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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXIX)

 


132. É necessário ser humilde não apenas nos pensamentos, mas também nas palavras, porque o homem humilde fala pouco, seguindo o conselho do Espírito Santo: 'Não fales precipitadamente; que as tuas palavras sejam poucas' [Ecles 5,1]. Falar muito é fruto do orgulho, porque nos convencemos de que sabemos muito e desejamos impressionar os outros com nossos pensamentos e opiniões. Você tem cuidado ao falar para não dizer nada em seu próprio louvor ou qualquer coisa que possa fazer com que seja elogiado pelos outros, para não parecer erudito, sábio ou espiritual, exibindo ostensivamente suas vantagens pessoais ou as que pertencem à sua família? É fácil nessas coisas você ser dominado pelo orgulho, e o santo Tobias nos adverte, dizendo: 'Nunca deixe o orgulho reinar em sua mente ou em suas palavras' [Tb 4,14].

Você às vezes se coloca como exemplo, dizendo que seria bom fazer assim e assim, como você mesmo fez? Se você tem algum dom de Deus, você fala sobre isso como se dissesse: 'Graças a Deus, não tenho tal e tal vício; graças a Deus, tenho tal e tal virtude'? Lembre-se do conselho dado pelo Anjo a Tobias, de que é bom manter ocultos os dons secretos de Deus: 'Pois é bom esconder o segredo de um rei' [Tb 12,7]. Pode ser que às vezes você fale mal de si mesmo, para que os outros possam contradizê-lo. Essa é a maneira de agir daquele de quem se diz: 'Há quem se humilhe perversamente' [Eclo 19, 23], que finge fugir dos elogios, mas os busca, que foge das honras e as corteja. Você deve se acostumar a não falar mal e nem bem de si mesmo, porque é fácil que o orgulho inspire suas palavras em ambos os casos.

133. Quando você ouve elogios a seu respeito, que precauções você toma? O amor-próprio é rápido em misturar um pouco de seu próprio incenso com o que recebe dos outros. Quero dizer com isso que, devido à corrupção de nossa natureza, estamos muito dispostos a aprovar esses elogios como se fossem verdadeira e justamente devidos a nós, e a nos lisonjear com vaidade; mas tudo isso vem da falta de humildade. Santo Agostinho, falando desse prazer que temos de ser elogiados, dirige esta oração a Deus: 'Senhor, afasta de mim essa loucura' [Lib. 10, Confess., cap. xxxvii], pois considerava uma verdadeira loucura ter prazer na vaidade e nos enganos; e quando ouvia outros elogiá-lo, refletia sobre o conhecimento que tinha de si mesmo e sobre a justiça de Deus, dizendo em seu coração: 'Eu me conheço melhor do que eles me conhecem, mas Deus me conhece melhor do que eu mesmo' [Enarr. in Ps. xxv].

Um coração verdadeiramente humilde, diz São Gregório, sempre teme ouvir elogios a si mesmo, porque teme que esses elogios sejam falsos ou lhe roubem o mérito e a recompensa prometidos à verdadeira virtude. 'Se o coração é verdadeiramente humilde, ele não reconhece o bem que ouve a seu respeito ou teme que a esperança de uma futura recompensa seja trocada por algum favor passageiro' [lib. 22, Mor. c. iii].

O homem humilde, diz São Tomás, fica surpreso quando alguém fala bem dele, e nada o surpreende mais do que ouvir elogios a si mesmo. Assim, a Santíssima Virgem, quando ouviu do Arcanjo Gabriel que se tornaria a Mãe de Deus, tinha uma opinião tão humilde de si mesma que se maravilhou muito por ser exaltada a uma dignidade tão eminente. 'Para uma alma humilde, nada é mais maravilhoso do que ouvir falar de sua própria excelência; assim, à pergunta de Maria: ‘Como isso será possível?’, o Anjo apresenta uma prova, não para tirar sua fé, mas para dissipar sua admiração' [3 part., qu. xxx, art. 4]. Mas o orgulho pode até mesmo insinuar-se nesse mesmo desprezo pelos elogios, como diz Santo Agostinho: 'O homem muitas vezes se orgulha tolamente de seu próprio desprezo tolo por si mesmo' [Lib.10].

Mas se é necessário elogiar aqueles que estão presentes, não é menos necessário exercer discrição e prudência ao fazê-lo, como também ensina Santo Agostinho: 'para que a tentação mais perigosa não se encontre no amor de elogiar'. A adulação é sempre perniciosa, quer adulemos a nós mesmos ou aos outros.

134. Também se pode pecar contra a humildade com a pompa e a vaidade do próprio vestuário. É o que a rainha Ester chama de 'sinal do meu orgulho e glória' [Est 14,16] e devemos manter nossos corações desapegados desse amor, porque tal vestuário só é adequado quando se adequa ao nosso estado e condição, e quando o usamos com a intenção correta: 'Não te glories em vestuário em nenhum momento' [Ecles 11,4] diz o Espírito Santo. Por mais bonitas que sejam as roupas que você usa, não permita que a vaidade entre em seu coração; e se você tiver que aparecer em público com boas roupas, proteja-se contra a vaidade 'e não se exalte no dia da sua honra' [Ibid.].

O excesso, a auto-complacência, o desejo de agradar, de atrair a atenção para si mesmo, de estar acima dos seus iguais ou de se igualar aos seus superiores pela pompa de suas vestes são coisas que devem ser moderadas e subjugadas pela humildade. São Tomás dá uma excelente regra para isso: 'A extravagância em vestimentas suntuosas deve ser restringida pela humildade' [2a 2æ, qu. clxi, art.]. Essas necessidades que consideramos essenciais para o decoro de nosso estado devem ter seus limites prescritos pela modéstia e simplicidade cristãs, e não pelo orgulho ou pela tendência luxuosa dos tempos. E a vaidade com que nossa graça de porte ou beleza facial nos inspira também deve ser restringida pela humildade; porque 'o favor é enganador e a beleza é vaidade' [Pv 31,30].

135. Quanto a certas ações exteriores, indiferentes em si mesmas, mas que, se feitas com boa intenção, podem tender a nos tornar virtuosos, o único requisito necessário é ter o cuidado de que sejam realizadas com humildade, como Cristo nos ensina: 'Serei pequeno aos meus próprios olhos' [2Rs 6,22]. Isso é o que cada um de nós deve dizer a si mesmo, como o santo rei Davi, e nos ajuda muito a formar esse bom hábito de humildade para com nós mesmos, a fim de que também sejamos humildes para com os outros.

É por isso que desejo que você se dedique com toda a diligência a este exame. Que concepção e estima você tem da virtude da humildade? Você realmente acredita que a humildade de coração é necessária para a sua salvação eterna? Você sabe que é necessário acreditar firmemente no mistério da Santíssima Trindade e que quem duvida disso é herege; mas você deve saber que também é necessário acreditar com igual firmeza na doutrina da humildade ensinada por Jesus Cristo em seu evangelho, porque não podemos afirmar que no evangelho uma doutrina é mais verdadeira do que outra, nem que devemos acreditar mais em uma do que em outra, porque todas elas procedem igualmente da boca de Jesus Cristo, que é a própria Verdade.

Se, portanto, você acredita neste dogma da humildade, como você o aplica a si mesmo e que medidas você toma para ser humilde? Você pede isso a Deus? Recorre à intercessão da Santíssima Virgem e dos santos? Familiariza-se com os pensamentos mais eficazes para lhe ensinar essa humildade: os pensamentos da morte, do julgamento, do Inferno, do Paraíso e da eternidade, da gravidade do pecado e, acima de tudo, da Paixão de Jesus Cristo?

Estou perfeitamente certo de que você nunca alcançará essa humildade se negligenciar esses meios, que são os mais adequados para adquiri-la; e se você não tiver sido humilde de coração, como poderá justificar-se perante o tribunal de Deus? Grave em sua mente esta bela passagem que Santo Agostinho deixou para seu amigo Dioscuro: 'Não se afaste, ó Dioscuro, do caminho real da humildade que foi ensinado por Cristo; embora muitas outras virtudes sejam exigidas pela religião cristã, procure dar à humildade o lugar mais alto, porque todas as virtudes são adquiridas e mantidas pela humildade, e sem humildade elas desaparecem' [Epist. cxiii].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sábado, 30 de agosto de 2025

A GLÓRIA DAS GLÓRIAS É A CRUZ!

Toda ação de Cristo é glória da Igreja católica. Contudo, a glória das glórias é a cruz. Paulo, muito bem instruído, disse: 'Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Cristo'.

Foi uma coisa digna de admiração que ele tenha recuperado a vista àquele cego de nascença em Siloé. Mas o que é isto em vista dos cegos do mundo inteiro? Foi estupendo e acima das forças da natureza ressuscitar Lázaro após quatro dias de morto. Mas a um só foi dada essa graça; e os outros todos, em toda a terra, mortos pelo pecado? Foi maravilhoso alimentar com cinco pães, qual fonte, a cinco mil homens. Mas e aqueles que em toda a parte sofrem a fome da ignorância? Foi magnífico libertar a mulher ligada há dezoito anos por Satanás; mas que é isto se considerarmos a todos nós, presos pelas cadeias de nossos pecados?

Pois bem; a glória da cruz encheu de luz os que estavam cegos pela ignorância, libertou os cativos do pecado, remiu o universo inteiro. Não nos envergonhemos da cruz do Salvador. Muito pelo contrário, dela tiremos glória. Pois a palavra da cruz é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, para nós, no entanto, é salvação. Para aqueles que se perdem é loucura; para nós, que fomos salvos, é força de Deus. Não era um simples homem quem por nós morria; era o Filho de Deus feito homem.

Outrora o cordeiro, morto segundo a instituição mosaica, afastava para longe o devastador. Porém, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, não poderá muito mais libertar dos pecados? O sangue de um cordeiro irracional manifestava a salvação. Sendo assim, não trará muito maior salvação o sangue do Unigênito?

O Cordeiro não entregou a vida coagido, nem foi imolado à força, mas por sua plena vontade. Ouve o que ele disse: 'Tenho o poder de entregar minha vida; e tenho o poder de retomá-la'. Chegou, portanto, com toda a liberdade à paixão, alegre com a excelente obra, jubiloso pela coroa, felicitando-se com a salvação do homem. Não se envergonhou da cruz pois trazia a salvação para o mundo. Não era um homem qualquer aquele que padecia, era o Deus encarnado a combater pelo prêmio da obediência.

Por conseguinte, não te seja a cruz um gozo apenas em tempo de paz. Também em tempo de perseguição guarda a mesma fidelidade, não aconteça seres tu amigo de Jesus durante a paz e inimigo durante a guerra. Agora recebes a remissão dos pecados e és enriquecido com os generosos dons espirituais de teu rei. Rebentando a guerra, luta por ele valorosamente.

Jesus foi crucificado em teu favor, ele não tinha pecado. Tu, por tua vez, não te deixarás crucificar por aquele que em teu benefício foi pregado na cruz? Não estarás fazendo nenhum favor porque primeiro recebeste. Entretanto, mostras tua gratidão pagando a dívida a quem por ti foi crucificado no Gólgota.

(Das Catequeses de São Cirilo)

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

SOMOS APENAS A CASA DO HÓSPEDE

A vida interior depende de três condições preliminares: uma correta concepção de Deus; a harmonia psicológica e as circunstâncias do meio. Uma reta concepção da divindade é a condição fundamental de uma vida interior, rica e fecunda. Pois o que faz a força da vida interior não é o isolamento. É o encontro de Deus em nós. Somos apenas a Casa do Hóspede. O isolamento, como tal, poderá ser apenas mau humor, desespero ou misantropia. E nada de mais alongado dessas formas de negação da vida do que a vida interior. 

Esta, ao contrário, é uma intensificação da vida. Para ter vida interior é preciso, antes e acima de tudo, ter vida, crer na vida e viver a vida do modo mais intenso possível. Ora, só pode preencher essas três exigências ou mesmo qualquer delas quem crê em Deus e encontra a Deus não apenas à distância ou de modo abstrato, mas dentro de si mesmo. O ateísmo pode provocar uma intensificação da vida exterior, mas jamais um aumento da vida interior. Para quem não crê em Deus, só há vida no movimento, na agitação, no mundo das ações e dos fatos. O ateu encontra em si o vazio. Pois se vê, naturalmente, como uma consequência e um motor. Mas jamais como a habitação da própria vida. 

Crer em Deus é portanto a condição essencial da vida interior. E ter de Deus uma noção que permita essa intimidade com o mistério, esse diálogo interior, que não anula a Deus em nós, nem nos aniquila em Deus, é a exigência imediata. E por isso é que duas concepções correntes da divindade, o deísmo e o panteísmo, são também tão contrárias ao mundo interior como o ateísmo. O deísmo coloca a Deus como uma categoria abstrata ou então a uma distância tal que o isola do mundo, tanto exterior como interior. Para o deísmo Deus é uma 'categoria do ideal' , como dizia Renan, ou o 'arquiteto do universo', como dizia Voltaire, ou um Alá inacessível e sem comunicação com o mundo, como quer o fatalismo muçulmano. Essa concepção abstracionista de Deus, como uma peça na geometria do universo, aparta Deus de tal maneira do homem que não há meio de o encontrarmos, quando nos fechamos em nós mesmos. O mesmo se dá com o fatalismo maometano, para quem a linha da divindade é como que paralela à linha da humanidade, sem que entre elas existam quaisquer coordenadas. Por mais puro que seja o moteísmo, desde que separa Deus do homem, não permite que a vida divina se insira na vida humana de modo a alimentar o mistério e a abundância da vida interior. 

O mesmo se dá com a concepção oposta, com o panteísmo. Se dissolvemos Deus no universo, o criador nas criaturas, se apenas vemos Deus em toda parte, encarnado na criação, é como se o tivéssemos solitário e separado no céu geométrico ou fatalista. Os dois contrários se encontram. No panteísmo, Deus se perde no universo e não podemos encontrá-lo em nós, como se Ele se tivesse desinteressado da sua própria obra, por culpa das traições do homem. Para que nossa vida interior represente a vida de Deus em nós e o encontro com Ele no fundo de nós mesmos, é preciso que se resguarde simultaneamente a distinção entre Deus e o mundo, contra o panteísmo e a união de Deus com o mundo, pelas idéias criadoras, pelos sacramentos e pela graça constantemente animando a natureza contra o deísmo. 

Só assim podemos ter a Deus em nós, sem que seja uma ilusão ou uma palavra vã. Só assim podemos encontrar, dentro de nós, o próprio criador da vida. E por isso mesmo é que não bastam as virtudes morais para que tenhamos uma vida interior intensa. É mister que as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e o Amor, transfiguradas pelos dons do Espírito Santo, venham permitir que encontremos, no fundo de nossas almas, a presença divina. E essa presença é que faz a riqueza da vida interior. É porque há em nós mais do que nós mesmos, que o mundo interior tem um sentido tão grande. É porque Deus pode habitar em nós e pela vida interior podemos mais de perto conviver com Ele, que ir a Deus não é sair de nós, e sim, pelo contrário, entrar em nós. 

A vida religiosa só se torna exterior como uma consequência e não como uma causa. Os dois modos de manifestação exterior dessa vida, a oração e o apostolado, só se justificam, quando alicerçados na vida interior. Pela oração é que nos unimos profundamente a Deus. E a oração coletiva, a oração em união com todos os fiéis, a oração do nosso eu em união com a Igreja, Corpo Místico de Cristo, só tem valor quando precedida e acompanhada, simultaneamente, pela oração interior, pela intimidade com Deus no fundo de nossas almas. De outra forma se opera apenas uma mecanização, uma ritualização da prece, que não possui valor espiritual nenhum. O mesmo ocorre com o apostolado. Só há força de irradiação e de contaminação no apostolado, como extensão do Reino de Deus, a que cada cristão está moralmente obrigado, quando essa irradiação parte de um foco ardente que não pode deixar de expandir-se. E, portanto, de uma vida interior que extravasa naturalmente e por isso mesmo de modo mais fecundo para a extensão da vida sobrenatural em nós, que é Deus em nosso mundo interior. 

Uma falsa concepção da divindade é, por conseguinte, um elemento de enfraquecimento, corrupção e aniquilamento de nossa vida interior. Uma verdadeira concepção de Deus, ao contrário, permite que, dentro de nós, encontremos a fonte de toda a vida, a própria Vida em sua cratera ardente e luminosa. Não há pois, vida interior autêntica sem uma profunda vida religiosa. Deus em nós é a condição primeira e maior dessa reverência que devemos ter para com a nossa vida íntima, de modo a expurgá-la de todos os elementos de desagregação e mantê-la na limpidez e na limpeza com que nos preparamos sempre para receber um hóspede. E Deus é mais, muito mais do que um hóspede em nossa casa íntima. É o próprio dono da casa. E quanto mais nos tornarmos hóspedes do nosso Hóspede, tanto mais veremos crescer e florescer o nosso mundo interior.

(Excertos da obra 'Meditação Sobre o Mundo Interior', de Alceu Amoroso Lima)

terça-feira, 19 de agosto de 2025

SOBRE A CONFIANÇA EM DEUS

Desperte, eu lhe digo, levante-se e fique acordado, você que foi vencido pelo sono do pecado; volte à vida finalmente, você que caiu diante da espada mortal de seus inimigos. O apóstolo Paulo está aqui. Ouça-o enquanto ele exige vigorosamente ser ouvido, batendo à sua porta e lhe chamando com palavras claras: 'Acorda do teu sono e levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará!' (Ef 5,14).

Se você ouve Cristo, que restaura a vida, por que se sente inseguro quanto à sua restauração? Ouça as suas próprias palavras: 'Se alguém crer em mim, ainda que morra, viverá' (Jo 11,25) Se a própria Vida, que dá vida, procura ressuscitar você, por que você continua tolerando ficar morto?

Seu coração deve bater com confiança no amor de Deus e não endurecer e se tornar impenitente diante do seu grande crime. Não são os pecadores, mas os ímpios que devem se desesperar; não é a magnitude do crime de alguém, mas o desprezo por Deus que destrói as esperanças de alguém. Se, de fato, o diabo é tão poderoso que é capaz de lançá-lo nas profundezas desse vício, quão mais eficaz é a força de Cristo para restaurá-lo à posição elevada da qual você caiu? 'Aquele que caiu nunca mais se levantará?' (Sl 40,9). 'Se o jumento do teu inimigo cair sob o peso da sua carga' (cf Ex 23,5) é o aguilhão da penitência que o impele e a mão do espírito que o liberta com coragem.

Se a sua carne impura o enganou... se roubou os sete dons do Espírito Santo, se extinguiu não apenas a luz do seu rosto, mas também a do seu espírito, não fique deprimido e não se desespere completamente. Mais uma vez, reúna suas forças, anime-se como um homem, ouse realizar grandes feitos e, ao agir assim, você terá a força, pela misericórdia de Deus, para triunfar sobre seus inimigos.

(São Pedro Damião)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXVIII)

 

Exame sobre a Humildade para Consigo Mesmo

128. Ricardo de São Vítor [lib. 2, cap. xxiii, De Epul. inter Hom.] define humildade como o desprezo interior por si mesmo. Examine um pouco se você tem esse sentimento em relação a si mesmo. Quando você tem sonhos de dignidade e honra, e se imagina em meio à grandeza e honras quiméricas, como você se comporta nessas imaginações orgulhosas e vaidosas? Você se alegra e se deleita com elas, desejando habitar nelas cada vez mais? Se amamos a humildade, devemos tratar esses sonhos de ambição mundana e orgulho com desdém e ódio, assim como aqueles que amam a castidade tratam os pensamentos impuros. Devemos orar assim com o rei Davi: 'Não deixe que o pé do orgulho chegue até mim', porque o orgulho primeiro entra na alma através dos pensamentos da mente, e aquele que se acostuma a se deleitar com esses pensamentos já formou o mau hábito do orgulho em seu coração.

129. Você esquece a sua própria insignificância? Você tem alguma autoestima? Se for esse o caso, você é um sedutor, um enganador de si mesmo, porque, como diz São Paulo: Quem se crê algo, 'enganar-se-á a si mesmo' [Gl 6,3]. Você se deleita e se gloria em seu conhecimento, seu poder, suas riquezas ou em algum outro dom natural ou moral? Lembre-se da palavra que Deus disse pelo profeta Jeremias: 'Que o sábio não se glorie em sua sabedoria, que o forte não se glorie em sua força e que o rico não se glorie em suas riquezas' [Jr 1,23]. E novamente como diz São Paulo: 'ão devemos agradar a nós mesmos' [Rm 15,1]. Esse deleite e glória insinuam-se insensivelmente, mas aquele que é humilde percebe-os rapidamente e repele-os como sendo nada mais do que vaidade, que apenas enche o coração de orgulho.

O mesmo se aplica à vida espiritual. Você se considera virtuoso porque às vezes faz um pouco de bem? Faria bem, então, em não se considerar bom, mas em imaginar-se em Jerusalém repudiado por Deus, porque, como disse o profeta, você está 'confiando na sua beleza' [Ez 16,15]. E São Gregório diz sobre pessoas como você: 'A alma confia na sua beleza quando realiza alguma boa ação' [Epístola cxxvi]. O homem orgulhoso se detém mais de bom grado no pouco bem que faz, na pouca devoção que sente, do que no pensamento do mal que cometeu e que comete diariamente. Ele deixa para trás a multidão de seus pecados, para não precisar se envergonhar e se humilhar; e reflete frequentemente sobre certos exercícios minuciosos de piedade cristã, a fim de satisfazer sua auto-complacência, como diz São Gregório: 'É mais fácil para eles verem dentro de si mesmos o que lhes agrada do que o que lhes desagrada' [lib. 22, Mor. c. i]. Talvez você também tenha essa tendência.

130. A humildade nos ensina também a nos considerarmos indignos de qualquer bem que possamos possuir, até mesmo do ar que respiramos, e a nos considerarmos dignos de todos os males e injúrias do mundo. Esses são os pensamentos do homem humilde. Ele sempre mantém diante dos olhos os pecados que cometeu e sua tendência maliciosa de cometê-los novamente. Portanto, ele se considera pior do que os turcos, que não têm a luz da graça, enquanto ele também tem a da fé; pior do que todos os pecadores, que não percebem a gravidade do pecado e que não receberam tanta ajuda da graça quanto ele; pior do que os judeus, 'porque, se o tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória' [1Cor 2,8]; pior até do que os demônios, que pecaram apenas uma vez em pensamento, enquanto ele pecou tantas vezes, mesmo em ação. Mas você já parou para considerar essas coisas seriamente?

131. Você se coloca em situações perigosas, dizendo: 'Não vou cair em pecado', presumindo assim demais da sua própria força? São Gregório diz que não há nada mais distante da humildade do que tal presunção: 'Nada no homem está mais distante da humildade do que confiar na própria virtude' [lib. 22, Mor. c. iii]. Você fica perturbado e agitado ao pensar nas faltas que comete e no seu lento progresso na aquisição da virtude? Isso é orgulho e vem da sua presunção em pensar que você pode fazer grandes coisas com suas próprias forças. Mas é necessário nos humilharmos e, ainda assim, não desanimarmos, mas aprendermos com Santo Agostinho, que diz de si mesmo: 'Quanto mais me falta, mais humilde serei' [in Ps. 38] Serei mais humilde se refletir sobre as virtudes que deveria ter e não tenho.

Você é prudente, não confiando em sua própria ingenuidade nem em suas próprias opiniões, sem se preocupar em pedir conselhos, especialmente em assuntos de grande importância? Isso é um grande pecado contra a humildade, e o Espírito Santo assim o adverte: 'Não confie em sua própria prudência: não seja sábio em sua própria presunção' [Pv 3,5.7]. E São Jerônimo chama de intolerável o orgulho pelo qual damos aos outros a entender que somos tão sábios que não precisamos de seus conselhos: 'O orgulho é insuportável, mas considerar-se um nada precisa de conselho' [cap.1, Isa.].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

NAS LONGAS HORAS DA NOITE ESCURA...

Quando nos tivermos mantido firmes durante as longas horas da noite escura que reina nos momentos de provação, quando tivermos dado o nosso melhor, ... estejamos certos de que, quando a noite for adiantada e o dia estiver próximo (Rm 13, 12), o Filho de Deus virá até junto de nós, caminhando sobre as ondas. Quando o virmos aparecer assim, sentiremos receio até o momento em que compreendermos claramente que é o Salvador que veio para o meio de nós. Julgando ainda ver um fantasma, gritaremos assustados, mas Ele dir-nos-á imediatamente: 'Tranquilizai-vos! Sou Eu! Não temais!'

Pode ser que estas palavras façam surgir em nós um Pedro em caminho para a perfeição, que descerá do barco, certo de ter escapado à prova que os agitava. Inicialmente, o seu desejo de ir para o pé de Jesus fá-lo caminhar sobre as águas. Mas sendo a sua fé ainda pouco segura e estando ele próprio com dúvidas, notará 'a violência do vento', sentirá medo e começará a ir ao fundo. Contudo, escapará a este mal porque lançará a Jesus este grito: 'Salva-me, Senhor!' E mal este outro Pedro acabe de dizer 'Salva-me, Senhor!', o Verbo estenderá a mão para o socorrer, e segurá-lo-á no momento em que ele começava a afogar-se, repreendendo-o pela sua pouca fé e pelas suas dúvidas. 

Note-se contudo que Ele não disse: 'incrédulo', mas 'homem de pouca fé' e que está escrito: 'por que duvidaste?', quer dizer: 'tu tinhas um pouco de fé, mas deixaste-te levar em sentido contrário'. E Jesus e Pedro subirão para o barco, o vento acalmará e os ocupantes, compreendendo a que perigos tinham escapado, adorarão Jesus dizendo: 'Tu és, realmente, o Filho de Deus!', palavras que apenas os discípulos que estão próximo de Jesus no barco podem dizer.

(Comentários de Orígenes, sobre o Evangelho de São Mateus [Mt 14,25-33])

sábado, 2 de agosto de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXVII)

  

124. A humildade do afeto consiste em reconhecer que somos mais miseráveis do que qualquer outra pessoa e em amar ser considerado assim pelos outros. Ser vil e abjeto aos nossos próprios olhos, através do conhecimento que temos de nós mesmos, é a humildade da necessidade, à qual somos compelidos pela verdade óbvia disso; mas ter um desejo sincero de ser considerado vil e abjeto pelos outros, isso é a verdadeira e virtuosa humildade do coração. 'Isso é por necessidade, isso é por vontade' - diz São Bernardo, e acrescenta: 'Temo que, sob alguns aspectos, aquele que a verdade humilha, a vontade exalta' [Serm. 42 in Cant.] Cuidado para que, ao não se estimar a si mesmo, você ainda tenha o desejo de ser estimado pelos outros. Isso seria amar algo que não existe, amar uma mentira.

Quão longe você está dessa humildade de afeto! Como você teme que alguma de suas faltas seja revelada e quantas desculpas e justificativas você inventa para que essa imputação de uma falta que você realmente cometeu não diminua a estima que os outros têm por você. Para ser mais estimado, você tenta mostrar sua habilidade e talento, e se você tem pouca habilidade e pouco talento, quantas vezes você finge ter mais, na esperança de ser ainda mais estimado! E como, longe de amar a humildade, você tem tanto desejo de ganhar a estima dos outros, você pertence verdadeiramente àqueles filhos orgulhosos de Adão, dos quais o Profeta clamou: 'até quando tereis o coração endurecido, no amor das vaidades e na busca da mentira?' [Sl 4,3]. Confesse a verdade à sua própria consciência, que você tem mais orgulho do que humildade e que ama mais a vaidade do que a verdade.

125. É essa humildade de afeto, essa humildade de coração que nos ensinou Jesus Cristo, que nos torna como crianças pequenas e nos permite entrar no reino dos céus. Mas que vergonha para você se, ao examinar-se, descobrir que não tem nem mesmo a sombra dessa humildade! Se por acaso você ouvir que outros falaram mal de você e o difamaram, você não fica perturbado, inquieto, triste, descontente, angustiado? Como você se ressente quando pensa que alguém lhe fez injustiça ou não o tratou com o devido respeito! Você é desconfiado, se ofende facilmente e é meticuloso com tudo o que diz respeito à sua honra e dignidade? Não estou falando agora da honra que se baseia na virtude, mas daquela honra desprezível que depende da opinião do mundo. Que valor você dá a essa honra? Você se ofende facilmente, considerando-se ferido por cada pequena palavra adversa, cada desprezo que recebe dos outros, ficando zangado e irritado, alimentando aversão e rancor, exigindo desculpas humildes e satisfação, e mostrando-se implacável e irreconciliável com eles: temendo perder sua dignidade, se consentisse em fazer as pazes como um bom cristão? Se for esse o caso, onde está sua humildade, seja de conhecimento ou de afeto, que é necessária para a sua salvação?

126. Para saber até que ponto lhe falta humildade, examine-se sob este ponto de vista. O homem humilde não só não se irrita com aqueles que o ofendem, mas os ama e retribui o mal com o bem. Sim, é verdade, porque ele os considera instrumentos da misericórdia e da justiça de Deus, e também está convencido de que seus pecados e ingratidão para com a Bondade Divina merecem um castigo muito pior. E você? O homem humilde, quando ouve que as pessoas estão falando mal dele, não se perturba, mas aprende silenciosamente a corrigir seus caminhos, mesmo que não tenha cometido as faltas das quais foi acusado. Ele não se lamenta, como se fosse perseguido: não diz que aqueles que falam assim dele são rivais malignos e invejosos; mas acredita que eles o conhecem melhor do que ele mesmo. Você faz isso?

O homem humilde, quando é repreendido, recebe a correção de bom grado e agradece àquele que teve a bondade e a gentileza de lhe dar. Ele não julga nem fala mal de ninguém, porque acredita que todos são melhores do que ele e porque sabe que é capaz de fazer coisas ainda piores. Ele vive em paz com todos e respeita a todos e, sem esperar ser honrado, é o primeiro a honrar os outros, como os santos apóstolos Pedro e Paulo ordenaram: 'vivei em paz com todos os homens' [Rm 12,18]; 'glória, honra e paz a todo o que faz o bem' [Rm 2,10] ou 'honrai e amai todos os homens' [1Pd 2,17]. E você... o que pode dizer de si mesmo?

Talvez imagine que estas coisas são pontos de perfeição; mas são pontos de humildade que, no que lhe diz respeito, podem ser preceitos. Quando se trata de humildade, não gostaria que imaginasse que só precisa de atingir o ponto que é absolutamente necessário para si, sem ir um milímetro além disso. Quando você diz a si mesmo: 'Não sou obrigado a fazer este ou aquele ato de humildade' pode ser que esteja cometendo um grande erro. Por mais que sua humildade exterior deva ser dirigida pela prudência, você certamente não pode dispensar a humildade interior do coração.

127. Se o homem humilde percebe que ofendeu ou prejudicou o próximo, imediatamente se humilha, pede desculpas e pede perdão, manifestando pesar pela ofensa que causou. O homem humilde sempre teme ser ditatorial quando se deixa levar pelo zelo e, por isso, age com muita circunspecção, exercendo seu zelo mais sobre si mesmo do que sobre os outros. Ele dá sua opinião com modéstia e a submete à dos outros sem obstinação. E você?

O homem humilde respeita e reverencia aqueles que estão acima dele e é gentil e cortês com os mais pobres entre os pobres; e nisso ele apenas segue o ensinamento do Pregador: 'Torna-te afável na assembleia dos pobres, humilha tua alma diante de um ancião' [Eclo 4,7]. É assim que você geralmente se comporta? O homem humilde não procura parecer humilde por afetação; pelo contrário, se sabe que os outros o consideram humilde, sente uma confusão dolorosa. Sua natureza é ser sincero, simples e direto. Ele tem uma postura humilde e também mantém humildes seus caprichos humanos e seu orgulho. Ele não é duro e altivo, mas gentil, reverente e obediente. E você?

Ah, tente perceber também o quanto você está atrasado na escola de Jesus Cristo! Ele veio para lhe ensinar uma única lição, a da humildade: 'Aprenda comigo, pois sou manso e humilde de coração'. E como você se beneficiou dessa lição até agora? Você responderá que muitas dessas práticas lhe parecem muito difíceis; mas diga a si mesmo: 'Os impuros acham difícil viver em castidade, os avarentos acham difícil dar esmolas e, da mesma forma, o homem orgulhoso acha difícil praticar a humildade'. Não é que a humildade seja difícil em si mesma, mas é o seu orgulho que a torna difícil, e podemos dizer com Eusébio: 'Vocês tornam pesado para vocês mesmos o jugo do Senhor' [Hom. de Machab.].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 23 de julho de 2025

SOBRE SOFRER OS DEFEITOS DOS OUTROS


1. Aquilo que o homem não pode emendar em si mesmo ou nos demais, deve-o tolerar com paciência, até que Deus disponha de outro modo. Considera que talvez seja melhor assim, para provar tua paciência, sem a qual não têm grande valor nossos méritos. Todavia, convém, nesses embaraços, pedir a Deus que te auxilie, para que os possas levar com seriedade.

2. Se alguém, com uma ou duas advertências, não se emendar, não contendas com ele; mas encomenda tudo a Deus para que seja feita a sua vontade, e seja ele honrado em todos os seus servos, pois sabe tirar bem do mal. Procura sofrer com paciência os defeitos e quaisquer imperfeições dos outros, pois tens também muitas que os outros têm de aturar. Se não te podes modificar como desejas, como pretendes ajeitar os outros à medida de teus desejos? Muito desejamos que os outros sejam perfeitos, e nem por isso emendamos as nossas faltas.

3. Queremos que os outros sejam corrigidos com rigor e nós não queremos ser repreendidos. Estranhamos a larga liberdade dos outros e não queremos sofrer recusa alguma. Queremos que os outros sejam apertados por estatutos e não toleramos nenhum constrangimento que nos coíba. Donde claramente se vê quão raras vezes tratamos o próximo como a nós mesmos. Se todos fossem perfeitos, que teríamos então de sofrer nós mesmos por amor de Deus?

4. Ora, Deus assim o dispôs para que aprendamos a carregar uns o fardo dos outros; porque ninguém há sem defeito; ninguém sem carga; ninguém com força e juízo bastante para si; mas cumpre que uns aos outros nos suportemos, consolemos, auxiliemos, instruamos e aconselhemos. Quanta virtude cada um possui, melhor se manifesta na ocasião da adversidade; pois as ocasiões não fazem o homem fraco, mas revelam o que ele é.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

sexta-feira, 18 de julho de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXVI)


Exame sobre a Humildade para com o Próximo

119. De acordo com a doutrina de São Tomás [2a 2æ, qu. clxi, art. 3], o primeiro ato de humildade consiste em nos submetermos a Deus, e o seguinte é submeter-nos - isto é, humilhar-nos - ao próximo por amor a Deus; como diz o Espírito Santo por meio de São Pedro: 'Sujeitem-se, portanto, a toda criatura humana por amor de Deus' [1Pd 2,13] e o mesmo Espírito Santo nos exorta através de São Paulo a nos superarmos uns aos outros em humildade: 'Com humildade, cada um considere os outros superiores a si mesmo' [Fl 2,3].

120. Ora, como o próximo pode ser seu superior, seu igual ou seu inferior, é certo que você deve praticar a humildade antes de tudo para com seu superior, o que é um preceito, pois, como diz São Pedro, tal é a vontade de Deus: 'Porque assim é a vontade de Deus' [1Pd 2,15]. Você demonstra aos seus superiores a obediência e reverência que sua condição exige? Como você recebe suas repreensões? Você sente aquela humildade de coração para com eles 'servindo de boa vontade' [Ef 6,7] que São Paulo recomenda? Há uma humildade necessária para a imitação de Cristo, 'que se humilhou, tornando-se obediente até a morte' [Fl 2,8]. Às vezes, pode haver uma desculpa de impotência ou inadvertência em não obedecer àqueles que Deus colocou acima de você, mas recusar-se a obedecer é sempre um ato de orgulho indesculpável. Como diz São Bernardo [citando São Tomás]: 'Não estar disposto a obedecer é um esforço orgulhoso da vontade' [2a 2æ, qu. clxi, art. 2].

121. Como você se comporta com os seus iguais? Você deseja estar acima deles, ser preferido a eles, não se contentando com sua própria condição? Toda vez que você sentir esse desejo em seu coração, diga a si mesmo que esse foi o pecado de Lúcifer, que disse em seu coração: 'Eu subirei' [Is 14,14]. E São Tomás ensina que a virtude da humildade consiste essencialmente em moderar esse desejo de nos exaltarmos acima dos outros.

Você se considera acima dos outros por algum dom da natureza, educação ou graça? Isso é verdadeiro orgulho, e você deve subjugá-lo com humildade, considerando-se inferior aos outros, como de fato você pode ser diante de Deus.

122. Como você se comporta com os seus inferiores? É para com eles que você deve exercer a humildade acima de tudo. 'Quanto maior fores' - diz a palavra inspirada - 'tanto mais humilha-te em todas as coisas' [Eclo 3,20]. E embora eles sejam inferiores no que diz respeito à sua condição de vida, lembra-te sempre que diante de Deus eles são teus iguais: 'Sabendo que o Senhor deles e teu está no céu, e que não faz acepção de pessoas' [Ef 6,9].

Dessa forma, você se tornará bondoso e atencioso, como aconselha São Paulo quando diz: 'Consentindo em ser humilde' [Rm 12,16]. Você os comanda com arrogância e imperiosidade, contra a vontade expressa de Deus, que não deseja que você se comporte com seus inferiores 'como senhor'? [1Pd 5,3]. E quando você é obrigado a corrigi-los, você o faz com o espírito adequado: 'Com espírito de mansidão' - como nos ensina o Apóstolo - 'considerando-se a si mesmo, para que também não seja tentado'? [Gl 6,1].

Há também outro tipo de humildade que é falsa e contra a qual somos advertidos pelo Espírito Santo quando Ele diz: 'Não sejas humilde em tua sabedoria, para que, sendo humilhado, não sejas enganado pela loucura' [Eclo 13,11]. Se você possui o talento de ensinar, aconselhar, ajudar e fazer o bem às almas dos outros, e então se retira, dizendo, como se fosse por humildade: 'Não sou bom o suficiente'; ou se você estiver em uma posição em que é seu dever corrigir, punir ou exercer autoridade, e você a abandonar por motivos de humildade, isso não é verdadeira humildade, mas fraqueza e covardia, e no que diz respeito às aparências, devemos observar a regra de Santo Agostinho: 'Para que, enquanto a humildade é observada indevidamente, a autoridade do governante não seja minada entre aqueles que devem ser submissos' [In Reg.].

Por mais que eu deva elogiá-lo por se considerar inferior em mérito a todos aqueles abaixo de você, 'no conhecimento do seu coração' - como diz tão bem São Gregório - isso não deve ser em detrimento do seu cargo, diminuindo a sua superioridade. Pois estar em uma posição superior não o impede de ser humilde de coração; mas essa humildade não deve ser um impedimento para o exercício da sua autoridade. A citação de Santo Agostinho é referida por São Tomás: 'Em segredo, considere os outros como seus superiores, aos quais você é superior em público' [2a 2æ, qu. clxi, art. 6 ad 1].

123. Temos que praticar dois tipos de humildade para com todos os nossos vizinhos: uma é de conhecimento, a outra de afeto. A humildade do conhecimento consiste em reconhecer e manter em nossa alma mais íntima que somos inferiores a todos, e é por isso que Jesus Cristo nos aconselha em seu evangelho a ocupar o lugar mais baixo: 'Sente-se no lugar mais baixo' [Lc 14,10].  Ele não nos diz para nos sentarmos em um lugar no meio, nem em um dos últimos, mas no último; isto é, devemos ter uma opinião de nós mesmos tal que nos consideremos inferiores a todos, como exclama São Bernardo: 'Que você se sente sozinho e em último lugar, não apenas não se colocando à frente dos outros, mas nem mesmo ousando se comparar com os outros' [Serm. 37 in Cant.]. A razão é que você não sabe se aqueles que você considera inferiores a si mesmo, e acima dos quais você se exalta, não são muito mais queridos por Deus e serão colocados no futuro à direita do Altíssimo.

O homem verdadeiramente humilde acredita que todos são melhores do que ele e que ele é o pior de todos. Mas você é realmente humilde assim em sua própria opinião? Você se compara facilmente com este e aquele, mas a quantos você não se prefere com o orgulho do fariseu: 'Eu não sou como os outros homens' [Lc 18,11]. Quando você se prefere aos outros, muitas vezes parece que você fala com certa humildade e modéstia, dizendo: 'Pela graça de Deus, não tenho os vícios de tal pessoa; pela graça de Deus, não cometi tantos pecados graves quanto tal pessoa'. Mas é realmente verdade que você reconhece que deve tudo isso à graça de Deus e que dá a Ele a glória, em vez de a si mesmo? Se você se estima mais do que tal pessoa, e se ela, por sua vez, se estima inferior a você, ela é, portanto, mais humilde do que você e, por essa razão, melhor. Se, pela graça de Deus, você é casto, caridoso e justo, deve se esforçar, pela mesma graça, para ser também humilde. E como você pode ser humilde se tem tanta autoestima, preferindo-se aos outros?

Quando São Paulo nos ensina que, em santa humildade, devemos acreditar que todos os outros são melhores do que nós, ele também nos ensina a maneira de conseguir isso, ou seja, não considerando o bem que temos em nós mesmos, mas o que os outros têm ou podem ter, 'cada um não considerando as coisas que são suas, mas as que são dos outros' [Fl 2,4]. Com base nisso, São Tomás fundamenta esta doutrina de que todo o mal que há no homem e é feito pelo homem vem do homem, e todo o bem que há no homem e é feito pelo homem vem de Deus; e ele diz que, por quatro razões, podemos afirmar sem hesitação que todos são melhores do que nós.

A primeira razão é considerar em nossos corações o que realmente nos pertence, ou seja, a malícia e a maldade, e considerar o que nosso próximo possui o que é de Deus, ou seja, seus inúmeros benefícios. A segunda é considerar alguma qualidade boa em particular que essa pessoa possa ter e que nós não temos. A terceira é reconhecer alguma falha em nós mesmos que a outra pessoa não tem. A quarta é ter um temor sábio de que possa haver algum orgulho secreto dentro de nós que corrompa nossas ações mais sagradas e que possamos estar enganados na opinião que temos de nós mesmos, imaginando-nos virtuosos quando não somos [2a 2æ, qu. clxi, art. 3 in 4; dist. 25, qu. ii, art. 3 ad 2].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 7 de julho de 2025

CIVILIZAÇÃO CRISTÃ OU SOCIEDADES MORTAS

Os perniciosos erros que se espalham pelo mundo tendem à descristianização completa dos povos. Ora, isto começa no século XVI com a renovação do paganismo, ou seja, com a renovação da soberba e da sensualidade pagã entre cristãos. Este declínio avançou com o protestantismo, através da negação do Sacrifício da Missa, do valor da absolvição sacramental e, por consequência, da confissão; pela negação da infalibilidade da Igreja, da Tradição ou Magistério, e da necessidade de se observar os preceitos para a salvação.

Em seguida, a Revolução Francesa lutou manifestamente para a descristianização da sociedade, conforme os princípios do deísmo e do naturalismo. O espírito da revolução conduziu ao liberalismo que, por sua vez, queria permanecer numa meia altitude entre a doutrina da Igreja e os erros modernos. Ora, o liberalismo nada concluía; não afirmava, nem negava, sempre distinguia, e sempre prolongava as discussões, pois não podia resolver as questões que surgiam do abandono dos princípios do cristianismo. Assim, o liberalismo não era suficiente para agir, e depois veio o radicalismo mais oposto aos princípios da Igreja, sob a capa de anticlericalismo', para não dizer anticristianismo: a maçonaria.

O radicalismo, então, conduziu ao socialismo e o socialismo, ao comunismo materialista e ateu, como na Rússia, e quis invadir a Espanha e outras nações negando a religião, a propriedade privada, a família, a pátria, e reduzindo toda a vida humana à vida econômica como se só o corpo existisse; como se a religião, as ciências, as artes, o direito fossem invenções daqueles que querem oprimir os outros e possuir toda a propriedade privada.

Contra todas essas negações do comunismo materialista, só a Igreja, somente o verdadeiro Cristianismo ou Catolicismo pode resistir eficazmente, pois só ele contém a Verdade sem erro. Portanto, o nacionalismo não pode resistir eficazmente ao comunismo. Nem, no campo religioso, o protestantismo, como na Alemanha e na Inglaterra, pois contém graves erros, e o erro mata as sociedades que nele se fundam, assim como a doença grave destrói o organismo; o protestantismo é como a tuberculose ou como o cancro, é uma necrose por causa da sua negação da Missa, da confissão, da infalibilidade da Igreja, da necessidade de observar os preceitos.

O que, pois, se segue dos erros citados no que diz respeito à legislação dos povos? Esta legislação torna-se paulatinamente ateia. Não somente desconsidera a existência de Deus e a lei divina revelada, tanto positiva como natural, mas formula várias leis contrárias à lei divina revelada, por exemplo, a lei do divórcio e a lei da escola laica, que termina por tornar-se ateia. Por fim, vem a liberdade total de cultos ou religiões, e da própria impiedade ou irreligião.

As repercussões destas leis em toda sociedade são enormes. Por exemplo, a repercussão da lei do divórcio: qualquer que seja o ano, qualquer que seja a nação, milhares de famílias são destruídas pelo divórcio e deixam sem educação, sem orientação, crianças que acabam por se tornar ou incapazes, ou exaltadas, ou más e, por vezes, péssimas.

Do mesmo modo, saem da escola ateia, todos os anos, muitos homens ou cidadãos sem nenhum princípio religioso. E portanto, em lugar da fé, da esperança e da caridade cristã, têm eles a razão desordenada, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos, o desejo de riqueza e a soberba de vida. Todas essas coisas são erigidas num sistema especialmente materialista, sob o nome de ética laica ou independente, sem obrigação e sanção, na qual às vezes remanesce algum vestígio do decálogo, mas um vestígio sempre mutável. Portanto, qual é, segundo este princípio, o modo de discernir o falso do verdadeiro? O único modo é a livre discussão, no parlamento ou em algum outro lugar, e esta liberdade é, portanto, absoluta, nada pode ser subtraído à sua jurisdição, nem a questão do divórcio, nem a necessidade da propriedade individual, nem a da família ou da religião para os povos.

Neste caso, é para se concluir que estas sociedades, fundadas sobre princípios falsos ou sobre uma legislação ateia, tendem para a morte. Nelas, com o auxílio da graça, as pessoas individuais ainda se podem salvar. Mas estas sociedades, como tais, tendem para a morte, pois o erro, sobre o qual se fundam, mata, como a tuberculose ou o cancro que, progressiva e infalivelmente, destrói o nosso organismo. Só a fé cristã e católica pode resistir a estes erros, e tornar a cristianizar a sociedade, mas, para isso, requer-se uma condição: uma fé mais profunda, conforme as Escrituras: 'Este é o poder vitorioso que venceu o mundo: a nossa fé' (1Jo 5, 4).

(Pe. Reginald Garrigou-Lagrange)

sexta-feira, 4 de julho de 2025

SOBRE O ANIQUILAMENTO DA ALMA CRISTÃ

Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando nos dizem ser esse o fundo da moral cristã, consistir nisso a adoração em espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo, condenemos a nós mesmos.

Que nos pede o Senhor, ordenando que nos aniquilemos? Pede fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos tais quais somos. Quando mesmo tivéssemos nascido e vivido sempre na inocência, quando jamais houvéssemos perdido a graça original, outra coisa não seríamos, por nós mesmos, senão nada; não poderíamos considerar-nos de outro modo sem nos desconhecermos e injustos seríamos pretendendo que diversamente Deus ou os homens nos tratassem. Que se pode dever ao que nada é? Que pode exigir o que nada é? Se a sua própria existência é uma graça, também e com razão maior é tudo quanto tem. Há, portanto, injustiça formal da nossa parte em recusarmos ser tratados e tratar-nos a nós mesmos como verdadeiros nadas.

Diz-se nada custar e ser justa essa confissão em relação a Deus; mas que assim não é a respeito dos homens, porquanto estes, nada sendo, como nós, não têm título algum para obrigar-nos a tal confissão e às suas consequências. A confissão nada custa em relação a Deus, se nos limitamos a fazê-la de boca; porém, quando faz-se mister procedermos de acordo com ela, deixarmos que Ele se arrogue e exerça sobre nós todos os direitos que lhe pertencem, consentirmos em que disponha ao seu talante de nosso coração, de todo o nosso coração, de todo o nosso ser, custa-nos infinitamente e com grande dificuldade não chamamos ser injustiça. Ele, todavia, poupa a nossa fraqueza, não usa dos seus direitos com todo o rigor, jamais nos expõe a certas provas aniquiladoras, sem ter obtido o nosso consentimento.

Quanto aos homens, concordo não terem por si mesmos domínio algum sobre nós e que injusto é da sua parte qualquer desprezo, humilhação ou ultraje. Mas nem por isso temos direito de nos queixarmos dessa injustiça, porque no fundo não é injustiça a nós, que nada somos, a quem nada é devido, mas para com Deus, cujo mandamento violam desprezando-nos, humilhando-nos, ultrajando-nos. É, pois, o Senhor quem deve ressentir-se da injúria que lhe fazem maltratando-nos e não nós, que em tudo quanto nos acontece não devemos ser sensíveis senão à injúria feita a Deus. Meu próximo despreza-me; não tem razão, porque não é mais do que eu e Deus lhe proíbe. Mas não terá ele razão porque eu sou verdadeiramente digno de estima, porque em mim nada há merecedor de desprezo? Não, porque se ele arrebata meus bens, mancha a minha reputação, atenta contra a minha vida, é certamente culpado e muito culpado para com Deus; mas será também para comigo? Estarei autorizado a querer-lhe mal e a vingar-me?

Não; porque tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se assim encarássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis, tão sujeitos a nos queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que não possuímos, de em tudo começarmos sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne.

Confesso que isso é de prática muito difícil e para consegui-lo faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor. Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo, nada tendo, nada pretendendo.

Isto como já se disse, seria justo, quando mesmo tivéssemos conservado a nossa primeira inocência. Mas, se nascemos culpados, se estamos inteiramente cobertos de pecados pessoais, se contraímos infinitas dívidas para com a justiça divina, se merecemos não sei quantas vezes a condenação eterna, não é para nós castigo demasiado brando só sermos tratados como nadas? E não deve o pecador colocar-se infinitamente abaixo do que nada é? Se qual for a provação imposta a ele por Deus, sejam quais forem os maus tratos suportados do próximo, terá direito de se queixar? Poderá acusar de rigor excessivo a Deus ou de injustiça os homens? Não deve, antes, considerar-se muito feliz em resgatar, com alguma pena temporal, tormentos eternos? 

Se a religião não é uma ilusão, se é verdade o que a fé nos ensina acerca do pecado e dos suplícios que lhe estão reservados, como pode entrar no espírito de um pecador - a quem Deus se dispõe a perdoar - que não merece tudo quanto se possa suportar de males neste mundo, embora dure sua vida milhões de séculos? Sim, é injustiça soberana, é monstruosa ingratidão de quem ofendeu a Deus (e quem de nós não o ofendeu?) não aceitar de pronto, em reconhecimento, por amor, por dedicação aos interesses de Deus, tudo quanto de sofrimentos, se essas humilhações aprouver à divina bondade enviar-lhe. E que será se tais sofrimentos, se essas humilhações passageiras são, não só a compensação do inferno, mas o preço de uma felicidade eterna, o preço da posse eterna de Deus; se no céu seremos glorificados na proporção do nosso aniquilamento aqui na terra? Teremos ainda horror a nos aniquilarmos? Pensaremos que é nos fazer mal, quando, por sermos pecadores e para emergirmos do nada, exige-se a renúncia completa do nosso eu, com a promessa de uma recompensa que sempre durará?

Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou como tal: 'Tomai sobre vós o meu jugo' - disse Ele - porque é suave e leve'. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por seu amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e torna-o preferível e a todos os prazeres.

A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das revoltas interiores. Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas.

O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer, no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento. Nos desprezos, nas calúnias, humilhações, o que no-las torna tão duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados, considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas mortificações que se apresentarem.

Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente; para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são indiferentes. A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em sua presença, de conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-se de nós; esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-lo voltar; ficamos abatidos e desolados, se o afastamento perdura muito. Por isso também temos falsos alarmes a respeito do nosso estado. 

Afigura-se-nos estarmos mal com Deus, porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às nossas leituras, orações e outras práticas. Sirvamos a Deus com espírito de aniquilamento; sirvamo-lo por Ele e não em atenção a nós; sacrifiquemos os nossos interesses à sua glória e ao seu bel-prazer; então, estaremos sempre contentes com o seu modo de tratar-nos, persuadidos de que nada merecemos e de ser imensa a bondade de sua parte, não digo aceitando, porém suportando os nossos serviços.

Nas grandes tentações contra a pureza, a fé, a esperança,o que há de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, senão o medo de perder-nos, ofendendo-o. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais do que a sua glória. Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana, transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões. Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos... Encontraremos a paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos. Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar a alma verdadeiramente aniquilada.

(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou, 1932)

quarta-feira, 2 de julho de 2025

SOBRE SER VIGILANTE E DILIGENTE NO SERVIÇO DE DEUS


1. Sê vigilante e diligente no serviço de Deus, e pergunta-te a miúdo: a que vieste, para que deixaste o mundo? Não será para viver por Deus e tornar-te homem espiritual? Trilha, pois, com fervor o caminho da perfeição, porque em breve receberás o prêmio dos teus trabalhos; nem te afligirão, daí por diante, temores nem dores. Agora, terás algum trabalho; mas depois acharás grande repouso e perpétua alegria. Se tu permaneceres fiel e diligente no seu serviço, Deus, sem dúvida, será fiel e generoso no prêmio. Conserva a firme esperança de alcançar a palma; não cries, porém segurança, para não caíres em tibieza ou presunção.

2. Certo homem que vacilava muitas vezes, ansioso, entre o temor e a esperança, estando um dia acabrunhado pela tristeza, entrou numa igreja, e diante dum altar, prostrado em oração, dizia consigo mesmo: Oh! se eu soubesse que havia de perseverar! E logo ouviu em si a divina respostas: Se tal soubesses, que farias? Faze já o que então fizeras, e estarás bem seguro. Consolado imediatamente, e confortado, abandonou-se à divina vontade, e cessou a ansiosa perplexidade. Desistiu da curiosa indagação acerca do seu futuro aplicando-se antes em conhecer qual fosse a vontade e o perfeito agrado de Deus para começar e acabar qualquer boa obra.

3. Espera no Senhor e faze boas obras, diz o profeta, habita na terra e serás apascentado com suas riquezas (Sl 37,3). Há uma coisa que esfria em muitos o fervor do progresso e zelo da emenda: o horror da dificuldade ou o trabalho da peleja. Certo é que, mais que os outros, aproveitam nas virtudes aqueles que com maior empenho se esmeram em vencer a si mesmos naquilo que lhes é mais penoso e contrariam mais suas inclinações. Porque tanto mais aproveita o homem, e mais copiosa graça merece, quanto mais se vence a si mesmo e se mortifica no espírito.

4. Não custa igualmente a todos se vencer e mortificar-se. Todavia, o homem diligente e porfioso fará mais progressos, ainda que seja combatido por muitas paixões, que outro de melhor índole, porém menos fervoroso em adquirir as virtudes. Dois meios, principalmente, ajudam muito a nossa emenda, e vêm a ser: apartar-se valorosamente das coisas às quais viciosamente se inclina a natureza, e porfiar em adquirir a virtude de que mais se há mister. Aplica-te também a evitar e vencer o que mais te desagrada nos outros.

5. Procura tirar proveito de tudo: se vês ou ouves relatar bons exemplos, anima-te logo a imitá-los; mas, se reparares em alguma coisa repreensível, guarda-te de fazê-la, e, se em igual falta caíste, procura emendar-te logo dela. Assim como tu observas os outros, também eles te observam a ti. Que alegria e gosto ver irmãos cheios de fervor e piedade, bem acostumados e morigerados! Que tristeza, porém, e aflição, vê-los andar desnorteados e descuidados dos exercícios de sua vocação! Que prejuízo descurar os deveres do estado e aplicar-se ao que Deus não exige!

6. Lembra-te da resolução que tomaste, e põe diante de ti a imagem de Jesus crucificado. Com razão te envergonharás, considerando a vida de Jesus Cristo, pois até agora tão pouco procuraste conformar-te com ela, estando há tanto tempo no caminho de Deus. O religioso que, com solicitude e fervor, se exercita na santíssima vida e paixão do Senhor, achará nela com abundância tudo quanto lhe é útil e necessário, e escusará buscar coisa melhor fora de Jesus. Oh! se entrasse em nosso coração Jesus crucificado, quão depressa e perfeitamente seríamos instruídos!

7. O religioso cheio de fervor tudo suporta de boa vontade e executa o que lhe mandam. O relaxado e tíbio, porém, encontra tribulação sobre tribulação, sofrendo de toda parte angústias: é que ele carece da consolação interior e lhe é vedado buscar a exterior. O religioso que transgride a regra anda exposto a grande ruína. Quem busca a vida cômoda e menos austera, sempre estará em angústias, porque uma ou outra coisa sempre lhe desagrada.

8. Que fazem tantos outros religiosos que guardam a austera disciplina do claustro? Raro saem, vivem retirados, sua comida é parca, seu hábito grosseiro, trabalham muito, falam pouco, vigiam até tarde, levantam-se cedo, rezam muito, lêem com freqüencia e conservam-se em toda a observância. Olha como os cartuxos, os cistercienses, e os monges e monjas das diversas ordens se levantam todas as noites para louvar o Senhor. Vergonha, pois, seria, se tu fosses preguiçoso em obra tão santa, quando tamanha multidão de religiosos entoa a divina salmodia.

9. Oh! se nada mais tivesses que fazer senão louvar a Deus Nosso Senhor de coração e boca! Oh! se nunca precisares comer, nem beber, nem dormir, mas sempre pudesses atender aos louvores de Deus e aos exercícios espirituais! Então serias muito mais ditoso do que agora, sujeito a tantas exigências do corpo! Oxalá não existissem tais necessidades, mas houvesse só aquelas refeições que - ai! - tão raro gozamos!

10. Quando o homem chega ao ponto de não buscar sua consolação em nenhuma criatura, só então começa a gostar perfeitamente de Deus, e anda contente, aconteça o que acontecer. Então não se alegra pela abundância, nem se entristece pela penúria, mas confia inteira e fielmente em Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada perece nem morre, mas por quem vivem todas as coisas e a cujo aceno, com prontidão, obedecem.

11. Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta. Sem empenho e diligência, jamais alcançarás as virtudes. Se começares a ser tíbio, logo te inquietarás. Se, porém, procurares afervorar-te, acharás grande paz e sentirás mais leve o trabalho com a graça de Deus e o amor da virtude. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos vícios e às paixões que afadigar-se em trabalhos corporais. Quem não evita os pequenos defeitos pouco a pouco cai nos grandes. Alegrar-te-ás sempre à noite, se tiveres empregado bem o dia. Vigia sobre ti, anima-te e admoesta-te e, vivam os outros como vivem, não te descuides de ti mesmo. Tanto mais aproveitarás, quanto maior for a violência que te fizeres. Amém.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

terça-feira, 1 de julho de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXV)

 

113. Quando você tenta desobedecer a algum dos mandamentos divinos, como você se comporta? É especialmente no momento da tentação que a humildade é necessária. Toda vez que o diabo o tenta a cometer algum pecado grave, ele o tenta a se revoltar contra Deus, a desprezá-lo e a ofendê-lo.

114. Como você submete sua vontade à vontade de Deus nos momentos de adversidade, que são especialmente aqueles em que devemos nos humilhar, como nos diz o Espírito Santo pela boca de São Pedro: 'Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus' [1Pd 5,6]? Como todas as tribulações deste mundo são ordenadas por Deus, e as suas lhe são enviadas por Ele especialmente para humilhar o seu orgulho e mantê-lo na devida humildade, você realmente as recebe com a intenção de corresponder à intenção de Deus, dizendo com o Profeta: 'É bom para mim que Tu me tenhas humilhado' [Sl 118, 71]? 

O melhor meio de obrigar Deus a nos livrar de nossas tribulações é nos humilharmos, e o rei Davi testemunha isso por sua própria experiência: 'estava abismado na aflição e na ansiedade ... e o Senhor me salvou' [Sl 114,3.6]. Você já praticou esse meio de se humilhar em suas tribulações, protestando que as mereceu e as merece, mesmo que seja apenas por causa do seu orgulho? Deus envia adversidades para humilhá-lo, e Ele o humilha para que, a partir dessa humilhação, você possa aprender a humildade. Mas que fruto de humildade você colheu de todas as adversidades que teve até agora? Você pode dizer, como Moisés disse aos hebreus: 'Nós nos alegramos pelos dias em que Tu nos humilhaste' [Sl 89,15]?

115. Se você tem alguma qualidade boa, seja física ou espiritual, e se você fez alguma boa obra, você reconhece que tudo isso vem de Deus, atribuindo toda a glória a Deus como devida somente a Ele? 'Ao único Deus sejam dados honra e glória' [2Tm 1,17]. Nisso, diz São Paulo, discernimos o espírito de Deus, que é o espírito da humildade, do espírito do mundo, que é o espírito do orgulho, porque quem tem o espírito de Deus reconhece que tudo o que tem é simplesmente um dom de Deus: 'Agora, não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que vem de Deus, para que possamos conhecer as coisas que nos são dadas por Deus' [1Cor 2,12]. Mas de que serviria esse reconhecimento de que tudo vem de Deus, a não ser para referir todas as coisas a Ele e agradecer-lhe? Você agradece a Deus pelas muitas bênçãos que recebe constantemente dele - do fundo do seu coração, com verdadeira humildade, acreditando ser tão miserável que cairia em todos os pecados, e até mesmo no próprio inferno, se Deus não viesse em seu auxílio? 'Se o Senhor não me socorresse, minha alma em breve teria habitado no inferno' [Sl 93,17].

116. Nada é tão contrário à verdadeira humildade quanto buscar a própria estima no exercício das boas obras. Você às vezes faz o bem por motivos de respeito humano, a fim de ser visto, estimado? 'Cuidado' - diz o senhor - 'para não praticar a sua justiça diante dos homens, para ser visto por eles' [Mt 6, 1]. Você está simplesmente roubando a glória de Deus quando, dos dons que Ele lhe deu, reserva parte da glória para si mesmo. Examine as suas intenções; elas são puramente direcionadas à glorificação de Deus?

E admitindo que, ao fazer o bem, você não busca a estima dos homens, você às vezes faz isso para não perder as boas graças e favores dos outros, conformando-se ao espírito deles, que é viver de acordo com os costumes do mundo, esquecendo-se de Deus? Isso também é amar a glória do mundo mais do que a glória de Deus, e é uma falha que se opõe grandemente à humildade, e que foi condenada naqueles homens importantes entre os judeus que acreditavam em Cristo, mas por medo dos fariseus e por respeito à opinião deles não ousavam confessá-lo, 'porque amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus' [Jo 12,43].

117. Você tem talvez uma consciência tímida por causa de muitos escrúpulos? Se for esse o caso, examine-se e provavelmente descobrirá que a verdadeira razão dos seus escrúpulos reside no seu amor próprio, isto é, no seu orgulho. Você é indócil e não sabe como se submeter ao que seus diretores lhe dizem para fazer; e São Tomás ensina que isso é um efeito do orgulho, 'porque a docilidade é a bela filha da humildade e dispõe a alma à obediência' [2a 2æ, qu. xlviii; et qu. xlix, art. 3 ad 4]. Como é que, quando lemos a vida dos santos, não encontramos que eles eram agitados por esses escrúpulos? Os santos eram humildes, e onde há humildade, há também tranquilidade de espírito. Sabemos que muitas pessoas escrupulosas foram curadas de seus escrúpulos, que eram considerados quase incuráveis, por nenhum outro meio senão dizendo a Deus com todo o coração: 'Eu me acuso de orgulho; lamento meu orgulho e peço a vossa ajuda para corrigir meu grande orgulho'.

Mas se você perceber que é escrupuloso menos por indocilidade do que por covardia, peça conselho mais uma vez a São Tomás, que ensina que essa covardia também vem do orgulho, porque ao julgar nossa própria suficiência, colocamos nosso próprio julgamento em oposição ao dos outros [2a 2æ, qu. cxxxiii. art. 1]. Você deseja desfrutar da paz de uma consciência tranquila e também de certos consolos espirituais que são uma grande ajuda para fazer de boa vontade tudo o que é necessário para levar uma vida devota e ser cada vez mais fervoroso no serviço de Deus? Não posso lhe dar melhor conselho do que este: Entregue-se à humildade e Deus encherá a sua alma de consolo inefável. 'E meu espírito se alegrou' - diz a Santíssima Virgem em seu cântico; e ela acrescenta, para sua instrução, que essa exultação lhe foi enviada por Deus por causa de sua humildade: 'Porque Ele considerou a humildade da sua serva' [Lc 1,48].
 
118. Se você tem um desejo sincero de salvar a sua alma, deve tomar os meios que Deus ordenou para você, e o principal e mais essencial deles é a humildade, como mostra a Sagrada Escritura: 'Porque Tu salvarás o povo humilde' [Sl 33,10]. 'E Ele salvará os humildes de espírito' [Sl 17,28]. 'A glória sustentará os humildes de espírito' [Pv 29,23]. E como você estima essa humildade? Como você a pratica? Com que fervor você a pede a Deus? Você a considera um preceito ou apenas um conselho que você é livre para escolher ou rejeitar à vontade? A entrada no Paraíso não é apenas estreita, mas também baixa, por isso Jesus Cristo disse: 'A menos que vocês se tornem como crianças, não poderão entrar no reino dos Céus' [Mt 18,3]. E somente aquele que 'se humilhar' poderá entrar nesse reino [Mt 18,4].

Há sempre perigo na jornada rumo ao nosso lar celestial para aqueles que mantêm a cabeça erguida e é mais seguro mantê-la baixa. Esta é uma regra geral para todos. São João Crisóstomo nos adverte: 'Quando nosso Senhor disse: ‘Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração’, Ele não se dirigia apenas aos monges, mas a todas as classes de homens' [Lib. 3]. A humildade de coração não foi exigida por Jesus Cristo apenas aos religiosos, mas também aos seculares, fossem eles quem fossem e sem qualquer exceção.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sábado, 14 de junho de 2025

MEDITAÇÃO SOBRE O INFERNO


Todo o Inferno está nestas palavras de Jesus Cristo: 'Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno'.

1. O Inferno é a separação, a perda de Deus - 'Afasta-te de mim, pecador'. É assim que Deus repele para longe de si a alma pecadora. É a perda de Deus, a perda da suma beleza, da suma bondade, do sumo bem. Enquanto a nossa alma estiver presa no cárcere da carne, não poderá nunca compreender a imensidade desta desgraça que, na frase dos santos, constitui o inferno dos infernos.

2. O Inferno é a maldição de Deus - 'Afasta-te pecador maldito', é tal a maldição eficaz de um Deus todo-poderoso. Se é terrível a maldição de um pai, de uma mãe, o que será a maldição de Deus? Pecador maldito, maldito no corpo, maldito na alma. Olhos, língua, mãos, pés, inteligência, coração, vontade, tudo é maldito, porque tudo serviu de instrumento ao pecado.

3. O Inferno é o fogo - 'Afasta-te pecador maldito, para o fogo'. Quando os profetas falam do Inferno, logo se lhes apresenta à imaginação o mar, o mar sem limites e sem fundo, e os condenados, nadando e mergulhando neste abismo de fogo. O fogo os envolve, penetra-os, circula em suas veias, insinua-se até à medula dos ossos.

4. O Inferno é a eternidade  - 'Afasta-te pecador maldito, para o fogo'. A eternidade... quem pode compreendê-la! É um tempo que não acaba. Mil anos, milhões de anos, mil milhões de anos. Contai as gotas de água do oceano, os grãos de areia das praias, as folhas das árvores... a eternidade tem mais anos, mais séculos. Sempre! Nunca! Sempre queimar, sempre sofrer! Nunca o menor alívio, a menor esperança!

Se os condenados que estão no Inferno pudessem voltar à Terra, o que fariam? Procurariam outra vez a ocasião do pecado, as danças, os espetáculos, as tabernas, as casas de perdição? Não! Correriam para a igreja, ao pé do altar do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora, ao pé do confessor principalmente, para alcançar o perdão dos seus pecados. O que os condenados não podem mais, vós o podeis. Não estais no Inferno, mas talvez estejais no caminho do Inferno. Quanto antes, voltai para trás; talvez amanhã seja tarde.

(Excertos da obra 'O Pequeno Missionário', do Pe. Guilherme Vaessen, 1953)