Na nona parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira define finalmente a causa primária do pouco fruto de tantas pregações ineficazes: o pregador se fia em pregar as suas próprias palavras em desfavor de pregar a Santa Palavra de Deus.
IX
As palavras que tomei por tema o dizem: semen est Verbum Dei [a semente é a Palavra de Deus]. Sabeis, cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são as palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus - como dizia - é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas, se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, porque muito se espantem que não tenham a eficácia e os efeitos da Palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: 'quem semeia ventos, colhe tempestades' (Os 8,7). Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade e se não se prega a Palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de padecer tormenta em vez de colher fruto?
Mas dir-me-eis: 'padre, os pregadores de hoje não pregam o Evangelho, não pregam as Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus?' Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a Palavra de Deus: qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere [quem detém a minha palavra, professe minha palavra na verdade (Jr 23, 26)], disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do demônio.
Tentou o demônio a Cristo que das pedras fizesse pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei [não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Mt 4,4)]. Esta sentença foi tirada do capítulo VIII do Deuteronômio (Dt 8,3). Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo e, alegando o exposto no Salmo 90, diz-lhe desta maneira: mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: 'deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal'. De sorte que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura e o diabo tentou a Cristo com a Escritura.
Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido e o diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido, são palavras de Deus, mas tomadas em sentido alheio, são armas do diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa; tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o diabo derrubar a Cristo e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito porque é o lugar mais alto dele. O diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja e que, em muitas partes, tem derrubado nela senão a Cristo, pelo menos a sua fé.
Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis, que tantas vezes levantais ou esses empreendimentos ao vosso parecer agudos que proferis, achaste-os alguma vez nos Profetas do Velho Testamento ou nos Apóstolos e Evangelistas do Novo Testamento ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Gênesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que entoam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que entoam.
Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, porque nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que as palavras de Deus sejam ditas pelo que nós queremos dizer para que não possamos dizer o que elas dizem! E ainda constatar a aprovação do auditório a estas coisas quando se devia dar com a cabeça pelas paredes só de as ouvir! Verdadeiramente não sei do que mais me espanta: se dos nossos conceitos ou se dos vossos aplausos... 'Ó como bem argumentou o pregador!' Assim é; mas o que argumentou? Um falso testemunho do texto, outro falso testemunho do santo, outro do entendimento e do sentido de ambos. Então espera-se que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.
Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista São Mateus que, por fim, vieram duas testemunhas falsas: novissime venerunt duo falsi testes [por fim, apresentaram-se duas falsas testemunhas (Mt 26, 60)]. Estas testemunhas disseram que ouviram Cristo dizer que, se os judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista São João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias e foi isto mesmo que disseram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista de testemunhas falsas: duo falsi testes [duas testemunhas falsas]? O mesmo São João deu a explicação: loquebatur de templo corporis sui [referia-se ao templo do seu corpo (Jo 2,21)].
Quando Cristo disse, que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas se referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras fossem verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas porque Cristo as dissera em um sentido e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas aquilo que são apenas minhas imaginações, as quais não quero excluir deste número [apenas imaginações]! Porque desde logo há que se esperar que as nossas imaginações, as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
Miseráveis de nós e miseráveis os nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de São Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt [pois haverá tempo em que (os homens) não suportarão a sã doutrina (2Tm 4,3)]: 'virá tempo', diz São Paulo, 'em que os homens não suportarão a sã doutrina'. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus [levados pelos pruridos dos sentidos, buscarão mestres para ouvir apenas o que desejam (2Tm 4,3)]. Mas, para seu apetite, terão grande número de pregadores feitos de montão e sem escolha, os quais não farão mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: 'fecharão os ouvidos à verdade e abri-los-ão às fábulas'.
Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre aquelas do tempo presente era ter-se acabado as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio do que nas pregações de um orador cristão e, muitas vezes, mais que cristão, religioso!
Pouco disse São Paulo em lhes chamar comédia porque muitos sermões não são comédia, mas farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este [o sermão] se rompe, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajes e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro.
E nós, o que é que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajes, uma voz muito afetada e muito polida e logo começar com muito desgarro, para quê? Para motivar desvelos, para creditar empenhos, para requintar finezas, para lisonjear precipícios, para brilhar auroras, para derreter cristais, para desmaiar jasmins, para toucar primaveras e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa, a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia, o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão não é comédia sequer, como faremos bem a figura? Não servirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava São Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de ser seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou São Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou São Francisco de Borja; e eu, que tenho este mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina já que não me falta o seu espírito?
(Sermão da Sexagésima - Parte IX, Pe. Antônio Vieira)