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sábado, 3 de fevereiro de 2024

UMA PROFECIA FRANCISCANA


Conta-se que Nostradamus  [ou Michel de Nostredame (1503 - 1566), farmacêutico e médico francês que alcançou notoriedade mundial pela sua suposta capacidade de prever o futuro] encontrava-se, certa ocasião, em viagem a cavalo às portas da cidade italiana de Ancona quando se deparou diante de três monges franciscanos, vestidos como mendigos, nos seus votos de fé e da sua adesão à pobreza de Cristo.

Mal eles haviam trocado um olhar com o viajante solitário, quando Nostradamus os surpreendeu ao desmontar rapidamente e se ajoelhar diante de um deles, prostrando a cabeça humildemente. Os monges surpresos insistiram para que ele se levantasse, mas Nostradamus recusou, dizendo: 'Devo me curvar e dobrar os meus joelhos diante de Sua Santidade'.

O objeto de sua atenção era o Irmão Felice Peretti que, antes de abraçar a vida monástica, havia sido um simples pastor de porcos. Os franciscanos partiram desse encontro um tanto quanto inquietos mas o fato é que, 40 anos depois, em 1585, Felice Peretti ascendeu ao trono de São Pedro sob o nome de Sisto V. 

No dia em que foi coroado apóstolo do cristianismo, Nostradamus já estava morto há muitos anos, mas o antigo pastor de porcos, promovido a pontífice, lembrou-se do viajante desconhecido que, quatro décadas antes, havia previsto tão grande honra no seu destino. Seu papado durou apenas 5 anos (1585 - 1590) mas, fiel à retidão franciscana, realizou uma obra monumental.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

A ALEGRIA PERFEITA


Numa tarde de inverno, Frei Francisco voltava de Perugia para Santa Maria degli Angioli, na companhia de Frei León. O tempo estava ruim: a neve cobria as encostas da montanha. Caía na planície uma chuva pesada e gélida, com rajadas de vento em furiosa violência. As trilhas estavam desertas e lamacentas.

Os dois frades, com os capuzes na cabeça e as túnicas molhadas coladas ao corpo, caminhavam silenciosamente um atrás do outro, atentos onde colocar os pés descalços para não escorregar. De repente, como se desse voz a uma meditação interior, o santo começou a dizer ao companheiro que estava alguns passos à sua frente:

- Frei León, mesmo que os frades menores tenham dado ao mundo um grande exemplo de santidade, ainda assim isso não é a alegria perfeita.

Frei León não respondeu nada. Ele continuava o seu caminho, olhando para cima de vez em quando. Santa Maria degli Angioli ainda estava longe! Passado algum tempo, o santo, quebrando novamente o silêncio, exclamou: 
- Frei León, ainda que os frades menores pudessem dar vista aos cegos, curar os aleijados, fazer ouvir aos surdos, dar fala aos mudos, expulsar os demônios e até ressuscitar os mortos, essa ainda não é a alegria perfeita.

Percorrida depois mais uma longa distância, Francisco tornou a dizer:

- Frei León, se um frade menor soubesse falar todas as línguas, se conhecesse todas as ciências, se conhecesse todas as escrituras, se pudesse prever o futuro e ler o segredo de consciências, ainda assim também nisso não há alegria perfeita.

Frei León parecia não prestar atenção às palavras do santo. No entanto, ponderava o que ouvia em seu coração, tentando entender o significado daquelas palavras. Enquanto isso, a chuva continuava a cair, encharcando os dois frades até os ossos e o vento frio castigava implacavelmente as pernas desnudas dos dois frades.

Ainda assim, passadas algumas centenas de metros, Francisco continuou a sua ladainha:

- Frei León, ovelha de Deus, ainda que os frades menores pudessem falar com os anjos, se conhecessem os mistérios das estrelas, se lhes fossem revelados todos os tesouros da terra e os poderes dos pássaros, dos peixes, dos animais, homens, árvores, pedras e águas, eu vos digo e repito que esta também ainda não é a alegria perfeita.

Cerca de dois quilômetros depois, tomado de maior entusiasmo e com voz mais alta, quase gritando, acentuou:

- Frei León, também se o frade menor pudesse pregar tão bem e até converter todos os fiéis em nome de Jesus Cristo, também nisso não haveria a alegria perfeita.

Frei León finalmente saiu do seu silêncio e perguntou humildemente:

- E então, padre, eu te imploro em nome de Deus que me diga então onde está a alegria perfeita.

E São Francisco lhe respondeu assim:

- Uma vez chegados a Santa Maria degli Angioli, encharcados de chuva, tremendo de frio, lamacentos até os olhos e atormentados pela fome... se batermos na porta e o porteiro, olhando com raiva pelo buraco nos ver e começar a gritar: 'Fora, criminosos e mentirosos, vocês são ladrões que procuram roubar a esmola dos pobres'; e se suportarmos pacientemente todos esses insultos, Frei León, saiba que nisso está a alegria perfeita.

E se nós, oprimidos pela fome e pela noite, tremendo de frio, batermos à porta e batermos cada vez mais alto e, chorando, suplicarmos ao porteiro que nos deixe entrar pelo amor de Deus e ele, saindo com uma clava nas mãos, nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão, arrastando-nos na neve, e nos bater sem dó e nem piedade e continuar a nos insultar e a nos maldizer e bem... se suportarmos todas estas coisas com paciência e alegria, pensando nos sofrimentos de Jesus Crucificado, meu bom Frei León, saiba que nisto, e somente nisto, está a alegria perfeita.

E agora, Frei León, concluindo toda essa nossa conversação... Não podemos negar a nós mesmos as graças e as belas qualidades que possuímos. São estes dons de Deus que, uma vez que nos tenha dado, pode também tirá-los de nós. Só uma coisa podemos realmente nos orgulhar por ser totalmente nossa: 'aceitar com amor os sofrimentos, as injúrias e as dificuldades da vida'. Assim damos verdadeira glória a Deus e os nossos corações se alegrarão na expectativa da recompensa eterna.

(Excerto da obra 'Florecillas de São Francisco de Assis' - Florecilla VIII, com adaptações)

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXIII)

Hoje - um hoje nos tempos - será o meu último dia sobre a terra. O hoje que não vai ter amanhã para mim. O hoje que será o primeiro dia da eternidade, que vai ter começo neste hoje e não terá fim jamais. Um hoje que me faz órfão do mundo e cidadão da vida eterna. Que Deus, na sua infinita misericórdia, tenha escrito meu nome por inteiro no Livro da Vida e que, mais ou menos tempo depois do meu último hoje, eu possa ter como herança a face de Deus.

Assim rezava e assim refletia um velho lenhador, de mente ainda muito lúcida apesar dos anos avançados. Sentado num banco rústico à porta da sua humilde morada, em lugar ermo e praticamente abandonado pela outrora ativa vizinhança, olhava a paisagem tão conhecida de árvores e campos, de céu e terra, de nuvens e pedras. Sabia de cor cada desvão de caminho, cada trilha daquelas matas, cada lugar de feliz descanso e calmaria, cada vertente de mirante singular. Havia sido passo e contrapasso por tantas labutas, na lida diária e contínua de buscar madeira de qualidade, tornear bancos e mesas, viver pelo pão sagrado de cada dia.

Havia sido uma criança feliz nos tempos do nada; um jovem vigoroso de alma lavada; um homem forjado na robustez de um carvalho. Celina tinha sido - e ainda era - o amor pelas coisas humanas, a alma gêmea que não havia vingado porque o mundo dela tinha assumido dimensões maiores do que os seus. E, como ela, tantos outros partiram ou morreram, fizeram escolhas de vida, fizeram crescer os sonhos além do domínio dos olhos. E ele ficara, como um eremita à beira de um caminho que, com o passar do tempo, tornou-se apenas eremita dos próprios e tão bem conhecidos caminhos de si mesmo.

Sol ou chuva, não importava. Mudava tão somente o trabalho cotidiano de ir até a mata em busca da madeira ou, no pequeno anexo da casa à guisa de oficina, moldar a madeira como peças de móveis. E, uma vez por semana, entregar a mercadoria ao comprador de sempre, pelo preço de sempre, que sempre vinha até ali para levar as peças previamente encomendadas e lhe trazer o sustento necessário. O preparo das refeições, a limpeza da pequena morada, as orações da noite... Tudo fluía como o riacho no talvegue do vale; tudo se passava como uma história de vida sem grandes atrativos ou mudanças. Um tesouro de graças aparentemente escondido: uma vida humana não vale muito mais do que todos os lírios do campo ou a vida de muitos pardais?

Mas agora o hoje que não tem amanhã, que sempre pode ser agora, parecia muito perto de ser a qualquer hora. Os arranjos práticos já estavam bastante preparados: o caixão simples de madeira, a campa final, a doação das ferramentas e acessórios, o abandono da morada... Queria apenas fazer mais do que não fazem quase sempre os homens de sempre: aproveitar o tempo das últimas miragens para pensar nos amanhãs sem fim: 'Que Deus, na sua infinita misericórdia, tenha escrito meu nome por inteiro no Livro da Vida e que, mais ou menos tempo depois do meu último hoje, eu possa ter como herança a face de Deus'. 

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

quarta-feira, 13 de abril de 2022

DO FAZ DE CONTA... (POSTAGEM 10 ANOS DE SENDARIUM)


Faz de conta que você é aquele deficiente físico que pede esmolas perto do local onde você trabalha;
faz de conta que você é aquele bêbado que passou gritando pela sua rua a noite passada;
faz de conta que você é o andarilho que quase você atropelou na estrada um dia;
faz de conta que você é aquele velho pai doente que a família internou em algum asilo...

Faz de conta que você é este moço angustiado e sem chão que acaba de ser despedido da sua empresa;
faz de conta que você é este homem simples e abatido, à espera da consulta que não vem, em um posto de saúde qualquer;
faz de conta que você é esta mulher desesperada que ronda por tantos hospitais, em busca de um atendimento médico de emergência;
faz de conta que você é o rapaz que assassinou o amigo num bar da periferia por causa de uma dívida irrisória, notícia que você ficou sabendo com a mesma indiferença da sua curiosidade...  

Faz de conta que você é o operário da construção civil que caiu de um andaime do 7⁰ andar daquele prédio de apartamentos de alto luxo no centro que você sempre sonhou em possuir;
faz de conta que você é um dos filhos deste homem;
faz de conta que você é um dos pais de uma prostituta ou de uma garota de programa;
faz de conta que você é a filha desta prostituta com um homem que poderia ser você...

Faz de conta que você é aquele analfabeto que só é menos ignorante que a ignorância do seu desprezo;
faz de conta que você é aquele ingênuo ludibriado num negócio que só resultou em vantagens para você;
faz de conta que você é aquele trabalhador cuja medida de valor é dada pelo salário mínimo que recebe;
faz de conta que você é aquele homem de pouca instrução que nunca terá quaisquer oportunidades nos ambientes em que você vive...

Faz de conta que você é uma das milhares de crianças que estão morrendo de fome em algum lugar do mundo, que você julga não ser o seu;
faz de conta que você é um dos pais destes milhares de jovens destruídos pelas vícios e pelas drogas;
faz de conta que você é uma mulher refugiada que foge de tudo para o nada, pelo horror das guerras;
faz de conta que você é a mãe de um soldado que não vai voltar para casa...

Faz de conta que você é o pobre coitado que é o motivo geral de deboches e zombarias das crianças do seu bairro;
faz de conta que você é um homem que padece e que sabe padecer de uma doença dolorosa e terminal;
faz de conta que você é o irmão de um ladrão ou de um assassino agora perseguido por toda a polícia local;
faz de conta que você é a esposa ou a filha deste homem...

Faz de conta que você é um morador de rua, o mais miserável, o mais desesperado, o menos possuído de qualquer dignidade humana;
faz de conta que você é este homem que acorda todo dia sem saber como vai conseguir alimentar a sua família;
faz de conta que você é uma filha desse homem;
faz de conta que você é o feto destruído pelo aborto que você defenderia para esta criança não ter nascido...

Mas pare de fazer de conta que nada disso é da sua conta!
Ou então, quando tudo o mais nesta vida não fizer sentido,
na hora de prestar contas ao Pai,
proponha a Deus brincar de faz de conta!

(Arcos de Pilares)

Aos leitores do blog: para você e sua família, o meu agradecimento é este texto de minha autoria, em homenagem aos 10 anos do blog SENDARIUM. Obrigado a todos pelas visitas e que Deus lhes dê uma Semana Santa plena de graças e bênçãos.

terça-feira, 29 de março de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXII)

(Cristo com o braço direito desprendido - Igreja de San Xoán de Furelos/Espanha)

O CRISTO CRUCIFICADO DE FURELOS

Pe. Suarez estava particularmente cansado. Havia atendido quase uma centena de confissões naquela tarde escaldante; o ar parecia impregnado pelo calor de uma fornalha latente e nem mesmo uma leve brisa ousava empurrar os galhos do grande carvalho exposto pelas janelas totalmente abertas da igreja. Ainda no confessionário, reclinou-se um pouco e meditou vagamente sobre o tempo, enquanto esperava qualquer vivalma tardia para o sacramento. Restava apenas o silêncio, o calor, a tarde que se ia...

Levantou-se e ajoelhou-se aos pés do altar, fixando os seus olhos na imagem de Cristo Crucificado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me todo dia, no cumprimento de Vossa Santa vontade. Dai-me...' Interrompeu a oração de súbito ao ouvir os passos pesados de alguém entrando na igreja. Virou-se e viu o homem tardio, das horas passadas. Certamente não era de Furelos porque nunca o tinha visto. Trajava-se com esmero, embora com roupas simples. O dono de alguma taberna talvez? Um comerciante de fora? Um marino?

- Padre, eu queria me confessar...

O Pe. Suarez concordou com um leve suspiro e o encaminhou ao confessionário. Ouviu do homem uma confissão segura, contrita, demorada. Havia muito tempo que não se confessava e, naquele lugar remoto para ele, sentira a necessidade da fazer a confissão não feita. Após ouvir a sua confissão, com sólida convicção, o padre lhe deu as penitências devidas e o perdoou:

- Eu absolvo os teus pecados... 

O homem agradeceu e se foi e o Pe. Suarez retomou a sua lida, com e sem tardes calorentas. Cerca de um mês depois, a cena se repetiu quase como se repetem as horas de cada dia: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me...'. De novo, a tarde sufocante de calor, de novo o homem tardio.

No mesmo confessionário, o sacerdote ouviu com certa apreensão a confissão dos mesmos pecados, repetidos, porém, na escala de um tempo do mês anterior. As penitências dadas foram agora mais severas e dadas sem a mesma convicção da primeira vez, pela negligência do pecador em se corrigir de suas tantas faltas rotineiras.  

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. 

E o homem tardio se foi como se vão os dias. E, tão certo como o calor abafado das tardes de verão, retornou à igreja de Furelos e ao confessionário conhecido. Nova confissão, novas admoestações de correção de vida, novas penitências.

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. Tenha em mente como os teus pecados ofendem a Bondade infinita...  
- Eu sei, padre, mas o meu arrependimento é sincero.
- É preciso mais que o arrependimento, meu filho, é preciso a mudança de vida. Não podemos fazer pouco caso da misericórdia de Deus. Vá e não peque mais...

E, ainda outra vez, um mês depois, o homem da confissão tardia buscou uma nova confissão. Mas, neste dia, investido de certo temor, antecipou-se à saída do sacerdote do confessionário, permanecendo como o último da fila dos pecadores. Ao iniciar, porém, a mesma ladainha dos seus pecados de sempre, o velho sacerdote o repreendeu severamente:

- Não vou mais absolver os teus pecados. Seu arrependimento e contrição não são sinceros. Eu não vou fazer mais esse teatro por você. 
- Mas, padre, eu venho me confessar porque sei que continuo pecando...
- Não absolvo mais os teus pecados! Vá até o altar, reze a Deus com contrição e peça o perdão dos seus pecados e da sua falta de persistência diretamente para o Cristo Crucificado... 

E o pecador, pesaroso, dirigiu-se ao altar. O Pe. Suarez foi em seguida também ao altar, ajoelhando-se num banco lateral ao homem que não havia confessado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me...' De repente, o braço direito do Crucificado desprendeu-se da cruz e a mão ensanguentada do Senhor foi estendida na direção do pecador, fazendo sobre a sua cabeça o sinal de absolvição de todos os seus pecados. E, volvendo o rosto ferido e ensanguentado na direção do Pe. Suarez, o Crucificado lhe falou ao coração:

- Não fostes tu que derramastes o Sangue por ele...

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

quarta-feira, 9 de março de 2022

'SENHOR, AJUDA A MINHA INCREDULIDADE!'


Era uma vez um sacerdote, um sacerdote que duvidava: duvidava que Cristo fosse o Filho de Deus, duvidava da sua Ressurreição, duvidava de que estivesse realmente presente na Eucaristia, duvidava de que a ele, sacerdote, pudesse ser conferido o poder de transformar, pelas palavras da consagração, o pão e o vinho no Corpo e no Sangue de Cristo. Duvidava até da existência de Deus. Essa dúvida era para ele um tormento contínuo. Às vezes, invadia-o por inteiro, e a sua vida parecia-lhe um sem sentido e o seu ministério, uma mentira. Outras vezes, abrandava um pouco, deixando-lhe o terrível remorso de ter consentido.

Ele sabia, é certo, que não era nem o primeiro nem o único a ter dúvidas. Lembrava-se de que um mestre em teologia tinha ido, certo dia, confiar as suas dúvidas ao bispo de Paris. O bispo Guillaume, depois de se ter certificado de que o mestre em teologia lutava com todas as suas forças contra essas dúvidas e que não desejava por nada neste mundo abandonar-se a elas, tinha-lhe dito:

- Sabeis muito bem, mestre, que o rei da França está em guerra com o rei da Inglaterra, e que a praça forte mais exposta e mais próxima da frente de batalha é o castelo de La Rochelle, no Poitou. Se o rei vos tivesse confiado a guarda de La Rochelle e a mim a do castelo de Montlhéry, bem em paz no coração da França, a qual de nós dois, no fim da guerra, deveria ele mais reconhecimento por ter guardado o seu castelo?
- A mim, que teria defendido La Rochelle.
- Pois Deus - concluiu o bispo - agradece-vos muito mais que lhe permaneçais fiel do que a mim, que fui poupado de toda dúvida. O vosso coração é La Rochelle e o meu, Montlhéry.

O sacerdote pensava com frequência nesse exemplo, mas isso não lhe dava muito consolo. Também ele lutava contra a dúvida, também ele não teria, por nada neste mundo, cedido à incredulidade. Mas podia submergir a qualquer momento. Podia perder La Rochelle. E que reconhecimento esperar, para que continuar a lutar, se já não cria na existência do 'rei da França'?

O seu maior sofrimento era ter de celebrar a Santa Missa todos os dias. Sentia-se indigno. Sabia que quem come a carne de Cristo e bebe o seu sangue indignamente, come e bebe a sua própria condenação (1 Cor 11, 27). E ele, que consagrava o pão e o vinho, que confeccionava o Corpo e o Sangue de Cristo antes de comê-lo e de bebê-lo, antes de distribuí-lo aos seus irmãos, em que condenação não incorria!

E se a dúvida fosse fundada? Para que então essa mascarada, essa palhaçada, dia após dia? Nesse caso, indigno não seria o sacerdote nele, mas o homem, que se enganava a si mesmo e enganava os outros, que pregava aquilo que sabia ser falso, que prometia uma salvação ilusória, que consentia em viver cercado do respeito, que se prestava a um estado que ele mesmo já não respeitava.

Certa manhã, como na véspera, e na antevéspera, e no dia anterior, como todas as manhãs, subia angustiado os degraus do altar. As únicas palavras de toda a Missa que lhe saíam do fundo do coração, as únicas que podia pronunciar sem mentir- assim lhe parecia- acabava de dizê-las; eram os versículos do salmo que o oficiante recita antes de subir ao altar, para se preparar para o ofício divino:
- Quare me repulisti, et quare tristes incedo... - 'Por que me rejeitaste, meu Deus, e por que ando triste sob a opressão do inimigo? Por que está tristes, ó minha alma? E por que me inquietas?'
Mas parecia-lhe estar mentindo já o final dessas orações : 'Subirei ao altar de Deus, do Deus que alegra a minha juventude...' E, ao traçar sobre si mesmo o sinal da cruz, não cria naquilo que o ajudante proclamava: 'A nossa salvação está no nome do Senhor...'

Naquele dia, à medida que a missa avançava, mais se convencia a cada instante de que já não era habitado pela dúvida, mas pela certeza de não crer mais. No entanto, essa certeza não lhe trazia paz alguma, antes o dilacerava, fazendo-o sofrer como por um amor traído. Agora, tinha de pronunciar as vãs palavras da consagração sobre esse pão e esse vinho, que depois disso - tinha a certeza - continuariam a ser pão e vinho, e nada mais:
Accipite et manducate ex eo omnes: hoc est enim corpus meum - 'tomai e comei todos vós, este é o meu corpo'.
E elevou a hóstia para apresenta-la à adoração dos fiéis, fixando os olhos com angústia nesse círculo de farinha branca e dura.

Soaram os três toques da sineta, seguidos do seu repique. Os assistentes baixaram a cabeça. Como prevê a liturgia, adorou a hóstia com uma genuflexão e preparava para depô-la na patena e tomar o cálice, quando percebeu de repente que ela sangrava. Sangrava de verdade. Era sangue o que corria sobre a toalha do altar, havia sangue nos seus dedos, sentia-os úmidos. Subiram-lhe lágrimas aos olhos, a voz se lhe embargava. No entanto, conseguiu de alguma forma chegar até o fim da missa, sustentado por essa Presença mais certa do que a de todos os objetos que o cercavam.

Como fizera outrora o mestre parisiense, foi falar com o bispo. Confessou-lhe tudo. A hóstia que sangrava tinha o libertado da sua dúvida, mas apenas para mergulhá-lo numa angústia ainda maior por causa do seu pecado. Esse sinal do Céu marcava a sua condenação, abatia a imprudência sacrílega do sacerdote que tinha profanado em pensamento o Corpo do Senhor, que tinha ousado consagrar as espécies sacramentais e ajoelhar-se diante da hóstia sem reconhecer nela mais do que um pedaço de pão.

O bispo reconfortou-o. O Senhor desejava tanto a sua salvação que chegara ao ponto de favorecê-lo com um sinal miraculoso para arrancá-lo à sua dúvida.
- Mas - objetou o sacerdote - Cristo ressuscitado disse a São Tomé: 'Porque me viste, crês. Felizes os que não viram e creram' (Jo 19,29). Não estive à altura dessa felicidade, dessa benção. Tive de ver para crer.
- É verdade - respondeu-lhe o bispo - mas qual é a fé que não dá lugar a dúvidas? Não duvidar não é crer, é saber, como quem viu.
- Mas uma dúvida como a minha, uma fraqueza tão grande!
- E quem tem força para crer? Nós só podemos esperar fielmente, na dúvida, que nos seja dada essa força. Não foi isso o que fizestes? Não pensais que é necessário muito amor para, mergulhado na dúvida, oferecer-se à fé mesmo antes de crer? Para isso, é necessário o amor mais violento e mais ansioso, como o amor que se experimenta por uma criança doente; conheceis bem esse pai que ouviu da boca de cristo que a fé era necessária para a cura do seu filho e que exclamou...

E o bispo interrompeu-se para deixar que o sacerdote citasse por si mesmo o Evangelho de São Marcos (Mc 9, 24) e fizesse seu o grito daquele pai angustiado:
- Senhor, eu creio, mas ajuda a minha incredulidade!

(Excertos da obra 'O Jogral de Nossa Senhora - Contos Cristãos da Idade Média; Ed. Quadrante, 2001)

sábado, 19 de fevereiro de 2022

CARTAS A MEU PAI (X)

Pai:

Eis-me de volta aqui, depois de tanto tempo. Fiz das minhas andanças memórias de apostolado e, se tardei nessa parada amena, não foi por falta dos muitos passos encaminhados. Tenho ido a tantos lugares, tenho visto tantas coisas... Meu coração experimenta, no caos e reverberação do mundo, a Vossa santa presença em tantas coisas e pessoas! Almas que lhe são muito queridas e que produzem frutos cem por um. F. certamente é uma delas, e como me deleito em acompanhar a caminhada dela até os patamares maiores da graça! Vou recordar-Vos um fato singular dela que acabei de escrever em detalhes no Livro da Vida. 

Semana passada, o pobre homem estava deitado no chão, junto ao ponto de parada do ônibus do seu trajeto diário. Bêbado, quase inconsciente, balbuciando palavras sem sentido... A carteira jogada do lado do corpo, a camisa semi-aberta, os pés calçados apenas por meias... não é que lhe tinham roubado os tênis, presente recente de uma de suas filhas mais velhas? Ele havia gostado daqueles tênis confortáveis, nunca tivera nada igual para colocar nos pés. E agora, andava noite e dia calçado com eles e, quase sempre, orgulhoso de ter algo que pudesse ser realmente e incomensuravelmente seu. 

F. tivera um dia difícil para entregar todas as suas encomendas. Faltavam ainda umas três entregas para fazer e a tarde avançava rapidamente, como se o tempo tivesse mais asas do que deveria ter. Mas ao ver o homem estendido no chão sem sapatos, os cabelos brancos em desalinho e sob o olhar indiferente da meia dúzia de pessoas que estavam na parada e viviam no mundo apenas para esperar o próximo ônibus, parou o mundo porque precisava descer. 

Como a samaritana dos dias atuais, fez o homem assentar encostado à mureta de concreto do ponto de ônibus, numa posição razoavelmente cômoda. Recolheu a carteira - com um único documento de identificação e nenhum dinheiro. Certamente quem lhe roubou os tênis havia surrupiado também o dinheiro da carteira. F. invocou o anjo da guarda, interpelou os presentes, chamou um vizinho e tanto fez que conseguiu o telefone da filha mais velha do senhor caído na rua. E ligou para ela e descreveu a situação e identificou o local e ficou à espera.

E dois ônibus passaram e pessoas foram embora vivendo de ônibus que passam de meia em meia hora. A filha mais velha chegou num carro de um conhecido, lamentou a situação do pai e os tênis roubados e a história acaba aqui, com um final que se pode dizer feliz para alguns. F. arrumou então as suas coisas, que viraram entregas para amanhã. Um dia ela saberá quantas graças e bênçãos Vossas Mãos Divinas derramaram sobre ela naquele dia... e talvez entenda como o tempo dos homens e mulheres deste mundo que têm os olhos voltados para o Céu não se medem em horas.

Feliz é o homem que tem o Senhor como única esperança! Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

PORQUE NÃO SOMOS UM

A redenção de Cristo é uma herança da misericórdia destinada a toda a humanidade, a todos os homens, de toda raça, língua e nação. Mas, pelo atributo do livre arbítrio, grande parte desta mesma humanidade não apenas revogou contra si essa graça extraordinária, como aliou-se de corpo e alma num mergulho sem volta aos porões do abismo. E a única coisa que move toda essa gente é angariar, sufocar, escravizar e corromper ainda muita mais gente no caminho do desvario absoluto.

Perdemos as referências, o conceito do bem e do mal, a transparência das águas tranquilas. Tudo é movido agora pelo embate, pelo ódio enraizado, pela gana dos sentidos, pelo aviltamento do outro. Nada é mais relativo do que a opinião que não se omite, nada é mais afrontoso do que o pensamento de quem ousa confrontar o vazio. Não somos mais criaturas de Deus em terreno baldio nessa terra de lágrimas, somos semideuses demolidores da própria criação, incluindo nós mesmos.

Tudo isso conforma por completo o que há muito deixamos de agir como criaturas de Deus e vivemos exclusivamente sob a força dos impulsos humanos. O homem passou a querer ser apenas a obra do homem. Na verdade, do homem - tecapto, que, paradoxal em tudo, em vez de nos remeter a uma ancestralidade anêmica, projeta agora todas as suas sombras e tentáculos sobre a crença de que serão apenas névoas e fantasmas que se nutrem de vazios quando já não mais se nutrirem de vida. Respiram e procriam como homens, vivem como homens, morrem como homens - sem Deus.

Deus nos criou como criaturas e como herdeiros do Reino dos Céus. E nos dotou de uma alma - epicentro da sua graça infinita de consolação e amor eterno. A redenção de Cristo é um plano de salvação divina para os homens destinados à eternidade com Deus. Não há meio termo possível entre aquele que presta culto a Deus com aquele que se opõe a Deus; não há caminho comum possível e nem direção certa para quem anda em sentidos opostos; não há rota e nem porto seguro para quem se sustenta nas vertigens de senhores das marés; não há Deus como meta possível onde possam almejar descanso os homens que vivem apenas como homens.

Essa é a distância incomensurável sobre dois abismos - Deus e o mundo dos homens. O ecumenismo é um fantoche sem alma, a irmandade universal é uma falácia gongórica, o grito por uma humanidade única é o estertor do magma. Não somos TODOS, nunca seremos TODOS, nem TODOS serão UM. O que devemos - e como devemos crer nisso! - é que podemos ser MUITOS e, pelos frutos de um apostolado de vida inteira, ainda MUITOS de MUITOS mais.

O maior erro do cristão no mundo é querer ponderar os frutos do seu apostolado com as dimensões do mundo; essa visão anêmica e distorcida da graça divina recai comumente na tibieza, no indiferentismo e na inércia diante de uma missão gigantesca - que, na verdade, é impossível porque não existe. Deus nos pede obras humanas - simples, pequenas, inexpressivas - para fazer novos céus e nova terra. É no barro humano que se constroem as grandes maravilhas de Deus.

Que não se lamente o mal alastrante como fogo em mata seca e nem se corrompa a fé genuína na lama circundante, porque nem TODOS serão UM. A porta é estreita, mas a redenção de Cristo é e sempre será o caminho seguro para MUITOS. Caminho formado por pedras talhadas por obras humanas das criaturas de Deus - apequenadas e aparentemente inúteis. Das minhas obras, das suas obras, das obras de MUITOS. 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

UM LUGAR MUITO ESPECIAL

Muitos, muitos homens estavam reunidos e sentados em torno da mesa oval e imensa. A luz que os envolvia era de um brilho e de uma transparência insondáveis. Eles estavam mergulhados na luz de Deus. Todos podiam ver, embora de forma imprecisa e algo indefinida, os que ali também se encontravam e, particularmente, e de forma estranhamente bela, o único lugar vazio em torno da mesa. E nada mais, embora fossem capazes de pressentir a presença do Anjo de Deus em algum ponto às suas costas, em algum lugar indefinido em torno da mesa. E cada um podia ouvir a voz do Anjo, tão clara e tão potente, como se fosse soprada em seus próprios ouvidos.

E o Anjo de Deus chamou primeiro o homem que estava à esquerda do único lugar vazio da mesa, e sua voz ressoou como os grandes címbalos de bronze:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

O homem, preso à mesa como por enormes correntes de chumbo, assim respondeu (e o que falou veio como um frêmito nascido no mais íntimo de sua alma, sem distorção alguma pelos espasmos instáveis e sombrios das palavras humanas):

'Sou luterano e professo a religião que me foi outorgada pelos ensinamentos e doutrina de Martinho Lutero, um ex-monge da Igreja...'

'A tua igreja nasceu em 1517... como bem o disseste, é a igreja de Lutero, e não é a Igreja de Cristo. Afasta-te, pois, da luz da glória de Deus!'

E o Anjo de Deus baixou a sua espada de luz e criou um segundo lugar vazio à mesa.

E o Anjo de Deus chamou em seguida o homem que estava à esquerda do segundo lugar vazio da mesa, e sua voz ressoou como os grandes címbalos de bronze:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

O segundo homem, tal como o primeiro, de forma igual e por igual impulso espiritual, assim respondeu:

'Sou presbiteriano e minha religião foi fundada por John Knox no ano de 1560...'

'A tua igreja nasceu em 1560... é a igreja de um homem e não a Igreja de Cristo. Afasta-te também, pois, da luz da glória de Deus!'

E o Anjo de Deus baixou a sua espada de luz e criou um terceiro lugar vazio à mesa.

Pela terceira vez, o Anjo de Deus chamou o homem que estava à esquerda do terceiro lugar agora vazio da mesa, e sua voz ressoou como os grandes címbalos de bronze:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

O homem, impelido pelo sopro da Verdade de Deus, assim respondeu:

'Sou um membro das Testemunhas de Jeová, e professei com fidelidade extrema os princípios expostos e ensinados por Carlos Taze Russel em 1870, e modificados por seu discípulo Rutherforf em 1918...'

'É essa a idade da tua igreja? Viveste imerso entre trevas e anseias buscar nas trevas de tuas crenças a Igreja de Cristo? Afasta-te também, pois, da luz da glória de Deus!'

E o Anjo de Deus baixou a sua espada de luz e criou mais um lugar vazio à mesa.

E o Anjo de Deus chamou todos os homens reunidos, um a um, sempre chamados à esquerda dos lugares que ficavam vazios de uma mesa cada vez mais vazia. E todos responderam ao Anjo, com um uníssono grito da alma, única Verdade que professaram em vida: 'professamos e vivemos uma religião que foi uma farsa criada pelos próprios homens e que nunca foi a Verdadeira Esposa de Cristo'. E, sob o golpe da espada do Anjo de Deus, foram todos expulsos da mesa e da luz da glória de Deus: batista, anglicano, mórmon, espírita, metodista, adventista...

A enorme mesa oval e iluminada pela luz de Deus era agora um ambiente de lugares vazios. O Anjo de Deus a percorreu mais uma vez e, agora, silenciosamente. Não havia ninguém mais para ouvir a sua voz e responder à sua pergunta. Chegou, então, ao primeiro lugar vazio da mesa, aquele que, em dado momento, havia sido o único lugar vazio à mesa. E, ali, como aprisionado por pesadas correntes à mesa, ouviu uma voz humana, nascida do mais íntimo da alma:

'És tu o Anjo do Senhor que Deus me deu como guardião eterno para me conduzir ao lugar da mesa gloriosa do meu Senhor e meu Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó?'

O Anjo do Senhor, volvendo o olhar de Deus no homem que assim falava, perguntou:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

'Eu sou católico apostólico romano, nascido nos primórdios da era cristã, entre umas certas bodas de Caná, um Evangelho, um Calvário e a ressurreição de Jesus Cristo, meu Senhor e meu Deus. Eu professei e vivi em plenitude a doutrina da Santa Igreja Católica'.

O Anjo de Deus guardou, enfim, a sua espada de luz e conduziu o último homem ao primeiro lugar vazio da grande mesa que passou a ter, então, as próprias medidas da eternidade de Deus.

(Arcos de Pilares)

Princípio Teológico do Ecumenismo Zero 
ou 
Princípio Geral do Apostolado Católico pela Conversão de Todos os Homens:

Extra Ecclesiam nulla salus - 'Fora da Igreja não há salvação' 
(Concílio de Florença, por exemplo) 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXI)

Eis a visão que tive em Matspo naquele crepúsculo inglório: pensei ter visto milhares e milhares - milhões de milhões - de formigas movendo como um organismo único e flexível sobre uma encosta gigantesca. O exército colossal de formigas se arremetia sobre uma planície aberta ao pé da encosta, enquanto se nutria e continuava, sem lacuna alguma, de novas frentes tremendas que afluíam e se projetavam, em hordas repentinas e sucessivas, sobre o alto da colina que engolia por completo o horizonte. Não havia céu, nem sol, nem nuvens, nem terra: apenas a dimensão ilimitada da visão única diante dos meus olhos, como uma visão apocalíptica do nada.

Estava eu em algum ponto indefinido e a tal distância da colina que me era impossível discernir quaisquer elementos ou especificidades da visão: tudo era um borrão cinematográfico onde a única percepção possível era a de um movimento singular e absolutamente regular de uma massa que nascia, deslizava e se espraiava numa avalanche controlada e que avançava em velocidade incalculável em minha direção. Não se viam formigas, nem grupos de formigas, nem divisões formadas por formigas; o que se via era o todo como se não houvesse partes e nem frações movendo como um organismo em tsunami diante dos meus olhos petrificados nas órbitas. 

Havia alguma coisa - ou alguém? - ao meu lado, um pouco atrás de mim, e essa sensação era tão forte e tão sensível quanto a própria visão. Mas, como meus olhos, meu corpo estava imobilizado de qualquer vontade ou reação. Meu corpo se resumia nos meus olhos fixados na avalanche desmedida que se empurrava contra mim num cenário descomunal: sem saídas, sem rotas de fuga, sem alternativa alguma, sem refúgio possível, sem uma mínima possibilidade de me curvar, virar, deitar, correr ou fugir. E aquilo vinha, em velocidade inimaginável, diretamente na minha direção. 

Eu e meu corpo morto tínhamos apenas uma posse: a visão do infinito contra um ponto no vazio. E ainda mais, a certeza de algo ou alguém do meu lado, cuja presença me era óbvia e sensível, mas cujo significado não detinha qualquer explicação ou percepção. A nuvem começou a ter então espasmos de sombras, o volume passou a assumir contornos finitos e ovalados. E eu comecei a ter as dores do parto medonho do medo. Aquilo era muito além do pesadelo mais tenebroso que ousasse imaginar.

Minhas retinas gemeram de pavor quando simplesmente compreendi que as formas em movimento - as milhões de formas em movimento ordenado - não eram formigas! Não eram formigas e nem eram bandos ou manadas de animais desembestados em fúria colina abaixo: eram... fetos! Fetos, milhões e milhões de fetos, unidos como organismo vivo numa procissão horripilante. Milhões de fetos abortados, milhões de fetos que nunca nasceram, milhões e milhões de fetos que foram criados mas que nunca viveram. Eu sabia tudo sobre eles, como médico; eles sabiam tudo sobre mim, como vítimas das dezenas e dezenas de abortos que fizera. 

A multidão dos não nascidos agora transformada num plasma vivo de extensão infinita vinha sobre mim, com um juízo mais pesado que montanhas de chumbo. E agora eu percebia que não havia alguém apenas do meu lado mas, ainda que não pudesse me virar, pressenti a multidão de homens e mulheres atrás de mim, enfileirados como estátuas preenchidas de vazio e de pavor, todos vivos apenas para a visão dos mortos. E, mais do que nunca, com o brilho do cristal de maior pureza, tive a certeza absoluta de que havia uma encosta íngreme atrás de mim e um abismo sem fim ao final da encosta. E que aquele abismo seria preenchido por estátuas de vazio e de pavor.  

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

sábado, 16 de janeiro de 2021

CARTAS A MEU PAI (IX)

Pai:

quantos de vossos filhos procuram aqui e ali alguma palavra de alívio e de consolo diante de uma realidade que os esmaga, diante o mundo que se desmorona à sua volta, diante uma pandemia que assola os bons e os maus, diante uma tragédia que ceifa vidas e cotidianos. O que se pode dizer a eles, a não ser Vos buscar ainda com mais fervor e perseverança?

Como explicar de forma serena, no contexto da virtude dos primeiros cristãos e dos milhares de mártires de então, que bispos e sacerdotes acolham subservientes e dóceis, alegando como imposições razoáveis, a suspensão do Santo Sacrifício? Se a Missa é o sol da Igreja - como dizia São Francisco de Sales -  como a Igreja pode viver sem o sol, sem a luz de Cristo, sem o exercício do ato mais sagrado da nossa religião, sem o mistério inconcebível da graça da glória maior a Deus?

Que fosse proibido viver, mas não Vos fosse proibido ser dado aos homens porque, sem a Missa, não existe a Igreja de Cristo e, sem a Igreja de Cristo, os homens estão irremediavelmente perdidos. Não, o mundo não se desmorona à nossa volta ainda, mas vai começar a se desfazer em pedaços a partir de agora. Mais do que nunca, os Vossos filhos estão morrendo sozinhos e abandonados, sem receber os últimos sacramentos, sem a presença de um sacerdote que precisa se proteger (?) do flagelo que se abate sobre o mundo e sobre a Igreja. 

O que se pode dizer a estes vossos filhos angustiados, se o Vosso exército se cala e se esconde atrás de quartos e salas fechadas e em igrejas vazias, sustentando igualmente a fé vazia de missas em redes sociais? Sob a ditadura do medo, vivemos. Sob o escárnio da supressão das liberdades individuais e coletivas, vivemos. Sob a imposição de rituais de confinamento da humanidade inteira, vivemos. Vivemos como zumbis e como escravos. Morremos como cristãos, e morremos para Cristo.

Ainda que o vírus e a pandemia fossem dezenas de vezes mais letais, nada se compara ao valor infinito de uma única Missa rezada. O grande pecado dessa geração dos homens é a sua infinita covardia e a sua subserviência ao medo, pela absoluta inércia diante do pecado, das perseguições e dos poderes das trevas. A Igreja de Cristo e o mundo são adversários irreconciliáveis e, no momento em que se tornam parceiros, ou o mundo acabou ou a Igreja de Cristo se vendeu ao mundo.

Nada, coisa alguma, poder civil nenhum poderia ter tal autoridade sobre a proibição do Culto Divino, contra a oferenda bimilenar dos fieis católicos de prestar o devido culto a Deus. Nada poderia ou deveria ser instrumento da subserviência da Igreja ao Estado na suspensão da Missa aos fieis. Nada. Absolutamente nada. Ai daqueles que se acovardam diante as imposições dos homens: como poderão ficar de pé diante o juízo de Deus?

Há um mérito enorme na assistência da Santa Missa em tempos de paz, nos tempos das flores e da primavera, na disponibilidade do templo santo a 50m de casa. Mas, cessados os regalos do mundo, qual é o preço que ousamos pagar para assistir presencialmente e com devoção a Santa Missa? O preço de muitos tem sido a comodidade e o indiferentismo por décadas. O medo e a covardia diante de um vírus  obscuro e maldito é o custo selado de uma geração inteira. Conseguimos finalmente o apogeu de nossa herança mundana: tornar a nossa fé ainda mais ínfima que um vírus!

Pai, o que se pode dizer mais a estes Vossos filhos que ainda mantêm a fé como chama viva e duradoura? Mais do que nunca, que sejam ainda mais conscientes de sua fé cristã e perseverantes na doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. E muito, muito importante, não tenham medo, não se desesperem com o que virá, com o dia de amanhã, com o que pode acontecer. 

O que dizer a eles, senão que os esperam grandes e recorrentes provações? Que as cortinas dos tempos se fecham inexoravelmente à nossa volta, para dar fim a uma humanidade tão pecadora e tão afastada de Deus? Que ser e se manter cristão nos tempos de hoje será, sem dúvida, uma tarefa de enormes sacrifícios e muito provavelmente de martírios? Que todos sejam homens e mulheres de oração, de oração constante, despojada, perseverante e em total abandono à Santa Vontade de Deus? Tudo isso é o que eu poderia lhes dizer e algo mais do que isso: que volvam o olhar e o coração a Nossa Senhora e supliquem a Vós, ó Pai, por meio dela, o rápido triunfo dos Imaculados Corações de Jesus e de Maria sobre o mundo.

Rezemos, rezemos muito, pelos sacerdotes e pela Santa Igreja! Para que estes homens nada comuns sejam homens muito além do mundo. Para que sofram pela fé, para que a fé lhes seja o único apreço e o único cajado, para a glória de Deus. Para que sejam santos e mártires, para que sejam mártires e santos. Para que arregimentem muitas e muitas almas para a Vinha Eterna do Senhor, nestes tempos tremendos em que a terra, gemendo agora as dores do parto, ousa gritar e impor a uma geração de pecadores que acabou o tempo da semeadura e da colheita. Essa mesma terra que há de renascer vivificada pela infinidade dos frutos bons da Igreja de sempre, da Igreja de Cristo.

Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).

terça-feira, 27 de outubro de 2020

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XX)

SOBRE UM IMENSO E BELO CAMPO DE TRIGO...


Sobre um imenso e belo campo de trigo, banhado por raios de sol, crescia uma espiga de grãos unidos e dourados, tomada de sonhos e ilusões tamanhas, que era movida, sob as chuvas, as aragens e os ventos passageiros, pelo desejo de crescer, crescer muito, até alcançar o céu com os seus longos ramos.

O Senhor, que conhecia os seus sonhos, a olhava com bondade e alegria com o seu propósito firme, desde os primeiros brotos, de subir até o céu da imensidade. E, a cada dia ensolarado e a cada chuva passageira, a espiga crescia e os seus grãos se tornavam maiores, maiores se tornavam os seus ramos, naquele imenso campo de trigo...

Mas eis que num belo dia, talvez nem chuvoso e nem tão ensolarado, um camponês munido de afiada foice começa a desbastar o campo de trigo e a colher todas as espigas maduras. E já estava tão perto...
- Não, eu não! Por favor não! - gritava em seu silêncio a espiga que queria tanto chegar ao céu.
- Não! Não! Não! Senhor, Senhor, velai por mim de tal sorte! - implorava ao Senhor no seu silêncio a espiga que sonhava ser do céu.

Com um golpe seco da foice, o camponês selou o destino da espiga sonhadora e, arrancando-a do feixe morto, a jogou no cesto às suas costas. Prensada e forçada entre outras espigas, a espiga sonhadora lamentava, no silêncio de sua condição, a triste sorte que lhe roubara os doces sonhos perdidos em dias ensolarados de verão.
- Senhor! Senhor! Por que permitistes isso? Por que não me socorrestes? Por que me desprezastes a tão grande pesar e abandono?

O Senhor permaneceu em silêncio e a espiga teve que amargar sozinha o seu abandono. 
- Querias crescer bem alto e uma foice desfez tanta miragem; querias subir ao céu e ganhastes o fundo do cesto de um pobre camponês - as outras espigas riam dela e da sua sorte igual e comum a todas as espigas do campo de trigo, tanto as que ousaram sonhar como as que não quiseram sonhar. 

Mais tarde, o camponês lançou as espigas dentro da moenda e os grãos foram separados, partidos e esmagados até se tornarem pó. 
- Senhor! Os grãos dourados que foram meus um dia e que ansiavam pelo céu tornaram-se hoje o pó de uma moenda! - gemia em silêncio a espiga sonhadora transformada em pó.
Recolhido o pó e acondicionado em um saco, a espiga triturada tornou-se refém de um cárcere escuro e pouco ventilado: 
- Onde está luz do sol de outrora? Onde está o céu dos meus desejos? - mas os seus anseios não tinham resposta pois o Senhor se mantinha no mais absoluto silêncio.

Passadas apenas algumas horas, o saco foi aberto e o pó foi colocado em uma vasilha. A espiga sonhadora tinha sido transformada em uma farinha muito branca, que refletia a luz do sol que entrava pelas janelas... Sentiu a água gelada da mistura, a moldagem da pasta, a compressão que a transformou em massa, a secagem em estufa e o recorte que dela fez partículas arredondadas. Moldada, prensada, submetida ao fogo e à água gelada, cortada... 'quanto sofrimento, Senhor, para nada, nada, nada...' 

Ainda estava a se lamentar, quando viu diante dela o céu e o Senhor do Céu. Viu quando Ele a tomou para Si em cada uma de suas partículas e, em cada uma, Se fez Deus. A farinha branca tomou a forma do Pão e se fez a morada do Senhor, que lhe disse então ternamente:

- Agora estás comigo para sempre e bendita foi a semente que te gerou! 
- Senhor! Eu vos chamei em tantos momentos e o Senhor permaneceu em silêncio...
- Guardei no silêncio da hóstia toda a glória do seu sofrimento. Aprenda de todo coração: chega-se ao Céu não subindo pelos ramos em data incerta, mas pelos sofrimentos cotidianos dos dias que apenas se bastam...    

(autor desconhecido, adaptação livre do autor do blog)

quinta-feira, 30 de julho de 2020

UM DIA SEM FIM

(clicar sobre a imagem para melhor visualização)
(O Desbravador - maio/junho de 1999)

terça-feira, 22 de outubro de 2019

A CATEDRAL SUBMERSA


Conta uma velha lenda que existia uma ilha aonde o povo era muito virtuoso e nela havia uma belíssima catedral gótica, com torres e sinos de ouro. A catedral assim brilhava porque refletia a piedade e a virtude daquela população. Quanto melhor se comportavam as pessoas, mais intenso era o brilho refletido pela catedral.

Mas – ó desgraça – a partir de um certo momento, a moral das pessoas começou a decair e, com isso, a catedral foi perdendo o brilho, ficando opaca e depois escura e, por fim, quando mal podia ser vista e a população vivia na iniquidade, eis que um maremoto destruiu a ilha e submergiu a antiga catedral. De tempos em tempos, eventos sísmicos fazem a catedral emergir e o vento faz ainda repicar os seus sinos. Mas logo estes se calam e a catedral volta para o fundo do mar, em repouso submersa.

Esta catedral é a figura de muitas almas. Quando virtuosas e plenas de bons exemplos, brilham com destacado esplendor. Mas, na decadência dos seus atos, perdem o brilho e o eco dos seus feitos, tornam-se empalidecidas e depois opacas e submergem, enfim, nas trevas do pecado. Às vezes, uma palavra qualquer ou uma ação isolada fazem renascer das águas a catedral submersa. Por pouco tempo, porém, pois os prazeres e as veleidades do mundo a arrastam de imediato, outra vez, para o fundo de suas próprias misérias.

Caro leitor, mantenha a sua catedral livre das águas turbulentas desse mundo fútil e corrompido. Erga a voz da fé - os sinos da alma! - para com todos os homens e em todos os tempos, sem concessões dúbias ao respeito humano. A oração perseverante, a comunhão frequente e uma piedosa devoção a Nossa Senhora são as âncoras seguras para firmar a catedral da sua alma sobre rocha firme e torná-la o límpido cristal capaz de refletir em plenitude a própria luz de Cristo!

(texto reescrito e adaptado pelo autor do blog de original publicado na revista 'O Desbravador')

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

VIDA DO PADRE PIO EM FATOS E FOTOS (VII)

O BOM HUMOR DO PADRE PIO 


'Padre, um parente meu está doente há quase 2 anos, o que eu devo falar para poder confortá-lo?'
Padre Pio: 'Fale para ele que eu estou doente há 70!'


Numa certa ocasião, Frade Modestino pediu ao Padre Pio: 'Padre, por favor, abençoe esta garrafa de vinho'. Após ter dado a bênção, Padre Pio disse: 'Eu fiz o meu primeiro milagre do dia'. Beberam o vinho que era realmente de excelente qualidade. Alguns dias depois, o dono daquela vinícola foi preso por produzir vinho falsificado usando tintura em vez de uvas.


Padre Pio gostava sempre de contar esta anedota:

Ciente de que o rei viria inspecionar as tropas, um experiente sargento resolver preparar previamente o recruta: 

O rei vai lhe fazer três perguntas:

'Quantos anos você tem?' Você deve responder: 22
'Há quanto tempo você está no exército?' Sua resposta: 2
'Você ama mais o seu rei ou o seu país?' Você deverá responder de pronto: 'Ambos, majestade'.

Mais tarde, quando o rei inspecionava a tropa, aproximou-se do recruta e lhe perguntou:

'Há quanto tempo você está no exército?' 22
Quantos anos você tem?' 2

Irado por se sentir ridicularizado, o rei disse: 'Você é um estúpido!'
E o recruta respondeu: 'Ambos, majestade'.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XIX)

APRENDA A ESCREVER NA AREIA...

Dois amigos inseparáveis e de longas jornadas juntos, caminhavam certo final da tarde por uma praia já praticamente deserta. Falavam sobre tudo e principalmente pelas coisas que faziam em comum, caminhando na areia macia e, de tempos em tempos, afastando os pés de se molharem nas ondas que se quebravam e vinham arrebentar na orla da praia. O sol se pondo no horizonte emprestava ao cenário uma beleza indescritível.

Nos cenários das grandes certezas, a única certeza é que nada é sempre igual no cotidiano das nossas vidas. Ninguém sabe dizer ao certo como a discussão entre eles começou e exatamente o motivo; o fato é que de uma discordância casual, o assunto tomou ares de desavença crônica e terminou numa quase agressão física, num empurrão forte que jogou um deles no chão e um silêncio constrangedor a seguir.

No chão, ainda impactado pelo empurrão do amigo de todas as horas, o outro amigo escreveu na areia, próximo ao limite das ondas: 'hoje o meu melhor amigo me jogou no chão'. De pé, o outro observava silenciosamente o que o amigo escrevia na areia e depois lhe falou:  'Ok, desculpe-me, vamos lá, vamos superar essa bobagem e seguir em frente'. E, dando a mão ao outro, ajudou que se levantasse e ambos continuaram a andar pela praia.

Mas agora ia junto com eles um silêncio pesado, asfixiante; não havia mais nada da alegria sincera do convívio de poucos minutos atrás. Nesse momento, chegaram ao final da praia, truncada por uma extensa formação rochosa que impedia a passagem adiante. Quando pensavam em voltar, no contexto de que não existem certezas absolutas, o amigo que tinha sido empurrado no chão se atirou na água e avançou rapidamente em direção ao mar. Mas de repente, perto das rochas, por ser mais íngreme a praia e as águas mais profundas, o nosso amigo, mau nadador, se viu em grande dificuldade de nadar e com sério risco de se afogar. É justamente neste momento que o outro amigo o resgatou e, em poucos braçadas, o levou são e salvo à praia.

Recuperado do susto e do risco de quase ter perdido a vida, o amigo resgatado foi até às rochas próximas e escreveu na pedra lisa: 'hoje o meu melhor amigo me salvou a vida'. O melhor amigo observou, mais uma vez silenciosamente, a ação do amigo que resgatara das águas. Ao final, ainda um pouco exausto da aventura, perguntou ao outro: 'Lá atrás, você escreveu na areia e agora aqui fez questão de escrever na pedra. Por que?'  

Com sincera alegria, o amigo respondeu: 'Quando um amigo nos machuca, devemos escrever na areia onde os ventos do perdão se encarregam de apagar rapidamente a ofensa recebida; quando um amigo nos prova a sua amizade verdadeira com um grande feito, devemos gravar isso na pedra - na pedra da memória do coração - onde vento algum poderá apagar isso jamais'.

Por isso, aprenda sempre a escrever na areia...

(texto de autor desconhecido, reescrito e adaptado pelo autor do blog)