como mão de obra escrava do Egito. Neste ímpeto de fúria, mobiliza-se de imediato um poderoso exército e o próprio Faraó assume a liderança das suas tropas na perseguição aos israelitas. Tem-se, assim, um anfiteatro de uma grande escapada, o grande Êxodo: de um lado, um poderoso exército egípcio sob  comando do próprio Faraó; de outro, um enorme contingente de israelitas irmanados numa jornada exaustiva de dia e de noite para fugir do Egito.


Um primeiro aspecto marcante a ser destacado é relativo ao arrependimento do Faraó após três dias da saída do povo israelita. Isso depois de uma sucessão de pragas terríveis impostas ao povo egípcio (as águas do Nilo transformadas em sangue, o tormento dos piolhos sobre as pessoas e das nuvens de gafanhotos devastando as plantações, chagas afligindo homens e animais, a morte dos primogênitos, etc). Como explicar tamanha arrogância do Faraó diante de tantas tragédias consumadas, que incluíram a perda do seu próprio filho (Ex 12, 29)? Este sentimento extremado de vingança foi permitido por Deus que 'endureceu o coração do Faraó', pois nem a morte dos primogênitos tinha sido suficiente para aplacar a ira santa de Deus contra o povo egípcio (a pena do pecado público aplicado a todo um povo) pelos crimes do Faraó, que havia ordenado que todos os meninos hebreus recém-nascidos fossem atirados e afogados nas águas do rio Nilo (Ex 1,22), suscitando dor e sofrimento indescritíveis às mães enlutadas. De tal horror e gravidade contra pequeninos inocentes, é que pela mesma medida e com igual morte, haveria de perecer todo o exército egípcio em perseguição aos israelitas.

Um segundo aspecto a ser realçado é a aparente contradição da ordem dada por Deus aos israelitas em fuga: em vez de avançarem na escapada, eles teriam não apenas que tomar uma ação de recuo, como também interromperem a jornada e acamparem 'defronte de Baal Sefon', perto do mar. A razão da ordem de Deus está explicitada no próprio texto bíblico: o recuo seria interpretado pelo Faraó como uma indicação de que os judeus estavam perdidos e confusos e que ficaram sem saída, aprisionados entre o deserto e o Mar de Juncos (ou Mar Vermelho). 


Com efeito, a ordem de Deus teria sido analisada pelos israelitas mais descrentes como constituindo uma absurda insensatez: nesse contexto, os israelitas ficariam definitivamente encurralados entre o mar e as montanhas em torno, uma vez que o único caminho de acesso até a região agora era o trajeto óbvio de um poderoso exército egípcio de perseguição. Foi exatamente por isso é que se produziu tanto alarde e que, diante a desconfiança de muitos judeus, Moisés repreendeu o temor deles e os suscitou a confiar plenamente em Deus: 'O Senhor combaterá por vós; quanto a vós, nada tereis a fazer' (Ex 14, 15). É neste cenário de apreensão e prostração do povo israelita que Deus vai demandar um portentoso milagre à frente deles, e por isso os induziu a montarem um acampamento 'perto do mar'.



O cenário do confronto se impõe, mas por uma noite inteira será contido. A coluna de nuvens se interpõe entre os dois contingentes e impede o avanço do exército egípcio que é, assim, obrigado a levantar acampamento à espera do dia seguinte. Os israelitas esperam e têm diante de si o Mar Vermelho como barreira inexpugnável. Mas não é por acaso que se encontram diante Piairot, entre Magdol e o mar, defronte de Baal Sefon: neste ponto específico, a passagem do Mar Vermelho, além de estreita, é particularmente rasa: uma muralha se ergue do fundo do mar e alcança quase a superfície oceânica. Mais ainda, constitui uma frente de exposição contínua à ação dos fortes ventos de leste tão comuns na região. 



Deus preparara com ciência divina e humana a trajetória final do percurso do seu povo escolhido e, assim, ordena a Moisés: 'levanta a tua vara, estende a mão sobre o mar e fere-o, para que os israelitas possam atravessá-lo a pé enxuto' (Ex 14, 16). A ciência humana trabalhou com a mobilização dos impetuosos ventos do leste que abriram uma passagem entre as águas e a ciência divina fez secar e endurecer de imediato o leito marinho, por onde passou o povo israelita sem dificuldades ou obstáculos, de forma controlada e protegida, por uma noite inteira. Os ventos não pararam de soprar fortemente e, assim, a travessia foi completa. 


Se Deus não tivesse utilizado um fenômeno físico, os egípcios nunca teriam continuado a perseguição aos judeus sob uma inexplicável cortina de águas. Acreditaram no que viam (e eventualmente até podiam conhecer): os ventos abriram uma passagem nas águas para os israelitas em fuga e também para os egípcios em perseguição. Por isso, muito cedo ainda, buscaram ir além do possível na perseguição desenfreada, avançando ao longo da passagem marinha formada diante deles. Os ventos continuavam a soprar fortemente e a passagem se mantinha, mas não havia mais leito seco e enrijecido: o avanço era lento, difícil e descontrolado: colunas se adiantavam, grupos ficam retidos mais atrás, os cavalos ficavam atolados, as bigas afundavam no terreno fofo e encharcado, conformando um caos no domínio estreito de um abismo prestes a sucumbir. 

E Deus disse a Moisés: 'Estende tua mão sobre o mar, e as águas se voltarão sobre os egípcios, seus carros e seus cavaleiros' (Ex 14, 26). Os ventos cessaram de pronto e a justiça divina se abateu sobre o Faraó e o exército egípcio, consumando-se o fim de uma dinastia de opressão e livrando para sempre o povo de Israel da escravidão. Expedições recentes neste local do Mar Vermelho comprovam à exaustão a veracidade destes eventos bíblicos: foram achados muitos objetos como rodas de bigas, ferraduras e ossos de homens e cavalos, muitos felizmente protegidos de maiores deteriorações pela cobertura de bancos de corais.


(vestígios de rodas e registro das bigas egípcias da época)

(fragmentos de ossos e de cascos de cavalos)

sábado, 25 de abril de 2020

A BÍBLIA EXPLICADA (XXII): 'APASCENTA AS MINHAS OVELHAS!'

'Era esta já a terceira vez que Jesus se manifestava aos seus discípulos, depois de ter ressuscitado. Tendo eles comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: 'Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?'. Respondeu ele: 'Sim, Senhor, tu sabes que te amo'. Disse-lhe Jesus: 'Apascenta os meus cordeiros'. Perguntou-lhe outra vez: 'Simão, filho de João, amas-me?'. Respondeu-lhe: 'Sim, Senhor, tu sabes que te amo'. Disse-lhe Jesus: 'Apascenta os meus cordeiros'. Perguntou-lhe pela terceira vez: 'Simão, filho de João, amas-me?'. Pedro entristeceu-se porque lhe perguntou pela terceira vez: 'Amas-me?' – e respondeu-lhe: 'Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo'. Disse-lhe Jesus: 'Apascenta as minhas ovelhas' (Jo 21, 14-17).

Esta passagem do texto do Evangelho de São João é carregada de simbolismos e de sinais proféticos. Trata-se explicitamente da terceira manifestação de Jesus aos seus discípulos após os eventos da sua Paixão e Ressurreição e esta menção não é casual e tem relação íntima tanto com as três perguntas que o Senhor dirigiu a Pedro como às três negações do Apóstolo. Por três vezes Pedro há de negar a Pedro, por três vezes Jesus vai pedir para Pedro (o papado) apascentar a Igreja. Com uma diferença exponencial no terceiro pedido: apascenta as minhas ovelhas e não, como nas duas precedentes, apascenta os meus cordeiros.

Existe, portanto, um caráter completamente distinto envolvendo os dois primeiros diálogos de Jesus com Pedro (e, assim, igualmente, entre a terceira e as duas primeiras negações de Pedro). Entre o rebanho de cordeiros (filhote da espécie, indicando, assim, uma Igreja ainda infante e por cumprir ainda a sua função de evangelizar o mundo) e o rebanho de ovelhas (animais adultos, representando simbolicamente a Igreja madura e já plenamente consolidada no mundo), as palavras de Jesus, mais do que a Pedro, são dirigidas à Igreja Militante de tempos essencialmente diversos.

Serão três eras distintas, três momentos absurdamente críticos para a Igreja de Cristo, momentos tão tenebrosos na história humana que levaram o próprio Senhor a explicitar a Pedro (e aos sucessores de Pedro) a sua ordem divina: 'se me amam de verdade, zelem com cuidado extremo e particular pelos meus filhos nestes tempos de tribulação extremada'. 

O primeiro momento tenebroso da história da Igreja é a mesma ter padecido, no nascedouro, de Jesus ausente em corpo entre os homens. Os discípulos, mesmo após o longo convívio com a presença, os ensinamentos, exemplos e milagres do Senhor, vão se refugiar em lugares fechados por medo dos homens, vão vacilar, vão se acovardar. E será o próprio Pedro o mentor do primeiro apelo de Jesus, o mesmo Pedro que vai negar o Mestre pela primeira vez diante de uma simples criada. Sim, uma simples mulher abre a porta para Pedro adentrar um espaço mundano, mas são os próprios discípulos que fecham as portas dos seus refúgios por medo dos homens e da missão que têm a cumprir. Diante da perturbação e da queda iminente diante um mundo que ainda desconhece por completo os mistérios da graça (a criada), Pedro e os Apóstolos romperão as portas do escondimento e do medo para se tornarem os arautos dos evangelhos e os mártires da fé após o Pentecostes. E, assim, a Igreja Primitiva ouviu e fez cumprir o primeiro mandato de Cristo: apascenta os meus cordeiros.

O segundo momento tenebroso da história da Igreja não teve uma data fixa e definida, mas se estendeu por um longo período de flagelo diante as muitas e variadas eras das perseguições romanas. Naqueles tempos, o martírio se converteu em prática cotidiana. Para subverter a Roma pagã e alçar os ares do mundo, o Evangelho de Cristo floresceu na sementeira do sangue derramado por milhares e milhares de mártires. Como conciliar provação tão tremenda de amor à fé cristã por tantos homens e mulheres diante da figura apequenada de Pedro, refestelado diante do fogo acolhedor para se aquecer da noite fria quando Deus vivo está sendo condenado à morte? É uma outra criada agora que o interpela e o acusa diante de outros, isto porque o mundo pagão agora não pode mais dizer que desconhece a Verdade: a força do evangelho vai arrebentando portas e masmorras e convertendo milhares de milhares e, por isso, deve ser denunciado, atacado e combatido pelos inimigos reunidos em torno do fogo acolhedor das misérias do mundo. Essa perseguição vai ter raízes ainda mais profundas no enfrentamento de hordas heréticas de diversas origens, mas o triunfo da Igreja é definitivo. Pedro vai se transformar em um novo Cristo após o seu 'quo vadis' e juntar o seu martírio ao de outros milhares de mártires que temperaram o cadinho da Igreja Nascente e purificada que reformou o mundo para fazer cumprir fielmente o segundo mandato de Cristo: apascenta os meus cordeiros.

O terceiro momento tenebroso da história da Igreja ainda está por vir e terá um período e data muito bem definidos, conforme as inúmeras profecias e referências presentes nos textos das Sagradas Escrituras: os tempos do Anticristo. Será uma era de provação como nunca se viu, será uma hora tremenda para a Igreja e para o povo santo de Deus. Será uma época de perseguições e martírios, de uma crise de fé espantosa, de uma rebelião inimaginável dos homens contra o Evangelho e a fé cristã. Na terceira provação magna da sua história, os eventos associados às duas primeiras estarão presentes conjunta e simultaneamente, e em magnitude extrema. Isto se conclui porque a terceira negação do Apóstolo não constitui somente uma negação como as outras: Pedro blasfema, faz imprecações e jura em falso. A Igreja não apenas vacila e tem medo, mas muda de lado e se alia ao mal. E o galo canta, pois a noite está no fim e já desponta o amanhecer de um novo dia. Neste simbolismo dos trechos proféticos, fica expresso o triunfo final da Igreja nos novos tempos que seguem o fim da noite fria, escura e tenebrosa de provações tamanhas. Este triunfo da Igreja, como expressamente ratificado por Nossa senhora de Fátima, é a certeza de que, naqueles tristes tempos, será firmemente edificada a Igreja Eterna de Cristo e cumprido in totum o terceiro e último mandato de Cristo: apascenta as minhas ovelhas.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A BÍBLIA EXPLICADA (XXI) - COMO ALIMENTAR OS FAMINTOS?

Seguindo o exemplo de Jesus, conforme descrito no milagre da multiplicação dos pães (Mt 14, 14-21):

'Quando desembarcou, vendo Jesus essa numerosa multidão, moveu-se de compaixão [1] para ela e curou seus doentes. Caía a tarde. Agrupados em volta dele, os discípulos disseram-lhe: Este lugar é deserto e a hora é avançada. Despede esta gente para que vá comprar víveres na aldeia. Jesus, porém, respondeu: Não é necessário: dai-lhe vós mesmos de comer. Mas, disseram eles, nós não temos aqui mais que cinco pães e dois peixes. Trazei-os, disse-lhes Ele. Mandou, então, a multidão assentar-se na relva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, elevando os olhos ao céu [2], abençoou-os. Partindo em seguida os pães, deu-os aos seus discípulos [3], que os distribuíram ao povo [4] Todos comeram e ficaram fartos [5], e, dos pedaços que sobraram, recolheram doze cestos cheios [6]. Ora, os convivas foram aproximadamente cinco mil homens, sem contar as mulheres e crianças'.

Ou seja: 

[1] Fazer essa obra com um sincero afeto de compaixão, não só natural, mas sobrenatural, olhando a Cristo na pessoa do necessitado.

[2] Antes de alimentar o necessitado, levantar os olhos ao céu e consagrar a Deus a obra de misericórdia que se vai fazer; por uma puríssima intenção, buscar somente ou principalmente a sua glória divina.

[3]  Dar o alimento assim que se conheça a necessidade, sem aguardar que o peçam para, desse modo, evitar ao pobre esse incômodo [de pedir].

[4] Dar indiferentemente a todos, segundo sua necessidade e sem parcialidade, a não ser em caso de necessidade, ou quando o exija a ordem da caridade.

[5] Dar com prudência, oferecendo ao pobre tal espécie de comida que sirva para satisfazer a sua necessidade e não para despertar a sua gula. O Senhor deu aos pobres pães e peixes, não perdizes e faisões.

[6] Dando com abundância, como fez Jesus. Depois de haver saciado o apetite daquelas pessoas, ainda sobraram doze cestos de pedaços de pão.

(Excertos da obra 'El Corazón de Jesús retratado em sus parábolas', de Ojea y Marquez, 1907)

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

UMA POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO DO APOCALIPSE

É perfeitamente legítimo e salutar ao cristão supor que o Apocalipse não constitui um enigma insolúvel criado por Deus para os homens. Pelo contrário, embora seja verdade que o seu pleno entendimento somente será possível após a sua realização completa, o seu significado geral (e mesmo algumas passagens específicas) podem ser inferidas e vislumbradas pelo esforço pessoal e pela graça de Deus manifestada a quem se detiver na superação das grandes dificuldades de se interpretar adequadamente tais acontecimentos proféticos. A reflexão abaixo é de autoria do padre espanhol José Maria Mestre, e foi publicada originalmente em português no site Permanência.

1. Parece-me indiscutível que o Apocalipse é um escrito profético e não simplesmente histórico, como pretenderam muitos autores em todos os tempos (como uma descrição simbólica da queda da Sinagoga e do Paganismo, ou das perseguições romanas contra os cristãos, por exemplo). Com efeito, sempre se considerou que os livros do Novo Testamento se dividem, tais como os do Antigo Testamento, em históricos, sapienciais e proféticos; e somente ao Apocalipse se encaixaria bem o conceito de profético entre os livros do Novo Testamento. A chave para a interpretação está no próprio Apocalipse, capítulo 1, versículo 19: Scribe quæ vidisti, et quæ sunt, et quæ oportet fieri post hæc ― 'Escreve, pois, as coisas que viste. E que viste? Duas coisas: as que são e as que hão de suceder depois destas'.

Isso quer dizer que São João viu uma dupla realidade, ou duas coisas que são uma: algo que já é e algo que há de ser; e as viu a um só tempo, como superpostas, como por transparência: ou seja, viu algo que já é (poderia ser o império romano perseguidor do cristianismo) como figura de algo que tem de ainda ser (toda a história da Igreja, perseguida, mas especialmente nos últimos tempos, a que se refere principalmente). 

2. As cartas às sete igrejas não são apenas, como pretenderam esses autores de que lhe falava, uns avisos dirigidos por São João aos bispos das igrejas mencionadas, válidos apenas para aquele tempo e desligados do resto da obra ― que seria o único com alcance histórico (isso seria 'o que já é') ― mas que são, por sua vez, verdadeiras profecias das sete principais épocas da Igreja, com que o Apocalipse começa sua projeção histórica sobre o futuro (isso seria 'o que há de ser'). 

3. As sete igrejas, como os demais setenários do Apocalipse, estão divididos em 4 + 3 (e o ternário, por sua vez, em 2 + 1, o último designando invariavelmente o tempo da Parusia). Nas igrejas, esta divisão estará assim assinalada: as quatro primeiras igrejas indicam as etapas de crescimento e desenvolvimento da Igreja ― são quatro igrejas pujantes e vigorosas, cada vez mais ― enquanto que as outras três são etapas de declive da Igreja: combatida, começa a ceder ante seus inimigos, até que, na última Igreja, é dado ao Anticristo o poder de guerrear contra os Santos e vencê-los. 

Por isso mesmo, parece-me indiscutível que as quatro primeiras igrejas são respectivamente, como diz o Padre Holzhauser: Éfeso, a Igreja dos Apóstolos; Esmirna, a Igreja dos Mártires; Pérgamo, a Igreja dos Doutores; Tiatira, a Igreja do Sacro Império Romano, quando a Igreja produz a civilização e a sociedade cristãs. Sardes, a quinta igreja, já é o começo do declive da Igreja, e pode ser identificada com a Igreja do Renascimento ou, de modo mais geral, com a Igreja da Revolução. A identificação das épocas correspondentes às duas igrejas restantes - Filadélfia e Laodiceia - constitui um claro enigma e isso não é fácil de saber com certeza; apenas podemos vislumbrar que são etapas que representam declínios cada vez maiores da Santa Igreja.

4. Parece-me que, fora de dúvida, a Igreja de Laodiceia é a Igreja dos últimos tempos. Nela, Nosso Senhor se descreve como estando já à porta e chamando: alusão clara à sua Parusia, como também a ceia a que convida a quem lhe abra é uma clara alusão ao banquete celestial, à glória celeste. E, por isso mesmo, a Igreja que a precede, que é a de Filadélfia, há de ser a Igreja que vai da Revolução aos acontecimentos que dão lugar aos últimos tempos.

5. Esta Igreja de Filadélfia tem várias características. A primeira é surpreendente: é a única Igreja, junto com a de Esmirna, que não recebe reprovações de Nosso Senhor. Ora, a Igreja de Esmirna foi a Igreja dos Mártires. Por isso, parece bastante evidente que esta Igreja da Filadélfia se caracteriza, como a de Esmirna, por padecer perseguições por parte dos poderes anticristãos e por sua fidelidade a Cristo em meio a esta perseguição. Ademais, é uma Igreja que modicam habes virtutem, que tem pouco poder, mas, perante a qual, abre-se uma porta que ninguém pode fechar. 

Pela porta aberta designa-se sempre, em São Paulo, uma ocasião propícia para a difusão do Evangelho: esta Igreja, portanto, terá uma oportunidade maravilhosa para difundir a doutrina católica com essa pequena fortaleza que lhe queda. E parece que, a esta ocasião de difundir o Evangelho, está vinculada a conversão dos judeus: Ecce faciam illos [qui dicunt se Judæos esse] ut veniant, et adorent ante pedes tuos; et scient quia Ego dilexi te ― 'farei com que aqueles que se chamam judeus venham e adorem prostrados diante de ti, e saibam que Eu te amei'. Finalmente, a esta Igreja se recomenda perseverar na Tradição, isto é, manter o que recebeu: Tene quod habes ― É o único propósito que lhe consigna o Senhor.

6. Com estes dados, pode-se tentar duas interpretações possíveis. Dou as duas, ainda que me esforce por justificar a segunda, não porque tenha autoridade, mas porque me parece a mais provável. A primeira, que se não me equivoco é a de Bartolomeu Holzhauser, consiste em dizer que a quinta Igreja, Sardes, é a da Revolução, que incluiria então: a reforma protestante (1517), primeira etapa da revolução; o estabelecimento da maçonaria (1717), segunda etapa da revolução; o nascimento do comunismo (1917), terceira etapa da revolução, que há de acabar com um grande castigo, graças ao qual uma grande parte da humanidade perecerá e, a parte que sobreviver converter-se-á majoritariamente. 

A sexta igreja, Filadélfia, designaria, portanto, um grande triunfo da Igreja, sem precedentes, que corresponderia ao triunfo do Coração Imaculado de Maria, que ainda não se realizou. Isto é, estaríamos ainda na igreja de Sardes. E a sétima Igreja, Laodiceia, seria a igreja do Anticristo, da feroz perseguição contra a Igreja (da qual a crise atual da Igreja não seria que uma prefiguração) e da Parusia.

7. A segunda interpretação, que é minha, é a seguinte: a quinta igreja, que é a de Sardes, corresponderia com o período que vai do Renascimento à Revolução Francesa. Tem fama de viva (Re-Nascimento), mas está morta (pois é a ressurreição do culto do homem que substitui o culto de Deus). A sexta Igreja, Filadélfia, corresponderia à igreja que vai da Revolução Francesa ao Concílio Vaticano II: uma igreja combatida, perseguida, como a de Esmirna, mas fiel em dar testemunho a Nosso Senhor Jesus Cristo. E é fiel porque essa Igreja, apesar de não possuir muito poder, por ver-se perseguida de tantos modos (protestantismo, maçonaria e poderes públicos), encontra uma porta aberta para difundir o Evangelho: é a Igreja das missões, que se difunde na Ásia e na África como talvez nunca antes havia se difundido. 

Ao mesmo tempo, esta Igreja conta com papas extraordinários, de grande firmeza doutrinal, de Pio VII a Pio XII, que deram à Igreja grande prestígio, apesar de tão combatida. Na França, Alemanha, são frequentes as conversões de judeus, para nada dizer das conversões dos protestantes. Poderíamos dizer que foi uma Igreja que não merece reprovações? Parece que sim: a perseguição a fez forte e generosa. Em meu modo de entender, esta Igreja termina com a morte de Pio XII, o último dos grandes papas, em cujo pontificado a Igreja conservou um prestígio mundialmente reconhecido em todas as ordens. 

Com o Vaticano II, a revolução francesa introduzida no seio da Igreja, começa a Igreja de Laodiceia, a Igreja da tibieza, a Igreja do ecumenismo e do indiferentismo religioso. O próprio papa prega os idéias do Anticristo, os direitos do homem (como diz mais tarde o Apocalipse, é o falso profeta do dragão, a besta da terra, que tem pés de cordeiro, mas fala as palavras do dragão, e seduz a todas as gentes ― quem, senão o papa ou a hierarquia da Igreja, tem esta influência a nível mundial? ― para que adorem a imagem da Besta). A Igreja, pois, divide-se em dois grupos, por assim dizer: a Igreja fiel, perseguida pelo dragão e figurada pela mulher revestida de sol, com a lua sob seus pés e uma coroa de estrelas em sua cabeça; e a 'Igreja' infiel, isto é, uma estrutura prevaricadora, que guarda todas as aparências da verdadeira Igreja e que se serve de seus representantes, de seus santos, de sua jurisdição etc., e está figurada pela prostituta sentada sobre a besta, e que se prostitui com todos os reis da terra, com todas as ideologias anticristãs (ideais humanistas, islamismo, budismo, protestantismo, ONU, etc). Portanto, esta etapa de Laodiceia é a que conhecerá, segundo minha interpretação, a apostasia das nações, a aparição do Anticristo, a perseguição feroz contra a Igreja, a conversão final dos judeus e a Parusia de Cristo com o Juízo Final (esse é o significado de Laodiceia: julgamento dos povos).

8. Trato de aduzir aqui os argumentos em que fundamento esta minha interpretação. Primeiro: sabemos que a Igreja, por ser o Corpo Místico de Cristo, há de viver os mesmos mistérios e sofrimentos que Cristo, sua Cabeça. Também deverá ter a sua Paixão. Mas, antes de viver sua Paixão, Cristo conheceu um triunfo, passageiro, porém sonoro: o domingo de Ramos. O mesmo deve acontecer com a Igreja Católica. Depois de conhecer este triunfo, a Igreja sofrerá sua Paixão, morrerá inclusive (aparentemente, não em realidade, assim como Cristo) e depois ressuscitará e se elevará aos céus. 

A ascensão da Igreja se identifica com a Parusia, com o Juízo Final, não cabe a menor dúvida. É preciso saber, pois, em que consistirá seu Domingo de Ramos, sua Paixão e sua Ressurreição. Segundo: A Virgem Maria profetizou em Fátima o triunfo final de seu Coração Imaculado. Este triunfo será um grande renascimento da Igreja, que não durará muito: 'Ao mundo será dado um certo tempo de paz'. Ora, como parece insinuar São Paulo em sua Epístola aos Romanos, este renascimento da Igreja se realizará pela conversão dos judeus, que será como 'uma ressurreição dos mortos'. Por isso, para mim é evidente que o triunfo do Coração Imaculado corresponde à ressurreição da Igreja após a sua Paixão, e esta ressurreição, por sua vez, consiste na conversão do povo judeu à Igreja Católica. Terceiro: segundo os Santos Padres, São Gregório, em particular, o Anticristo, que perseguirá a Igreja, chegará ao poder graças aos judeus, que colocarão a seu serviço imprensa e finanças, com as que manipulam o mundo. Mas, nesse momento, aparecerá o profeta Elias, que, com sua pregação incendiada converterá grande parte do povo judeu; de modo que o Anticristo, segue dizendo São Gregório Magno, por ódio, em sua perseguição contra a Igreja, perseguirá sobretudo os judeus convertidos. E na morte do Anticristo, quando o Senhor Jesus os tiver destruído com um sopro de sua boca, toda a gente, aliviada de sua cruel tirania, se converterá e ocorrerá um renascimento da Igreja como jamais se viu, que terá como estímulo a conversão maciça dos judeus que ainda não tiverem convertido. Depois, com esta paz temporal, voltará a tibieza dos cristãos e, a esta, seguirá a Parusia de Cristo. 

Com efeito, como não ver no profeta Elias o nexo Maria-judeus-triunfo da Igreja? Pois Elias é o grande profeta da Virgem no Antigo Testamento e é ele mesmo quem há de aparecer para a conversão dos judeus; por isso, a conversão dos judeus parece intimamente ligada à Mediação da Santíssima Virgem. E, uma vez que essa conversão será o maior triunfo conhecido pela Igreja durante toda sua história, como não identificá-la com o prometido triunfo do Coração Imaculado de Maria, que conduz ao triunfo de seu Divino Filho?

9. Desse modo, eu ordenaria os acontecimentos como se segue: Primeiro, a Sexta Igreja, que é a de Filadélfia, corresponderia com esta etapa precursora da Paixão da Igreja: a Igreja já se vê condenada à morte pela Revolução, tal como Cristo já havia sido condenado à morte pela Sinagoga (a pequena fortaleza), mas conhece um tempo de triunfo temporal, como Cristo quando é triunfalmente recebido em Jerusalém. Este triunfo temporal da Igreja, quando já se encontra tão perseguida, manifesta-se pela grande porta que se abre pelo labor das missões, pelo prestígio internacional de que gozam seus papas, pela difusão da devoção ao Sagrado Coração e à Santíssima Virgem, pelo extraordinário desenvolvimento da mariologia e dos dogmas marianos, pelas numerosas aparições de Nossa Senhora, pelos Congressos Eucarísticos Internacionais, pelos chefes de estado católicos etc. 

Triunfo da Igreja em um mundo já corrompido, em um mundo que bebeu profundamente dos princípios da Revolução. Assim como Cristo chora sobre Jerusalém no próprio momento em que é triunfalmente recebido, assim a Igreja há de chorar sobre estas sociedades corrompidas em seus princípios, nas quais, apesar de tudo, consegue este sonoro triunfo. Esta é a sexta igreja, irrepreensível, porque sofreu muito; irrepreensível, porque teve papas de grande porte, firmíssimos doutrinariamente. 

Esta sexta Igreja acaba com a morte de Pio XII e, com o Vaticano II, começa a sétima Igreja (tudo isto coincide, que coincidência! com o momento em que Roma deveria ter difundido o terceiro segredo, que falava destas coisas). Este Concílio dá início à Paixão da Igreja: traição e abandono dos Apóstolos, isto é, dos bispos que se querem moldar ao mundo moderno, ao mundo anticristão, e que, por isso, tornam-se traidores (é o caso dos mais audazes) ou, pelo menos, abandonam Nosso Senhor e se calam (é o caso da maioria). A Igreja entra em sua Paixão e sofre uma espantosa solidão. Vê a seus filhos totalmente desamparados, dispersos como ovelhas, por terem sido feridos por seus pastores. Esta Igreja, como Cristo, se vê acusada de falsos crimes, e cala-se como Cristo em sua Paixão: Deus não lhe permite defender-se das calúnias que são dirigidas contra ela, pois não está em suas mãos nem a imprensa, nem as artes, nem a televisão, nem o rádio. 

Esta Igreja vê difundir-se em seu nome a mais espantosa tibieza, característica de Laodiceia, sob os nomes de ecumenismo, agiornamento, liberdade religiosa... Esta Igreja vê como, em seu nome, se consuma a apostasia: a própria Santa Sé pede às nações católicas que abram mão de sua confissão em respeito às demais crenças. Seus pastores têm pés de cordeiro, sim, mas pronunciam as palavras do Dragão. O mistério de iniquidade avança, e não me parece que tenha de interromper-se, como postularia a primeira interpretação (com o castigo geral e a conversão em massa antes do Anticristo), mas antes que prosseguirá sem solução de continuidade até encontrar seu apogeu na aparição do Anticristo, que, segundo São Paulo, será favorecido e permitido pela apostasia das nações. 

Aparece, pois, o Anticristo, a quem os judeus reconhecem como Messias e, graças aos quais, sobe ao poder e começa a perseguir a Igreja. Chegou o momento da Crucifixão e Morte da Igreja (morte aparente, é claro, mas talvez visível: voltará às catacumbas?). No entanto, ao mesmo tempo, aparece Elias e tem inicio a conversão do povo judeu. O Anticristo, furibundo, começa a perseguir os judeus conversos; no cúmulo de sua soberba, faz-se adorar como deus, mas é destruído por uma ação milagrosa de Deus. Com a morte do Anticristo, completa-se a conversão do povo judeu: chegamos ao momento da ressurreição da Igreja, tal como São Paulo a parece entender. Mas, não dura muito este tempo de paz e florescimento: levados pela comodidade, os cristãos voltam a cair na tibieza, volta a ganhar força o mistério de iniquidade, e a única solução é a vinda e aparição pessoal de Cristo: a Parusia e o Juízo final: é a culminação da Igreja, da obra de Cristo e a Assunção da Igreja ao Céu, em companhia de Cristo. 

10. Resumindo: Laodiceia é a Igreja dos últimos tempos; não é a Igreja do Milênio, pois o Magistério reprova esta opinião; e, a meu parecer, estamos na sétima época da Igreja, mas não sou profeta (sobre isso podemos todos levarmos uma surpresa; segundo Holzhauser, estaríamos ainda na quinta Igreja, na de Sardes; somente afirmaria estarmos na sexta quem julgasse que a sétima haveria de ser a do milênio).

(Texto corrigido e adaptado de original publicado na Revista Permanência)