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terça-feira, 22 de abril de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XII)

P. 25 - Ninguém é trazido à fé e à Igreja de Cristo senão aqueles que correspondem como devem às graças recebidas anteriormente?

Deus não permita; pois, embora seja certo que Deus nunca deixará de trazer à fé e à Igreja de Cristo todos aqueles que correspondem fielmente às graças que Ele lhes concede, ainda assim Ele não se obrigou em lugar algum a conceder essa singular misericórdia a nenhum outro. Se fosse esse o caso, quão poucos de fato a receberiam! Mas Deus, para mostrar as riquezas infinitas da sua bondade e misericórdia, concede-a a muitos dos mais indignos. Ele a concedeu até mesmo a muitos dos judeus endurecidos que crucificaram Jesus Cristo e aos sacerdotes que o perseguiram até a morte, embora eles tivessem se oposto obstinadamente a todos os meios que Ele havia usado anteriormente por meio da sua doutrina e milagres para convertê-los. 

Nisso, Ele age como Senhor e Mestre, e como um livre disponente dos seus próprios dons; Ele dá a todos os auxílios necessários e suficientes para o estado atual deles; àqueles que cooperam com esses auxílios, Ele nunca deixa de dar mais abundantemente; e, a fim de mostrar as riquezas da sua misericórdia, em um número dos mais indignos, Ele concede seus favores mais singulares para a conversão deles. Portanto, ninguém tem motivo para reclamar; todos devem ser solícitos em operar com o que têm; ninguém deve se desesperar por causa de sua ingratidão passada, mas ter a certeza de que Deus, que é rico em misericórdia, ainda terá misericórdia deles, se voltarem para Ele. Só devem temer e tremer aqueles que permanecem obstinados em seus maus caminhos, que continuam a resistir aos apelos da sua misericórdia e adiam sua conversão dia após dia. Pois, embora sua infinita misericórdia não conheça limites no perdão dos pecados, por mais numerosos e graves que sejam, se nos arrependermos, ainda assim as ofertas da sua misericórdia são limitadas e, se excedermos esses limites por nossa obstinação, não haverá mais misericórdia para nós. 

O tempo da misericórdia é determinado para cada um e, se deixarmos de aceitar suas ofertas dentro desse tempo, as portas da misericórdia se fecharão contra nós. Quando o noivo entra na câmara nupcial, as portas são fechadas, e as virgens tolas que não estavam preparadas são excluídas para sempre, com esta terrível reprovação de Jesus Cristo: 'Não vos conheço; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade'. Portanto, visto que nenhum homem sabe quanto tempo durará o tempo de misericórdia para ele, não deve demorar um momento sequer; se negligenciar a presente oferta, pode ser a última. Essa hora virá como um ladrão na noite, quando menos esperarmos, como o próprio Cristo nos assegura, e por isso Ele nos ordena que estejamos sempre prontos.

P. 26 - Que opinião, então, pode ser formada sobre a salvação de qualquer pessoa, em particular, que esteja fora da verdadeira Igreja de Cristo e viva em uma religião falsa?

Em resposta a isso, pode-se fazer outra pergunta: Que opinião você formaria sobre a salvação de alguém que esteja vivendo em estado aberto de pecado mortal, como adultério, roubo, impureza ou algo semelhante? Ninguém poderia presumir dizer que esse homem certamente se perderá; mas todos podem dizer que, se ele morrer nesse estado, sem arrependimento, não poderá ser salvo. Se for a vontade de Deus salvá-lo positivamente, Ele, antes que ele morra, lhe dará a graça do arrependimento sincero; porque o Deus Todo-Poderoso exige expressamente dos pecadores um arrependimento sincero como condição sem a qual eles não podem ser salvos: 'Se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis' (Lc 13,3). 

O mesmo deve ser dito de uma pessoa que está fora da Igreja verdadeira e vive em uma religião falsa. Se ela morrer nesse estado, não poderá ser salva; e se for a vontade de Deus salvá-la de fato, Ele sem dúvida a trará para a verdadeira fé e a tornará membro da Igreja de Cristo antes que ela deixe este mundo; e a razão é a mesma que no outro caso. Deus, como vimos acima, exige que todos os homens estejam unidos à Igreja pela fé verdadeira como condição de salvação e, portanto, diariamente 'acrescenta à Igreja aqueles que serão salvos' (At 2,47). Agora, embora um homem seja um grande adversário da Igreja de Cristo no momento ou um grande pecador, embora seja membro da Igreja, ainda assim, como nenhum homem pode saber o que Deus pode querer fazer por qualquer um deles antes de morrer, então nenhum homem pode declarar e dizer que um ou outro estará perdido; pois, se Deus quiser, Ele pode dar a luz da verdadeira fé a um e a graça do verdadeiro arrependimento ao outro, mesmo em seus últimos momentos, e salvá-los.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 7 de abril de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XI)

P. 23 -  Mas suponhamos que uma pessoa esteja nas regiões selvagens da Tartária ou da América, onde o nome de Cristo nunca foi ouvido; suponhamos também que essa pessoa atenda aos ditames da consciência, iluminada pelas graças que Deus se agrada em lhe conceder, e os cumpra constantemente; ainda assim, como é possível que ela seja levada ao conhecimento e à fé em Jesus Cristo?

Esse caso é certamente possível; e, se isso acontecer, não se deve duvidar de que Deus Todo-Poderoso, dos tesouros da sua infinita sabedoria, providenciaria algum meio de levar essa pessoa ao conhecimento da verdade, mesmo que Ele enviasse um anjo do céu para instruí-la. A mão do Senhor não está recolhida, para que Ele não possa salvar uma pobre alma, em quaisquer dificuldades que possa estar; Ele fez, em tempos passados, coisas maravilhosas em casos desse tipo e Ele não é menos capaz de fazer o mesmo novamente. Uma vez que Ele ordenou tão claramente que, fora da verdadeira Igreja e sem a verdadeira fé em Cristo, não há salvação, não pode haver dúvida de que, no caso proposto, Ele cuidaria efetivamente de trazer tal pessoa para essa felicidade.

P. 24 - Existe alguma autoridade nas Escrituras para provar isso?

Não pode haver prova mais forte nas Escrituras do que alguns fatos ali relatados. Temos nas Escrituras dois belos exemplos de Deus agindo dessa maneira em casos semelhantes, o que mostra que Ele faria o mesmo novamente, se algum caso o exigisse. O primeiro é o caso do eunuco de Candace, rainha da Etiópia. Ele, seguindo as luzes que Deus lhe deu, embora vivendo a uma grande distância de Jerusalém, familiarizou-se com a adoração do verdadeiro Deus e estava acostumado a ir de tempos em tempos a Jerusalém para adorá-lo. Quando, porém, o Evangelho começou a ser publicado, a religião judaica não pôde mais salvá-lo; mas estando bem disposto, por fidelidade às graças que havia recebido até então, ele não foi abandonado pelo Deus Todo-Poderoso; pois quando ele estava voltando de Jerusalém para seu país, o Senhor enviou uma mensagem por um anjo a São Filipe para encontrá-lo e instruí-lo na fé de Cristo, e batizá-lo (At 8,26).

O outro exemplo é o de Cornélio, que era um oficial do exército romano do grupo itálico e foi criado na idolatria. No decorrer dos acontecimentos, quando seu regimento chegou à Judéia, ele viu ali uma religião diferente da sua, a adoração de um único Deus. A graça moveu o seu coração, ele acreditou nesse Deus e, seguindo os movimentos posteriores da graça divina, deu muitas esmolas aos pobres e orou fervorosamente a esse Deus para que o orientasse sobre o que fazer. Deus o abandonou? De modo algum; Ele enviou um anjo do céu para lhe dizer a quem se dirigir a fim de ser totalmente instruído no conhecimento e na fé de Jesus Cristo e ser recebido em sua Igreja pelo batismo. 

O que Deus fez nesses dois casos, Ele não é menos capaz de fazer em todos os outros, e tem mil maneiras em ua sabedoria de conduzir as almas que estão realmente empenhadas no conhecimento da verdade e na salvação. E ainda que tal alma estivesse nas mais remotas regiões selvagens do mundo, Deus poderia enviar um Filipe ou um anjo do céu para instruí-la, pela superabundância da sua graça interna ou por inúmeras outras maneiras desconhecidas para nós, poderia infundir em sua alma o conhecimento da verdade. O mais importante é que façamos cuidadosamente a nossa parte, cumprindo o que Ele nos dá, pois temos certeza de que, se não lhe faltarmos, Ele nunca faltará a nós, mas, assim como começou a boa obra em nós, também a aperfeiçoará, se tivermos o cuidado de corresponder e não colocar obstáculos aos seus desígnios.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 31 de março de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (X)

P. 21 - Como se demonstra que se um homem resistir ou negligenciar as graças de Deus, elas lhe serão tiradas? E ainda: se ele se perder, que a culpa é sua?

Isto também é manifesto em toda a Escritura, mas para que este ponto possa ser completamente compreendido, devemos considerar as diferentes consequências fatais que fluem de um abuso obstinado destas graças.

(i) Estas graças são retiradas deles; não, de fato, de uma só vez, pois Deus, em sua infinita misericórdia, espera pacientemente pelos pecadores, e repete os seus esforços para sua conversão; mas se eles ainda resistem ou abusam de suas graças, estas são diminuídas e dadas mais raramente. Assim diz o nosso Salvador do servo inútil: 'Tirai-lhe a moeda... porque ao que não tem, até o que tem lhe será tirado' (Lc 19,24.26). Como assim? Se ele não tem, como é que alguma coisa lhe pode ser tirada? O sentido é: aquele que não melhorou o que tem, até o que tem lhe será tirado. O mesmo é repetido em várias outras ocasiões.

(ii) Quanto mais as graças de Deus são enfraquecidas ou retiradas dos pecadores por seu repetido abuso delas, mais suas paixões são fortalecidas em seus corações, adquirindo maior domínio sobre eles, até que finalmente se tornam seus miseráveis escravos; 'Meu povo não ouviu minha voz' - diz o Deus Todo-Poderoso - 'Israel não me ouviu: então eu os deixei ir de acordo com os desejos de seu coração; eles andarão em suas próprias invenções (Sl 80,12). E São Paulo assegura-nos que, embora os sábios entre as nações pagãs, pela luz da própria razão, chegaram a um claro conhecimento da existência de Deus e do seu poder e divindade, mas 'porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato... Por isso, Deus os entregou aos desejos dos seus corações, à imun­dície' (Rm 1,21.24).

(iii) Se a obstinação deles ainda aumenta, e eles continuam a fechar os olhos para a luz da verdade que Deus lhes oferece, Ele então permite que eles sejam seduzidos pela falsidade, por 'dar ouvidos a espíritos de erro e doutrinas de demônios' (1Tm 4,1). Assim, 'Ele usará de todas as seduções do mal com aqueles que se perdem, por não terem cultivado o amor à verdade que os teria podido salvar. Por isso, Deus lhes enviará um poder que os enganará e os induzirá a acreditar no erro. Desse modo, serão julgados e condenados todos os que não deram crédito à verdade, mas consentiram no mal' (2T 2,10-12). 10. Este texto forte mostra claramente duas grandes verdades; primeiro, que Deus oferece a verdade a todos; e, segundo, que a fonte da condenação deles é inteiramente deles mesmos, ao se recusarem a recebê-la.

(iv) Se, portanto, eles ainda continuarem em sua perversidade, e morrerem em seus pecados, uma terrível condenação será sua porção para sempre; para eles 'Por isso, jurei na minha cólera: não hão de entrar no lugar do meu repouso (Sl 94,11). Sobre eles, Ele pronuncia aquela terrível sentença: 'Uma vez que recusastes o meu chamado e ninguém prestou atenção quando estendi a mão, uma vez que negligenciastes todos os meus conselhos e não destes ouvidos às minhas admoestações, também eu rirei do vosso infortúnio e zombarei, quando vos sobrevier um terror, quando vier sobre vós um pânico, como furacão; quando se abater sobre vós a calamidade, como a tempestade; e quando caírem sobre vós tribulação e angústia. Então me chamarão, mas não responderei; eles me procurarão, mas não atenderei. Porque detestam a ciência sem lhe antepor o temor do Senhor, porque repelem meus conselhos com desprezo às minhas exortações; comerão do fruto dos seus erros e se saciarão com seus planos, porque a apostasia dos tolos os mata e o desleixo dos insensatos os perde' (Pv 1, 24-32). 

A condenação deles é prefigurada na de Jerusalém, que havia sido rebelde a todos os apelos de Deus, e sobre cujo destino nosso Salvador lamenta com estas palavras tocantes: 'Jerusalém, Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados; quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! Eis que a tua casa te será deixada deserta' (Mt 23,37-38). 'Eu quis, e tu não quiseste!' Este é o grande crime cometido por eles. 'Enviei-vos os meus profetas e servos, as minhas graças, luzes e intenções sagradas, mas vós os matastes e destruístes, e não lhes destes ouvidos!' O destino miserável de todos esses infelizes pecadores, prefigurado em Jerusalém, arrancou lágrimas dos olhos de Jesus, quando Ele chorou sobre aquela cidade e disse: 'Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz! Mas não, isso está oculto aos teus olhos. Virão sobre ti dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, te sitiarão e te apertarão de todos os lados; eles destruirão a ti e a teus filhos que estiverem dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não conheceste o tempo em que foste visitada' (Lc 19,42-44). São aqueles que, tendo sido convidados para a ceia nupcial do grande Rei, rejeitaram o seu convite e mataram os seus servos; por isso 'Ele enviou os seus exércitos e destruiu aqueles assassinos, e queimou a sua cidade' (Mt 22,7), declarando depois que 'o banquete está pronto, mas os convidados não foram dignos' (Mt 22,8).

P. 22 - Qual é a consequência de todas essas verdades?

A consequência é muito clara, a saber: embora Deus Todo-Poderoso tenha se agradado em ordenar que ninguém será salvo uma vez que não tenha a verdadeira fé em Jesus Cristo, e não esteja em comunhão com a sua santa Igreja, ainda assim isso não é de forma alguma inconsistente com a infinita bondade de Deus, porque Ele dá a todos as graças suficientes, pelas quais eles podem, se corresponderem a elas, ser trazidos para a verdadeira fé e Igreja de Cristo; e que, se alguém se perde, não é devido a qualquer falta de bondade em Deus, mas ao seu próprio abuso das graças que lhes foram concedidas. A alguns, na verdade, Ele concede essas graças mais abundantemente, dando-lhes cinco talentos; a outros, Ele dá mais parcimoniosamente, dois talentos e a outros apenas um; mas Ele dá a todos o suficiente para suas necessidades atuais, e dará mais se estas forem melhoradas, até que finalmente Ele os leve ao conhecimento da verdade e à salvação.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 20 de março de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (IX)

P. 19 - Esta é, de fato, uma prescrição completa da bondade Divina; mas há algumas partes dela que precisam ser explicadas; primeiro, como as Escrituras nos apresentam que Deus dá a toda a humanidade as graças aqui mencionadas com vista à sua salvação?

Isto é manifesto a partir de três fortes razões registadas nas Escrituras: Primeiro, as Escrituras asseguram-nos que Deus quer que todos os homens sejam salvos, e que nenhum se perca. Assim, 'por minha vida' - diz o Senhor Deus - 'não quero a morte do ímpio, mas que o ímpio se converta do seu caminho e viva' (Ez 33,11). Assim declara nosso Salvador: 'Não é da vontade de nosso Pai, que está nos céus, que um só destes pequeninos pereça' (Mt 18,14). 'Deus tem paciência por vós' - diz São Pedro - 'não querendo que nenhum pereça, mas que todos se arrependam' (2Pd 3,9). E São Paulo afirma-o expressamente: 'Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade' (1Tm 2,4). Ele quer que todos os homens se salvem e que cheguem ao conhecimento da verdade, como condição essencial da salvação. Ora, desta vontade sincera de Deus para a salvação de todos os homens, segue-se como consequência necessária que Ele dá a todos os homens tais ajudas da sua graça que são suficientes, se eles fizerem um bom uso delas, para levá-los tanto ao conhecimento da verdade quanto à salvação; pois como eles são absolutamente incapazes de dar qualquer passo em direção a este fim sem a sua ajuda, se Ele quer este propósito, Ele deve também aplicar os meios de tal maneira que, se o fim não for realizado, não é devido a Ele. Se Deus não fizesse isso, não poderíamos concebê-lo afirmando que Ele quer que todos os homens sejam salvos e que não quer a morte dos ímpios.

Em segundo lugar, as Escrituras declaram que Jesus Cristo morreu para a redenção de toda a humanidade, sem exceção. Assim, 'Jesus Cristo deu-se a si mesmo em redenção por todos' (1Tm 2,6). 'Se um morreu por todos, logo todos estão mortos, e Cristo morreu por todos' (2CorR 5,15). 'Esperamos no Deus vivo, que é o Salvador de todos os homens, principalmente dos fiéis' (1Tm 4,10). 'Se alguém pecar, temos um advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o justo, e Ele é a propiciação pelos nossos pecados; e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo' (1Jo 2,1). Por isso, São João Batista disse dele: 'Eis o Cordeiro de Deus, eis Aquele que tira os pecados do mundo' (Jo 1,29). E Ele mesmo diz: 'O pão que Eu darei é a Minha carne, para a vida do mundo' (Jo 6,52). E mais: 'O Filho do Homem veio buscar e salvar o que estava perdido' (Lc 19,10) e 'Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo' (Jo 12,47). São Paulo diz ainda: 'Uma palavra fiel e digna de toda a aceitação, que Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores' (1Tm 1,15). Mas como todos estavam perdidos, como todos, sem exceção, eram pecadores, portanto Jesus Cristo veio para procurar e salvar todos. Agora, disto também se segue, como uma consequência necessária, que todos, sem exceção, devem receber, em algum grau ou outro, tais frutos e benefícios da sua redenção, seja direta ou indiretamente, mediata ou imediatamente, como são suficientes para obter sua salvação, se eles cooperarem com eles. Se alguém, então, não for realmente salvo, isso não pode ser devido a qualquer deficiência da parte de Jesus Cristo, mas ao seu próprio abuso das suas graças; pois seria trivial dizer que Ele é o Salvador de todos, se todos não recebessem os frutos da sua redenção com vistas à sua salvação.

Em terceiro lugar, as Escrituras asseguram-nos que todos os homens recebem efetivamente de Deus, no grau, maneira e proporção que Ele considera adequados, de acordo com o seu estado atual, tais ajudas das suas graças que lhes permitiriam assegurar a sua salvação, se cooperassem com elas. Pois, em primeiro lugar, Deus Todo-Poderoso, por seu sincero desejo pela salvação de todos, 'enviou o seu Filho ao mundo, para que o mundo pudesse ser salvo por Ele' (Jo 3,17). São Paulo expressa claramente este argumento: 'Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, mas o entregou por todos nós, como não nos deu também com ele todas as coisas?' (Rm 8,32); pelo menos todas as coisas absolutamente necessárias para a nossa salvação, e sem as quais nunca estaria em nosso poder alcançá-la? Ora, como Ele entregou o seu Filho para todos, sem exceção, e com este mesmo objetivo, 'para que o mundo', isto é, toda a humanidade, 'possa ser salva por Ele': portanto, a todos, sem exceção, Ele dá a todos tais ajudas e graças que, mediata ou imediatamente, direta ou indiretamente, colocam em poder deles a salvação.

Por outro lado, as Escrituras declaram que Cristo 'é a verdadeira luz, que ilumina todo homem que vem a este mundo' (Jo 1,9). Conseqüentemente, todo homem que vem a este mundo participa da sua luz em tal grau e proporção que Ele acha apropriado dar e em tal tempo, lugar e maneira que Ele acha adequado. Pois, 'a cada um de nós é dada graça de acordo com a medida da doação de Cristo' (Ef 4,7) e 'manifestou-se a graça de Deus como fonte de salvação para todos os homens' (Tt 2,11). A bondade e a misericórdia de Deus para com toda a humanidade é assim exposta nas Escrituras: 'Tendes compaixão de todos, porque vós podeis tudo; e para que se arrependam, fechais os olhos aos pecados dos homens. Porque amais tudo que existe, e não odiais nada do que fizestes, porquanto, se o odiásseis, não o teríeis feito de modo algum. Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada? Mas poupais todos os seres, porque todos são vossos, ó Senhor, que amais a vida.' (Sb 11,23-26). Ora, como se poderia dizer que Ele 'poupa todos os seres' e que 'tem compaixão de todos', por causa do arrependimento, se Ele não desse a todos as graças que são absolutamente necessárias para ajudá-los e levá-los ao arrependimento? 

Finalmente, o próprio Salvador diz: 'Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e me abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo; e ao que vier por acréscimo, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono' (Ap 3,20). Ele bate em todas as portas, em todos os corações, pelos movimentos da sua santa graça; e se qualquer homem abrir e cooperar com esta graça, de modo a se superar, tudo estará bem. Disto é manifesto que todos os homens, sem exceção, em qualquer estado que estejam, em algum momento ou outro recebem graças de Deus, como frutos da redenção de Jesus, com vistas à sua salvação eterna e que, mediata ou imediatamente, os levariam a esse fim, se fizessem um uso adequado delas; se, portanto, não forem salvos, a culpa é inteiramente deles. As graças, na verdade, não são dadas no mesmo grau e proporção a todos, mas 'de acordo com a medida da doação de Cristo', pois 'cada um tem de Deus o seu próprio dom: um este; outro, aquele' (1Cor 7,7). Na distribuição dos talentos, um recebeu cinco, outro dois, e outro apenas um, pois Deus, sendo senhor dos seus próprios dons, pode dar mais abundantemente a um do que a outro, como lhe apraz; mas o que cada um recebe é suficiente para o seu propósito atual, e aquele que recebeu apenas um talento tinha pleno poder de obter a mesma recompensa que os outros dois, se tivesse aperfeiçoado seu talento como eles fizeram; mas como ele foi negligente e inútil, foi justamente condenado pela sua preguiça.

P. 20 - Como se pode demonstrar que, se um homem cooperar com as graças que Deus a ele concede, receberá sempre mais e mais dEle?

Isso é evidente pelos seguintes motivos: (i) pelo próprio fim que Deus tem em dá-las; pois todas as graças que Deus concede ao homem, através dos méritos de Cristo, são dadas com vistas à sua salvação e pelo desejo de salvá-lo. Se o homem não coloca nenhum obstáculo de sua parte, ele pode ser salvo. Se o homem, portanto, não coloca nenhum obstáculo de sua parte, mas melhora a graça presente, o mesmo desejo ardente que Deus tem pela sua salvação, e que o moveu a dar a primeira graça, deve também movê-lo a dar uma segunda, uma terceira, e assim por diante, até que Ele aperfeiçoe a grande obra para a qual Ele as dá; é por isso que a Escritura diz: 'aquele que iniciou em vós esta obra excelente lhe dará o acabamento até o dia de Jesus Cristo' (Fp 1,6). É uma verdade indubitável, então, que Deus nunca falhará de sua parte em nos dar todos os outros auxílios necessários, se fizermos um bom uso daqueles que Ele já deu; pois Ele nunca nos abandonará, se nós não o abandonarmos primeiro. Por isso, o mesmo santo apóstolo nos exorta: 'trabalhai na vossa salvação com temor e tremor... porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar' (Fp 2,12-13), mostrando-nos que Deus não faltará se fizermos a nossa parte, e trabalharmos, com temor e tremor, de acordo com as graças que Ele concede. Daí, também, as frequentes exortações do mesmo apóstolo: 'Não negligenciar a graça de Deus' (1Tm 4,14); 'reavivar a chama do dom de Deus que recebeste' (2Tm 1,6); 'não receber a graça de Deus em vão' (2Cor 6,1) e 'olhar diligentemente para que ninguém tenha falta da graça de Deus' (Hb 12,15).

(ii) pelos testemunhos das Escrituras onde nos é assegurado que, se servirmos a Deus e obedecermos a Ele, avançaremos em seu amor e na união com Ele, pois servi-lo e obedecê-lo é fazer um bom uso das graças que Ele nos dá; e ser mais amado por Ele e unido a Ele é receber dEle graças ainda maiores. Assim, o nosso Salvador diz: 'Se alguém me ama, guardará a minha palavra' (isto é, fará a minha vontade, corresponderá à minha graça) e 'meu Pai amá-lo-á, e nós viremos a ele e faremos a nossa morada com ele' (Jo 14,23). Assim também São Tiago diz: 'Aproximai-vos de Deus, e ele se aproximará de vós. Lavai as mãos, pecadores, e purificai os vossos corações, ó homens de dupla atitude. Reconhecei a vossa miséria, afligi-vos e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto e a vossa alegria em tristeza. Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará (Tg 4, 8-10). Por isso, São Pedro exorta-nos a não cairmos da nossa própria firmeza, mas a crescermos na graça e no conhecimento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2Pd 3,17-18), porque a perseverança no seu serviço, correspondendo à sua graça, é o caminho seguro para obtermos mais dEle.

(iii) pela declaração expressa de Jesus Cristo, que disse: 'Eu sou a videira, e meu Pai é o lavrador... todo ramo que em mim der fruto, ele o purificará, para que dê mais fruto' (Jo 15,1). Também na parábola das moedas, Ele ordenou que a moeda fosse tirada do servo inútil, e dada ao outro que tinha dez moedas, e então acrescentou: 'a todo aquele que tiver, lhe será dado mais' (Lc 19,26), isto é, a todo aquele que tem e faz bom uso do que tem; pois o patrão, ao partir, deu uma moeda a cada um de seus servos, 'e disse-lhes: negociai o dinheiro até que eu venha' (Lc 19,13). E quando voltou, descobriu que um tinha ganhado dez moedas, mas o servo preguiçoso não tinha ganhado nada, pois tinha guardado a moeda que tinha recebido num guardanapo; de modo que a única diferença entre esses dois era que um tinha melhorado o que tinha recebido de seu mestre, e o outro não; e, portanto, para aquele que tinha melhorado sua renda, mais e mais foi dado, para que tivesse em abundância. A mesma expressão é repetida por nosso Salvador em diferentes ocasiões, mas particularmente em (Mc 4), onde, considerando a grande graça concedida aos judeus, ao comunicar-lhes a sua santa Palavra, Ele os exorta a serem cuidadosos em fazer um amplo retorno a Deus, melhorando essa graça, e prometendo que, se o fizessem, mais lhes seria dado: 'Atendei ao que ouvis: com a medida com que medirdes, vos medirão a vós, e ain­da se vos acrescentará. Pois, ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que tem' (Mc 4,24-25). Da mesma forma, o Deus Todo-Poderoso diz a todos os pecadores cujos corações Ele toca com as suas repreensões e com o controle de suas consciências: 'Convertei-vos à Minha repreensão; eis que Eu espalharei sobre vós o meu espírito, e vos mostrarei as minhas palavras' (Pv 1,23). Se cooperarem com a graça da sua repreensão e se converterem, Ele conceder-lhes-á maiores favores.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 3 de março de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (VIII)

P. 17 -  Sem dúvida, esta é uma prova inquestionável de que, pela nossa vocação mencionada na passagem relatada de São Paulo [P.16], se entende a nossa vocação para a fé e para a Igreja de Cristo; mas como isso pode ser provado?

Nada é mais evidente pelo texto do Novo Testamento; pois, onde quer que o objeto de nossa vocação seja mencionado, é sempre declarado que é a fé e a Igreja de Cristo. Assim, São Paulo, falando de sua própria vocação, diz: 'Mas, quando aprouve àquele que me reservou desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça, para revelar seu Filho em minha pessoa' (Gl 1,15-16). Assim, ao nos exortar a abraçar dignamente a vocação à qual fomos chamados, com humildade e caridade, ele imediatamente acrescenta os objetos de nossa vocação como um motivo poderoso para fazermos isso: 'Um corpo, um espírito, um Senhor, uma fé, um batismo' (Ef 4,4). E também: 'Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual também fostes chamados em um corpo' (Cl 3,15). E ainda: 'nós vos temos exortado, estimulado, conjurado a vos comportardes de maneira digna de Deus, que vos chama ao seu Reino e à sua glória.' (1Ts 2,12); para o seu reino aqui, e para a sua glória no futuro. 

O objeto, portanto, de nossa vocação é a única fé em Cristo; o corpo de Cristo e o reino de Cristo, que é a sua Igreja. Daí o mesmo apóstolo santo dizer em outro lugar: 'Mas vós vos aproximastes do monte Sião, da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e da companhia de muitos milhares de anjos, e da Igreja dos primogênitos que estão escritos nos céus' (Hb 12,22). Vede aqui o objeto de nossa vocação, a Igreja de Cristo; e São Pedro diz: 'Mas vós sois uma geração eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua luz gloriosa' (1Pd 2,9). Ser, portanto, membro desta nação santa, ser um deste povo adquirido, ser levado à gloriosa luz da verdadeira fé, é o grande fim para o qual nossa vocação nos conduz.

P. 18 - Mas como podemos reconciliar isso com a infinita bondade de Deus, que ninguém será salvo sem a verdadeira fé em Cristo, e sem estar em comunhão com a sua Igreja, visto que, de acordo com isso, a maior parte da humanidade deve ser perdida, já que o número daqueles que não têm a fé, e que não estão em comunhão com a sua Igreja, sempre excede de longe o número dos que estão?

Que a maior parte da humanidade será perdida é uma verdade que Cristo mesmo declara quando diz que 'muitos são chamados, mas poucos são os escolhidos' e que 'muitos andam pelo caminho largo que leva à destruição, mas poucos são os que encontram o caminho estreito que leva à vida'. A dificuldade de reconciliar isso com a bondade de Deus desaparecerá se considerarmos o que a revelação cristã ensina; pois por meio dela aprendemos que o homem, pelo uso voluntário de seu livre-arbítrio, tendo perdido o estado feliz no qual Deus o havia criado, tornou-se indigno de qualquer favor ou misericórdia de Deus; de modo que Deus, com a maior justiça, poderia, se quisesse, tê-lo deixado sem remédio para a miséria que seus pecados mereciam, como Ele de fato aplicou aos anjos caídos. 

Foi, portanto, efeito apenas da sua infinita bondade que Deus se agradou em mostrar misericórdia ao homem; e ainda mais, em prover um remédio tão inaudito para seus males. 'Deus amou tanto o mundo' - diz nosso bendito Salvador - 'que deu o seu Filho unigênito para que todo aquele que nEle crer não pereça, mas tenha a vida eterna' (Jo 3,16). Mas como o homem, pelo uso voluntário de seu livre-arbítrio, perdeu o favor de seu Deus, Deus decretou que nenhum que chegue ao pleno uso de sua razão colherá o benefício da redenção de Cristo, senão pela performance voluntária das condições que Ele exige deles, pois Cristo 'tornou-se a causa da salvação eterna para todos os que lhe obedecem' (Hb 5,9).

O homem, pela miserável corrupção de sua natureza pelo pecado, era absolutamente incapaz de realizar essas condições, por isso Deus, da riqueza da sua bondade, e do desejo de que todos sejam salvos, por meio dos méritos de Jesus Cristo, dá a toda a humanidade as ajudas sobrenaturais da sua graça, conforme Ele vê ser apropriado para o estado atual de cada um, com vistas à sua salvação. Deus, por meio dessas graças, move os homens a fazer o bem e evitar o mal; e, se cooperarem com as suas graças, Ele lhes dará novas e maiores graças. Se continuarem a corresponder, Ele lhes dará ainda mais, até que os conduza finalmente à verdadeira fé e Igreja de Cristo, e a um fim feliz; mas se resistirem às suas graças, se delas abusarem e agirem contra elas, se rejeitarem esses chamados e ofertas de misericórdia, Deus os suportará por um tempo, mas, por fim, Ele interromperá a continuidade de tais favores imerecidos e os deixará perecer em sua ingratidão e obstinação. Daí, se a maior parte da humanidade se perder, isso se deve totalmente a si mesmos, pelo abuso da bondade de Deus e pela resistência aos meios que Ele usa para a salvação deles; de modo que nossa salvação vem unicamente da bondade de Deus, e nossa perdição é totalmente de nossa responsabilidade, conforme o que Ele diz por meio do seu profeta: 'A destruição é tua, ó Israel; o teu auxílio está somente em Mim' (Os 13,9).

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (VII)

P. 14 - O que então se pode dizer daqueles que, sendo criados no âmbito de uma religião falsa, não têm oportunidade de ouvir sobre a verdadeira Igreja e fé de Cristo, ou que a ouvem apenas de uma forma falsa e odiosa? Podem esses ser salvos se viverem e morrerem em sua separação da comunhão da Igreja de Cristo e em ignorância invencível da verdade?

O autor erudito do livro chamado Caridade e Verdade*, que parece disposto a ir o mais longe possível em favor daqueles que não estão unidos na comunhão da Igreja de Cristo, admite sinceramente que é totalmente incerto se tais pessoas serão salvas, mesmo em ignorância invencível; pois, ao estabelecer o verdadeiro estado da questão, ele diz: 'O significado é que ninguém é salvo a menos que esteja na comunhão católica, seja de fato ou virtualmente, seja na realidade ou no desejo; e que não podemos ter certeza, falando de maneira geral, de que alguém seja salvo fora da Igreja Católica, que está invencivelmente ignorante da verdadeira Igreja e da verdadeira religião' (Cap.I; Q.3). 

O fato é que não existe um único testemunho das Sagradas Escrituras que dê razão para pensar que alguém será salvo fora dessa comunhão; mas há muitos, como vimos acima, que afirmam fortemente o contrário. Todas as razões que são apresentadas em favor daqueles que estão fora da Igreja são tiradas de casos imaginários e de nossas ideias imperfeitas sobre a bondade de Deus ou da percepção que alguns formam de ser membro da verdadeira Igreja; e essas pessoas das quais falamos na presente questão fornecem os principais fundamentos dessas argumentações. Este é o raciocínio: suponha-se que um homem nasça e seja batizado em uma seita herética, e depois, quando atingir a maioridade, seja colocado em circunstâncias que impeçam que ele ouça sobre a verdadeira religião, exceto de maneira falsa e odiosa, que serve apenas para fazê-lo detestá-la e ficar cada vez mais preso à sua própria forma de pensar, e, por isso, viver em ignorância invencível da verdade. 

É reconhecido por todos que esse homem, pelo batismo, é feito membro da Igreja de Cristo, e que, se morrer antes de chegar ao uso da razão, certamente será salvo em sua inocência batismal. Vamos agora supor mais ainda que, quando ele atinja a maioridade, continue a viver uma vida inocente e, cooperando com as graças que Deus lhe concede, persevere em sua inocência e faça o melhor que pode, de acordo com seu conhecimento, e faria melhor se soubesse: não é incoerente com a bondade de Deus supor que tal homem, vivendo e morrendo nesse estado, seria perdido? Não é ele, aos olhos de Deus, um verdadeiro membro da Igreja de Cristo, embora não esteja unido à sua comunhão? E, se ele morrer em sua inocência, não deve ser salvo? Esse é o argumento apresentado, e ele tem uma aparência atraente.

Mas deve ser observado que há fortes razões para duvidar que já tenha existido ou venha a existir tal caso: (i) Não há o menor fundamento nas Escrituras para supor isso; (ii) Como é impossível para o homem, em seu estado atual de queda, preservar sua inocência batismal por qualquer período de tempo, muito menos perseverar nela até o fim da vida, sem uma graça especial e extraordinária de Deus; e, como tal graça é justamente considerada uma das mais singulares bênçãos concedidas por Deus aos seus servos fiéis, que são membros da sua Igreja e que desfrutam de todas as poderosas ajudas que só podem ser encontradas em sua comunhão, para lhes permitir fazer isso; pode-se supor que Ele concederá essa preciosíssima bênção a alguém que está fora de sua comunhão e, consequentemente, privado de todas essas ajudas? 

E se supusermos que ele perde sua inocência batismal ao cometer um pecado mortal, mas recupera a graça da justificação por meio de um arrependimento sincero, a dificuldade ainda aumenta. Pois um arrependimento sem a ajuda dos sacramentos suficientes para obter a graça da justificação inclui uma contrição perfeita, fundada no amor a Deus acima de todas as coisas; uma graça tão raramente concedida aos pecadores, mesmo dentro da Igreja, que o sacramento da Penitência é estabelecido por Jesus Cristo como o meio permanente para suprir nossa deficiência a esse respeito. Agora, qual a probabilidade de que Deus Todo-Poderoso conceda tão singular favor a alguém que tenha perdido sua inocência e não esteja na comunhão da sua Igreja para obter as ajudas necessárias para recuperá-la? Mas (iii) Suponhamos que o caso aconteça como proposto, e que Deus Todo-Poderoso dê a esse homem essas graças extraordinárias pelas quais ele preserva sua inocência batismal até o fim, morre na graça de Deus e vai para o céu, isso não seria fazer com que Deus se contradissesse e agisse diretamente contra todo o teor da sua vontade revelada? Todos os testemunhos das Escrituras concordam em provar que Deus designou a verdadeira fé em Jesus Cristo e a união com a Igreja de Cristo como condições necessárias para a salvação; e, no presente caso, a pessoa seria salva, mesmo sem ter tido a verdadeira fé em Jesus Cristo, sem estar em comunhão com a sua Igreja, mas que viveu e morreu em uma comunhão herética. Portanto, há grande razão para acreditar que tal caso jamais acontecerá, mas que uma pessoa criada na heresia, e invencivelmente ignorante da verdade, sendo privada das ajudas e graças que são consequências da verdadeira fé, e que só podem ser encontradas na verdadeira Igreja, não preservará sua inocência, mas, continuando na heresia, morrerá em seus pecados e será perdida; não precisamente porque não tenha a verdadeira fé, da qual supõe-se que seja invencivelmente ignorante, mas pelos outros pecados de que morrerá culpado.

* Charity and Truth, or Catholicks Not Uncharitable in Saying, That None Are Saved Out of the Catholick Communion (Because the Rule Is Not Universal), Edward Hawarden, 1809

P. 15 - Então ninguém que esteja em heresia e em ignorância invencível da verdade poderia ser salvo?

Deus nos livre de dizer tal coisa! Todas as razões acima apresentadas apenas provam que, se viverem e morrerem nesse estado, não serão salvos, e que, de acordo com a providência atual, não podem ser salvos; mas o grande Deus é capaz de tirá-los desse estado, de curar até mesmo a sua ignorância, embora invencível para eles em sua situação atual, de trazê-los ao conhecimento da verdadeira fé, à comunhão da sua Santa Igreja e à salvação: e acrescentamos ainda que, se Ele desejar, por sua infinita misericórdia, salvar qualquer um que esteja atualmente em ignorância invencível da verdade, para agir de maneira consistente consigo mesmo e com a sua Palavra Santa, Ele sem dúvida os levará à união com a sua Santa Igreja para esse fim, antes de morrerem.

P. 16 - Existem fundamentos nas Escrituras para essa doutrina?

Esta doutrina é baseada nas declarações mais positivas das Escrituras. Pois as Escrituras estabelecem esta verdade fundamental: 'O firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: o Senhor conhece os que são seus' (2Tm 2,19). Ou seja, Deus, desde toda a eternidade, conhece aqueles que, ao cooperar com as graças que Ele lhes concederá, perseverarão até o fim em sua fé e amor, e serão felizes com Ele para sempre. Agora, para toda a humanidade, sem exceção, e em qualquer estado, pagão, muçulmano, judeu ou herege, em ignorância invencível ou não, Deus, através dos méritos de Cristo, e por seu intermédio, dá as graças que Ele considera apropriadas para o seu estado atual, com o objetivo da sua salvação eterna; se eles cooperarem com as graças que Ele lhes dá, Ele lhes dará mais e maiores, até que os conduza ao fim feliz; mas, se resistirem e abusarem das graças que recebem, não lhes será dada mais graça, e eles serão deixados aos seus próprios caminhos, como justa punição pela sua ingratidão.

Portanto, aqueles a quem Deus Todo-Poderoso prevê que farão bom uso das suas graças e serão salvos, esses Ele os destina à vida eterna; e a todos esses, as Escrituras nos asseguram, Ele os conduzirá, no tempo e da maneira que julgar apropriada, ao conhecimento da verdadeira fé e à comunhão da sua Santa Igreja. Assim, 'O Senhor diariamente acrescentava à Igreja os que haviam de ser salvos' (At 2,47). Agora, o que o Senhor fez diariamente no tempo dos apóstolos, Ele continuará a fazer até o fim do mundo; e, como ninguém poderia ser salvo sem ser acrescentado à Igreja nesses dias, também ninguém poderá ser salvo depois disso; pois não há nova revelação desde os tempos dos apóstolos, descobrindo um caminho diferente para a salvação. Novamente, as Escrituras dizem que 'todos os que estavam predispostos para a vida eterna fizeram ato de fé' (At 13,48), isto é, foram trazidos à verdadeira fé que os apóstolos pregaram: o mesmo se fará sempre; pois, como antes, ninguém foi ordenado à vida eterna sem crer, assim também não haverá ninguém depois. 

Nosso Salvador decide este ponto em termos claros quando diz: 'Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco. Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor' (Jo 10, 16). Aqui, Ele fala claramente daqueles que ainda não ouviram a sua voz, porque eram judeus ou pagãos, e não estavam unidos ao aprisco dos seus apóstolos e outros discípulos; ainda assim, Ele os chama de suas ovelhas, porque 'o Senhor conhece os que são seus' e Ele previu quem cooperaria com a sua graça e seguiria a sua voz; agora Ele declara expressamente: 'preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz'. Não bastava para sua salvação que estivessem dispostos em seus corações a responder ao seu chamado e fazer o melhor que pudessem, se soubessem melhor; era necessário que realmente fossem trazidos à comunhão do seu próprio aprisco, 'preciso conduzi-las também'; era necessário que tivessem a verdadeira fé em Cristo, 'e ouvirão a minha voz', para garantir a sua salvação; pois, como Ele diz um pouco depois: 'Minhas ovelhas ouvem a minha voz, e Eu as conheço, e elas me seguem, e Eu lhes dou a vida eterna, e não perecerão para sempre, e ninguém as arrebatará da Minha mão' (Jo 10,27). 

Isso se torna ainda mais claro a partir do relato que São Paulo faz das várias etapas da Providência Divina na salvação dos eleitos e das principais graças concedidas a eles para esse grande fim; 'Porque aos que de antemão conheceu' - diz ele - 'também os predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho; e aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou' (Rm 8,29-30). 29. Primeiro, ele estabelece o 'firme fundamento de Deus', mencionado acima, 'que tem este selo: o Senhor conhece os que são seus' (2Tm 2,19). Deus, desde toda a eternidade, previu quem faria bom uso dos talentos que Ele lhes concederia, e quem, perseverando até o fim, seria dEle para sempre. Agora, diz o apóstolo, 'aqueles que Ele previu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho'; ou seja, Ele preordenou que todos os seus eleitos se assemelhassem a Jesus Cristo, 'despojando-se do velho homem com suas obras, e revestindo-se do novo ... segundo a imagem daquele que os criou' (Cl 3,9). 

Para alcançar essa conformidade com Jesus Cristo, o próximo passo que Ele dá é chamá-los; pois, 'aos que predestinou, a esses também chamou', ou seja, ao conhecimento e à fé em Jesus Cristo, e à comunhão da sua Santa Igreja; isto é, Ele lhes concede graças internas e dispõe todas as circunstâncias externas para efetivamente conduzi-los a essa grande felicidade; e aos que assim chamou para a verdadeira fé, 'a esses também justificou', ou seja, sendo trazidos à verdadeira fé, 'sem a qual é impossível agradar a Deus', Ele continua a conceder-lhes mais graças, como medo, esperança, amor a Deus e arrependimento por seus pecados, com as quais, cooperando, são levados pelos seus santos sacramentos à graça da justificação. Graças maiores são concedidas a eles, e eles, perseverando até o fim em sua cooperação, são recebidos finalmente na glória eterna; pois 'aos que justificou, a esses também glorificou'. Aqui, é manifesto que nosso chamado à fé e à Igreja de Jesus Cristo é ordenado por Deus Todo-Poderoso como um passo essencial no processo de salvação, uma condição necessária a ser cumprida antes mesmo de sermos justificados da culpa de nossos pecados, e, consequentemente, que sem a verdadeira fé e fora da comunhão da Igreja de Cristo, não há possibilidade de salvação. Não é menos manifesto que, seja qual for o estado da pessoa, pagão, muçulmano, judeu ou herege, se Deus Todo-Poderoso prevê que essa pessoa cooperará com as graças que desde toda a eternidade Ele resolveu conceder-lhe, e permanecerá fiel até o fim, Ele de forma alguma permitirá que ela viva e morra em seu estado atual, mas ordenará as coisas, com a sabedoria divina para que, mais cedo ou mais tarde, ela seja levada à união com a Igreja de Cristo, fora da qual Ele ordenou que a salvação não pode ser encontrada.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (VI)

P. 12 - Também os membros da Igreja de Cristo, quando atingem idade suficiente, não são obrigados a examinar se estão no caminho certo ou não, assim como aqueles que foram educados em alguma seita separada da verdadeira Igreja?

Não há nada que a Igreja de Cristo possa desejar com mais ardor do que ver seus filhos totalmente instruídos na sua religião e nos fundamentos dela, na medida em que são capazes. Para esse fim, ela ordena estritamente aos seus pastores que sejam diligentes em instruir o povo desde seus primeiros anos, sabendo bem que quanto mais eles conhecerem a sua religião, mais devem se apegar a ela. A verdadeira Igreja de Cristo é obra de Deus, a doutrina que ela ensina contém as verdades de Deus; agora, quanto mais atentamente a verdade é examinada, mais ilustre ela deve parecer; e Deus Todo-Poderoso deu tal testemunho esplêndido da verdade da sua religião que, quanto mais é examinada com sinceridade, mais ela convence e encanta. Aqui, então, está a diferença: quando um membro da Igreja de Cristo considera sua religião, ele não pode ter qualquer motivo razoável para duvidar dela, e quanto mais ele a examina, mais convencido fica da sua verdade. Mas alguém educado em uma religião falsa, se pensar, não pode deixar de perceber os motivos mais fortes para duvidar; e quanto mais ele examina, mais a falsidade dela deve aparecer, pois a falsidade nunca pode suportar a luz de um exame imparcial e isento.

P. 13 -  Mas como se explica vermos tantos homens bons e eruditos em todas as seitas cristãs, algumas das quais devem ser indiscutivelmente falsas, já que se contradizem e se condenam mutuamente?

Para entender isso, devemos observar que a Palavra de Deus declara que Deus deseja 'que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade' (1Tm 2,4). Como consequência desse sincero desejo, Deus nunca deixa de dar a todos ajuda externa e graça interior que Ele considera suficientes para conduzi-los ao conhecimento da verdade, se eles cooperarem com ela; mas se fecharem os olhos à sua luz; se, pela corrupção de seus corações, não atentarem para as suas graças, então permanecem na ignorância; mas sua ignorância é voluntária em sua causa e uma justa punição por sua própria culpa. 

Agora, embora muitos daqueles que são educados em uma religião falsa possam viver boas vidas quanto à honestidade moral aos olhos do mundo, ainda assim podem ser muito culpáveis diante de Deus e, por suas paixões secretas e apegos às coisas desta vida, podem colocar um obstáculo eficaz ao seu plano misericordioso de levá-los ao conhecimento da sua verdade. O orgulhoso fariseu era um homem justo aos olhos do mundo, e ainda assim foi condenado por Deus Todo-Poderoso devido ao orgulho secreto de seu coração. E quanto aos homens de aprendizado que se encontram em uma religião falsa, seu conhecimento não os isenta de orgulho e paixão; ao contrário, a Palavra de Deus nos assegura que 'o conhecimento enfraquece' (1Cor 8,1) e, em geral, onde não há verdadeira humildade e amor a Deus, quanto mais aprendizado há, mais orgulho, auto-suficiência, desejo de glória e obstinação de coração, e consequentemente mais oposição à fé; pois Jesus Cristo, em sua própria palavra, disse aos judeus, cujos corações endurecidos resistiam a todas as evidências da sua doutrina e milagres: 'Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros, e a glória que vem de Deus só não buscais?' (Jo 5,44). 

Não há dúvida de que havia muitos eruditos, tanto entre os judeus quanto entre os gentios, quando o Evangelho foi inicialmente pregado pelos apóstolos, e ainda assim, apesar dos inúmeros milagres realizados para provar que ele vinha de Deus, São Paulo nos diz explicitamente que isso era 'para os judeus um tropeço, e para os gentios loucura' (1Cor 1,23); porque, apesar de todo o seu aprendizado, seu orgulho, paixões e preconceitos cegavam suas mentes de tal forma que a luz do Evangelho brilhou sobre eles em vão. Portanto, não é uma surpresa ver eruditos em uma religião falsa, especialmente porque seu aprendizado é geralmente de um tipo mundano, pois a fé é um dom de Deus; e não é o conhecimento da mente, mas a humildade e a sinceridade do coração, que dispõem a alma a receber esse dom dEle; sim, Cristo diz expressamente que 'Deus esconde essas coisas dos sábios e prudentes, e as revela aos pequeninos' (Mt 11,25). Devemos concluir, então, que entre aqueles que são educados em uma religião falsa e separados da Igreja de Cristo, mas que sabem que há uma Igreja que se declara como a única verdadeira Igreja de Cristo, que têm a oportunidade de ouvir falar dela e se familiarizar com aqueles de sua comunhão, é altamente improvável que haja lugar para uma ignorância invencível. Mas ainda que algum deles for encontrado invencivelmente ignorante, seu estado será o mesmo de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de conhecer qualquer outra religião além da falsa em que se encontram.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (V)

P.9 - Que julgamento as Escrituras fazem sobre todos os cristãos que estão separados da Igreja pela heresia? Podem eles ser salvos se estiverem em ignorância invencível e viverem e morrerem nesse estado de separação da verdadeira Igreja de Cristo?

Esses estão em um estado muito diferente dos muçulmanos, judeus e pagãos, desde que tenham entre eles o verdadeiro batismo; pois, se não possuem o batismo ou alteraram a forma de ministrá-lo conforme ordenado por Cristo, então não estão em melhor condição, no que diz respeito à possibilidade de salvação, do que os pagãos, ainda que possam assumir o nome de cristãos. Mas, se possuem o batismo válido, por meio dele são feitos verdadeiros membros da Igreja de Cristo e aqueles que morrem jovens, em sua inocência batismal, sem dúvida serão salvos.

Quanto àqueles que atingem a idade da razão, são educados em uma fé falsa e vivem e morrem em um estado de separação da comunhão da Igreja de Cristo, também devemos distinguir entre dois casos diferentes. O primeiro é o daqueles que vivem entre católicos ou têm católicos vivendo no mesmo país, sabem de sua existência e frequentemente ouvem falar deles. O segundo refere-se àqueles que não têm tal conhecimento e raramente ou nunca ouvem falar de católicos, exceto sob uma luz falsa e odiosa.

P. 10 - O que se pode dizer daqueles que vivem entre os católicos? Se estiverem em ignorância invencível e morrerem nesse estado de separação, poderão ser salvos?

É quase impossível que alguém dessa classe esteja em estado de ignorância invencível, pois, para ser verdadeiramente ignorante de forma invencível, são necessários três requisitos.

Primeiro, a pessoa deve ter um desejo real e sincero de conhecer a verdade; pois, se for fria e indiferente em relação a um assunto tão importante quanto a sua salvação eterna, se for negligente quanto a estar ou não no caminho certo; se, escravizada a esta vida presente, não se preocupar com a próxima, então é evidente que a ignorância decorrente dessa disposição é uma ignorância voluntária e, portanto, altamente culpável aos olhos de Deus. Isso é ainda mais grave se a pessoa estiver positivamente relutante em buscar a verdade por medo de inconveniências mundanas e, por isso, evitar toda oportunidade de conhecê-la. Sobre essas pessoas, a Escritura diz: 'Passam os seus dias entre riquezas, e num momento descem à sepultura. E dizem a Deus: Afasta-te de nós, não desejamos conhecer os teus caminhos' (Jó 21,13-14).

Segundo, para que alguém seja realmente ignorante de forma invencível, é necessário que esteja sinceramente disposto a aceitar a verdade onde quer que a encontre e qualquer que seja o custo. Pois, se a pessoa não estiver plenamente decidida a seguir a vontade de Deus em tudo o que for necessário para a salvação; se, pelo contrário, estiver disposta a negligenciar seu dever e arriscar sua alma para não desagradar amigos ou sofrer alguma perda ou desvantagem temporária, sua ignorância é culpável e nunca poderá justificá-la diante do Criador. Sobre isso, Nosso Senhor diz: 'Quem ama pai ou mãe, ou filho ou filha, mais do que a Mim, não é digno de Mim' (Mt 10,37).

Terceiro, é necessário que a pessoa faça um esforço sincero para conhecer seu dever e, especialmente, que recomende essa questão a Deus Todo-Poderoso, rezando por luz e orientação dEle. Pois, independentemente do desejo que possa ter de conhecer a verdade, se não utilizar os meios adequados para encontrá-la, sua ignorância não é invencível, mas voluntária. A ignorância só é invencível quando uma pessoa tem um desejo sincero de conhecer a verdade, com plena disposição para aceitá-la, mas não tem nenhum meio possível de conhecê-la ou, após fazer todos os esforços, não consegue descobri-la.

Portanto, se uma pessoa falha em buscar conhecer seu dever, sua ignorância não é invencível — é sua própria culpa não conhecê-lo. Se a desatenção, a indiferença, os motivos mundanos ou preconceitos injustos influenciam seu julgamento e a fazem ceder ao peso da educação que recebeu, essa pessoa não tem ignorância invencível nem o temor de Deus. Ora, é inconsistente com a bondade e as promessas de Deus que uma pessoa criada em uma religião falsa, mas que está na condição descrita por esses três requisitos e faz o máximo esforço para conhecer a verdade, seja deixada em ignorância invencível. Mas, se, por apego ao mundo ou a objetos sensuais e egoístas, essa pessoa não estiver bem disposta e negligenciar os meios adequados para chegar à verdade, então sua ignorância será voluntária e culpável, e não invencível.

P. 11 - Mas, e se nunca surgir dúvida em sua mente, e a pessoa continuar de boa fé no caminho em que foi criado?

É um erro supor que uma dúvida formal seja necessária para tornar a ignorância do seu dever voluntária e culpável; basta que haja razões suficientes para duvidar, ainda que, por seus preconceitos injustos, obstinação, orgulho ou outras más disposições do coração, ele impeça que essas razões despertem uma dúvida formal em sua mente.

Saul não teve dúvida alguma quando ofereceu sacrifício antes que o profeta Samuel chegasse; pelo contrário, estava convencido de que tinha as razões mais fortes para fazê-lo, e ainda assim foi condenado por essa mesma ação, sendo ele e sua família rejeitados por Deus Todo-Poderoso. Os judeus acreditavam que estavam agindo corretamente quando condenaram Nosso Senhor à morte; mais ainda, o sumo sacerdote declarou diante do conselho que era conveniente para o bem e a segurança da nação que assim o fizessem. Eles estavam grosseiramente enganados e terrivelmente ignorantes de seu dever, mas sua ignorância era culpável e foram severamente condenados pelo que fizeram, mesmo que o tenham feito por ignorância.

Na verdade, todos aqueles que agem a partir de uma consciência falsa e errônea são altamente culpáveis por terem tal consciência, ainda que nunca tenham tido uma dúvida formal. E mais, a ausência de dúvida, quando há razões justas e sólidas para duvidar, torna a culpa ainda maior, pois revela uma maior corrupção do coração e uma disposição ainda mais depravada.Uma pessoa criada em uma fé falsa — que a Escritura chama de seitas de perdição, doutrinas de demônios, coisas perversas, mentiras e hipocrisia — e que já ouviu falar da verdadeira Igreja de Cristo, que condena todas essas seitas, e que observa suas divisões e dissensões, tem sempre diante de seus olhos os mais fortes motivos para duvidar da segurança de seu próprio estado. 

Se fizer qualquer exame sincero de consciência, deverá perceber que está no erro; e quanto mais examinar, mais claramente verá isso, pois é simplesmente impossível que uma doutrina falsa, baseada em mentiras e hipocrisia, possa ser sustentada por argumentos sólidos capazes de satisfazer uma pessoa razoável que sinceramente busca a verdade e suplica a Deus por luz para guiá-la nessa busca. Portanto, se uma pessoa nunca duvida, mas continua, como se supõe, bona fide em seu próprio caminho, apesar das fortes razões para duvidar do que tem diante de si diariamente, isso demonstra claramente que ou ela é extremamente negligente nos assuntos de sua alma ou que seu coração está totalmente cego pela paixão e pelo preconceito.

Havia muitas pessoas assim entre os judeus e pagãos no tempo dos apóstolos, que, apesar da luz esplêndida da verdade que esses santos pregadores difundiam por toda parte — uma luz que deveria levá-los a duvidar de suas superstições —, estavam tão longe de duvidar que acreditavam estar prestando um serviço a Deus ao matar os apóstolos. De onde vinha essa incredulidade? O próprio São Paulo nos informa: 'Renunciamos às coisas ocultas da desonestidade, não andando com astúcia, nem adulterando a palavra de Deus, mas, pela manifestação da verdade, recomendando-nos à consciência de todo homem diante de Deus' (2Cor 4,2).

Aqui ele descreve a força da luz da verdade que pregava; e ainda assim essa luz era oculta para muitos. Ele imediatamente explica o motivo: 'E se o nosso Evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto, nos quais o deus deste mundo cegou as mentes dos incrédulos, para que a luz do Evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus, não resplandeça sobre eles' (2Cor 4,3-4). Eis a verdadeira causa da incredulidade: eles estão tão escravizados às coisas deste mundo, pela depravação de seu coração, que o diabo os cega, impedindo-os de ver a luz. Mas a ignorância que surge dessas disposições depravadas é uma ignorância culpável e voluntária e, portanto, jamais poderá servir de desculpa.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (IV)

P.7 - E no caso de uma pessoa completamente ignorante da fé [a chamada ignorância invencível] em Jesus Cristo e da sua Igreja, isso [a consciência e a razão] não a poderia salvar?

Esta também é uma proposição muito atraente e temo que, por não ser devidamente considerada, ela seja ocasião de um erro perigoso para muitos; portanto, vamos tentar examiná-la de forma completa. E aqui devemos observar que duas questões diferentes são comumente misturadas quando as pessoas falam sobre a chamada ignorância invencível: (I) uma pessoa que é invencivelmente ignorante da verdadeira fé ou Igreja de Cristo será condenada precisamente por essa ignorância? Ou seja, essa ignorância será imputada a ela como um crime? Ou essa ignorância invencível a desculpará da culpa de não crer? A isso respondo que, como nenhum homem pode ser culpado por um pecado ao não fazer o que está absolutamente fora de seu poder, portanto, uma pessoa que é invencivelmente ignorante da verdadeira fé e Igreja de Cristo não será condenada por essa ignorância; tal ignorância não será imputada a ela como um crime, mas sem dúvida a desculpará da culpa da descrença: nisso todos os teólogos concordam sem dúvida ou hesitação. 

Um pagão, por exemplo, que nunca ouviu falar de Jesus Cristo, não será condenado como criminoso precisamente pela falta de fé nEle; um herege que nunca teve nenhum conhecimento da verdadeira Igreja de Cristo não será condenado como culpado por não estar em comunhão com essa Igreja. Até aqui, a primeira questão não admite disputa. 

A segunda questão é: (II) pode uma pessoa invencivelmente ignorante da verdadeira fé ou Igreja de Jesus, vivendo e morrendo nesse estado, ser salva? Esta é uma questão muito importante, mas bem diferente da anterior, embora frequentemente confundida com ela. Agora, para responder a essa questão de forma clara e distinta, devemos considerar dois casos diferentes: primeiro, o dos muçulmanos, judeus e pagãos que, nunca tendo ouvido falar de Jesus Cristo ou da sua religião, são invencivelmente ignorantes dela; e, em segundo lugar, o dos diferentes grupos de cristãos que estão separados da verdadeira Igreja de Cristo por heresia.

P.8 -  O que se deve então dizer de todos aqueles muçulmanos, judeus e pagãos que, nunca tendo ouvido falar de Jesus Cristo ou da sua religião são, portanto, invencivelmente ignorantes em relação a ambos? Podem ser salvos, se viverem e morrerem nesse estado?

A resposta direta a isso é que eles não podem ser salvos; que nenhum deles 'pode entrar no reino de Deus'. É verdade, como vimos acima, que não serão condenados precisamente por não terem a fé em Cristo, da qual são invencivelmente ignorantes. Mas a fé em Cristo, embora seja uma condição essencial para a salvação, é apenas uma condição; outras também são necessárias. E, embora a ignorância invencível certamente livre um homem do pecado, por não saber aquilo do que é invencivelmente ignorante, é impossível supor que essa ignorância invencível sobre um ponto substitua a falta de todas as outras condições exigidas. Agora, todos aqueles de quem falamos aqui estão no estado do pecado original - 'estranhos a Deus e filhos da ira' -  por não serem batizados; e é um artigo da fé cristã que, a menos que o pecado original seja apagado pela graça do batismo, não há salvação; pois o próprio Cristo declara expressamente: 'Em verdade, em verdade, vos digo, se alguém não nascer da água e do Espírito Santo, não poderá entrar no reino de Deus' (Jo 3,5).

E, de fato, se até mesmo os filhos de pais cristãos, que morrem sem o batismo, não podem ir para o céu, quanto menos aqueles que, além de não serem batizados, vivem e morrem na ignorância do verdadeiro Deus, de Jesus Cristo e de sua fé, e, por essa razão, podem ser considerados como tendo cometido muitos pecados atuais. Além disso, imaginar que pagãos, muçulmanos ou judeus que vivem e morrem nesse estado podem ser salvos é supor que a ignorância salvará adoradores de ídolos, de Maomé e blasfemadores de Jesus Cristo, tanto no pecado atual quanto no original; o que seria colocá-los em uma posição melhor do que os próprios cristãos e dos seus filhos. O destino de todos esses é decidido pelas Escrituras da seguinte forma: 'O Senhor Jesus será revelado do céu, com o anjo do seu poder, em uma chama de fogo, infligindo vingança àqueles que não conhecem a Deus e que não obedecem ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, os quais sofrerão punição eterna na destruição, longe da face do Senhor e da glória do seu poder' (2Ts 1,7-8). Isso é, de fato, uma resposta clara e decisiva à questão apresentada.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (III)

P.5 - Mas se um homem agir de acordo com os ditames de sua consciência e seguir exatamente a luz da razão que Deus implantou nele como guia, isso não seria suficiente para conduzi-lo à salvação?

Esta é, de fato, uma proposição aparentemente atraente; mas há uma falácia subjacente. Quando o homem foi criado, sua razão era então uma razão iluminada, esclarecida pela graça da justiça original, com a qual sua alma estava adornada. A razão e a consciência eram guias seguros para conduzi-lo ao caminho da salvação. Mas, pelo pecado, essa luz foi miseravelmente obscurecida e sua razão nublada pela ignorância e erro. Não foi, de fato, completamente extinta; ainda ensina claramente muitas grandes verdades, mas atualmente está tão influenciada pelo orgulho, paixão, preconceito e outros motivos corruptos que, em muitos casos, serve apenas para confirmar o erro, dando aparência de razão às sugestões do amor-próprio e da paixão. Isso é muito comum, mesmo nas coisas naturais; mas no sobrenatural, nas coisas que dizem respeito a Deus e à eternidade, nossa razão, se deixada por si mesma, é miseravelmente cega. Para remediar isso, Deus nos deu a luz da fé como um guia seguro para nos conduzir à salvação, designando a sua santa Igreja como guardiã e depositária dessa luz celestial; consequentemente, embora um homem possa pretender agir de acordo com a razão e a consciência, e até se iludir pensando que o faz, ainda assim, a razão e a consciência, se não estiverem iluminadas e guiadas pela verdadeira fé, jamais poderão conduzi-lo à salvação.

P.6 -  As Sagradas Escrituras fornecem alguma luz sobre este assunto?

Nada pode ser mais claro do que as palavras das Sagradas Escrituras: 'Há um caminho' - diz o sábio - 'que ao homem parece direito, mas cujo fim conduz à morte' (Pv 14,12) e isso é repetido em (Pv 16,25). O que pode ser mais claro do que isso, para mostrar que um homem pode agir de acordo com o que pensa ser a luz da razão e da consciência, persuadido de que está fazendo o que é certo, e ainda assim, na realidade, está apenas seguindo pelo caminho da perdição? E não pensam todos aqueles que são seduzidos por falsos profetas e falsos mestres que estão no caminho certo? Não é sob o pretexto de agir de acordo com a consciência que são seduzidos? E ainda assim, a própria boca da verdade declarou: 'Se o cego guiar o cego, ambos cairão na mesma cova' (Mt 15,14).

Para nos mostrar até onde pode chegar a maldade humana sob o pretexto de seguir a consciência, a mesma Verdade Eterna diz aos Seus apóstolos: 'A hora vem em que todo aquele que vos matar pensará que presta serviço a Deus' (Jo 16,2), mas observe o que Ele acrescenta: 'E farão isso porque não conhecem o Pai nem a Mim' (Jo 16,3), o que mostra que, se alguém não tem o verdadeiro conhecimento de Deus e de Jesus Cristo, o qual só pode ser obtido pela verdadeira fé, não há qualquer atrocidade da qual ele não seja capaz, pensando que está agindo de acordo com a razão e a consciência. Se tivéssemos apenas a luz da razão para nos orientar, estaríamos justificados em segui-la; mas como Deus nos deu um guia externo em sua santa Igreja, para auxiliar e corrigir nossa razão cega pela luz da fé, nossa razão sozinha, sem a assistência desse guia, nunca poderá ser suficiente para a salvação.

Nada esclarecerá isso melhor do que alguns exemplos. A consciência de um pagão lhe diz que não é apenas lícito, mas um dever adorar e oferecer sacrifício a ídolos, obra das mãos dos homens. Isso o salvará, fazendo-o de acordo com sua consciência? Ou esses atos de idolatria serão inocentes ou agradáveis aos olhos de Deus, porque realizados de acordo com a consciência? Acrescente a isso Veja acima, sec. 3, nº 9, a resposta que a Palavra de Deus dá a essa questão; a isso acrescente a de um sábio, 'O ídolo feito por mãos humanas é amaldiçoado, assim como quem o fez... pois o que é feito, juntamente com quem o fez, sofrerá tormentos' (Sb 14,8.10); 'Quem sacrificar a deuses que não ao Senhor será condenado à morte' (Ex 22,19). Da mesma forma, a consciência de um judeu lhe diz que pode blasfemar contra Jesus Cristo e aprovar a conduta de seus antepassados ao matá-lo na cruz. Tal blasfêmia o salvará, porque está de acordo com os ditames de sua consciência? 

O Espírito Santo, pela boca de São Paulo, diz: 'Se alguém não ama nosso Senhor Jesus Cristo, seja anátema' ou seja, 'amaldiçoado' (1Cor 16,22). Um muçulmano é ensinado por sua consciência que seria um crime crer em Jesus Cristo e não crer em Maomé; essa consciência ímpia o salvará? As Escrituras nos asseguram que 'não há outro nome dado aos homens debaixo do céu, pelo qual possamos ser salvos', senão o nome de Jesus apenas, e 'quem não crer no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele'. Todas as várias seitas que se separaram da verdadeira Igreja, em todas as épocas, sempre caluniaram e difamaram a Igreja, falando mal da verdade por ela professada, crendo em suas consciências que isso não só era lícito, mas altamente meritório. 

As calúnias e difamações contra a Igreja de Jesus Cristo as salvarão, porque suas consciências as aprovaram? A Palavra de Deus declara: 'A nação e o reino que não a servirem perecerão' (Is 60,12) e 'assim como houve entre o povo falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos doutores, que introduzirão disfar­çadamente seitas perniciosas. Eles, renegando assim o Senhor que os resgatou, atrairão sobre si uma ruína repentina' (2Pd 2,1). Em todos esses casos, e em casos semelhantes, a consciência é o maior crime, e mostra até que ponto a consciência e a razão podem nos levar, quando sob a influência do orgulho, paixão, preconceito e amor-próprio. Portanto, a consciência e a razão nunca podem ser guias seguros para a salvação, a menos que sejam dirigidas pela luz sagrada da verdade revelada.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

sábado, 11 de janeiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (II)

P2 - Esses argumentos são de fato muito fortes, mas qual é o resultado de todas essas reflexões e testemunhos das Escrituras?

A consequência é autoevidente: uma vez que a salvação não pode ser alcançada em qualquer seita separada da fé da Igreja de Cristo e que ensina doutrinas falsas, a Igreja de Cristo é o único caminho designado pelo Deus Todo-Poderoso pelo qual podemos ser salvos, e fora de sua comunhão não há possibilidade ordinária de salvação.

P3 - Por que se diz 'possibilidade ordinária de salvação'? Há alguma razão para supor que Deus tenha reservado algum meio extraordinário de salvação para aqueles que não estão em comunhão com a Igreja de Cristo pela verdadeira fé?

Sem dúvida, é (absolutamente falando) possível para Deus salvar os homens por quaisquer meios que Ele desejar; e Ele poderia ter salvo toda a humanidade pelos méritos de qualquer coisa que Jesus Cristo tenha feito ou sofrido, sem exigir um sacrifício tão severo dEle como a sua morte na cruz. Mas, o que Deus pode fazer neste aspecto não é relevante para o nosso propósito; a grande questão para nós é saber o que Ele fez. Agora, como vimos antes, pelo tom geral da revelação, Deus designou a verdadeira fé em Jesus Cristo e ser membro de sua Igreja como condições para a salvação. Ele as estabeleceu como condições essenciais, de modo que ninguém será ou poderá ser salvo sem elas. 

A palavra de Deus não aponta para nenhum outro caminho possível pelo qual o homem possa ser salvo; de fato, por mais que Deus às vezes tome meios extraordinários para trazer as pessoas à sua Igreja, conforme o modo que Ele descreve em muitos dos textos citados, é impossível que Ele tenha reservado meios extraordinários de salvação para aqueles que vivem e morrem sem estar em comunhão com a Igreja de Cristo pela verdadeira fé; caso contrário, Ele se contradizeria e desmentiria as suas próprias palavras, o que é absolutamente impossível. Por exemplo, essas duas declarações expressas das Escrituras: 'O Senhor acrescentava diariamente à Igreja os que haviam de ser salvos' e 'os que estavam ordenados para a vida eterna creram', não seriam verdadeiras, se houvesse qualquer possibilidade de salvação para aqueles que não foram adicionados à Igreja ou não creram. O mesmo se aplica igualmente à maioria dos outros textos, como se verá ao analisá-los.

P.4 - Não é uma doutrina muito pouco caridosa dizer que ninguém pode ser salvo fora da Igreja ou que não crê como a Igreja crê?

Se essa doutrina fosse uma mera opinião humana ou o resultado apenas de raciocínios humanos, poderia ser vista como pouco caridosa ou de qualquer outra forma que se queira; mas é uma doutrina que não depende da razão humana. É um ponto que depende exclusivamente da vontade do Todo-Poderoso; e a única questão é saber o que Ele decidiu a respeito. Agora, toda a doutrina da sua santa Escritura, sobre este ponto, declara de forma mais clara e firme que Ele ordenou que ninguém seria salvo fora da Igreja de Cristo ou sem a verdadeira fé, e quem ousaria dizer que uma doutrina ensinada e declarada pelo grande Deus é pouco caridosa? 

Mas o erro que muitos cometem nesse ponto vem do fato de não refletirem que Deus Todo-Poderoso não está obrigado a salvar ninguém. Ele perseguiu os anjos caídos com o máximo rigor da justiça e Ele poderia justamente ter tratado o homem da mesma forma. Se, portanto, Ele se agradou de oferecer a salvação à humanidade, pelos méritos de Jesus Cristo, isso é tudo um efeito da sua infinita bondade e misericórdia; mas como Ele é o perfeito mestre dos seus próprios dons, Ele certamente tem total liberdade para exigir as condições que desejar para conceder os seus dons a nós. Agora, o todo de sua vontade revelada nos declara que Ele exige que sejamos membros da sua Igreja e que tenhamos a verdadeira fé em Jesus Cristo como condições indispensáveis para a salvação; e quem ousaria criticá-lo por fazer isso? Ou dizer que é uma opinião pouco caridosa pensar e acreditar no que Ele declarou tão expressamente e repetidamente em suas santas Escrituras?

Observe ainda que não é apenas a Igreja Católica que sustenta essa doutrina. Vimos acima que os pais e fundadores da Igreja Protestante da Escócia afirmam, em termos expressos, que 'fora da verdadeira Igreja de Cristo não há possibilidade ordinária de salvação' e a inseriram como um artigo de fé no padrão público e autêntico de sua religião, a Confissão de Fé, que todos os seus ministros devem abraçar e assinar. A Igreja da Inglaterra também, de maneira autêntica, declara, como um artigo de seu Credo, 'que, a menos que o homem mantenha a fé católica inteira e imaculada, sem dúvida perecerá eternamente'; e garante aos seus membros que esse Credo pode ser provado pelos textos mais evidentes da Sagrada Escritura, pelos quais todos os seus ministros devem assinar. Além disso, ela afirma que 'aqueles que presumem dizer que todo homem (mesmo que não esteja na verdadeira fé de Jesus Cristo) será salvo pela lei ou seita que professa' devem ser considerados malditos. Se, portanto, essa doutrina for considerada pouco caridosa, as Igrejas da Inglaterra e da Escócia devem evidentemente cair sob condenação. 

É verdade que, de fato, embora os fundadores dessas Igrejas, convencidos pelos testemunhos repetidos e evidentes da Palavra de Deus, tenham professado essa verdade e a inserido nos padrões públicos de sua religião, seus descendentes agora a negam e acusam a Igreja Católica de ser pouco caridosa por sustentá-la; mas isso só mostra sua inconsistência e prova que estão desprovidos de toda certeza no que acreditam; pois, se era uma verdade divina, quando essas religiões foram fundadas, que fora da verdadeira Igreja, e sem a fé católica, não há salvação, isso deveria ser assim ainda hoje; e se os seus primeiros fundadores estavam errados nesse ponto, que segurança podem agora ter seus seguidores em relação a qualquer outra coisa que ensinaram? Mas a Igreja Católica, sempre consistente e uniforme em sua doutrina, sempre preservando as palavras que uma vez foram colocadas em sua boca por seu Divino Mestre, em todos os tempos e em todas as idades, tem acreditado e ensinado a mesma doutrina como uma verdade revelada por Deus, de que 'fora da verdadeira Igreja de Cristo, e sem a sua verdadeira fé, não há possibilidade de salvação' e o mais autêntico testemunho público de seus inimigos prova que esta é a doutrina de Jesus e do seu santo Evangelho, seja o que for que pessoas privadas, por motivos egoístas e interessados, possam dizer em contrário. 

Tampouco ela tem medo de ser considerada pouco caridosa por causa disso. Pelo contrário, ela considera o auge da caridade alertar os homens sobre o perigo que correm, em uma questão de tamanha importância como a salvação eterna; e, com compaixão por sua situação, usa todos os meios ao seu alcance, especialmente a oração fervorosa a Deus, pela conversão de todos aqueles que estão fora do verdadeiro caminho, para que possam ser levados ao conhecimento da verdade e serem salvos. Isso é verdadeira caridade; pois a caridade é uma virtude do coração, que faz o homem amar a alma do próximo e se empenhar para promover a sua salvação; e somente a opinião que tende a excitar e promover essa disposição merece ser chamada de caridosa; enquanto o contrário, que torna o homem indiferente e negligente em relação à alma do próximo, é verdadeiramente pouco caridosao. 

É claro, portanto, que a acusação de ser pouco caridosa é uma mera distorção e calúnia, empregada para tornar a Igreja Católica e sua doutrina odiosas. Seus inimigos perceberam que a falta de caridade era um crime chocante para qualquer mente bem-disposta e que certamente causaria ódio e aversão, se fosse atribuída a ela. Eles sabiam que seus seguidores, que estavam sempre prontos para acreditar em qualquer coisa contra ela, não se esforçariam para examinar as bases dessa acusação e tomariam por garantido que ela era culpada com base em sua ousada afirmação; e o resultado confirmou sua opinião. Mas a menor atenção mostrará que sua conduta é o efeito da genuína caridade. São Paulo foi pouco caridoso quando declarou que 'nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros'... herdarão o reino de Deus'? (1Cor 6,9) ou quando ele pronunciou 'uma maldição sobre qualquer um, mesmo que fosse um anjo do céu, que pregasse qualquer outro evangelho além do que ele havia pregado' (Gl 1,8). Muito pelo contrário: isto foi a sua ardente caridade e o zelo pela salvação deles que o fez tão diligente em alertá-los sobre o perigo. Como, então, pode a Igreja Católica ser considerada pouco caridosa por simplesmente dizer o que ele declarou, com o mesmo motivo caridoso? Uma opinião desfavorável tem ela certamente sobre todos os que não pertencem à sua comunhão, mas isso nunca corresponderia a uma atitute pouco caridosa por parte da Igreja.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)