segunda-feira, 30 de maio de 2022

A CRISE DA IGREJA E AS MENSAGENS DE FÁTIMA

É certeza definida para qualquer católico consciente e minimamente imbuído das premissas da fé cristã o enorme impacto e magnitude da crise atual da Santa Igreja. A perda de referências da genuína civilização cristã impôs - e impõe duramente hoje - uma infinidade de erros, deturpações, desvios, inconsistências, heresias e mesmo blasfêmias delirantes aos rumos e perspectivas da Igreja. Neste contexto, não bastam o ateísmo, o agnosticismo ou o panteísmo de leigos consagrados de corpo e alma ao delirium tremens. Não bastam sacerdotes e religiosos amalgamados pela miséria dos instintos. Não bastam bispos e cardeais revestidos de seus majestosos sepulcros caiados. Não basta um papa (ou papas) incrédulos ou contraditórios. É preciso o caos completo e uníssono: é preciso o espólio da iniquidade universal para o reinado do Anticristo.

Neste contexto - neste caminho de imersão no caos crescente - houve de tudo, pois a virulência do redemoinho impõe a completa turbulência dos vórtices. Num arrimo inicial, o arcebispo Lefebvre consagrou quatro bispos em Écône, opondo-se francamente a um mandato papal e violando, desta forma, a Constituição Divina da Igreja relativa à sucessão apostólica e descumprindo hereticamente o ensinamento dogmático do Vaticano I sobre o primado papal de jurisdição. Em oposição aos atos de Lefebvre, ruminou-se todo tipo de sedevacantismo. Mais recente, a renúncia do papa Bento XVI alimentou de súbito e de forma extrema o caudal da rebentação, não menos que o eufemismo teológico do seu sucessor, o papa Francisco. 

Neste redemoinho crescente, multiplicaram-se os fluxos divergentes que propuseram, em diferentes momentos, cenários como a deposição imediata de Francisco pelo Colégio dos Cardeais; a não validade do pontificado de Francisco; a não validade da abdicação de Bento XVI e outras tantas digressões absurdas e fantasiosas. De uma certa maneira, parte da intelectualidade católica - mesmo a tradicional - pressupõe que Francisco e Bento XVI são promotores de teologias distintas e não que constituem consequências óbvias de uma mesma seiva e de uma mesma raiz. Francisco e Amores Laetitia não seriam possíveis sem a teologia de Bento XVI. Mas, de forma alguma, seria possível conceber que sejam ambos pontífices ilegítimos. Não o são.

Quando você se encontra mergulhado numa corrente tempestuosa que o arrasta através de uma garganta rochosa profunda, o que se pode fazer? Agarrar-se aos vórtices que o submergem como fardo inútil? Ou buscar um galho ou um tronco no desvario das águas, que possa ser instrumento de segurança, proteção e guia potencial para um subsequente refúgio nas margens? Esse é o desafio da cristandade atual e é miseravelmente doloroso constatar que a enorme maioria dos católicos há muito optou por fazer a primeira opção, sejam porque não querem remar contra a corrente, sejam porque acham que espernear sofregamente podem livrá-los da má sorte final; em ambos os casos, o fim será o mesmo: vão morrer afogados e esmagados pelas águas das heresias e do indiferentismo religioso. 

O que poderia ser esse tronco de salvação e por que, com toda a certeza, é possível acessá-lo nesta corredeira descomunal? A resposta é absolutamente simples: este tronco de salvação nos foi legado pelos Céus num ermo vilarejo de Portugal no início do século XX, pelas impressionantes mensagens de Nossa Senhora de Fátima. Aceitar e fazer cumprir os pedidos de Nossa Senhora de Fátima é a nossa tábua de salvação, forjada pelos seguintes pontos: 

➤ a perseverança inabalável nas verdades e na atualidade do Evangelho de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador e ao firme compromisso aos sacramentos da Igreja, em contraposição à perda generalizada da fé e a uma era de apostasia universal. Para isso, Ela se nos apresenta como o modelo a ser seguido – Maria, a Virgem fiel – conclamando-nos, em um apelo preocupante e aflito, à consagração ao seu Imaculado Coração;

➤ a necessidade de conversão plena e imediata pelos caminhos da oração (particularmente o Rosário), o jejum e a penitência, fazendo uso da confissão frequente, intensa vida eucarística, fuga do pecado a qualquer preço e vida íntima na graça de Deus, em contraposição a uma civilização ateia e materialista, forjada na adoração às falsas divindades do poder, do dinheiro e do prazer;

➤ a conscientização da gravidade dos tempos atuais, do reinado do pecado e da apostasia generalizada, em contraponto à perda da fé e ao desmoronamento da civilização cristã;

➤ o preço terrível que a Igreja e toda a humanidade haverão de pagar por forjarem, por covardia, malícia ou indiferentismo, um mundo incendido por novas eras, novas ciências, novas seitas e novas ideologias, que visam corromper o homem como criatura divina e prescrevem civilizações e sociedades alicerçadas por uma completa rejeição a Deus.

O que você deve fazer? Assumir o compromisso de ler  integralmente e com esmerado espírito de recolhimento interior as mensagens de Fátima (ver, por exemplo, Fátima em 100 Fatos e Fotos, neste blog) e colocar-se como náufrago da tormenta despenhadeiro abaixo, diante deste tronco de salvação possível. O que você tem feito à luz destas revelações (recitação do terço, devoção dos primeiros sábados, comunhão frequente, oração pela paz do mundo ou pelas almas do Purgatório, etc)? Como você se insere no contexto dos pedidos da Virgem de Fátima? Como leitor curioso ou como legado de vida cristã? Nessa resposta, nesta posição de combate ou de indiferentismo, está ou não ao alcance de suas mãos o tronco de salvação - da sua alma e de muitos outros, ainda que sejam todos apenas um pequeno resto. A alternativa é o castigo final tão claramente previsto em Fátima: o mergulho no abismo das águas ensandecidas por tantas heresias e ideologias diabólicas que buscam submergir a todos num desvario sem fim...

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (IX)

 

Santíssima Trindade, que sois um só Deus, tende piedade de nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

domingo, 29 de maio de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Por entre aclamações Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta' (Sl 46)

 29/05/2022 - Solenidade da Ascensão do Senhor 

27. A ASCENSÃO DO SENHOR


Antes de subir aos Céus, Jesus manifesta a seus discípulos (de ontem e de sempre) as bases do verdadeiro apostolado cristão, a ser levado a todos os povos e nações: 'e no seu nome (de Jesus) serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém' (Lc 24, 47). Ratificando as mensagens proféticas do Antigo Testamento, Nosso Senhor imprime diretamente no coração humano os sinais da fé sobrenatural e da esperança definitiva na Boa Nova do Evangelho, que nasce, se transcende e se propaga com a Igreja de Cristo na terra.

Antes de subir aos Céus, Jesus nos fez testemunhas da esperança: 'Vós sereis testemunhas de tudo isso' (Lc 24, 48). Pela ação de Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, pela manifestação da 'Força do Alto', os apóstolos tornar-se-iam instrumentos da graça e da conversão de muitos povos e nações. Na mesma certeza, somos continuadores dessa aliança de Deus com os homens, na missão de semear a Boa Nova do Evangelho nos terrenos áridos da humanidade pecadora para depois colher, a cem por um, os frutos da redenção nos campos eternos da glória.

Como missionários da graça, 'Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança como santos' (Ef 1, 18). E Jesus se eleva diante dos seus discípulos e sobe para os Céus. Jesus vai primeiro porque é o Caminho e para preparar para cada um de nós 'as muitas moradas da casa do Pai', levando consigo a nossa humanidade, tornando-nos participantes do seu mistério pascal e herdeiros de sua glória.

Na solenidade da Ascensão do Senhor, a Igreja comemora a glorificação final de Jesus Cristo na terra, como o Filho de Deus Vivo e, ao mesmo tempo, imprime na nossa alma o legado cristão que nos tornou, neste dia, testemunhas da esperança eterna em Cristo e herdeiros dos Céus.

sábado, 28 de maio de 2022

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (VIII)

 

Deus Espírito Santo, tende piedade de nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

NO LIMIAR DO SOBRENATURAL (XII)

O Cumbre Vieja é vulcão mais ativo das Ilhas Canárias/Espanha, com erupções registradas em 1585, 1646, 1677, 1712, 1949 e 1971. Mas foi em 2021 que o vulcão manifestou a sua erupção mais intensa, que se prolongou por 85 dias e oito horas, entre 19 de setembro e 13 de dezembro de 2021. Esta intensa e continuada atividade vulcânica resultou na destruição de 1.676 edifícios, dos quais 1.345 eram de uso residencial, sendo que as lavas liberadas cobriram cerca de 1.241 hectares de terreno, dos quais 370 hectares correspondiam a áreas cultivadas.


Após a erupção, cientistas do Instituto Vulcanológico das Ilhas Canárias encontraram pequenas manchas vermelhas de enxofre líquido, que designaram como 'sangue das artérias do vulcão', além de zonas de áreas amareladas, características do enxofre no estado sólido. Além disso, também foram encontrados cristais vulcânicos de enxofre, que se formam quando diferentes gases, como o dióxido de enxofre (SO₂) e o sulfeto de hidrogênio (H₂S), reagem entre si, depositando cristais de enxofre nativo puro em locais de emissão concentrada destes gases.



Muito menos divulgado, entretanto, foi o fato de que a enorme devastação provocada pela erupção, particularmente na área limítrofe à cratera, passou completamente ao largo de um monumento e uma imagem da Virgem de Fátima erigida no local, a apenas  500 metros da cratera do vulcão. Nos dias 13 de maio e 13 de outubro de cada ano, são rezadas missas e o Rosário em honra de Nossa Senhora de Fátima diante o pequeno altar de granito ao pé do monumento. A imagem foi abençoada em 1954 em Portugal e percorreu toda a ilha antes de ser instalada nas vertentes do vulcão. As lavas da erupção de 2021 foram contidas a oitenta metros do cemitério local e a cerca de 500 metros da igreja de São Nicolás. 

sexta-feira, 27 de maio de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (VIII)

Carta Encíclica PASCENDI DOMINICI GREGIS [08 de setembro de 1907]

Papa Pio X (1903 - 1914)

sobre os erros do modernismo


Introdução

A missão, que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo o desvelo o depósito da fé transmitida aos santos, repudiando as profanas novidades de palavras e as oposições de uma ciência enganadora. E, na verdade, esta providência do Supremo Pastor foi em todo o tempo necessária à Igreja Católica; porquanto, devido ao inimigo do gênero humano nunca faltaram homens de perverso dizer (At 20,30), vaníloquos e sedutores (Tt 1,10), que caídos eles em erro arrastam os mais ao erro (2 Tm 3,13). Contudo há mister confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto já não Nos é lícito calar para não parecer faltarmos ao Nosso santíssimo dever, e para que se Nos não acuse de descuido de nossa obrigação, a benignidade de que, na esperança de melhores disposições, até agora usamos.

E o que exige que sem demora falemos, é antes de tudo que os fautores do erro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.

Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audácia sacrílega, rebaixam à craveira de um puro e simples homem.

Pasmem, embora homens de tal casta, que Nós os ponhamos no número dos inimigos da Igreja; não poderá porém, pasmar com razão quem quer que, postas de lado as intenções de que só Deus é juiz, se aplique a examinar as doutrinas e o modo de falar e de agir de que lançam eles mão. Não se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, é por assim dizer nas próprias veias e entranhas dela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que, não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes que são a Fé e suas fibras mais vitais, é que meneiam eles o machado. 

Batida pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma verdade há que não intentem contaminar. E ainda vão mais longe; pois pondo em obra o sem número de seus maléficos ardis, não há quem os vença em manhas e astúcias: porquanto, fazem promiscuamente o papel ora de racionalistas, ora de católicos, e isto com tal dissimulação que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e sendo ousados como os que mais o são, não há consequências de que se amedrontem e que não aceitem com obstinação e sem escrúpulos. Acrescente-se ainda, coisa aptíssima para enganar o ânimo alheio, uma operosidade incansável, uma assídua e vigorosa aplicação a todo o ramo de estudos e, o mais das vezes, a fama de uma vida austera. Finalmente, e é isto o que faz desvanecer toda esperança de cura, pelas suas mesmas doutrinas são formadas numa escola de desprezo a toda autoridade e a todo freio; e, confiados em uma consciência falsa, persuadem-se de que é amor de verdade o que não passa de soberba e obstinação. Na verdade, por algum tempo esperamos reconduzi-los a melhores sentimentos e, para este fim, a princípio os tratamos com brandura, em seguida com severidade e, finalmente, bem a contragosto, servimo-nos de penas públicas.

Mas vós bem sabeis, Veneráveis Irmãos, como tudo foi debalde; pareceram por momento curvar a fronte, para depois reerguê-la com maior altivez. Poderíamos talvez ainda deixar isto desapercebido se tratasse somente deles; trata-se porém das garantias do nome católico. Há, pois, mister quebrar o silêncio, que ora seria culpável, para tornar bem conhecidas à Igreja esses homens tão mal disfarçados.

E visto que os modernistas (tal é o nome com que vulgarmente e com razão são chamados) com astuciosíssimo engano costumam apresentar suas doutrinas não coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, afim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato estão firmes e constantes, convém, Veneráveis Irmãos, primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos... 

Versão Completa Disponível em: 

Consequência direta dessa encíclica foi a promulgação pelo papa  São Pio X  do chamado Juramento Anti-Modernista, como uma IURISIURANDI FORMULA, incluído no Motu Proprio SACRORUM ANTISTITUM de 01/09/1910, estabelecido então em grau mandatório de obrigação de concordância e cumprimento por parte de todos os clérigos, teólogos e docentes da Santa Igreja, até ser rescindido em 1967 pelo papa Paulo VI (tradução em português abaixo).

JURAMENTO ANTI-MODERNISTA
(Iurisiurandi Formula)

Eu, N..., firmemente abraço e aceito cada uma e todas as definições feitas e declaradas pela autoridade inerrante da Igreja, especialmente estas verdades principais que são diretamente opostas aos erros deste dia.

Antes de mais nada eu professo que Deus, a origem e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão a partir do mundo criado (cf Rm 1,90), ou seja, dos trabalhos visíveis da Criação, como uma causa a partir de seus efeitos, e que, portanto, a sua existência também pode ser demonstrada.

Segundo: eu aceito e reconheço as provas exteriores da revelação, ou seja, os atos divinos e especialmente os milagres e profecias como os sinais mais seguros da origem divina da religião cristã e considero estas mesmas provas bem adaptadas à compreensão de todas as eras e de todos os homens, até mesmo os de agora.

Terceiro: eu acredito com fé igualmente firme que a Igreja, guardiã e mestra da Palavra Revelada, foi instituída pessoalmente pelo Cristo histórico e real quando Ele viveu entre nós, e que a Igreja foi construída sobre Pedro, o príncipe da hierarquia apostólica, e seus sucessores pela duração dos tempos.

Quarto: eu sinceramente mantenho que a Doutrina da Fé nos foi trazida desde os Apóstolos pelos padres ortodoxos com exatamente o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim sendo, eu rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente do que a Igreja antes manteve. Condeno também todo erro segundo o qual, no lugar do divino depósito que foi confiado à esposa de Cristo para que ela o guardasse, há apenas uma invenção filosófica ou produto de consciência humana que foi gradualmente desenvolvida pelo esforço humano e continuará a se desenvolver indefinidamente.

Quinto: eu mantenho com certeza e confesso sinceramente que a fé não é um sentimento cego de religião que se alevanta das profundezas do subconsciente pelo impulso do coração e pela moção da vontade treinada para a moralidade, mas um genuíno assentimento da inteligência com a verdade recebida oralmente de uma fonte externa. Por este assentimento, devido à autoridade do Deus supremamente verdadeiro, acreditamos ser verdade o que foi revelado e atestado por um Deus pessoal, nosso Criador e Senhor.

Além disso, com a devida reverência, eu me submeto e adiro com todo o meu coração às condenações, declarações e todas as proibições contidas na encíclica Pascendi [carta encíclica Pascendi Dominici Gregis, de 08 de setembro de 1907] e no decreto Lamentabili [decreto Lamentabili Sine Exitu, de 03 de julho de 1907], especialmente as que dizem respeito ao que é conhecido como a história dos dogmas.

Também rejeito o erro daqueles que dizem que a Fé mantida pela Igreja pode contradizer a história, e que os dogmas católicos, no sentido em que são agora entendidos, são irreconciliáveis com uma visão mais realista das origens da Religião cristã.

Também condeno e rejeito a opinião dos que dizem que um cristão erudito assume uma dupla personalidade - a de um crente e ao mesmo tempo a de um historiador, como se fosse permissível a um historiador manter coisas que contradizem a fé do crente, ou estabelecer premissas que, desde que não haja negação direta dos dogmas, levariam à conclusão de que os dogmas são falsos ou duvidosos.

Do mesmo modo, eu rejeito o método de julgar e interpretar a Sagrada Escritura que, afastando-se da Tradição da Igreja, da analogia da fé e das normas da Sé Apostólica, abraça as falsas representações dos racionalistas e sem prudência ou restrição adota a crítica textual como norma única e suprema.

Além disso, eu rejeito a opinião dos que mantém que um professor ensinando ou escrevendo sobre um assunto histórico-teológico deve antes colocar de lado qualquer opinião preconcebida sobre a origem sobrenatural da tradição católica ou a promessa divina de ajudar a preservar para sempre toda a Verdade Revelada; e que ele deveria então interpretar os escritos dos Padres apenas por princípios científicos, excluindo toda autoridade sagrada, e com a mesma liberdade de julgamento que é comum na investigação de todos os documentos históricos profanos.

Finalmente, declaro que sou completamente oposto ao erro dos modernistas, que mantém nada haver de divino na tradição sagrada; ou, o que é muito pior, dizer que há, mas em um sentido panteísta, com o resultado de nada restar a não ser este fato simples - a colocar no mesmo plano com os fatos comuns da história - o fato, precisamente, de que um grupo de homens, por seu próprio trabalho, talento e qualidades continuaram ao longo dos tempos subsequentes uma escola iniciada por Cristo e por seus Apóstolos.

[Em posição de joelhos e estendendo-se a mão direita sobre os Santos Evangelhos, conclui-se o juramento, dizendo:]

Prometo que manterei todos estes artigos fielmente, inteiramente e sinceramente e os guardarei inviolados, sem me desviar deles de nenhuma maneira por palavras ou por escrito. Isto eu prometo, assim eu juro, para isso Deus me ajude, e os Santos Evangelhos de Deus que agora toco com minha mão.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (VII)

Deus Filho Redentor do Mundo, tende piedade de nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Ó Jesus, meu divino Esposo! Que eu jamais perca a segunda veste de meu batismo! Tira-me desse mundo antes que cometa a mais leve falta voluntária. Que sempre procure e encontre só a ti. Que as criaturas nada sejam para mim, e eu nada seja para elas, mas que Tu, meu Jesus, seja tudo!... Não possam as coisas da terra jamais conturbar minha alma. Nada conturbe minha paz! Jesus, não te peço senão a paz e também o amor, o amor infinito, sem outro limite senão Tu mesmo... Amor que já não seja eu, mas que sejas Tu, meu Jesus. Por ti, Jesus, morra eu mártir, o martírio do coração ou do corpo, antes, de ambos... Faze cumprir meus votos em toda a sua perfeição, e leva-me a compreender o que uma esposa tua deve ser. Faze que nunca seja molesta à comunidade e que ninguém se desvele por mim; que eu seja tida, espezinhada, qual grãozinho de areia que a ti pertença, Jesus. Faça-se em mim a tua vontade de uma maneira perfeita. Possa alcançar a mansão que antecipadamente me foste preparar... Deixa-me, Jesus, salvar muitas almas; que no dia de hoje não seja condenada nenhuma. e sejam salvas todas as almas do purgatório... Perdoa-me, Jesus, se digo que não devo dizer. Só quero alegrar-te e consolar-te'.

(Santa Teresa de Lisieux)

quarta-feira, 25 de maio de 2022

AS DUAS FACES DA FÉ

A fé tem um só nome, mas duas maneiras de ser. Há um gênero de fé que se relaciona com os ensinamentos de Cristo, inclui a elevação de uma pessoa e sua concordância sobre determinado assunto; diz respeito ao interesse pessoal, conforme disse o Senhor: 'Quem ouve minhas palavras e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não incorre em condenação' (Jo 5,24); ou ainda: 'Quem crê no Filho não será condenado...'; 'Aquele que crê no Filho tem a vida eterna' (Jo 3,18.36).

Ó bondade imensa de Deus para com os homens! Com efeito, os justos foram agradáveis a Deus pelo trabalho de muitos anos. Mas aquilo que alcançaram entregando-se corajosamente e por muitos anos ao serviço de Deus, isto mesmo em uma simples hora, Jesus te concede. Porque se creres que Jesus Cristo é o Senhor e que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo e levado ao paraíso por aquele que nele introduziu o ladrão. E não hesites em acreditar ser isto possível, pois quem salvou o ladrão neste santo Gólgota, pela fé de uma só hora, pode também salvar-te a ti, se creres.

O outro gênero é a fé que Cristo concede por graça especial. Pois a uns pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria, a outros a palavra da ciência, segundo o mesmo Espírito. A outros a fé, no mesmo Espírito, a outros o dom de curar (1Cor 12,8-9). Este carisma da fé dado pelo Espírito não se relaciona apenas com a palavra; torna ainda capaz de realizar coisas acima das forças humanas. Quem tiver uma fé assim, dirá a esta montanha: 'Transporta-te daqui para lá, e ela irá' (Mt 17,20). Quando, pois, pela fé, alguém disser isto, crendo que acontecerá sem hesitar em seu coração, então é sinal de que recebeu esta graça.

Dela se disse: 'Se tiverdes fé como um grão de mostarda' (Mt 17,20). Como o grão de mostarda, tão pequenino, possui uma força de fogo, e semeado em estreito pedaço de terra produz grandes ramos que, depois de crescidos, podem dar sombra às aves do céu, assim também, num abrir e fechar de olhos, a fé realiza as maiores coisas na pessoa. Porque lhe dá uma ideia sobre Deus e o vê tanto quanto é capaz, inundada pela luz da fé. Percorre os confins da terra; e antes da consumação do mundo, já prevê o juízo e a entrega das recompensas prometidas.

Guarda então a fé que de ti depende e que te leva ao Senhor; para que recebas de suas mãos também aquela que age muito além das forças humanas.

(Das catequeses de São Cirilo de Jerusalém)

terça-feira, 24 de maio de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: PODER, SABEDORIA E BELEZA DE DEUS


Deus se revela pouco a  pouco à alma interior. Dá-lhe um vislumbre do Poder e da Sabedoria com os quais Ele governa o mundo. Suas mãos tem a robustez de um trabalhador vigoroso e a flexibilidade de um artista genial. Nada escapa dessas mãos divinas e nada lhe resiste. Elas tudo governam, homens e coisas, para onde querem. Maravilhas procedem dessas mãos, que são tão diversas como as pedras preciosas que as adornam. 

A alma interior está ciente de como opera o Divino Trabalhador em certas almas, das obras primas que sabe extrair do barro humano. E a alma fica tomada de admiração diante de tudo isso. Afinal, o que poderia ser mais belo, meu Deus, do que a visão do amor divino confrontando-se com uma alma? Que artifícios, que encantos e, às vezes, é verdade, que impulsos tremendos para libertá-la de tudo! Que paciência para purificá-la completamente, que generosidade e que estratagemas para embelezá-la, que ardor para abraçá-la, que influxo poderoso para elevá-la acima de tudo, até de si mesma, para amá-la sem medidas e doutriná-la sem receios... O que pode ser mais belo do que uma alma santa? Não foi Deus quem assim a criou pelo poder de sua graça? Bem-aventurado aquele que pode ver as mãos de Deus trabalhando neste mundo!

Basicamente, a matéria prima desta obra divina é a mesma. No entanto, o estado inicial desta matéria é essencialmente distinto, dependendo de cada caso. Há almas que nunca conheceram o pecado, pelo menos o pecado grave. Há outras que foram submetidos à sua tirania, mas por pouco tempo. Finalmente, há aquelas que desceram todos os graus do abismo e nele permaneceram por longos e tristes anos. Mas isso não afeta o poder divino que tudo domina. Deus pode gerar santos tanto de um pecador obstinado com de uma alma inocente, e às vezes Ele assim o faz. Não há nada mais belo do que contemplar as mãos divinas em ação. Elas exploram a lama humana e daí lavam, purificam, esculpem, moldam, desbastam, transformam. E operam exteriormente mas, especialmente, por dentro. A matéria prima é a alma. Mesmo quando Deus usa um outro instrumento, na verdade é a própria alma quem trabalha com Ele e para Ele.

É maravilhoso ver como as almas se transformam pouco a pouco sob a ação divina. São como tantas outras maravilhas que saem dos dedos hábeis do Divino Trabalhador, como pedras preciosas destinadas a adornar a Jerusalém Celeste, tão numerosas e tão diversas em sua forma e em suas nuances, tudo de uma beleza indescritível. Aqui, nesta terra, conhecemos apenas algumas destas maravilhas e as conhecemos mal. Para que a sua beleza seja realmente revelada, é necessária a luz do céu. E só então poderíamos admirar toda a riqueza e todas as graças emanadas de mãos tão ternas e poderosas.

Deus é soberanamente Belo e a própria Beleza imanente, o Ser único que nada carece de complemento, que sempre foi infinitamente perfeito e em quem tudo é ordem, unidade, simplicidade, pois todas as perfeições possíveis e imagináveis ​​formam nele uma única e mesma realidade em sua essência. Deus encontra no conhecimento que Ele tem de si mesmo um prazer infinito. Ele é o eterno admirador de sua eterna e própria Beleza e, assim, é a fonte verdadeira e modelo de toda beleza.

Quando me deixo distrair de Vós, ó meu Deus, parece-me que deixo a região da luz para adentrar na dimensão das trevas. Tudo o que não sois Vós macula e fere os meus olhos! Para quem Vos contemplou ainda que uma só vez  em luz inacessível, tudo o mais está corrompido e disforme! Mesmo as criaturas que melhor possam ser vossos reflexos tornam-se dolorosas de se conviver. Porque não podem ser como Vós, ó meu Deus! E é a Vós que a alma quer contemplar cada vez mais, cada vez mais profundamente, murmurando repetidas vezes as doces palavras de Santo Agostinho: 'Ó Beleza sempre antiga e sempre nova, eu te conheci tarde demais, eu te amei tarde demais!'

Sim, ó meu Deus, Vós sois toda Bondade, toda Beleza e toda Graça. Vós criastes muitas criaturas belas e, no entanto, a beleza delas não pode nem de longe ser comparada à vossa. Todo bem e tudo o que é belo emana de Vós. E aquilo que dais, não se perde, porque tudo possuís infinitamente. Fazei-me compreender, a mim que almejo ser feliz, que toda felicidade e toda alegria emanam de Vós. E que eu aprenda a ir até Vós, para impregnar-me da vossa Beleza, para alimentar-me com a vossa Bondade, para alegrar-me com a vossa Alegria e para deleitar-me sem medidas da vossa Felicidade! Porque tudo isso é possível, tudo isso é verdade, tudo isso é necessário: 'Amarás...' e, assim, serei bom com a vossa Bondade, serei belo com a vossa Beleza, serei feliz com a vossa Felicidade. Ó meu Deus, que isso seja agora, agora e sempre!

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

VERSUS: SOBRE A BELEZA FEMININA

1. Não tenhas ciúme da mulher que repousa no teu seio, para que ela não empregue contra ti a malícia que lhe houveres ensinado. 

2. Não entregues tua alma ao domínio de tua mulher, para que ela não usurpe tua autoridade e fiques humilhado. 

3. Não lances os olhos para uma mulher leviana, para que não caias em suas ciladas.

4. Não frequentes assiduamente uma dançarina, e não lhe dês atenção, para que não pereças por causa de seus encantos.

5. Não detenhas o olhar sobre uma jovem, para que a sua beleza não venha a causar tua ruína. 

6. Nunca te entregues às prostitutas, para que não te percas com os teus haveres. 

7. Não lances os olhos daqui e dali pelas ruas da cidade, não vagueies pelos caminhos. 

8. Desvia os olhos da mulher elegante, não fites com insistência uma beleza desconhecida. 

9. Muitos pereceram por causa da beleza feminina, e por causa dela inflama-se o fogo do desejo. 

10. Toda mulher que se entrega à devassidão é como o esterco que se pisa na estrada. 

11. Muitos, por haver admirado uma beleza desconhecida, foram condenados, pois a conversa dela queima como fogo. 

12. Nunca te sentes ao lado de uma estrangeira, não te ponhas à mesa com ela; 

13. não a provoques a beber vinho, para não acontecer que teu coração por ela se apaixone, e que pelo preço de teu sangue caias na perdição.

(Eclesiástico 9, 1-13)


1. Vós, também, ó mulheres, sede submissas aos vossos maridos. Se alguns não obedecem à palavra, serão conquistados, mesmo sem a palavra da pregação, pelo simples procedimento de suas mulheres,

2. ao observarem vossa vida casta e reservada. 

3. Não seja o vosso adorno o que aparece externamente: cabelos trançados, ornamentos de ouro, vestidos elegantes; 

4. mas tende aquele ornato interior e oculto do coração, a pureza incorruptível de um espírito suave e pacífico, o que é tão precioso aos olhos de Deus.

(I Pedro 3, 1-4)

domingo, 22 de maio de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem!' (Sl 66)

 22/05/2022 - Sexto Domingo da Páscoa

26. 'A MINHA PAZ VOS DOU' 


Neste Sexto Domingo da Páscoa, somos chamados a viver plenamente a presença de Jesus Ressuscitado em nossas vidas, como testemunhas da fé e da fidelidade às suas Santas Palavras: 'Se alguém me ama, guardará a minha palavra' (Jo 14, 23). Eis aí o legado de Jesus aos seus discípulos: a graça e a salvação são frutos do amor, que é manifestado em plenitude, no despojamento do eu e na estrita submissão à vontade do Pai: 'Desci do Céu não para fazer a minha vontade, mas sim a d’Aquele que me enviou' (Jo 6, 38) e 'Amai ao Senhor vosso Deus com todo vosso coração, com toda vossa alma e com todo vosso espírito. Este é o maior e o primeiro dos mandamentos' (Mt 22, 37-38).

A graça nasce, manifesta-se e se alimenta do nosso amor a Deus, pois 'quem não me ama, não guarda a minha palavra ' (Jo 14, 24). Mas este amor terá de ser libertado do mero sentimento arraigado às mazelas humanas para ser transformado em um amor espiritual sem medidas, desapegado dos valores mundanos. Este amor não provém dos sentimentos efêmeros, nem dos sentidos, nem das paixões desregradas, nem dos abismos volúveis das sensibilidades e das vontades humanas.

Este amor não se alimenta da paz do mundo, mas da paz que emana do próprio Coração de Deus: 'Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo.' (Jo 14, 27). Na paz de Deus, na confiança absoluta às divinas promessas, não há porque se perturbar ou se intimidar a fragilidade do pobre coração humano. A presença permanente do Cristo Ressuscitado em nossas vidas vem por meio da manifestação do Espírito Santo, o Defensor, conforme as palavras de Jesus: 'o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito' (Jo 14, 26).

Sob a ação do Espírito Santo, o amor humano pode trilhar livremente o caminho da santificação, até o impossível, até os limites de um despojamento absoluto do próprio ser para a plena manifestação em si da glória de Deus, quando enfim, 'o meu Pai o amará, e nós (o Pai, o Filho e o Espírito Santo) viremos e faremos nele a nossa morada' (Jo 14, 23).

sábado, 21 de maio de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXXII)

 

Capítulo XXXII

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados de uma Vida de Prazer e de Conforto - Venerável Francisca de Pamplona e o Homem Mundano - Santa Elisabeth da Hungria e a Alma da sua Mãe 

Em nossos dias, há cristãos que são totalmente alheios à cruz e à mortificação de Jesus Cristo. Sua vida adocicada e sensual consiste apenas em uma sequência de prazeres; temem tudo o que é dado ao sacrifício; dificilmente observam as leis restritas do jejum e da abstinência prescritas pela Igreja. Uma vez que não se submetem a nenhuma penitência neste mundo, que reflitam sobre o que lhes será infligido no próximo. É certo que nesta vida mundana não fazem nada além de acumular dívidas. Como se omitem em fazer penitência, nenhuma parte da dívida é paga, e chega-se então a um montante assustador à imaginação. 

A venerável serva de Deus, Francisca de Pamplona, que foi favorecida com diversas visões do Purgatório, certa vez viu um homem mundano que, embora fosse um cristão razoavelmente bom, passou cinquenta e nove anos no Purgatório por causa da sua busca sempre por comodidade e conforto. Outro passou ali trinta e cinco anos pelo mesmo motivo; um terceiro, que tinha uma paixão muito forte pelo jogo, ficou detido nessa prisão por sessenta e quatro anos. Infelizmente esses cristãos imprudentes permitiram que as suas dívidas permanecessem diante de Deus e muitas delas, que poderiam tão facilmente ter pago por obras de penitência, tiveram que ser pagas depois por anos de tortura. 

Se Deus é severo para com os ricos e os que buscam prazeres do mundo, não o será menos para com os príncipes, magistrados, pais e para todos aqueles que têm o encargo das almas e autoridade sobre os outros. Um julgamento particularmente severo, diz Ele mesmo, será para aqueles que governam (Sb 6,6). Laurence Surius relata [na obra Merveilles já citada previamente] como uma ilustre rainha, após sua morte, deu testemunho dessa verdade. Na Vida de Santa Elisabeth, Duquesa da Turíngia, conta-se que esta serva de Deus perdeu a mãe, Gertrudes, Rainha da Hungria, por volta do ano 1220. Com o espírito de uma santa filha cristã, deu abundantes esmolas, redobrou-se em orações e mortificações e esgotou todos os recursos da sua caridade para o alívio dessa querida alma. Mas Deus revelou a ela que isso ainda não era o bastante. 

Uma noite, a  falecida apareceu para ela com um semblante triste e definhado; colocou-se de joelhos ao lado da cama e disse-lhe, chorando: 'Minha filha, você vê a seus pés a sua mãe sobrecarregada de sofrimento. Venho implorar-vos que multipliqueis os vossos sufrágios, para que a Divina Misericórdia me livre dos terríveis tormentos que padeço. Ó quão são dignos de pena aqueles que exercem autoridade sobre os outros... Expio agora as faltas que cometi no trono. Ó minha filha, rogo-te pelas dores que suportei ao trazer-te ao mundo, pelos cuidados e ansiedades que me custou a tua educação, conjuro-te a livrar-me dos meus tormentos'. Elizabeth, profundamente emocionada, levantou-se de imediato e fez, a partir de então, severas penitências físicas, implorando a Deus, entre lágrimas, que tivesse misericórdia da alma de sua mãe, Gertrudes, e que assim rezaria até obter a sua libertação. As suas orações foram ouvidas.

Observemos aqui que, no exemplo anterior, fala-se apenas do caso de uma rainha; quão mais severamente serão julgados e tratados os reis, os magistrados e todos os superiores cuja responsabilidade e influência sobre outros homens são muito maiores!

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A IGREJA CATÓLICA É UNA E INTOLERANTE (III)

'Sempre será mais prudente gritar antes de ser ferido. Não adianta gritar uma vez que se está ferido, especialmente se alguém está mortalmente ferido. Fala-se de impaciência, mas os bons historiadores sabem muito bem que as tiranias muitas vezes foram possíveis porque o os cidadãos agiram tarde demais. É quase sempre primordial resistir à tirania antes que ela exista. Não vale a pena dizer, com otimismo desapegado, que a coisa ainda está indefinida. Um golpe de machado só pode ser evitado enquanto ainda está no ar'.

('Eugenia e Outras Desgraças' - G.K. Chesterton)


'Incomoda-te ferir, criar divisões, demonstrar intolerância... e vais transigindo em posições e pontos (não são graves, garantes-me!) que têm consequências nefastas para muitos. Desculpa a minha sinceridade: com esse modo de atuar, tu, a quem tanto incomoda a intolerância, cais na intolerância mais néscia e prejudicial - a de impedir que a verdade seja proclamada'.

(Sulco, São Josemaria Escrivá)

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (VI)

 

Deus Pai do Céu, tende piedade de nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)


quinta-feira, 19 de maio de 2022

SOBRE O APEGO À REPUTAÇÃO


As pessoas que são frágeis e sensíveis em relação à sua reputação assemelham-se às que, ao mais leve sinal de incômodo, tomam medicamentos, pois pensam que assim mantêm a sua saúde, enquanto, na prática, a deterioram. Aquelas que querendo manter tão delicadamente a sua reputação a perdem inteiramente, porque, com esta sensibilidade, tornam-se bizarras, obstinadas, insuportáveis e provocam a malícia dos maledicentes.

A reputação é simplesmente como uma insígnia que dá a conhecer onde está alojada a virtude. Portanto, a virtude deve ser preferida em tudo e em toda parte. Se as pessoas dizem que és um hipócrita porque te submetes à devoção; se és tido como homem de pouca fibra porque perdoaste a injúria, não faças caso de tudo isto.

Porque esses julgamentos são feitos por pessoas néscias e estúpidas na tentativa de que a pessoa perca a sua reputação, mas nem por isso deve abandonar a virtude nem afastar-se do seu caminho, tanto mais que se deve preferir o fruto às folhas, isto é, o bem interior e espiritual a todos os bens exteriores. É preciso ser zeloso, mas não idólatra de nossa reputação; e como não se deve ofender os olhos dos bons, também não se deve querer contentar o dos malignos.

(Excertos da obra 'Introdução à Vida Devota, de São Francisco de Sales)

quarta-feira, 18 de maio de 2022

A IGREJA CATÓLICA É UNA E INTOLERANTE (II)

Se eu não fosse católico e estivesse à procura da verdadeira Igreja no mundo de hoje, iria em busca da única Igreja que não se dá bem com o mundo. Por outras palavras, procuraria uma Igreja que o mundo odiasse. Faria isto porque se Cristo ainda está presente em qualquer uma das igrejas do mundo de hoje, Ele deve ainda ser odiado como o era quando estava na Terra, vivendo na carne.

Se quiser encontrar Cristo hoje procure uma Igreja que não se dá bem com o mundo. Procure uma Igreja que é odiada pelo mundo, como Cristo foi odiado pelo mundo. Procure pela Igreja que é acusada de estar desatualizada com os tempos modernos, como Nosso Senhor foi acusado de ser ignorante e nunca ter aprendido. Procure pela Igreja que os homens de hoje zombam e acusam de ser socialmente inferior, assim como zombaram de Nosso Senhor porque Ele veio de Nazaré. Procure pela Igreja que é acusada de estar com o diabo, assim como Nosso Senhor foi acusado de estar possuído por Belzebu, príncipe dos demônios.

Procure a Igreja que, em tempos de intolerância (contra a sã doutrina), os homens dizem que deve ser destruída em nome de Deus, do mesmo modo que os que crucificaram Cristo julgavam estar prestando serviço a Deus. Procure a Igreja que o mundo rejeita porque ela se proclama infalível, pois foi pela mesma razão que Pilatos rejeitou Cristo: por Ele se ter proclamado como sendo 'A Verdade'. Procure a Igreja que é rejeitada pelo mundo, assim como Nosso Senhor foi rejeitado pelos homens. Procure a Igreja que, no meio das confusões de opiniões, os seus membros a amem do mesmo modo que amam a Cristo e respeitem a sua voz como a voz do seu Fundador.

E aí começará a suspeitar que se essa Igreja é impopular com o espírito do mundo é porque ela não pertence a este mundo. E, uma vez que pertence a outro mundo, será infinitamente amada e infinitamente odiada como foi o próprio Cristo. Pois só aquilo que é de origem divina pode ser infinitamente odiado e infinitamente amado. Portanto, essa Igreja é divina .

(Arcebispo Fulton J. Sheen, Radio Replies, Vol. 1)

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (V)


Cristo, atendei-nos.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

terça-feira, 17 de maio de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (149/151)


149. O RESPEITO DO IMPERADOR

No ano de 325, após três séculos de cruéis perseguições, movidas pelos imperadores pagãos contra os discípulos de Jesus Cristo, puderam afinal reunir-se em Nicéia os bispos de todo mundo, para celebrar o primeiro Concílio ecumênico ou universal. A esse concílio assistiram trezentos e quinze bispos e inúmeros sacerdotes. A ele assistiu também o grande imperador Constantino, que fizera cessar a perseguição contra a Igreja, convertendo-se ele próprio ao catolicismo.

O imperador, cheio de respeito para com os ilustres prelados, quis ocupar o último lugar na augusta assembleia e, além disso, não se assentava antes dos bispos ou sem obter permissão para isso. Terminado o grandioso Concílio, perguntou alguém ao monarca:
➖ Por que mostrava vossa majestade tanto respeito àqueles homens?
➖ Meu amigo - disse o imperador - o sacerdote, embora revertido de uma dignidade divina, é homem e pode pecar; mas nenhum de seus pecados deve diminuir o nosso respeito. Digo-lhe mais: se visse um sacerdote pecar, em vez de publicar ou divulgar o pecado dele, cobriria o sacerdote com meu manto imperial para subtraí-lo às murmurações.

Aquele imperador tinha razão. O caráter sacerdotal é de um valor intenso, impresso embora, algumas vezes, numa alma fraca.

150. VIVA CRISTO REI!

No México, não faz muitos anos, um presidente chamado Calles perseguiu com furor não só os padres, mas também todos os católicos militantes. Em setembro de 1927, os soldados de Calles prenderam três jovens: José Valência, Nicolau Navarro e Salvador Vergas, porque faziam propaganda em favor da religião.

Depois de maltratá-los brutalmente, conduziram-nos, a 3 de janeiro de 1928, para longe da cidade, e ali os espancaram e feriram com cutelos. Repreendeu-os José Valência, dizendo:
➖ Sois uns perversos, martirizando-nos ferozmente: Deus vos perdoe!
E dirigindo-se aos companheiros, recordou-lhes que eram católicos, que a verdadeira pátria era o céu, para onde logo partiriam. E todos os três gritaram: Viva Cristo Rei! Viva a Mãe de Deus! 

Furiosos, os cruéis soldados os espancavam de novo e cortaram-lhes a língua, dizendo:
➖ Vamos ver se agora falais e rezais!
Ao volver-se o mártir para os seus companheiros para mostrar-lhes o céu, fuzilaram-no e em seguida cortaram-lhe a cabeça. Os outros dois companheiros imitaram o heroísmo do primeiro.

Em seguida aquela soldadesca tomou os cadáveres e, levando-os à cidade, deixou-os no meio da praça, como se tivesse realizado uma grande façanha. Acudiu logo uma multidão imensa de curiosos. Chamaram também a mãe do jovem mártir José Valência. A heroica senhora, em vez de chorar, olhos fixos no céu exclamou:
➖ Senhor, bendigo-vos por terdes disposto que eu fosse a mãe de um mártir!
E julgando-se indigna de abraçar o corpo do filho, beijou-lhe os pés devotamente.

151. QUE LHE PARECE?

Apresentou-se, certo dia, num convento, uma jovem que desejava ser religiosa. Parecia ter muito boas disposições, mas a Superiora, querendo experimentar-lhe a vocação, percorreu com ela as dependências da casa, e foi dizendo:
➖Esta é a nossa capela. Aqui mora o dono da casa: é Jesus. O que Ele manda se faz; O que Ele proíbe, se deixa: o que não pede, se adivinha.

Rezaram ali um instante e, continuando a visita, disse a Superiora:
➖ Aqui é a sala de jantar: tudo pobre. Sendo assim, neste refeitório não se prova nenhum manjar delicado, entende?
➖ Sim, senhora - respondeu a jovem.
➖ Esta é a sala de trabalhos; como sabe, todas as religiosas vivem trabalhando e rezando; descanso, só no céu.

Passaram a outro corredor e a Superiora indicou uma cela à jovem, dizendo:
➖ Este será o seu quarto; é limpo, mas pobre, até na mobília. Será a sua morada para toda a vida: aqui você fará penitência por seus pecados e pelos pecados do mundo, ouviu?
➖ Sim, senhora.

Saíram para fora da casa, andaram alguns passos e a Superiora falou então:
➖ Olhe este horto; quando você falecer, será enterrada, sem nenhuma pompa, aos pés daquele grande Cristo.

A jovem, sem dizer uma palavra, contemplava a bela imagem de Jesus Crucificado.
➖ Que lhe parece? Tem medo?
➖ Não, madre - respondeu. Está tudo bem. Não tenho medo não; porque na capela, na sala de trabalhos, no refeitório, na cela, no jardim e em toda parte vi o Crucifixo; ele me dará forças para sofrer. Se tanto padeceu Jesus por mim, por que não hei de padecer um pouco por Ele?
E a jovem foi aceita. E tornou-se santa.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

segunda-feira, 16 de maio de 2022

A IGREJA CATÓLICA É UNA E INTOLERANTE (I)

Nosso século clama: 'Tolerância, Tolerância!'. Tem-se como certo que um sacerdote deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que a franqueza, e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade, e que esta sociedade deve ser necessariamente intolerante.

É da essência de toda verdade não tolerar o princípio que a contradiz. A afirmação de uma coisa exclui a negação dessa mesma coisa, assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo, onde nada é definido, podem-se partilhar os sentimentos, podem variar as opiniões. Compreendo e peço a liberdade de opinião nas coisas duvidosas: in dubiis, libertas. Mas, logo que a verdade se apresenta com as características certas que a distinguem, por isso mesmo que é verdade, ela é positiva, ela é necessária, e por conseguinte ela é una e intolerante: in necessariis, unitas.

No mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade e esta sociedade deve ser necessariamente intolerante. Condenar a verdade à tolerância é condená-la ao suicídio. A afirmação se aniquila se duvida de si mesma, e ela duvida de si mesma se admite com indiferença que se ponha a seu lado a sua própria negação. Para a verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício legítimo do direito de propriedade. Quando se possui alguma coisa, é preciso defendê-la, sob pena de logo se ver despojado dela.

Assim, meus irmãos, pela própria necessidade das coisas, a intolerância está em toda parte, porque em toda parte existe o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a ordem e a desordem. O que há de mais intolerante do que esta proposição: 2 mais 2 são 4? Nada é tão exclusivo, meus irmãos, quanto a unidade. Ouvi a palavra de São Paulo: Unus Dominus, una fides, unum baptisma. Há, no céu, um só Senhor: unus Dominus. Esse Deus, cuja unidade é seu grande atributo, deu à terra um só símbolo, uma só doutrina, uma só fé: una fides. E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só sociedade visível, uma só Igreja, cujos filhos são, todos, marcados com o mesmo selo e regenerados pela mesma graça: unum baptisma.

Assim, a unidade divina que resplandece por todos os séculos na glória de Deus produziu-se sobre a terra pela unidade do dogma evangélico, cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo à unidade hierárquica do sacerdócio: um Deus, uma fé, uma Igreja: unus Dominus, una fides, unum baptisma. Para a verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício legítimo do direito de propriedade.

Um pastor inglês teve a coragem de escrever um livro sobre a tolerância de Jesus Cristo, e certo filósofo de Genebra disse, falando do Salvador dos homens: 'Não vejo que meu divino Mestre tenha formulado sutilezas sobre o dogma'. Bem verdadeiro, meus irmãos. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas trouxe aos homens a verdade e disse: 'Se alguém não for batizado na água e no Espírito Santo, se alguém se recusa a comer a minha carne e a beber o meu sangue, não terá parte em meu reino'. Confesso que nisso não há sutilezas; há intolerância, há exclusão, a mais positiva, a mais franca.

E mais: Jesus Cristo enviou os seus Apóstolos para pregar a todas as nações, isto é, derrubar todas as religiões existentes, para estabelecer em toda a terra a única religião cristã e substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do dogma católico. E, prevendo os movimentos e as divisões que esta doutrina iria incitar sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que tinha vindo para trazer não a paz, mas a espada, e para acender a guerra não somente entre os povos, mas no seio de uma mesma família e separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo incrédulo, o genro cristão do sogro idólatra. A afirmação é verdadeira e o filósofo tem razão: Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma.

Falam da tolerância dos primeiros séculos, da tolerância dos Apóstolos. Mas isso não é assim, meus irmãos. Ao contrário, o estabelecimento da religião cristã foi, por excelência, uma obra de intolerância religiosa. No momento da pregação dos Apóstolos, quase todo o universo praticava essa tolerância dogmática tão louvada. Como todas as religiões eram igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas não se guerreavam; como todos os deuses valiam a mesma coisa uns para os outros, eram todos demônios, não eram exclusivos, eles se toleravam uns aos outros: Satã não está dividido contra si mesmo.

O estabelecimento da religião cristã foi, por excelência, uma obra de intolerância religiosa. O Império Romano, multiplicando suas conquistas, multiplicava os seus deuses, e o estudo de sua mitologia se complica na mesma proporção que o de sua geografia. O triunfador que subia ao Capitólio fazia marchar diante dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do que arrastava atrás de si os reis vencidos. O mais das vezes, em virtude de um decreto do senado, os ídolos dos bárbaros se confundiam desde então com o domínio da pátria e o Olimpo nacional crescia como o Império.

Quando apareceu o cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos, são dados históricos de valor com relação ao assunto presente), quando o cristianismo surgiu pela primeira vez, não foi repelido imediatamente. O paganismo perguntou-se se, em vez de combater a nova religião, não devia dar-lhe acesso ao seu solo. A Judéia tinha se tornado uma província romana. Roma, acostumada a receber e conciliar todas as religiões, recebeu a princípio, sem maiores dificuldades, o culto saído da Judéia. Um imperador colocou Jesus Cristo, como a Abraão, entre as divindades de seu oratório, assim como se viu mais tarde outro César propor prestar-lhe homenagens solenes.

Mas a palavra do profeta não tardou a se verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem ciúmes, deuses novos e estrangeiros ser colocados ao lado deles, com a chegada do Deus dos cristãos, lançam um grito de terror, e, sacudindo sua tranquila poeira, abalam-se sobre seus altares ameaçados: Ecce Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a facie eius - Eis que surge o Senhor, e os ídolos estremecem diante de sua face (Is 19, 1).

Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se percebeu que esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros deuses; quando se viu que os cristãos, cujo culto se havia admitido, não queriam admitir o culto da nação; em uma palavra, quando se constatou o espírito intolerante da fé cristã, foi então que começou a perseguição.

Ouvi como os historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos. Eles não falam mal de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de suas práticas; só mais tarde é que inventaram calúnias. Eles os censuram somente por não poderem suportar outra religião senão a deles. 'Eu não tinha dúvidas' - diz Plínio, o Jovem - 'apesar de seu dogma, de que não era preciso punir sua teimosia e sua obstinação inflexível': pervicaciam et inflexibilem obstinationem. 'Não são criminosos' - diz Tácito - 'mas são intolerantes, misantropos, inimigos do gênero humano. Há neles uma fé teimosa em seus princípios, e uma fé exclusiva que condena as crenças de todos os povos': apud ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios hostile odium.

Assim, meus irmãos, o principal agravo contra os cristãos era a rigidez absoluta do seu símbolo de fé, e, como se dizia, o humor insociável de sua teologia. Se só se tratasse de um Deus mais, não teria havido reclamações; mas era um Deus incompatível, que expulsava todos os outros: aí está o porquê da perseguição. Assim, o estabelecimento da Igreja foi obra de intolerância dogmática.

Toda a história da Igreja não é senão a história dessa intolerância. Que são os mártires? Intolerantes em matéria de fé, que preferem os suplícios a professar o erro. Que são os símbolos de fé? São fórmulas de intolerância, que determinam o que é preciso crer e que impõem à razão os mistérios necessários. Que é o papado? Uma instituição de intolerância doutrinal, que pela unidade hierárquica mantém a unidade de fé. Por que os concílios? Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas interpretações do dogma, anatematizar as proposições contrárias à fé.

Nós somos então intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina; disto fazemos profissão; orgulhamo-nos da nossa intolerância. Se não o fôssemos, não estaríamos com a verdade, pois que a verdade é uma, e consequentemente intolerante. Filha do céu, a religião cristã, descendo à terra, apresentou os títulos de sua origem; ofereceu ao exame da razão fatos incontestáveis, e que provam irrefutavelmente sua divindade.

Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu autor, pode dizer: 'Eu sou a verdade' - Ego sum veritas, é necessário, por uma consequência inevitável, que a Igreja de Cristo conserve incorruptivelmente esta verdade tal qual a recebeu do céu; é necessário que repila, que exclua tudo o que é contrário a esta verdade, tudo o que possa destruí-la. Recriminar à Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria de doutrina, é dirigir-lhe uma recriminação muito honrosa. É recriminar à sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar à esposa ser muito delicada e exclusiva.

As paixões sabem bem o que querem quando procuram abalar os fundamentos da fé. Nós ficamos muitas vezes confusos, meus irmãos, com o que ouvimos dizer sobre todas estas questões até por pessoas sensatas. Falta-lhes a lógica, desde que se trate de religião. É a paixão, é o preconceito que os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem bem o que querem quando procuram abalar os fundamentos da fé, pondo a religião entre as coisas sem consistência. Elas não ignoram que, demolindo o dogma, preparam para si uma moral fácil.

Diz-se com justeza perfeita: é antes o decálogo que o símbolo de fé o que as faz incrédulas. Se todas as religiões podem ser postas num mesmo nível, é que se equivalem todas; se todas são verdadeiras, é porque todas são falsas; se todos os deuses se toleram, é porque não há Deus. E, se se pode aí chegar, já não sobra nenhuma moral incômoda. Quantas consciências estariam tranquilas no dia em que a Igreja Católica desse o beijo fraternal a todas as seitas suas rivais!

Jean-Jacques Rousseau foi entre nós o apologista e o propagador desse sistema de tolerância religiosa. A invenção não lhe pertence, se bem que ele tenha ido mais longe que o paganismo, que nunca chegou a levar a indiferença a tal ponto. Eis, com um curto comentário, o ponto principal desse catecismo, tornado infelizmente popular: todas as religiões são boas. Isto é, de outra forma, todas as religiões são ruins.

A filosofia do século XIX se espalha por mil canais por toda a superfície da França. Esta filosofia é chamada eclética, sincrética e, com uma pequena modificação, é também chamada progressiva. Esse belo sistema consiste em dizer que não existe nada falso; que todas as opiniões e todas as religiões podem conciliar-se; que o erro não é possível ao homem, a menos que ele se despoje da humanidade; que todo o erro dos homens consiste em julgar-se possuidores exclusivos de toda a verdade, quando cada um deles só tem dela um elo e quando, da reunião de todos esses elos, se deve formar a corrente inteira da verdade. Assim, segundo essa inacreditável teoria, não há religiões falsas, mas são todas incompletas umas sem as outras.

A verdadeira seria a religião do ecletismo sincrético e progressivo, a qual ajuntaria todas as outras, passadas, presentes e futuras: todas as outras, isto é, a religião natural que reconhece um Deus; o ateísmo, que não conhece nenhum; o panteísmo, que o reconhece em tudo e por tudo; o espiritualismo, que crê na alma, e o materialismo, que só crê na carne, no sangue e nos humores; as sociedades evangélicas, que admitem uma revelação e o deísmo racionalista, que a rejeita; o cristianismo, que crê no Messias que veio e o judaísmo, que o espera ainda; o catolicismo, que obedece ao Papa e o protestantismo, que olha o Papa como o Anticristo. Tudo isto é conciliável. São diferentes aspectos da verdade. Da união desses cultos resultará um culto mais largo, mais vasto, o grande culto verdadeiramente católico, isto é, universal, pois que abrigará todas as outras no seu seio.

Esta doutrina, meus irmãos, que qualificais de absurda, não é de minha invenção; ela enche milhares de volumes e de publicações recentes; e, sem que seu fundo jamais varie, toma todos os dias novas formas sob a caneta e sobre os lábios dos homens em cujas mãos repousam os destinos da França. A que ponto de loucura chegamos então? Chegamos ao ponto a que deve logicamente chegar todo aquele que não admite o princípio incontestável que estabelecemos, a saber: que a verdade é uma e, por consequência, intolerante, apartada de toda doutrina que não a sua. E, para resumir em poucas palavras toda a substância deste meu discurso, eu vos direi: Procurais a verdade sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante. Todos os erros podem fazer-se concessões mútuas; eles são parentes próximos, pois que têm um pai comum: Vos ex patre diabolo estis - Vós sois de vosso pai, o diabo. A verdade, filha do céu, é a única que não capitula.

A verdade é uma e, por consequência, intolerante, apartada de toda doutrina que não a sua. Vós, pois, que quereis julgar esta grande causa, tomai para isto a sabedoria de Salomão. Entre essas diferentes sociedades para as quais a verdade é objeto de litígio, como era aquela criança entre as duas mães, quereis saber a quem adjudicá-la. Pedi que vos deem uma espada, fingi cortar, e examinai as expressões que farão os pretendentes. Haverá vários que se resignarão, que se contentarão da parte que vão ter. Dizei logo: 'Essas não são as mães!' Há uma, ao contrário, que se recusará a toda composição, que dirá: a verdade me pertence, e devo conservá-la inteira, jamais tolerarei que seja diminuída, partida. Dizei: 'Esta aqui é a verdadeira mãe!' Sim, Santa Igreja Católica, vós tendes a verdade, porque tendes a unidade e, porque sois intolerante, não deixais decompor esta unidade.

(Excertos de um Sermão do Cardeal L.E. Pie - Ouvres Sacerdotales du Cardinal Pie, 1901)