domingo, 31 de dezembro de 2017

SAGRADA FAMÍLIA

Páginas do Evangelho - Festa da Sagrada Família



Neste último domingo do ano, o Evangelho evoca o culto à Sagrada Família, síntese da vida cristã autêntica e primeira igreja na terra. Na humilde casa de Nazaré, três pessoas: pai, mãe e filho, viviam em natureza sobrenatural exatamente inversa à ordem natural: São José, patriarca e pai de família devotado, com direitos naturais legítimos sobre a esposa e o filho, era o menor em perfeição; Nossa Senhora, esposa e mãe, era Mãe de Deus e de todos os homens; Jesus, a criança indefesa e submissa aos pais, é o Deus feito homem para a salvação do mundo. Portentoso mistério que revela a singular santidade da família humana, moldada sobre clara hierarquia divina, moldada por Deus para ser escola de santificação, amor, renúncia e salvação. 

Neste modelo de submissão perfeita ao amor de Deus e em obediência estrita à Lei de Moisés, 'quando se completaram os dias para a purificação da mãe e do filho' (Lc 2, 22), José e Maria se dirigem ao Templo de Jerusalém para a consagração do seu primogênito e oferenda do sacrifício penitencial. E será ali, apenas 40 dias após o nascimento de Jesus, que Nossa Senhora vai experimentar, pela profecia do velho Simeão, a primeira grande ferida de sua alma imaculada nesta terra, que a tornaria Nossa Senhora de todas as dores: 'Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma' (Lc 2, 35).

O velho Simeão, sacerdote piedoso e justo, dirigiu-se ao Templo por um impulso sobrenatural e, para se cumprir plenamente a grande promessa que recebera de que não morreria sem ter contemplado o Messias, agora O tinha entre os braços: 'Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz; porque meu olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel' (Lc 2, 29 - 31). Eis que se conclui naquele momento o tempo dos profetas, nas palavras do velho Simeão e da profetisa Ana: Deus se fez homem e a redenção e a salvação da humanidade estava entre nós!  Nesta sagrada família, Jesus 'crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele' (Lc 2 , 40).

Eis o legado da Sagrada Família às famílias cristãs: a oração cotidiana santifica os pais e os filhos numa obra incomensurável do amor de Deus e a fortalece contra todos as tribulações. Sim, que os maridos amem profundamente suas esposas, que as esposas sejam solícitas a seus maridos, que os pais não intimidem os seus filhos, que os filhos sejam obedientes em tudo a seus pais. Mas que rezem juntos, que louvem a Deus juntos, que se santifiquem juntos, como família de Deus. Em Nazaré, Deus tornou a família modelo e instrumento de santificação; que em nossas casas e em nossas famílias, a Sagrada Família seja o modelo e instrumento para a nossa vida e para nossa santificação de todos os dias!

ORAÇÃO PARA O ÚLTIMO DIA DO ANO

Obrigado, Senhor,
pelo ano que termina,
porque estou aqui, junto Convosco e com minha família (com meus amigos),
vivendo a alegria de ter vivido um ano mais
em Vossa Santa Presença.

Obrigado, Senhor,
por mais um ano de vida,
por ter tido ainda este tempo para viver 
as santas alegrias do Natal e deste Ano Novo.
Por estar com pessoas que amo
e que compartilham comigo
a mesma fé e o sincero propósito
de viver o Evangelho a cada dia.

Obrigado, Senhor,
por tantas graças recebidas neste ano que passa;
eu Vos ofereço hoje o meu nada
e, dentro do meu nada, todo o meu amor humano possível,
como herança de Vossa Ressurreição.
No meio das luzes do mundo nesse dia de festa,
eu me recolho à sombra da Vossa Misericórdia;
e Vos honro e Vos dou glória nesse tempo
pelos tempos que estarei Convosco para sempre.

Obrigado, Senhor,
por estar aqui na Vossa Presença,
no tempo que conta mais um ano que se vai,
na gratidão da alma confiante
que aprendeu o caminho do Pai.
Das coisas boas que fiz, dou-Vos tudo,
porque as recebi de Vosso Santo Espírito.
E Vos suplico curar com Vosso Corpo e Sangue
as cicatrizes dos meus pecados.

Obrigado, Senhor,
pela caminhada diária com Maria, 
que nos ensina no cotidiano de nossa vidas
a ir ao Vosso encontro todos os dias.
Pelo meu Santo Anjo da Guarda,
pelos meus santos de devoção, 
pelo papa, e pela Vossa Igreja,
eu Vos agradeço, Senhor, e Vos louvo, 
neste último dia do ano.

Obrigado, Senhor,
pelo ano que termina.
Que eu não me lembre nesse tempo
das dores e sofrimentos que passei,
das tristezas e angústias que vivi:
que todo mal seja olvidado agora
na alegria de eu estar aqui Convosco,
e pela resignação à Santa Vontade de Deus.

E que nesta última hora do tempo que se vai,
do ano que chega ao fim:
mais uma vez, não seja eu que viva,
mas o Cristo que vive em mim.
Amém.

(Arcos de Pilares)

sábado, 30 de dezembro de 2017

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

Dois incrédulos, visitando certo dia um mosteiro, entraram na cela de um anacoreta. Diante do ambiente singelo e dos instrumentos de oração e penitência, indagaram a ele a razão para uma vida de tanta austeridade. 
- 'Para merecer o Paraíso', respondeu o anacoreta, sem levantar os olhos do seu livro de orações.
- 'Perdão senhor', disse um dos homens sorrindo, 'mas tereis logrado uma vida sem sentido se não existir nada além da morte'.
O santo homem, movido pela compaixão, virou-se para ambos e disse:
- 'Qual terá sido o sentido de vossas vidas se após a morte existir alguma coisa?'

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

BREVIÁRIO DA CONFIANÇA (III)


29 DE DEZEMBRO

FECUNDIDADE DO SOFRIMENTO

O sofrimento é fecundo. 'O sofrimento - escreve a admirável Elisabeth Leseur - atua de um modo impetuoso em nós; primeiro, por uma espécie de renovação interior, e depois, em outros também, muitas vezes longe de nós e sem que saibamos neste mundo o que fazemos por eles. O sofrimento é um ato. Cristo fez mais na Cruz pela humanidade do que falando e trabalhando na Galileia ou em Jerusalém. O sofrimento faz a vida: ele transforma tudo o que toca e tudo o que alcança'. O sofrimento é um ato: que fórmula impressionante! Convém guardá-la. Trabalha quem sofre bem. Assim, pode salvar almas como o apóstolo da palavra, como o sacerdote missionário mais ativo e fervoroso. A grande missionária dos últimos tempos, o Anjo do Carmelo de Lisieux, experimentou o sofrimento pela salvação das almas e pôde dizer: 'Pelo sofrimento e pela perseguição, muito mais do que por brilhantes pregações, Deus quer firmar o seu reino nas almas. Nossos sacrifícios, nossos esforços e os mais obscuros dos nossos atos não estão perdidos, é minha opinião absoluta: todos têm repercussão longínqua e profunda. Este pensamento não dá lugar ao desânimo e nem à covardia. Somos pobres jornaleiros da vida'. Semeemos e Deus fará surgir a colheita. Semeemos o bem na dor e na alegria, no Tabor e no Calvário, no fiat do Getsêmani e nas Aleluias da Ressurreição. Porém, é mais fecundo o bem semeado na dor, no Calvário, no sofrimento; porque, enfim, o sofrimento é um ato. 

30 DE DEZEMBRO

REPARAÇÃO

Conheceis a palavra de Pascal, impressionante e profundamente verdadeira - 'Jesus Cristo estará agonizante até o fim do mundo; não se pode dormir durante esse tempo'? 'Dormir' - comenta o Pe. Plus - 'como pensar assim quando o Mestre está suspenso na Cruz a padecer, para muitos em vão, infelizmente?' 'Como assim?' - dizia Urias a Davi - 'O meu general Joab dorme numa tenda de campanha e eu haveria de ir descansar em um palácio? Não, não aceito este triste privilégio!' À vista do Crucificado, perde-se a vontade de viver sem a cruz. Os santos, como o Apostolo dos Gentios, sofrem todos a sublime loucura da cruz. Sofrem porque não podem sofrer ainda mais. E' a sede de Amor e essa sede só se pode satisfazer aqui no exílio de cruzes, de sofrimentos e de martírios. São Felipe Néri estava à morte, esgotado e já sem forças. O médico mandou-lhe que tomasse um caldo. Começou a tomá-lo quando de repente parou e exclamou: 'Ó meu Jesus, que diferença entre nós! Fostes cravado no duro madeiro da cruz e eu descanso num leito tão cômodo... deram-vos a beber fel e vinagre e a mim enchem-me de cuidados ... em torno de Vós quantos inimigos que Vos insultavam e, junto de mim, tantos amigos que se esforçam por me consolar...' E o santo se pôs a chorar, como Nosso Senhor Crucificado faz apaixonar os santos! Saibamos sofrer em espírito de reparação pelos nossos pecados e olhemos com mais fé, com mais amor, o nosso crucifixo!

31 DE DEZEMBRO

TE DEUM LAUDAMUS

Mais um ano que se passa. Mais um passo de gigante deu a minha vida para a eternidade. Fui feliz? Fui desgraçado? Só Vós, ó meu Deus, sabeis se tantas horas amargas, se tantos golpes que me dilaceraram o coração nestes 365 dias, foram para minha desgraça ou para minha felicidade! Te Deum laudamus! Deo gratias Alleluia! Quantos benefícios me concedeu a Vossa Misericórdia Senhor! Eu Vos agradeço. E minhas dores e lágrimas, todas as chagas que os dias sombrios deste ano me abriram no coração, aceitai-os unidos ao mérito das Vossas Chagas na Cruz, em expiação dos meus inumeráveis pecados. Senhor, Deus dos humildes, dos pobres, dos infelizes, dos que choram, tende misericórdia do meu pobre coração, tão louco e tão seduzido pelas belezas criadas, do meu coração que aspira a uma felicidade, a uma paz verdadeira que nunca pôde encontrá-la fora de Vós, vivendo, entretanto, como louca mariposa, a debater-se e queimar suas asas na falsa luz das belezas criadas. Senhor, dai-me um coração todo Vosso. Deus, ó meu Deus, solução de todos os meus problemas e meu ideal! O' Deus, povoai as solidões mais devastadas, consolai as dores mais pungentes, enchei os vazios mais profundos, aquecei os corações mais frios. Ó Vós, Senhor, que compreendeis todas as aspirações, protegeis todas as liberdades e respeitais todos os sentimentos, restaurais todas as ruínas e amparais todos os nossos esforços. Senhor, acalmai as paixões, fortalecei as vontades, sustentai os fracos, dilatai os corações. Dai-nos a paz, Deus de Misericórdia e da Verdade, meu Deus e meu Tudo! - Deus meus et omnia!

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

28 DE DEZEMBRO - SANTOS INOCENTES


Santos Inocentes de Deus,
almas cristalinas,
pousai vossos ternos anelos
nas sombras das colinas;
não inquieteis com vosso pranto
as feras sibilinas,
fitai o esgar dos carrascos
com doces retinas;
que a vida que foge breve,
em  adagas repentinas,
renasça em eternos louvores
nas glórias divinas.
(Arcos de Pilares)

Santos Inocentes de Deus, rogai por nós

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

O DIA EM QUE JESUS NASCEU

Do Evangelho de São Lucas (Lc 1, 5-23):

'Nos tempos de Herodes, rei da Judeia, houve um sacerdote por nome Zacarias, da classe de Abias; sua mulher, descendente de Aarão, chamava-se Isabel. Ambos eram justos diante de Deus e observavam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor. Mas não tinham filho, porque Isabel era estéril e ambos de idade avançada.

Ora, exercendo Zacarias diante de Deus as funções de sacerdote, na ordem da sua classe, coube-lhe por sorte, segundo o costume em uso entre os sacerdotes, entrar no santuário do Senhor e aí oferecer o perfume. Todo o povo estava de fora, à hora da oferenda do perfume.

Apareceu-lhe então um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do perfume. Vendo-o, Zacarias ficou perturbado, e o temor assaltou-o. Mas o anjo disse-lhe: Não temas, Zacarias, porque foi ouvida a tua oração: Isabel, tua mulher, dar-te-á um filho, e chamá-lo-ás João. Ele será para ti motivo de gozo e alegria, e muitos se alegrarão com o seu nascimento ... Zacarias perguntou ao anjo: Donde terei certeza disto? Pois sou velho e minha mulher é de idade avançada. O anjo respondeu-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado para te falar e te trazer esta feliz nova.

Eis que ficarás mudo e não poderás falar até o dia em que estas coisas acontecerem, visto que não deste crédito às minhas palavras, que se hão de cumprir a seu tempo ... Ao sair, não lhes podia falar, e compreenderam que tivera no santuário uma visão. Ele lhes explicava isto por acenos; e permaneceu mudo. Decorridos os dias do seu ministério, retirou-se para sua casa'.


O ponto de partida para a definição da data de nascimento de Jesus está nas palavras iniciais do Evangelho de São Lucas, que narra a promessa do Anjo Gabriel a Zacarias, enquanto este fazia as ofertas no Templo de Jerusalém: embora de idade avançada, Zacarias e Isabel teriam um filho, que seria um grande profeta e iria preparar os caminhos da Vinda do Senhor. Incrédulo diante de revelação tão espantosa, ficou mudo e, desta forma, voltou para casa.

O texto bíblico, ao precisar a figura de Zacarias, o declara 'sacerdote da classe de Abias' e, esta referência, aparentemente supérflua, é a chave para o desenvolvimento das datas até o nascimento de Jesus. Já se sabia há tempos que eram 24 as castas sacerdotais que atuavam no Templo (Ne 12, 17) naquele tempo (a classe de Abias era a oitava destas classes), pelo período de uma semana, duas vezes ao ano, em rodízio e por uma ordem fixa e imutável. Recentemente, um grupo de pesquisadores liderados pelo professor Shemarjahu Talmon, da Universidade Hebraica de Jerusalém, estabeleceu a sequência exata deste ministério, principalmente com bases em documentos dos essenos descobertos em Qumran.

A classe sacerdotal de Abias prestava serviço litúrgico no Templo na última semana de Setembro, ratificando a tradição oriental que estabelecia uma data entre 23 e 25 de setembro como a do anúncio à Zacarias pelo Anjo Gabriel. Esta data constitui, portanto, o ponto de partida, para uma sequência de eventos extraordinários ao longo dos seguintes 15 meses: concepção de João Batista em seguida; o anúncio pelo mesmo Anjo Gabriel à Maria seis meses depois (25 de Março é a data definida pelo calendário cristão para a Festa da Anunciação); três meses, depois o nascimento de João Batista (em junho) e, seis meses depois (como exposto no próprio Evangelho de São Lucas), em 25 de dezembro, o nascimento de Jesus.

Com efeito, Zacarias e Isabel conceberam João Batista imediatamente após Zacarias servir na sua classe. Isto implica que São João Batista teria sido concebido por volta do final de setembro, colocando assim o nascimento de João no final de junho do ano posterior, o que confirma a celebração da Natividade de São João Batista em 24 de junho. Quando o anjo Gabriel anunciou a Maria (Lc 1, 36), disse que Isabel já estava no sexto mês de gravidez. Nestes termos, uma vez que João Batista foi concebido em setembro, a Anunciação e a gravidez de Maria ocorreram em março.

Sabemos que após conceber Jesus, Maria foi visitar sua prima Isabel que estava grávida de seis meses de João Batista, ou seja, João Batista era seis meses mais velho que Jesus Cristo (Lc 1, 24-27, 36). Somando-se seis meses à data de nascimento de João Batista (24 de junho), chega-se à data de nascimento de Jesus em 25 de dezembro que, subtraindo-se 9 meses, fornece a data da Anunciação como sendo em 25 de março.

Assim, por vias singulares (referência bíblica aparentemente inócua, documentos descobertos em ânforas escondidas pelos essênios às margens do Mar Morto e estudos de um pesquisador não cristão), a tradição cristã (e também a cultura não cristã) viu ruir o que parecia ser uma mera data de referência para o nascimento de Cristo no lugar do renascer do deus sol, para contrastar com as festas pagãs e substitui-las nos dias do solstício de inverno. E agora sabe um pouco mais além das meras conjecturas humanas: Jesus Cristo nasceu realmente no dia 25 de dezembro!

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (IV)

XIII

DO HOMEM E SUA NATUREZA: ESPIRITUALIDADE E IMORTALIDADE DA ALMA

Há entre os seres corporais algum que forme um mundo à parte ou categoria distinta no conjunto dos demais?
Sim, Senhor; o homem.

Que é o homem?
Um ser composto de espírito e matéria, no qual, de algum modo, se compendiam os mundos espiritual e material (LXXV)*.

Com que nome se conhece o espírito humano?
Com o nome de alma (LXXV, 1-4).

Há, além do homem, algum outro ser corpóreo que tenha alma?
Sim, Senhor; as plantas e os animais.

Que diferença existe entre a alma humana e as almas das plantas e dos animais?
A alma das plantas é exclusivamente vegetativa; a dos animais vegetativa e sensitiva; e a humana, além destas faculdades, possui a inteligência.

Logo, é a inteligência que distingue o homem dos demais seres corpóreos?
Sim, Senhor.

A alma, como princípio intelectual, exerce a sua função própria, independentemente do corpo?
Sim, Senhor (LXXV, 2).

Em que vos apoiais para assegurá-lo?
Em que o objeto do entendimento é o imaterial.

E por que, se a alma exerce a sua função própria independentemente do organismo, se deduz que é incorpórea?
Porque, se não o fosse, não poderia unir-se ao objeto do entendimento, que é o imaterial (Ibid.).

Que se segue desta verdade?
Segue-se que a alma humana é imortal (LXXV, 6).

Poderíeis dar a razão da consequência?
Sim, Senhor; porque se é independente do organismo no obrar, forçosamente há de sê-lo no existir.

E o que deduzis deste princípio?
Deduzo que, se bem que o corpo perece, ao separar-se da alma, a alma, ao contrário, não pode morrer (Ibid.).

Logo, durará eternamente?
Sim, Senhor.

Para que se une a alma ao corpo?
Para formar um todo harmônico e substancial, chamado homem (LXXV, 4).

Não é, portanto, acidental a união da alma com o corpo?
Não, Senhor; porque a alma exige por natureza a união substancial (LXXVI, 1).

Que faz a alma no corpo?
Dá-lhe todas as perfeições que possui: o existir, o viver e sentir, reservando para si, unicamente, o ato de entender (LXXVI, 3, 4).

XIV

DAS POTÊNCIAS OU FACULDADES VEGETATIVAS E SENSITIVAS

Há na alma faculdades distintas ou princípios diversos de operação?
Sim, Senhor; pois quanto no homem há, procede imediatamente de faculdades ou potências do espírito, exceto a perfeição fundamental, o ser corpo, que recebe imediatamente da essência da alma (LXXVII).

Em virtude de que potências vive o corpo?
Em virtude das vegetativas.

Quantas e quais são?
São três: o poder de nutrição, de crescimento e de reprodução (LXXVIII, 2).

Em virtude de que potências sente?
Em virtude das potências sensitivas.

Quereis dizer-me quantas e quais são?
Existem duas classes: cognoscitivas e afetivas.

Quais são as cognoscitivas?
Os cinco sentidos exteriores.

Que nome têm?
Potência ou faculdade de ver, ouvir, cheirar, gostar e apalpar (Ibid.).

Como se chamam os órgãos correspondentes?
Vista, ouvido, olfato, gosto e tato (Ibid.).

Há também faculdades cognoscitivas sensíveis, sem órgão externo?
Sim, Senhor; e são: o senso comum, a imaginação, o instinto e a memória (LXXVIII, 4).

XV

DA INTELIGÊNCIA E DO ATO DE ENTENDER

Há no homem alguma outra faculdade cognoscitiva?
Há outra e é a mais nobre e principal.

Que nome tem?
Inteligência ou razão (LXXIX, 1).

A inteligência e a razão são uma ou duas potências?
Uma só (LXXIX, 8).


Por que tem dois nomes?
Porque há verdades que o entendimento compreende intuitivamente de um só golpe e outras que necessita adquirir mediante o raciocínio (Ibid.).

Por conseguinte, o discurso é o ato característico do homem?
Sim, Senhor; porque nenhum outro ser da Criação pode e necessita discorrer.

É o discurso perfeição da inteligência humana?
Sim, Senhor; porém, revela imperfeição a necessidade de discorrer.

Por que é perfeição, no homem, a faculdade de discorrer?
Porque, por ela, pode o homem conhecer a verdade, inatingível aos seres inferiores, como são os animais privados de razão.

Por que revela imperfeição a necessidade de discorrer?
Porque, se bem que por virtude do raciocínio pode o homem conhecer a verdade, só com tempo e perigo de enganar-se, o consegue; ao contrário, os seres que não o necessitam, como Deus e os Anjos, se apoderam da verdade com uma só visão e assim estão isentos até da possibilidade de se enganarem.

Que significa conhecer a verdade?
Ter conhecimento do que existe.

E que implica o desconhecê-la?
Ignorância ou erro.

Há alguma diferença entre a ignorância e o erro?
Sim, Senhor; e muito grande: a ignorância é a carência do conhecimento de uma coisa; erro é atribuir existência ao que não a teve nem tem.

É um mal viver no erro?
Sim, Senhor; porque o bem próprio do homem consiste na verdade, que é o bem da inteligência.

Tem o homem ciência inata?
Não, Senhor; porque se bem que, desde o princípio, possui inteligência, há de aguardar, para adquirir a verdade, que se desenvolvam as faculdades sensitivas destinadas a servi-la (LXXXIV, 5).

Quando começa o homem a conhecer a verdade?
Quando tem uso de razão, aos sete anos aproximadamente.

Pode a razão humana investigar e conhecer todas as verdades?
Com o exercício próprio de suas forças naturais, de nenhum modo, pode adquirir conhecimento próprio de todas elas (XII, 4; LXXXVI, 2, 4).

Que coisas pode conhecer naturalmente?
As coisas sensíveis e as verdades que deste conhecimento se derivam.

Pode o homem conhecer-se a si mesmo?
Sim, Senhor; porque há nele alguma coisa que pertence ao domínio dos sentidos, e partindo do sensível mediante o discurso, pode investigar o que necessita para saber o que é (LXXXVIII, 1, 2).

Pode conhecer os espíritos puros?
Só de um modo imperfeito.

Por que?
Porque não pertencem ao mundo do sensível, objeto próprio da razão humana.

Pode conhecer a Deus, em si mesmo?
Não, Senhor; porque a sua natureza soberana dista infinitamente do objeto proporcionado à inteligência, no conhecimento natural, que, como dissemos, é o mundo sensível (LXXXVIII, 3).

Logo a razão humana, abandonada às suas próprias forças, como pode conhecer a Deus?
De modo muito imperfeito.

Apesar dessa imperfeição, enobrece ao homem o conhecimento natural de Deus?
Sim, Senhor; em primeiro lugar, porque, por meio dele, se levanta muito acima dos irracionais; segundo, porque o convence que será elevado, mediante a graça, à soberana dignidade de filho de Deus e que, em virtude desse conhecimento, está chamado a conhecê-lo como é, primeiro de modo imperfeito, mediante a fé, depois intuitivamente, pelo Lumen Gloriae** (XII, 4 ad 3).

**[Luz da Glória]: termo técnico dado em teologia ao auxílio suplementar que Deus deve dar à inteligência humana para capacitá-la a gozar da visão beatífica uma vez que a visão beatífica, que constitui a felicidade essencial no céu, está acima da capacidade de entendimento pela inteligência humana.

Em virtude da elevação à dignidade de filho de Deus, igualou-se o homem com os anjos?
Em virtude dessa elevação pode ser igual e até superior aos anjos na ordem da graça, porém sempre inferior na da natureza (CVIII 8).

referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular).

domingo, 24 de dezembro de 2017

FELIZ E SANTO NATAL EM CRISTO!


Desejo a todos os nossos amigos visitantes um Santo e Feliz Natal. 
Deseo a todos los amigos y visitantes Felices Navidades. 
I wish to our friends' visitors an happy and Holy Christmas. 
Je désire à tous nos amis un heureux et joyeux Noel. 
Auguro a tutti gli amici uno Santo ed Felice Natale. 
Ich wunshe to unsere Freude eine Wundabar und Stille Nacht.

IGREJA CATÓLICA: ALMA DO NATAL
(Luís Dufaur)


NATAL


Jesus nasceu! e na pequena estrebaria
José apressa-se em fazer a manjedoura
ajunta palha e feno, mudo de alegria,
enquanto a Mãe em êxtase se entesoura

Os animais se aproximam cautelosos
inebriados diante a luz que transfigura
e os pastores de joelhos, jubilosos,
louvam o Criador agora criatura!

Há uma paz imensa nesta noite fria
todos os anjos cantam a doce melodia
que une céu e terra em amor profundo;

É Natal, a Mãe embala seu pequeno filho
e a luz que inunda a gruta tem o brilho
da salvação que libertou o mundo!

                                                                           (Arcos de Pilares)

A ANUNCIAÇÃO

Páginas do Evangelho - Quarto Domingo do Advento


'Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!' (Lc 1, 28). A saudação do Anjo Gabriel é dirigida àquela que levou à perfeição nesta terra o amor de Deus. Cheia de graça Maria está desde a sua concepção, cheia de graça Maria passou cada momento de sua vida, cheia de graça Maria praticou cada ação ou pensamento nesta terra. Cheia de graça está, portanto, Maria diante a saudação do Anjo, como templo de santidade e da ciência infusa de todas as virtudes, dons e graças possíveis e imagináveis à natureza humana.

E Maria de todas as graças perturbou-se. As revelações do Anjo, provavelmente muito mais detalhadas que as palavras transcritas nos textos bíblicos, colocava Maria no centro de todas as profecias messiânicas que ela tanto conhecia e em nome das quais tantas orações e súplicas já teria feito a Deus. Num relance, percebeu a extraordinária manifestação daquela revelação angélica, que descortinava séculos de profecias, que inseria naquele lugar e naquele tempo a Natividade de Deus, que a tornava a co-redentora da humanidade, a bendita entre todas as mulheres, a Mãe de Deus: 'Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi' (Lc 1, 31 - 32).

E Maria de todas as graças perturbou-se. Diante do extraordinário mistério da graça e dos desígnios extremos da Providência, a Virgem de toda pureza e castidade e obra prima do Espírito Santo, se inquieta: 'Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?' (Lc 1, 34). A virgindade de Maria é o relicário de Deus. No imaculado corpo de Maria, o Espírito de Deus há de projetar a sua luz, cuja sombra faz nascer o Verbo encarnado. E o Anjo, mensageiro das coisas impossíveis e triviais para Deus, revela ainda a Maria a graça da gravidez tardia de Isabel, no 'sexto mês daquela que era considerada estéril' (Lc 1, 36).

E a Virgem de Nazaré, antes de ser a Mãe, oferece-se como serva e escrava do seu Senhor e do seu Deus: 'Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!' (Lc 1, 38). O Céu e a terra, as miríades dos anjos e dos homens de todos os tempos, hão de bendizer e louvar a glória daquele dia e a consumação daquele 'Fiat!' Sim, porque naquele momento, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus Verdadeiro de Deus Verdadeiro se fez, então, carne na carne de Maria e se fez carne a Nossa Salvação.

sábado, 23 de dezembro de 2017

O NASCIMENTO DE JESUS

Maria sentiu um leve estremecimento no ventre. Estremecimento e não dor. Percebera-o nitidamente em meio ao movimento harmônico do trote do burrico pela estrada poeirenta. No recolhimento de sua oração profunda, sua mão busca tocar levemente o ventre como uma resposta imediata da Mãe ao sinal enviado pelo Filho: a longa preparação do Tempo dos Profetas há de ser realidade em breve naquele tempo da história e Deus feito homem vai nascer no mundo. É o primeiro sinal. Suave estremecimento, perceptivel apenas por Maria, naquele momento da longa travessia que perpassa agora os campos abertos que levam mais adiante à Belém de todas as profecias.

José, puxando o burrico, olha para trás e se preocupa. O vento começa a soprar mais forte e mais frio e a jornada agora é mais lenta e penosa, nos declives mais acentuados da estrada que serpenteia pelo vale e pelos contrafortes de formações rochosas. E há muitas pessoas e alarido em torno deles. De tempos em tempos, são obrigados a parar e dar passagem a outros viajantes em marcha mais apressada ou para superarem com extremo cuidado os trechos mais íngremes. Quase todos os peregrinos têm o mesmo destino e o mesmo objetivo: apresentarem-se às autoridades em Belém e cumprirem as normas do novo recenseamento imposto pelas autoridades romanas. 

Em meio a um acontecimento regional e específico da história humana, está prestes a ocorrer o mais extraordinário evento da humanidade. Em meio ao burburinho e à agitação de toda aquela gente, Maria recebeu o primeiro sinal da manifestação da vinda do Messias prometido. Um murmúrio de humanidade no sagrado ventre consubstancia em definitivo o Mistério da Anunciação. Um leve estremecimento acaba de prenunciar o nascimento de Deus. 


As ruas estreitas se consomem de tanta gente. Há um cenário de mercado livre por toda a Belém daqueles dias. Eles acabaram de cumprir os registros formais do recenseamento e agora buscam ansiosamente uma pousada para o pernoite. Não é apenas o albergue principal da cidade que está com a lotação esgotada; as casas se transformaram em emaranhados de pessoas e utensílios, num entra e sai sem fim de gente ruidosa e apressada. Há o burburinho comum das crianças e o festim grotesco das ofertas gritadas e dos negócios de ocasião. No vaivém das ruas apinhadas e confusas, Maria e José buscam refúgio fora da cidade, além das casas mais ermas e mais afastadas. Aqui e ali ainda se veem acampamentos rústicos, improvisados, à guisa de refúgio de grupos mais ou menos numerosos. Além, mais além, as formações calcárias formam reintrâncias e cavernas, que muitas vezes são utilizadas como estrebarias pelos mercadores das grandes rotas até Jerusalém.

José leva o burrico na direção destas cavernas. Ele não sente no rosto o vento frio da tarde que se desvanece, nem o cansaço da longa jornada. Seu pensamento é todo, totalmente por Maria. A preocupação em encontrar um lugar digno para ela o consome por completo. A ânsia de dar descanso e refúgio a Maria tolhe todos os seus sentidos e atividades. A dimensão do mistério insondável o atordoa e o aniquila: a humanidade de José sente o peso incomensurável dos desígnios da Providência.

Passa adiante da primeira entrada, que não passa de um buraco estreito e irregular na rocha. A seguinte é pouco melhor do que isso. As demais mostram-se maiores e limpas, mas já estão todas ocupadas. As pessoas amontoam-se nos espaços exíguos em silêncio, homens na sua grande maioria, cercados por animais, feno e capim. São estrebarias que agora acomodam pessoas. José se inquieta ainda mais. Não há possibilidade aparente de privacidade para o nascimento de Jesus, não há lugar nenhum para um abrigo ainda que provisório. 

Avançado o paredão rochoso, José agora se depara com um cinturão de amendoeiras que margeiam o caminho adiante, que se abre, então, para campos e vales ao longe. Bem distante, na encosta suave do outro lado do vale, consegue divisar um pastor empurrando o seu rebanho. Nesse momento, sente os ombros dolorosamente pesados e seu andar vacilante. Seu olhar havia percorrido cada entrada rochosa e cada rosto humano em busca de recepção e de um gesto de boa vontade. E nada. Agora volve o seu olhar para Maria, como que pedindo perdão pela sua incapacidade e incerteza daquele momento. A humanidade inteira geme as suas ânsias pelo olhar desconsolado de José. 

Ao passar pela terceira gruta, Maria sentiu, como uma vibração percorrendo todo o seu corpo, o sopro do Espírito de Deus. Desde o primeiro sinal, recolhera-se, ainda com maior devoção, à oração de dar glórias ao Pai pelo que estava prestes a acontecer. Como serva da Anunciação, era agora a mesma serva como Mãe de Deus. E, nesse momento, pressentira o segundo sinal. A Divina Promessa iria dispensar a Redenção em breve à humanidade pecadora. Ao olhar para José, compreendendo a sua aflição e seu desapontamento, fitou-o com os olhos da perseverança e da fé inquebrantáveis e o brilho deste olhar emanava a própria luz de Deus.

Diante do olhar de Maria, a humanidade de José se detém e suas dúvidas se dissipam. Então, ele avança mais vinte, mais cinquenta metros, contorna as árvores e avista a gruta que emerge da continuação do maciço rochoso à esquerda. É e será sempre a visão do paraíso. Não é exatamente uma gruta, mas uma escavação que avança em profundidade na rocha e é protegida por uma murada frontal de pedras mal alinhadas, trançadas com restos de vigas de madeira, espalhados em desordenada profusão, que fecham de maneira irregular a entrada do lugar, protegendo-o dos ventos e das intempéries. Escondida, erma, isolada, bendita seja a gruta de Belém! 

Ela está suja, úmida, mal cuidada, mas não de todo desconhecida ou abandonada, porque um boi ali se encontra, com bastante feno e água. Há sujeira e palha solta em todos os lugares. Num canto, um arranjo de pedras enegrecidas indica o lugar de costume de se acender o fogo. Aliviado e feliz, José se consome nos arranjos práticos do refúgio improvisado. Ajuda Maria a entrar na gruta e se apressa a alimentá-la e a acomodá-la o melhor possível; dá feno e água ao burrico que é levado para junto do boi, monta um tablado de feno no chão, dispondo cuidadosamente os fardos; com paus e pedras, faz um arremedo de cercado em torno de Maria e o cobre com a sua manta grossa de viagem; empilha num canto os troncos e os pedaços de madeira espalhados; limpa as pedras e o chão com feixes de palhas e, com gravetos e pedaços de madeira seca, acende o fogo. A pequena luz se espalha pela escondida, erma, isolada, bendita gruta de Belém! 


O silêncio da gruta é quebrado apenas pelo crepitar das últimas chamas. O fogo aqueceu o espaço limitado e agora existe mais penumbra do que claridade. O fogo emoldura em repentes luminosos o rosto de José enquanto, pelas aberturas das muradas de pedras, o luar desenha feixes de luzes prateadas que cortam a escuridão que envolve toda a gruta. De repente, Maria põe-se de joelhos em contrita oração. Prostra-se com o rosto no chão e José percebe, apesar de toda a escuridão, o que está para acontecer. Coloca-se também de joelhos, também em fervorosa oração, louvando a Deus por ser testemunha e personagem de mistério tão extraordinário. Em muda expectativa, contempla o perfil de Maria apenas esboçado na escuridão da gruta.

A princípio, supõe ver os feixes de luar convergirem para o rosto de Maria ou auréolas de luz provenientes do fogo a envolverem completamente. Mas sabe que é muito mais que isso: uma luz, de claridade e brilho espantosos, nasce, emana e flui dela, enchendo a gruta de uma tal iridescência, que todas as coisas perdem a forma, o volume e a natureza material. Maria não se transfigura em luz, ela é a própria luz! O rosto de Maria é luz, as vestes de Maria são luz, as mãos de Maria são luz. Mas não é uma luz deste mundo, nem o brilho do cristal mais polido, nem o resplendor do diamante mais lapidado, nem a etérea luminosidade dos átomos em fissão; tudo isso seria uma mera pátina de luz. Maria torna-se um espelho do próprio Deus, da qual emana a luz do Céu!

José se transfigura neste redemoinho de luz sem ser a luz. Seus olhos puderam contemplar o terceiro e definitivo sinal da Natividade de Deus. E trêmulo, mudo, pasmado, contempla o recém-nascido acolhido entre os braços de Maria, recebendo o primeiro carinho e o primeiro beijo da Mãe Imaculada. Pressuroso e em êxtase, prepara a humilde manjedoura, o primeiro altar de Jesus na terra. O Filho do Deus Vivo já habita entre nós!

(Adaptação livre do autor do blog sobre os eventos prévios ao nascimento de Jesus)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

FÉ E AMOR CRISTÃO NA IGREJA PRIMITIVA

Epístola de Santo Inácio de Antioquia à Igreja de Esmirna

(De Inácio, Bispo de Antioquia)

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja de Deus Pai e de Jesus Cristo amado, Igreja que encontrou misericórdia em todo dom da Graça, repleta de fé e amor, sem que lhe falte dom algum, agradabilíssima a Deus e portadora de santidade, situada em Esmirna, Ásia. Cordiais saudações em espírito irrepreensível e na Pa­lavra de Deus.

1. Glorifico a Jesus Cristo, Deus, que vos fez tão sábios. Cheguei a saber efetivamente que estais aparelhados com fé inabalável, como que pregados de corpo e alma na Cruz do Senhor Jesus Cristo, confirmados na caridade no Sangue de Cristo, cheios de fé em Nosso Senhor, que é de fato da linhagem de Davi, segundo a carne, Filho de Deus porém consoante a vontade e o poder de Deus, de fato nascido de uma Virgem e batizado por João, a fim de que se cumpra nEle toda a justiça. Sob Pôncio Pilatos, e o tetrarca Herodes foi também de fato pregado [na Cruz], em carne, por nossa causa – fruto pelo qual temos a vida, pela Sua Paixão bendita em Deus – a fim de que Ele por sua ressurreição levantasse seu sinal para os séculos em beneficio de seus santos fiéis, tanto judeus, como gentios, no único corpo de sua Igreja*.

* [una, santa, católica e apostólica]

2. Tudo isso padeceu por nossa causa, para obtermos salvação. Padeceu de fato, como também de fato ressuscitou a si próprio, não padecendo só aparente­mente, como afirmam alguns infiéis. Eles é que só vivem aparentemente, e, conforme pensam, também lhes sucederá: não terão corpo e se assemelharão aos demônios.

3. Eu porém sei e dou fé que Ele, mesmo depois da ressurreição, permanece em sua carne. Quando se apresentou também aos companheiros de Pedro, disse-lhes: 'Tocai em mim, apalpai-me e vede que não sou espírito sem corpo'. De pronto nEle tocaram e creram, entrando em contato com seu Corpo e com seu espírito. Por isso, desprezaram também a morte e a ela se sobrepuseram. Após a ressurreição, comeu e bebeu com eles, como alguém que tem corpo, ainda que es­tivesse unido espiritualmente ao Pai.

4. Encareço tais verdades junto a vós, caríssimos, embora saiba que também vós assim pensais. Quero prevenir-vos contra os animais ferozes em forma humana. Não só não deveis recebê-los, mas, quanto possível, não vos encontreis com eles. Só haveis de rezar por eles, para que, quem sabe, se convertam, coisa por certo difícil. Sobre eles, no entanto, tem poder Jesus Cristo, nossa verdadeira vida. Pois, se nosso Senhor só realizou as obras na aparência, então também eu estou preso só aparentemente. Por que então me entreguei a mim mesmo, à morte, ao fogo, à espada, às feras? Mas estar perto da espada é estar perto de Deus; encontrar-se em meio às feras é encontrar-se junto a Deus, unicamente, porém, quando em nome de Jesus Cristo. Para padecer junto com Ele, tudo suporto, confortado por Ele, que se tornou perfeito homem.

5. Alguns O negam, por ignorância, ou melhor, foram renegados por Ele, por serem antes advogados da morte do que da verdade. A estes não conseguiram converter as profecias, nem a lei de Moisés, nem mesmo até hoje o Evangelho e as torturas de cada um de nós. Pois sobre nós professam eles a mesma opinião. De que me vale um homem – ainda que me louve – se blasfema contra meu Senhor, não confessando que Ele assumiu carne? Quem não o professa negou-O por completo e carrega consigo seu cadáver. Os nomes deles, uma vez que são infiéis, não me pareceu necessário escrevê-los; preferiria até nem lembrar-me deles, enquanto se não converterem à Paixão, que é a nossa Ressurreição.

6. Ninguém se iluda: mesmo os poderes celestes e a glória dos anjos, até os arcontes – visíveis e invisíveis – hão de sentir o juízo, caso não crerem no sangue de Cristo. Compreenda-o quem for capaz de o compreender*. Ninguém se ufane de sua posição, pois o essencial é a fé e o amor, e nada se lhes prefira. Considerai bem como se opõem ao pensamento de Deus os que se prendem a doutrinas heterodoxas a respeito da graça de Jesus Cristo, vinda a nós. Não lhes importa o dever de caridade, nem fazem caso da viúva e do órfão, nem do oprimido, nem do prisioneiro ou do liberto, nem do que padece fome ou sede.

* [Jesus Cristo é o único Deus, a Verdade de Deus é única, a Igreja guardiã da Verdade Divina é única].

7. Abstêm-se eles da Eucaristia e da oração, por­que não reconhecem que a Eucaristia é a carne de nosso Salvador Jesus Cristo*, carne que padeceu por nos­sos pecados e que o Pai, em sua bondade, ressuscitou. Os que recusam o dom de Deus, morrem disputando. Ser-lhes-ia bem mais útil praticarem a caridade, para também ressuscitarem. Convém, pois, manter-se longe de tais pessoas, deixar de falar delas em particular e em público, e passar toda a atenção aos Profetas, especialmente ao Evangelho, pelo qual se nos patenteou a Paixão e se consumou a Ressurreição. Fugi das dissensões, fonte de misérias.

* [Fora da Igreja não há salvação]. 

8. Sigam todos ao bispo, como Jesus Cristo ao Pai; sigam ao presbitério como aos apóstolos. Acatem os diáconos, como à lei de Deus. Ninguém faça sem o bispo coisa alguma que diga respeito à Igreja. Por legítima seja tida tão somente a Eucaristia, feita sob a presidência do bispo ou por delegado seu. Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja Católica*. Sem o bispo, não é permitido nem batizar nem celebrar o ágape. Tudo, porém, o que ele aprovar será também agradável a Deus, para que tudo quanto se fizer seja seguro e legítimo.

* [denomina a verdadeira Igreja de Cristo como Católica, já nos primórdios do Cristianismo; ah se os protestantes lessem os Padres da Igreja!]

9. No mais, é razoável voltarmos ao bom senso, e convertermo-nos a Deus, enquanto ainda for tempo*. Bom é tomarmos conhecimento de Deus e do bispo. Quem honra o bispo será também honrado por Deus; quem faz algo às ocultas do bispo presta culto ao diabo. Que tudo redunde em graça a vosso favor, pois bem o mereceis. Vós me confortastes de toda maneira e Jesus Cristo a vós. As provas de carinho me seguiram, presente estivesse eu ou ausente. Que Deus seja a paga, por cujo amor tudo suportais, pelo que também haveis de chegar a possuí-lo.

* [eis o Advento do Senhor, tempo por excelência para penitência e conversão] 

10. Fizestes bem em receber, como diáconos de Cristo Deus, a Filon e Reos Agatopos – que pela causa de Deus me seguiram. Agradecem eles ao Senhor por vós, porque os confortastes de toda a sorte. Nada disso se perderá para vós. Dou-vos como preço de resgate meu espírito e minhas algemas que vós não desprezastes e de que também não vos envergonhastes. Jesus Cristo também de vós não se envergonhará, Ele que é a fé perfeita.

11. Vossa oração aproveitou à Igreja de Antioquia na Síria, de onde vim preso com grilhões, tão do agrado de Deus, e donde a todos saúdo, embora não seja digno de ser de lá, eu, o menor dentre eles. Mas, pela vontade de Deus, fui tido por digno, não pelo julgamento de minha consciência, mas sim pela graça de Deus. Desejo que ela me seja concedida em sua perfeição, a fim de que eu, por meio de vossa oração, encontre a Deus. No entanto, para que vossa obra seja per­feita, tanto na terra como no céu, cumpre que a Vossa Igreja, para honra de Deus, escolha um seu legado que vá até a Síria, para se congratular com eles, porque gozam novamente de paz, readquiriram sua grandeza e lhes foi restaurado o corpo. É a meu ver de fato obra digna enviardes um legado de vosso meio, com uma carta, a fim de celebrar com eles a paz que lhes foi con­cedida, consoante a vontade de Deus, pois já chegaram ao porto, graças à vossa oração. Sendo perfeitos, pensai também no que é perfeito, pois se tencionais agir bem, Deus está igualmente disposto a vo-lo conceder.

12. Saúda-vos a caridade dos irmãos de Trôade, donde vos escrevo por intermédio de Burrus, a quem enviastes juntamente com os efésios, vossos irmãos, para me fazer companhia. Animou-me em todo sentido. Todos deveriam imitá-lo como exemplo no serviço de Deus. A graça o recompensará em todo sentido. Saudações ao bispo, digno de Deus, a vosso presbitério tão agradável a Deus, aos diáconos, meus companheiros de serviço a cada um em particular e a todos em geral, em nome de Jesus Cristo, na sua carne e no seu sangue, na Paixão e na Ressurreição, em corpo e alma, na unidade de Deus e na vossa. Para vós a graça, a misericórdia, a paz, e a paciência para todo sempre.

13. Saudações às famílias de meus irmãos, com suas esposas e filhos e com as virgens, chamadas viúvas. Passar bem na força do Pai. Saudações da parte de Filon que está comigo. Meus cumprimentos à família de Tavia, a quem desejo se robusteça na fé e na caridade, tanto corporal como espiritual. Saudações a Alceu, nome tão querido, a Dafnos, o incomparável e a Eutecno. Enfim, a todos nominalmente. Passar bem na graça de Deus.