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sábado, 8 de março de 2025

A INQUIETUDE DE DEUS

Na vida cotidiana moderna, a ciência e o progresso ditaram uma nova religião que impõe, como premissa absoluta, o esquecimento de Deus. Os clichês são os mesmos e variados, mas todos centrados na ideia de uma razão suprema, de uma ciência deificada, de um culto à tecnologia e ao progresso como irmãos siameses do conhecimento e da felicidade verdadeiros. Essa onda se infla do próprio estertor: o vazio de Deus.

O orgulho é a raiz de todos os pecados e de todos os desvarios. E o orgulho é patético em todas as suas raízes, porque é absolutamente incompatível com a miséria humana. O que é o homem na dimensão do homem? Um saco de ossos desconjuntados que usa e abusa do livre arbítrio para gestar do nada uma fotografia de coisa alguma. Que vai morrer de AVC ou de câncer, que vira um demente diante de uma cólica renal, que se aniquila diante de uma tragédia pessoal.

Para retaliar essa realidade esmagadora, a criatura assume o papel de náufrago nas águas turvas de sua incredulidade, e esconde-se de Deus por trás das máscaras da fuga ou da indiferença. Um homem sem Deus vive de quebrar espelhos, na crença doentia de que o ato de quebrar o espelho possa garantir a inexistência da imagem. 

Deus não está ali, porque espelhos se quebram e espelhos quebrados são apenas espelhos quebrados, que não valem nada. É na alma - imagem de Deus e não espelho do homem - que Deus inquieta o coração humano. É essa alma que pulsa, independentemente de espelhos quebrados todos os dias, pela nostalgia de Deus. É essa alma que reage ao estupor físico e mental do livre-arbítrio contra o esvaziamento da imagem e semelhança de Deus, que grita contra o indiferentismo e o orgulho reinantes, que incendeia escombros em cinzas. Eis aí onde mora a inquietude de Deus.

Em que minuto de sua vida tão valiosa essa inquietude vai fazer você se encontrar com Deus? Cada minuto de sua vida, Ele espera por você, pela imagem da graça divina gravada na sua alma. Ou esse minuto nunca vai existir e a sua vida, tão valiosa, não vai valer nada além de espelhos quebrados?

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

ORAÇÃO DA SABEDORIA ETERNA


Deus dos nossos Pais, Deus de misericórdia, Vós criastes todas as coisas pela vossa palavra e pela vossa sabedoria. Vós formastes o homem para que ele pudesse ter domínio sobre todas as criaturas que fizestes; para que ele pudesse governar o mundo com justiça e equidade e pronunciar julgamento com um coração reto. Dai-me esta Sabedoria Eterna que se senta convosco em vosso trono.

Não me removeis do número dos vossos filhos, pois sou vosso escravo e filho da vossa escrava [Nossa Senhora], um homem fraco e de vida curta, com pouca compreensão do julgamento e das leis. Pois, mesmo quando uma pessoa é considerada perfeita entre os filhos dos homens, ela é, no entanto, inútil se a vossa Sabedoria não habita nela. É a vossa Sabedoria que tem conhecimento das vossas obras, que estava convosco quando fizestes o mundo e que sabe o que é agradável aos vossos olhos e mostra o que é certo de acordo com os vossos mandamentos.

Enviao o vosso Espírito, então, do vosso Santuário no Céu e do trono da vossa majestade, para que esta Sabedoria esteja comigo e trabalhe comigo para que eu possa saber o que é agradável a Vós. Pois a Sabedoria possui o conhecimento e a compreensão de todas as coisas. Ela me guiará em todas as minhas obras com percepção verdadeira, e seu poder me guardará. Minhas ações, então, serão agradáveis ​​a Vós e eu guiarei o vosso povo com justiça e serei digno do trono de meu Pai. Pois que homem pode conhecer os desígnios de Deus ou descobrir qual é a sua Vontade?

Os pensamentos dos homens são incertos e seus planos são incertos, pois um corpo perecível pesa muito sobre sua alma, e a habitação terrena deprime e perturba o espírito por muitos cuidados. Entendemos apenas com dificuldade o que está acontecendo na terra, e achamos difícil discernir até mesmo o que está diante de nossos olhos.

Como podemos saber o que está acontecendo no Céu, e como podemos conhecer os  vossos pensamentos, a menos que nos concedeis a vossa Sabedoria e nos envieis do Céu o vosso Espírito Santo para que Ele possa endireitar os caminhos dos que vivem na Terra e nos ensinar o que é agradável a Vós. Senhor, é por meio da vossa Sabedoria que todos aqueles que têm sido agradáveis ​​a Vós, desde o início dos tempos, foram salvos. Dai-nos, pois, agora e sempre, a vossa Divina Sabedoria. 

(São Luís de Montfort)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

ORAÇÃO DA IGREJA CONTRA AS PERSEGUIÇÕES DO MUNDO

UT QUID, DEUS, REPULISTI IN FINEM?

Por que, Senhor, persistis em nos rejeitar? Por que se inflama vossa ira contra as ovelhas de vosso rebanho? Recordai-vos de vosso povo que elegestes outrora, da tribo que resgatastes para vossa possessão, da montanha de Sião onde fizestes vossa morada.

Dirigi vossos passos a estes lugares definitivamente devastados; o inimigo tudo destruiu no santuário. Os adversários rugiam no local de vossas assembleias, como troféus hastearam suas bandeiras. Pareciam homens a vibrar o machado na floresta espessa. Rebentaram os portais do templo com malhos e martelos, atearam fogo ao vosso santuário, profanaram, arrasaram a morada do vosso nome.

Disseram em seus corações: 'Destruamo-los todos juntos; incendiai todos os lugares santos da terra'. Não vemos mais nossos emblemas, já não há nenhum profeta e ninguém entre nós que saiba até quando... Ó Deus, até quando nos insultará o inimigo? O adversário blasfemará vosso nome para sempre? Por que retirais a vossa mão? Por que guardais vossa destra em vosso seio?

Entretanto, Deus é meu rei desde os tempos antigos, ele que opera a salvação por toda a terra. Vosso poder abriu o mar, esmagastes nas águas as cabeças de dragões. Quebrastes as cabeças do Leviatã, e as destes como pasto aos monstros do mar. Fizestes jorrar fontes e torrentes, secastes rios caudalosos. Vosso é o dia, a noite vos pertence: vós criastes a lua e o sol. Vós marcastes à terra seus confins, estabelecestes o inverno e o verão.

Lembrai-vos: o inimigo vos insultou, Senhor, e um povo insensato ultrajou o vosso nome. Não abandoneis ao abutre a vida de vossa pomba, não esqueçais para sempre a vida de vossos pobres. Olhai para a vossa aliança, porque todos os recantos da terra são antros de violência.

Que os oprimidos não voltem confundidos, que o pobre e o indigente possam louvar o vosso nome. Levantai-vos, ó Deus, defendei a vossa causa. Lembrai-vos das blasfêmias que continuamente vos dirige o insensato. Não olvideis os insultos de vossos adversários, e o tumulto crescente dos que se insurgem contra vós.
(Salmo 73, 1-23)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

GUARDAI EM VÓS O SANTO TEMOR DE DEUS!

'Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Vós, que temeis o Senhor, esperai em sua misericórdia, não vos afasteis dele, para que não caiais; vós, que temeis o Senhor, tende confiança nele, a fim de que não se desvaneça vossa recompensa.

Vós, que temeis o Senhor, esperai nele; sua misericórdia vos será fonte de alegria. Vós, que temeis o Senhor, amai-o, e vossos corações se encherão de luz.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada? Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram. 

Ai do coração fingido, dos lábios perversos, das mãos malfazejas, do pecador que leva na terra uma vida de duplicidade; ai dos corações tímidos que não confiam em Deus, e que Deus, por essa razão, não protege; ai daqueles que perderam a paciência, que saíram do caminho reto, e se transviaram nos maus caminhos.

Que farão eles quando o Senhor começar o exame? Aqueles que temem o Senhor não são incrédulos à sua palavra, e os que o amam permanecem em sua vereda. Aqueles que temem o Senhor procuram agradar-lhe, aqueles que o amam satisfazem-se na sua Lei. Aqueles que temem o Senhor preparam o coração, santificam suas almas na presença dele.

Aqueles que temem o Senhor guardam os seus mandamentos, têm paciência até que ele lance os olhos sobre eles, dizendo: Se não fizermos penitência, cairemos nas mãos do Senhor, e não nas mãos dos homens, pois a misericórdia dele está na medida de sua grandeza'.

(Eclesástico, 2)

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

VERSUS: ORAÇÃO PARA DEUS X PERSEVERANÇA POR DEUS


'Pedis e não recebeis, porque pedis mal, com o fim de satisfazerdes as vossas paixões' (Tg 4,3)

Pedimos mal porque rezamos mal. Rezamos e pedimos por bênçãos temporais que nos sejam atraentes e vantajosas. Queremos isso e aquilo para nosso agrado e interesse. No espelho das nossas miragens, Deus perscruta a nossa alma. Todo bem e toda graça provêm de Deus e nos é dada, na magnitude dos desígnios divinos, para o bem da nossa alma e para maior glória de Deus. Nada além disso. 'Pedis e não recebeis' porque pedis apenas para vós. A nossa oração de súplica pode ter qualquer boa intenção temporal, mas implica pedi-la sempre com o complemento: ... 'desde que seja para o bem da minha alma e para maior glória de Deus!'

'Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja perfeita' (Jo 16,24)



'Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração (Rm 12,12)

De todas as graças espirituais possíveis, pedi insistentemente a graça da perseverança final pois é, por meio dela, que se pode alcançar a vida eterna em Deus. A preservação do estado de graça até o último suspiro do homem nessa terra é um milagre de amor divino porque tal graça só é possível por uma especial concessão divina às almas eleitas, que se alimentam o tempo inteiro com os frutos de uma oração contínua. Oração feita pela mente, pelos lábios, pelas mãos, no descanso ou na labuta diária, em cada gesto concreto da criatura que se molda à santa vontade do Criador.

'pois vos é necessária a perseverança para fazerdes a vontade de Deus e alcançardes os bens prometidos' (Hb 10,36)

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXVI) - O PECADO ORIGINAL


Por que a culpa dos protoparentes torna-se culpa de todos? O antigo israelita que sentia fortemente a solidariedade, mesmo moral, entre os ligados por vínculo sanguíneo, não era atormentado por este problema, demonstrando assim intuir uma realidade que nosso individualismo pode discutir mas não destruir: a saber, a estreitíssima interdependência dos indivíduos em seu ser físico e psíquico. Nossa personalidade é o ponto de encontro de infinitos raios de influência, que começam na vontade de nossos progenitores e chegam até as radiações cósmicas; então é pelo resultado incalculável de inumeráveis causas que somos o que somos, mesmo na inconfundível e irrepetível unidade da pessoa humana.

Entre estas causas, diz-nos a Bíblia, há também o pecado de nosso mais antigo antepassado. Deus poderia ter-nos feito como mônadas absolutamente fechadas a qualquer influxo estranho. Mas então não seríamos homens, seríamos seres de outra estrutura. Nossa estrutura é, ao contrário, a dos seres que são centros de interferências, personalizados por uma alma imortal. 

O conceito católico de Igreja poderá melhor esclarecer-nos sobre os desígnios de Deus relativamente a cada homem. Deus colocou à disposição do homem a elevação ao estado sobrenatural, isto é, o dom da graça santificante que culminará na glória. Ora, são os homens individualmente que atingem êste estado e, no entanto, o dom aparece concedido de modo coletivo. Isto é, cada um alcança a Graça somente pelo fato de se achar inserido, pelo menos virtualmente num organismo suprapessoal, a Igreja, a quem pertence a Graça como coisa própria. Os cristãos não formam uma Igreja pelo fato de estarem unidos ao Cristo, mas, estão unidos a Cristo pelo fato de formarem uma Igreja.

Os Sacramentos e a Liturgia, enquanto vínculos sociais, enquanto ações exteriores que compõem a concatenação da Igreja são, por isso mesmo, os veículos da Graça. A contribuição da vontade pessoal é sem dúvida indispensável, desde o momento em que se torna possível (idade da razão), mas não é essencial, como se infere do batismo das crianças. Entrar a fazer parte da Igreja bem como o próprio subsistir da Igreja, é a resultante de um conjunto de ações interiores e exteriores, das quais o Cristo faz depender seu influxo redentor e vivificante sôbre cada alma. Se, na ordem das causas, o Cristo está em primeiro lugar, todos os outros, desde a hierarquia até os simples fiéis, têm sua responsabilidade e, falhando sua cooperação, a Igreja deixaria de ser como deveria, e muitas almas permaneceriam excluídas.

Este conferir da Graça como dom coletivo à humanidade redimida pelo Cristo é em tudo análogo ao conferir da Graça (e dos privilégios) como dom coletivo a toda humanidade, nos seus primórdios, na pessoa dos progenitores. Aqueles receberam estes dons, não a título de prêmio pessoal, mas a título do bem coletivo de toda a natureza. Bastaria nascer de Adão para, por isso mesmo, ter o dom da Graça, como agora basta estar inserido na Igreja pelo batismo para receber a Graça Cristã. O vínculo que teria ligado toda humanidade, a geração, viria a ser no correr do tempo o canal, a causa da Graça, o vínculo que teria unido cada indivíduo, não apenas aos seus semelhantes, mas também a Deus como fim sobrenatural.

Mas, para que tudo isto não adviesse como algo de fatal, de automático, era conveniente que os primeiros depositários deste dom cooperassem livremente para sua transmissão, bem como, a seu tempo, cada herdeiro deste dom ratificasse livremente — com a fé e as obras — a fortuna que herdou. A culpa pessoal dos progenitores implica a destruição do dom atribuído por Deus como bem coletivo da humanidade, destruição realizada livremente pelos homens que tinham a responsabilidade de transmiti-lo. Assim é que os vínculos da geração não são mais canais da Graça, e a humanidade não é mais, como devia ser, uma única grande Igreja. Deste modo, compreende-se porque o estado de decadência da humanidade seja ingênito em cada um como 'pecado'. Estado de pecado (pecado habitual) é o estado de uma criatura estranha à intimidade com Deus (privação da Graça), por força de uma falta cometida por meio de um ato livre da vontade (ato de pecado).

A grande família humana vai, no seu conjunto, gerando-se em estado de pecado (peccatum naturae), no sentido de que nasce privada da Graça, e esta privação não é apenas um defeito moral, mas subsiste por força do pecado pessoal do progenitor. A minha alma isoladamente, isenta de qualquer responsabilidade individual começou a existir então (e não antes) como parte de um complexo somático e psíquico ligado, por sua vez, sem solução de continuidade, ao resto da família humana. Bem longe de romper esta continuidade biológica e étnica, a alma assumiu-lhe a fisionomia concreta e, com esta, a privação da graça e dos privilégios, e uma tal privação, como encontrada na coletividade dos filhos de Adão, é efeito de uma culpa e, portanto, culpável. 

Ela (a alma) ficou assim ligada a um estado de culpabilidade preexistente, assim como, mais tarde, sendo inserida na Igreja, entrou em comunicação com um estado de Graça preexistente na própria Igreja, por força do Cristo Redentor. Desse modo, pelo pecado original, transmite-se a cada um não apenas uma consequência , ou uma pena pela culpa, mas a própria culpabilidade que recai sobre a natureza globalmente. E, entretanto, a cada um não cabe uma responsabilidade individual, o que seria um disparate. 'Pecado' é o termo que melhor se adapta para exprimir esta realidade inerente a cada homem, pelo próprio fato de sua procedência do primeiro homem e, entretanto, é um termo analógico que não coincide perfeitamente com o sentido dele quando aplicado a um ato pessoal de culpa.

Restaria ainda uma pergunta: por que Deus escolheu um meio coletivo, tanto no caso da elevação da natureza em Adão como no da santificação da Igreja em Cristo, para conferir aos homens estes dons de santificação? Não teria com isso escolhido um meio menos favorável para o indivíduo, que vem assim a depender da responsabilidade dos outros? Respondemos que, sem negar a possibilidade de outras ordens de providência, aquele meio escolhido por Deus parece mais adequado à natureza dos homens.

Uma personalidade, ainda que excepcional, não pode esgotar todas as possibilidades de aperfeiçoamento da natureza humana. O que não é realizado por um é realizado por outro; e, se duas pessoas se acham unidas por uma comunhão de amor, o bem de uma torna-se também o bem da outra. O individualismo, como transposição do indivíduo ao resto da humanidade é também um empobrecimento: o indivíduo afastaria de si todas as riquezas que, por sua natureza, ele não pode possuir inteiramente. Assim como o indivíduo não pode vir à existência sem o concurso de outros, não pode também, muito menos, aperfeiçoar-se por si só. Esta concepção, longe de diminuir a responsabilidade individual, diluindo-a no complexo social, aumenta-a grandemente, tornando cada um responsável também pelos outros.

Se este plano escolhido por Deus teve uma consequência dolorosa no pecado original, não foi contudo impedido o acesso da humanidade ao seu fim último. Este se realiza através de uma via menos aprazível mas não menos gloriosa. A narrativa bíblica deixa uma brecha de esperança — não é definitivo o triunfo alcançado pela serpente — 'Esta (descendente da mulher) te esmagará a cabeça' (Gn 3,15). E esta brecha continuará sempre, alargando-se mais e aclarando-se em sucessivas revelações ('messianismo'), até chegar aquele que dirá: 'Eu sou a ressurreição e a vida' (Jo 11,25), e provocar o clamor da alegria cristã: 'Onde está, ó morte, a tua vitória?' (1Cor 15,35).

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXV) - A CRIAÇÃO


Existem duas narrativas distintas sobre a criação: a primeira, de forma mais estilística, detalhada a seguir, e a segunda, mais formal e didática, na qual a abordagem é exposta sob o ponto de vista humano, visando apresentar, pela própria sucessão dos acontecimentos, a relação que as criaturas, como dons de Deus, têm para com o homem. 

Na primeira narrativa da criação é de evidência imediata a forma estilística particular, cuja lei suprema, no antigo Oriente, era a simetria. Esta simetria, além de utilizar da repetição de fórmulas semelhantes, exigia que se desdobrasse um pensamento ou acontecimento em duas partes que, embora não fossem absolutamente idênticas, esteticamente ficassem em confronto. Uma vez que uma coisa só não pode ser simétrica, sendo duas pelo menos exigidas para isso; se a coisa a ser expressa fosse uma só, era necessário subdividi-la, considerando-a sob dois aspectos diferentes. Por exemplo:

'Não é o discípulo maior que o seu mestre nem o servo maior que o seu patrão; basta ao discípulo tornar-se como o seu mestre e ao servo, como o seu patrão' (Mt 10, 24).

Nesta narrativa artística, o protagonismo da criação é expresso sob a forma de oito quadras sucessivas, repetindo oito vezes os mesmos sete tipos de fórmulas: 1. introdução; 2. mandado; 3. execução; 4. descrição; 5. denominação ou bênção; 6. louvor e 7. conclusão:

1. E disse Deus:
2. faça-se a luz;
3. e a luz foi feita.
4. e separou Deus a lua das trevas.
5. e chamou Deus à luz dia e às trevas chamou noite
6. e viu Deus que a luz era boa
7. e foi tarde e foi manhã, um dia

Estas fórmulas não se repetem uniformemente, mas são quebradas em partes menores (6 ou 5), para se estabelecer um padrão clássico de simetria entre as oito quadras:


Neste contexto de simetria regular, a Bíblia apresenta de forma artística a narrativa da Criação da seguinte forma geral (em 8 quadras):




(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

VERSUS: BONDADE DIVINA X MISÉRIA HUMANA

Poderá haver prova mais eloquente da misericórdia de Deus do que assumir nossa miséria? Poderá haver maior prova de amor do que o Verbo de Deus se tornar como a erva do campo por nossa causa? 'Senhor, que é o homem, para dele assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho?' (Sl 8,5). Por isso, compreenda o homem até que ponto Deus cuida dele; reconheça bem o que Deus pensa e sente a seu respeito. Não perguntes, ó homem, por que sofres, mas por que ele sofreu por ti. Vendo tudo o que fez em teu favor, considera o quanto ele te estima, e assim compreenderás a sua bondade através da sua humanidade. Quanto menor se tornou em sua humanidade, tanto maior se revelou em sua bondade; quanto mais se humilhou por mim, tanto mais digno é agora do meu amor. Diz o Apóstolo: Apareceu a bondade e a humanidade de Deus, nosso Salvador. Na verdade, como é grande e manifesta a bondade de Deus! E dá-nos uma grande prova de bondade Aquele que quis associar à humanidade o nome de Deus.

(São Bernardo)


Todas as delícias e doçuras que a vontade saboreia nas coisas terrenas, comparadas aos gozos e às delícias da união divina, são suma aflição, tormento e amargura. Assim todo aquele que prende o coração aos prazeres terrenos é digno diante do Senhor de suma pena, tormento e amargura, e jamais poderá gozar os suaves abraços da união de Deus. Toda a glória e todas as riquezas das criaturas, comparadas à infinita riqueza que é Deus, são suma pobreza e miséria. Logo a alma afeiçoada à posse das coisas terrenas é profundamente pobre e miserável aos olhos do Senhor, e por isto jamais alcançará o bem-aventurado estado da glória e riqueza, isto é, a transformação em Deus.

(São João de Deus)

quarta-feira, 31 de julho de 2024

SOBRE OS BENS MATERIAIS

O cristão que possui bens devem utilizá-los com humildade, sem orgulho, como coisa emprestada, não própria. Dou-vos os bens para o uso. Tanto possuis, quanto concedo; tanto conservais, quanto permito; e tanto permito, quanto julgo útil à vossa salvação. Tal há de ser a vossa atitude quanto ao uso dos bens materiais. Assim fazendo, o cristão obedece aos mandamentos - amando-me sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo - e conserva o coração desapegado das riquezas, afetivamente, como nada possuindo. Não se apega aos bens, não os possui em oposição aos meus desígnios.

Possui externamente, ao passo que seu íntimo é pobre. Tais pessoas, como disse, eliminam o veneno do egoísmo. São os cristãos da 'caridade comum'. Os bens materiais são bons em si mesmo; foram criados por mim, bondade infinita. Os homens hão de usá-los como lhes aprouver, mas no temor e no amor autênticos. Os cristãos não devem virar escravos dos prazeres sensíveis. Se querem ter posses, as temham; mas como dominadores delas, não como dominados. O afeto do coração deve estar em mim, não nas coisas externas; elas não pertencem aos homens, são dadas em empréstimo. Não tenho preferência por pessoas ou posição social, somente pelos desejos do coração.

Quem afastar de si o apego desregrado e se orientar para mim na caridade e no santo temor, tal pessoa poderá escolher o estado de vida que quiser. Em qualquer um deles alcançará a vida eterna. Suponhamos que seja mais perfeito e mais agradável a mim que o homem viva interior e exteriormente despojado dos bens materiais. Se uma pessoa não sentir a coragem de abraçar tal perfeição devido a alguma fraqueza pessoal, que permaneça 'na caridade comum' qualquer que seja seu estado de vida. Em minha bondade dispus que assim fosse para que nenhuma pessoa viesse a desculpar-se por pecados cometidos em determinadas situações. Ninguém poderá dar desculpa, Sou condescendente com as tendências e fraquezas humanas. Se as pessoas desejam viver no mundo, possuir bens, ocupar altas posições sociais, casar-se, ter filhos, trabalhar por eles, façam-no. É lícito viver em qualquer posição social; contanto que se evite o veneno da sensualidade, o qual pode conduzir à morte perpétua.

Se prestares atenção verás que quase todos os males procedem do desordenado apego e ganância da riqueza. Disto nasce o orgulho de quem pretende ser maior que os outros, a injustiça para consigo mesmo e o próximo. A riqueza empobrece e destrói a vida da alma, torna o homem cruel consigo mesmo, prejudica sua dignidade espiritual infinita, faz amar as coisas transitórias. Todos têm obrigação de amar-me, bem infinito. Com a riqueza, o homem perde o gosto pela virtude, o amor da pobreza, o domínio sobre si, torna-se escravo dos bens materiais. Ao amar realidades inferiores a si, torna-se insaciável. Só a mim deve o homem servir, pois sou o seu fim último.

Quantos perigos enfrenta o homem, por terra e por mar, a fim de adquirir riqueza e poder voltar à sua cidade natal entre satisfações e honras; já para conseguir a virtude, é incapaz do menor esforço, não aceita dificuldade alguma! E dizer que as virtudes são a riqueza da alma. Diz meu Filho no Evangelho que 'é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que o rico entrar na vida eterna' (Mt 19,24) quando referia-se àqueles que possuem ou desejam possuir riquezas com desordenado e pecaminoso apego a elas. Afirmei também existirem pobres que, se pudessem, possuiriam com desordenado apego o mundo inteiro. Também eles não passarão pela porta estreita e baixa (agulha). Se não se abaixarem até o chão, se não dominarem o próprio apego, se não dobrarem humildemente a cabeça, como poderão atravessá-la? Outra porta não existe que conduza à vida eterna. Pelo contrário, é larga aquela que conduz à eterna condenação (Mt 7,13).

As realidades terrenas são menores que o homem, para ele foram criadas, não vice-versa. Por tal motivo os bens materiais não o satisfazem; somente Eu sou capaz de saciar o homem. Já os infelizes pecadores, como cegos, afadigam-se continuamente, à procura de uma felicidade fora de mim, e sofrem... Querem saber como sofrem? Quando alguém perde algo com que se identificara, seu apego faz sofrer. É o que acontece com os pecadores, identificados por vários modos, com os bens materiais. Eles se materializam. Uns se identificam com a riqueza, outros com a posição social, outros com os filhos; uns se afastam de mim por apego a uma pessoa; outros transformam o próprio corpo em animal imundo e impuro. Todos eles assim se nutrem de bens terrenos. Gostariam que tais realidades fossem duradouras, mas não o são. Passam como o vento. São perdidas por ocasião da morte e de outros acontecimentos dispostos por mim. Diante de tais perdas, os pecadores entram em sofrimento atroz, pois a dor da separação se compara a desordenada afeição à posse.

Todos estes se carregam com a cruz do diabo e experimentam nesta vida a certeza da condenação. Vivem doentes e, se não se corrigirem, vão para a morte eterna. São homens feridos pelos espinhos das contradições a torturarem-se interna e externamente. E, por cima, sem merecimento algum! Sofrem na alma e no corpo, nada merecem; é sem paciência que padecem estes males. Vivem revoltados, apegando-se aos bens materiais com desordenado amor. É preciso encher a alma de virtudes sob o alicerce da caridade.

(Das Revelações de Santa Catarina de Sena)

terça-feira, 30 de julho de 2024

50 JACULATÓRIAS A DEUS PAI

1. Deus tudo pode.
2. Minha alma tem sede de Deus.
3. Deus meu, meu Deus, meu tudo!
4. Deus seja louvado!
5. Deus Pai do Céu, tende piedade de nós!
6. Dai-me, ó meu Deus, cumprir sempre a vossa Santa Vontade!
7. Dai-me, ó meu Deus, a vossa misericórdia!
8. Ó Deus, tende piedade de mim, pecador!
9. Meu Deus, eu creio, adoro, espero e vos amo. Peço perdão por aqueles que não creem, não adoram, não esperam e não vos amam.
10. Deus Pai, eu tenho confiança em Vós!
11. Deus Pai, eu me abandono e descanso em Vós!
12. Meu Deus, dai-me humildade e a verdadeira sabedoria!
13. Meu Senhor e Meu Deus!
14. Meu Senhor e Meu Deus, protegei-me de todo mal!
15. Meu Senhor e meu Deus, dai-me a graça da perseverança em Vós!
16. Meus Deus, eu vos amo.
17. Eterno Pai, permanecei em mim nesta vida, para que eu seja vosso na eternidade.
18. Ó meu Deus, vós sois o meu refúgio.
19. Ó meu Deus, a vós me entrego de todo coração, de todo espírito, de toda alma.
20. Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeirio de Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial ao Pai, por Ele todas as coisas foram feitas.
21. Tudo posso no Deus que me fortalece!
22. Eu vos amo, ó meu Deus, de todo o meu coração.
23. Eterno Pai, eu vos ofereço as Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo para curar as chagas dos meus pecados.
24. Pai Eterno, dai-me um coração inquieto enquanto não repousar em Vós!
25. Meu Deus, vós sois a minha salvação.
26. Meu Deus, que a vossa misericórdia seja a minha bêncão!
27. Meu Senhor e meu Deus, dai-me a vossa paz!
28. Eterno Pai, eu vos ofereço a dolorosa Paixão de Jesus em expiação dos nossos pecados e do mundo inteiro.
29. Ó meu Deus, nada desejo, a não ser o cumprimento de Vossa Vontade.
30. Deus, meu Deus, em vossas mãos entrego o meu espírito!
31. Meu Criador e meu Deus, eu vos dou o meu nada.
32. Meu Deus, eu vos ofereço o meu nada e, neste nada, todo o meu amor humano.
33. Meu Deus, dai-me a graça das moradas eternas na vossa glória!
34. Meu Senhor e meu Deus, que os vossos desígnios sobre mim sejam misericórdia, misericórdia e misericórdia.
35, Recebei, ó meu Deus, a minha miséria e volvei para mim a vossa misericórdia.
36. Eu vos ofereço a  minha vida, ó meu Deus, pela eternidade convosco.
37. Senhor, meu Deus, vós sabeis tudo, sabeis que eu vos amo.
38. Glória a Deus nas alturas!
39. Ao Deus único, Salvador nosso, por Jesus Cristo, Senhor nosso, sejam dados louvor, poder e glória, desde antes de todos os tempos, agora e para sempre.
40. Deus é luz e nele não há treva alguma.
41. Ó meu Deus e meu rei, eu vos glorificarei, e bendirei o vosso nome pelos séculos dos séculos.
42. Que minha boca proclame o louvor do Senhor meu Deus, e que todo ser vivo bendiga eternamente o seu santo nome.
43. Meu Deus, vós sois o meu rochedo, em quem me refugio; Vós sois o meu escudo e o poder que me salva.
44. Provai e vede quão suave é o Senhor, meu Deus!
45. A minha confiança está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra.
46. Eu creio, Senhor meu Deus, mas aumentai a minha fé!
47. Se Deus é por nós, quem será contra nós?
48. Deus de Deus, eu vos dou graças pela minha vida e pela minha fé católica.
49. Tende piedade de mim, ó Senhor, misericórdia!
50. Criai em mim um coração que seja puro, dai-me de novo um espírito decidido. Ó Senhor, não me afasteis da Vossa Face, nem retireis de mim o Vosso Santo Espírito!

terça-feira, 2 de julho de 2024

POR QUE DEUS PERMITE TUDO ISSO?

É um desígnio tremendo da Providência Divina que seres humanos particularmente maus possam ter sido projetados na escala da humanidade pecadora. Todos somos maus, todos somos particularmente nada. Mas mesmo para o nada que somos parece algo absolutamente imcompreensível o mal que incorpora certas pessoas, certos grupos, certas ideologias. A questão comum que se impõe é certamente a seguinte: Por que Deus permite tudo isso?

A inteligência e a compreeensão humanas flutuam como névoa rasteira no abismo da sabedoria divina. Deus é. Aquele que tem o infinito de tudo como medida sabe e permite tudo isso. O nada se compraz em fazer perguntas sem respostas humanas ao Deus de tudo. 

Mas o fato concreto é que o mal subsiste e se avoluma como avalanche onde o bem se subtrai e se torna espuma. O bem como reflexo do bem é sempre uma graça. O mal que torna sementes podres em frutos podres é o exercício cotidiano da iniquidade. Mas onde o bem confronta o mal - como o trigo que refreia o joio alastrante - aí está a graça e a sabedoria da graça. 

Há muitos bons fazendo o bem isentos do mal deste vale de lágrimas. Não é fácil, não é simples, não é o bastante. Há outros tantos - não tantos assim - que fazem guerra contínua contra o mal imperante, sem tréguas ou repouso. Alguns são os mártires dos nossos dias, muitas vezes tombados no mais completo e obscuro anonimato. Outros são repudiados publicamente, tem as suas reputações aniquiladas, são atacados e expostos a todo tipo de injúria e de calúnia. Outros são simplesmente condenados em praça pública como ignorantes, retrógrados ou propagadores de culturas de ódio e preconceitos.

E a maioria dos homens bons - uma imensa maioria - cala e consente, consente e se acovarda. E, então, se perguntam na insensatez de apenas parecerem homens bons: Por que Deus permite tudo isso?

quarta-feira, 5 de junho de 2024

VELAI SOBRE VÓS MESMOS...

1. Quando os homens disserem: 'Paz e segurança!', então repentinamente lhes sobrevirá a destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão. Mas vós, irmãos, não estais em trevas, de modo que esse dia vos surpreenda como um ladrão. Porque todos vós sois filhos da luz e filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas. Não dur­mamos, pois, como os demais. Mas vigiemos e sejamos sóbrios (1Ts 5, 3-6).

2. Torne-se tenebroso e escorregadio o seu caminho [dos meus inimigos], quando o anjo do Senhor vier persegui-los, porquanto sem razão me armaram laços; para me perder, cavaram um fosso sem motivo. Venha sobre eles de improviso a ruína; apanhe-os a rede por eles mesmos preparada, caiam eles próprios na cova que abriram (Sl 34,6-8).

3. Que a morte os colha de improviso, que eles desçam vivos à mansão dos mortos. Porque entre eles, em suas moradas, só há perversidade (Sl 54, 16).

4. Terra, escuta: vou mandar sobre esse povo uma desgraça, fruto de suas maquinações, já que não ouviu as minhas palavras, e desprezou os meus ensinamentos (Jr 6, 19)

5. Não andeis à procura de outros deuses, para ante eles vos prostrardes e lhes renderdes culto. Não me provoqueis à cólera, para vossa própria desgraça, com esses ídolos que vossas mãos fabricaram (Jr 25,6).

6. Quanto a ti, não intercedas por esse povo, nem ores por ele, nem supliques, porque ao tempo de sua desgraça, quando clamarem por mim, não os escutarei (Jr 11,14).

7. Meus guardas estão todos cegos e não veem nada; são cães mudos incapazes de latir, sonham estirados, gostam de cochilar; são cães vorazes e insaciáveis são pastores que nada observam, cada qual segue seu caminho em busca de seu interesse. 'Vinde, vou buscar o vinho; com licores nos embriagaremos; amanhã, como hoje, haverá uma enorme bebedeira' (Is 56,10-12).

8. É necessário, porém, que primeiro ele sofra muito e seja rejeitado por esta geração. Como ocorreu nos dias de Noé, acontecerá do mesmo modo nos dias do Filho do Homem. Comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. Veio o dilúvio e matou a todos (Lc 17, 25-27).

9. Velai sobre vós mesmos, para que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso do comer, com a embriaguez e com as preo­cupações da vida; para que aquele dia não vos apanhe de improviso. Como um laço cairá sobre aqueles que habitam a face de toda a terra. Vigiai, pois, em todo o tempo e orai, a fim de que vos torneis dignos de escapar a todos esses males que hão de acontecer, e de vos apresentar de pé diante do Filho do Homem (Lc 21, 34-36).

10. É mais fácil carregar areia, sal ou uma barra de ferro, do que suportar o imprudente, o tolo e o ímpio (Eclo 22,18).

quinta-feira, 9 de maio de 2024

ORAÇÃO DO AMOR A DEUS DE TODA ALMA E MENTE


Ó Senhor, não me priveis de vossos abençoados dons celestiais.
Ó Senhor, defendei-me e livrai-me dos tormentos eternos.
Ó Senhor, se eu pequei com minha mente, com meus pensamentos, com minhas palavras ou minhas ações, perdoai-me e curai a minha alma.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, livrai-me da ignorância, esquecimento, da covardia e do tédio.
Ó Senhor, não me deixeis cair e me livreis de toda tentação.
Ó Senhor, iluminai o meu coração obscurecido pelos desejos do maligno.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, como homem que sou, pequei, mas Vós, como Deus amado e benevolente, tende piedade da minha alma, vendo as fraquezas do meu coração.
Ó Senhor, enviai a vossa misericórdia em meu auxílio, para que eu possa glorificar vosso Santo Nome.
Ó Senhor Jesus Cristo, inscrevei-me como vosso servo no Livro da Vida e concedei-me uma morte em paz.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó, meu Deus! Embora eu não tenha feito nada de bom, estendei vossa mão, auxiliai-me com a vossa graça para começar a fazer todo o bem.
Ó Senhor, cobri o meu coração fraco com o orvalho do vosso amor.
Ó Senhor do céu e da terra, lembrai-vos de mim, vosso servo pecador, impuro e frio de coração, em vosso reino.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, aceitai meu sincero arrependimento.
Ó Senhor, pelo bem da minha alma, não me abandoneis.
Ó Senhor, guardai-me apartado das tentações.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei-me pensamentos nobres e puros.
Ó Senhor, concedei-me as lágrimas do arrependimento, a memória da morte e a sensação de paz.
Ó Senhor, concedei-me humildade, caridade e obediência para agir em vosso Santo Nome.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei-me a confissão e o perdão dos meus pecados.
Ó Senhor, concedei-me paciência, magnanimidade e doçura.
Ó Senhor, tornai-me a fonte de todas as vossas bênçãos e inspirai vosso santo temor em meu coração.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei que eu possa vos amar com todo o meu coração e toda a minha alma, e que eu sempre obedeça vossa palavra.
Ó Senhor, protegei-me dos provocadores, dos demônios, das paixões corporais e de tudo o que não leva a Vós.
Ó Senhor, eu sei que agis como desejais; assim, que seja feito em mim, pecador, a vossa vontade, porque Abençoado sois para todo o sempre. 
Amém.

(São João Crisóstomo)

sexta-feira, 3 de maio de 2024

A MANEIRA DE FALAR COM DEUS (IV/Final)

4. Deus responde à alma que lhe fala

Em suma, se quereis agradar ao coração amantíssimo do vosso Deus, esforçai-vos por entreter-vos com Ele o maior número de vezes que puderdes, falar-lhe até continuamente e com toda a confiança possível; por seu lado, o Senhor não se desdenhará de responder-vos e entreter-se também convosco. Ele não vos fará ouvir a sua voz de maneira exterior e sensível, mas falar-vos-á interiormente uma linguagem que o vosso coração compreenderá bem, se souberdes vos desapegar do jugo das criaturas para tratardes a sós com o vosso Deus: 'Eu a conduzirei à solidão e aí falarei ao seu coração' (Os 2,14). Então Ele vos falará pelas inspirações, luzes interiores, testemunhos da sua bondade, toques suaves que penetram o coração, seguranças de perdão, penhores de paz, esperança de felicidade celeste, alegrias íntimas, carícias da sua graça, abraços e afagos afetuosos. Numa palavra, o Senhor vos fará entender essa linguagem de amor, perfeitamente inteligível às almas que Ele ama e que com Ele se contentam.

5. Resumo prático

Para terminar, vou recordar-vos sucintamente as coisas esparsas nos parágrafos precedentes, indicando-vos um modo prático de tornar agradáveis a Deus todas as ações do dia. De manhã ao despertardes, será o vosso primeiro pensamento elevar o vosso coração a Deus e oferecer-lhe tudo quanto fizerdes e sofrerdes durante o dia; pedir-lhe eis que vos ajude com a sua graça. Fazei em seguida os outros atos que todo cristão deve fazer pela manhã: atos de agradecimento e amor, súplica, bom propósito, resolução de passar esse dia como se fosse o último da vossa vida. 

Seguindo o conselho do padre Saint-Jure, podereis cada manhã fazer com Deus a seguinte convenção, que a toda repetição de um certo sinal, como levar a mão ao coração, levantar os olhos para o céu, olhar o crucifixo, tereis a intenção de lhe exprimir o vosso amor, o vosso desejo de vê-lo amado por todos os homens, a oferta de vós mesmos e dos outros. Após estes atos, tendo-vos colocado no Sagrado Coração de Jesus e sob o manto de Maria, pedido ao Pai eterno que vos guarde neste dia pelo amor de Jesus e Maria, procurai, logo e antes de todas as outras ações, fazer a vossa oração ou meditação ao menos durante uma meia hora. De preferência seja o vosso gosto meditar sobre a dor e desprezo que Jesus Cristo sofreu na sua Paixão; é o assunto mais caro às almas fervorosas e que melhor do que outro qualquer as abrasa com o amor divino. 

Três devoções devem, entre todas, vos ser mais do perto, se quereis progredir no caminho espiritual: a devoção à Paixão de Jesus Cristo, ao Santíssimo Sacramento e à Santíssima  Virgem Maria. Na oração, repeti muitas vezes os atos de contrição, amor de Deus, e oferenda própria. O venerável padre Caraffa, fundador dos Pios Obreiros, dizia que um ato fervoroso de amor de Deus, feito de manhã na oração, basta para conservar a alma no fervor durante o dia todo. Praticai com cuidado os outros vossos exercícios de piedade, como a confissão, a comunhão, o ofício divino e outras devoções.

Quando tiverdes de vos entregar às ocupações exteriores, ao estudo, trabalho, ou outros deveres próprios do vosso estado, não vos esqueçais, no começo de cada ação, de oferecê-la a Deus, pedindo-lhe a assistência para executá-la como convém; não deixeis de vos retirar muitas vezes, a exemplo de Santa Catarina de Sena, ao íntimo do vosso coração para vos unir a Deus. Numa palavra, tudo quanto fizerdes, fazei-o com Deus e para Deus. Saindo do vosso quarto ou casa, e em entrando nesses lugares, recomendai-vos sempre à Mãe de Deus por uma Ave-Maria. Pondo-vos à mesa, oferecei a Deus tudo o que experimentardes de desgosto e prazer no beber e comer; e no fim da comida, dai graças, dizendo: 'Senhor, quantos benefícios prestais a quem tantas vezes vos tem ofendido!' Durante o dia, não vos esqueçais da vossa leitura espiritual, nem da visita ao Santíssimo Sacramento e a Maria Santíssima.

À tarde, rezai o Rosário e fazei o exame de consciência, seguido dos atos de fé, esperança, caridade, contrição, bom propósito, com a intenção de receber, durante a vossa vida e na hora da vossa morte, os sacramentos da Igreja, e ganhar as indulgências concedidas. Ao deitar, pensai que devíeis estar no fogo do inferno; adormecei-vos tendo nos braços o crucifixo, e dizendo: 'Contando com a proteção do Senhor, dormirei e repousarei em paz' (Sl 4, 9) . A fim de que a vossa vida inteira se passe no recolhimento e união com Deus, esforçai-vos por aproveitar tudo o que vedes ou ouvis, para elevar o vosso coração a Deus ou recordar-vos as coisas da eternidade. 

... Lembrai-vos também frequentemente dos mistérios de amor que dizem respeito ao nosso divino Salvador, e quando virdes palha, manjedoura ou gruta, lembrai-vos do Menino Jesus no estábulo de Belém. Se é uma serra, um martelo, vigas, machado, pensai em Jesus trabalhando como simples operário na oficina de Nazaré. Se são cordas, espinhos, cravos, uma peça de madeira, pensai nas dores e morte do nosso Redentor. São Francisco de Assis não podia encontrar um cordeiro sem se enternecer até às lágrimas. 'O meu divino Mestre deixou-se conduzir para a morte como um cordeiro pelo amor de mim!' Enfim, vendo um altar, um cálice, uma casula, recordai-vos do grande amor que Jesus Cristo nos testemunhou, dando-se a nós no Sacramento da Eucaristia.

A exemplo de Santa Teresa oferecei-vos muitas vezes a Deus no decorrer do dia, dizendo-lhe: 'Senhor, eis-me aqui, fazei de mim o que vos aprouver; que devo fazer para o vosso serviço? Dizei-me, pronto estou a obedecer-vos'. Multiplicai, o mais que puderdes, os atos de amor de Deus. Estes atos, dizia Santa Teresa, são a lenha que entretém nosão podes amar o teu Deus'. E logo - que prodígio! - o animal se pôs a derramar lágrimas a ponto de nossos corações o fogo do santo amor. A venerável Irmã Serafina de Capri, olhando um dia o asno do seu mosteiro, pôs-se a considerar que ele não tinha a faculdade de amar a Deus, e tocada de compaixão por este pensamento, exclamou: 'Pobre animal, tu não sabes, tu não podes amar o teu Deus!' E logo - que prodígio! - o animal pôs-se a derramar lágrimas a ponto de verem que corriam em torrentes dos seus olhos. 

Segui o exemplo desta santa religiosa; a vista dos seres incapazes de conhecer a Deus e amá-lo vos excite a aproveitardes da vossa natureza inteligente para produzir numerosos atos de amor. Quando cairdes em alguma falta, não tardeis em vos humilhar, e procurai reerguer-vos por um ato de amor mais fervoroso. Quando vos acontecer alguma coisa de desgosto, oferecei logo a vossa pena ao Senhor, e conformai-vos com a sua santa vontade; habituai-vos a repetir em todas as contrariedades: 'Deus o quer assim, assim o quero eu'. Os atos de resignação são os atos de amor mais caros e agradáveis ao coração de Deus.

Tendes de tomar uma resolução, dar um conselho de certa importância? Recomendai-vos primeiro a Deus, e depois agi ou respondei. À imitação de Santa Rosa de Lima, repeti, o maior número de vezes que vos for possível, no decurso do dia, a oração: 'Senhor, vinde em meu auxílio' (Sl 60,2), enão me abandoneis à minha fraqueza. Para obter o socorro de Deus, lançai muitas vezes os olhos sobre o crucifixo ou a imagem da Santíssima Virgem, que deveis ter no vosso quarto; não vos esqueçais de invocar frequentemente os nomes de Jesus e Maria, sobretudo nas tentações. Deus, cuja bondade é infinita, deseja em extremo nos acumular dos seus favores.

O venerável padre Baltasar Álvares viu um dia a Jesus Cristo com as mãos cheias de graças, procurando a quem distribuí-las; mas quer o Senhor que as peçamos: 'Pedi e recebereis' (Jo 16,24); faltando a petição, ele retira a sua mão; ao contrário, abre-a de bom grado aos que o invocam. 'Desprezou Deus alguma vez a oração daquele que o invocar?' (Ecl 2,12) pergunta o Eclesiástico; recusou alguma vez ouvi-la? E segundo Davi, Deus não se mostra somente misericordioso mas misericordiosíssimo para com aqueles que o invocam: 'Senhor, vós sois cheio de doçura, bondade e grande misericórdia para todos os que vos chamam em seu socorro' (Sl 85,5). 'Quão bom é o Senhor para a alma que nele confia e o busca com amor' (Lm 3,25). 

Enfim, como nos fala Santa Teresa, as almas justas devem, na prática de amor, conformar-se nesta terra tal qual as almas bem-aventuradas que já estão no Céu. No Céu, os santos não tratam senão com Deus; todos os seus pensamentos se referem à sua glória, todo o seu prazer é amá-lo: assim deveis também ser. Seja Deus neste mundo a vossa única felicidade, o único objeto dos vossos afetos, o único fim de todas as vossas ações e desejos, até que chegueis ao reino eterno, onde o vosso amor será em tudo perfeito e consumado, onde os vossos desejos serão todos plenamente realizados e satisfeitos.

(Santo Afonso Maria de Ligório)

quinta-feira, 2 de maio de 2024

A MANEIRA DE FALAR COM DEUS (III)

III. De que modo, quando e como falar com Deus

1. Em geral 

Nunca vos esqueçais então da doce presença do Senhor, como fazem a maioria dos homens. Falai-lhe o maior número de vezes que puderdes: Ele não é como os grandes da terra, não se enfadará com a vossa frequência, nem vos desprezará; e se o amais, havereis sempre com que entretê-lo. Dizei-lhe tudo o que se apresenta no tocante a vossa pessoa e interesses, como o dirias a um amigo íntimo. Não o considereis como um príncipe soberbo, que não quer tratar senão de coisas elevadas e somente com grandes personagens: o nosso Deus tem prazer em prostrar-se para tratar com cada um de nós e quer que lhe comuniquemos os nossos negócios ainda os menos importantes e os mais ordinários. 

Ele vos ama e tem cuidado por vós, como se fôsseis o único objeto dos seus pensamentos. É tão aplicado ao que vos interessa, que parece conservar a sua providência unicamente para vos socorrer; a sua onipotência para vos ajudar; a sua misericórdia e bondade para ter compaixão de vós, fazer-vos bem, e ganhar, por sinais de ternura, a vossa confiança e amor. Descobri-lhe então livremente todo o vosso interior, e pedi-lhe vos guiar ao perfeito cumprimento da sua santa vontade, e todos os vossos desejos e desígnios tenham por único fim dar-lhe agrado e contentar o seu coração: 'Descobri o vosso caminho ao Senhor' (Sl 36,5). 'Pedi-lhe faça vossos caminhos retos e que todos os vossos desígnios repousem nele' (Tb 4,20). 

Não digais: De que serve expor a Deus todas as minhas necessidades? Ele as vê e conhece melhor do que eu. Deus as conhece, não há dúvida, mas procede como se ignorasse as necessidades de que não lhe são faladas e para as quais não recorreis a Ele. O nosso Divino Salvador sabia da morte de Lázaro; entretanto, antes que fosse disso comunicado pelas irmãs do defunto, parecia ignorá-la; só depois de receber a mensagem delas é que as consolou, ressuscitando-lhes o irmão (Jo 11,1). 

2. Nos padecimentos 

Assim, quando estiverdes nas provações da enfermidade, tentação, perseguição ou outra tribulação, seja qual for, ide sem demora ao Senhor, e rogai-lhe vos estenda a mão auxiliadora. Bastante será pordes sob os seus olhos o que vos aflige, dizendo: 'Senhor, vede a minha angústia'. Ele não deixará de vos consolar, ou ao menos vos dará força para levardes com paciência a vossa cruz, o que valerá mais para vós do que se Ele a tirasse toda de vós. Comunicai-lhe todos os pensamentos que vos atormentam, os vossos sentimentos de temor ou tristeza, e dizei-lhe: 'Meu Deus, em vós ponho todas as minhas esperanças; ofereço-vos esta provação e me resigno à vossa santa vontade; mas, tende compaixão de mim'; ou 'livrai-me desta aflição ou ajudai-me a suportá-la'. Então o Senhor cumprirá certamente a sua promessa de consolar ou fortalecer todos aqueles que, nas penas, recorrem a Ele: 'Vinde todos a mim' - diz Ele no Evangelho - 'vós que sofreis e sois acabrunhados, e eu vos aliviarei' (Mt 11,28). 

Se alguma vez fordes buscar, junto aos vossos amigos, alguma consolação nas vossas penas, Deus não se ofende com isto, mas quer que de preferência recorrais a Ele. Assim, ao menos depois de ter pedido às criaturas consolações que elas não vos puderam dar, voltai-vos para o Criador, e dizei-lhe: 'Senhor, os homens não têm mais do que palavras' (Jó 16,21), palavras impotentes para consolar-me; eu não os escuto mais. 'Vós sois toda a minha esperança e todo o meu amor; só de vós espero a minha consolação; e a que eu solicito é a graça de fazer nesta ocasião o que vos é mais agradável. Eis-me pronto a sofrer esta pena durante toda a minha vida e toda a eternidade, se esta for a vossa vontade; mas, ó Deus meu, ajudai-me'. 

Não temais dar-lhe desgosto, se ousais alguma vez queixar-vos docemente a Ele nestes termos: 'Senhor, vós o sabeis eu vos amo e não desejo outra coisa que o vosso amor. Por que ficais separado de mim?' (S l9,10-11). Por piedade, vinde em meu socorro, não me abandoneis. Se a vossa desolação se prolonga e vos acabrunha, uni a vossa cruz à de Jesus afligido e moribundo na sua, e dizei implorando misericórdia do Senhor: 'Meu Deus! Meu Deus! por que me haveis abandonado?' (Mt27,46). Mas aproveitai esta ocasião de vos humilhar mais profundamente, lembrando-vos de que não se merece consolação depois de se haver ofendido a Deus e, ao mesmo tempo, reanimai a vossa confiança, pensando que o vosso Pai celeste não faz, não permite nada, que não seja para o vosso bem: 'todas as coisas' - como nos assegura São Paulo - 'cooperam para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8,28). 

Com uma coragem tanto maior, quanto mais a confusão e desolação enchem a vossa alma, dizei a Deus: 'Senhor, a Vós pertence esclarecer-me, a Vós salvar-me; a quem temerei?' (Sl 26,1). 'Em vós confio, Senhor, não serei confundido para sempre' (Sl 30,2). Tranquilizai-vos assim, persuadida que nunca ninguém, depois de ter posto em Deus a sua confiança, se perdeu (Ec l2,11). Pensai que Deus vos ama mais do que podeis amar-vos a vós mesmo, e deixai de temer. Confortai-vos repetindo com Davi: 'O Senhor toma para si os meus interesses' (Sl 39,18). Sim, meu Deus, eu sei, e é por isso que me abandono entre os vossos braços; não quero pensar senão em vos amar e agradar; eis-me pronto a fazer tudo o que exigirdes de mim. Não somente desejais o meu bem, mas ele é objeto das vossas solicitudes paternais; eu vos deixo então o cuidado da minha salvação: 'Descanso e descansarei sempre em vós, visto como quereis que ponha em vós todas as minhas esperanças' (Sl 4,6).

'Tende sentimentos dignos da bondade de Deus' (Sb 1,1). Por estas palavras, o Sábio nos exorta a termos mais confiança na misericórdia de Deus do que temor da sua justiça, porque Ele é incomparavelmente mais propenso a fazer bem do que a punir: 'A misericórdia' - diz São Tiago - 'vence a justiça' (Tg 2,13). Daqui este aviso do Apóstolo São Pedro de que, no meio dos nossos temores, no que diz respeito aos nossos interesses, quer temporais, quer eternos, devemos nos entregar inteiramente à bondade do nosso Deus, o qual, ajunta ele, tem cuidado extremo da nossa salvação: 'Confiai-lhe todos os vossos cuidados porque Ele toma para si a vossa salvação' (IPd 5,7). 

E a este propósito, com que belo título Davi dá ao Senhor quando lhe chama 'o Deus que salva' (Sl 67,21). Segundo a explicação de Belarmino, ele nos ensina por este modo que o modo próprio do nosso Deus não é condenar, mas salvar todos os homens; porque, se Ele ameaça com a sua cólera aos que o desprezam, promete e assegura a sua misericórdia àqueles que o temem, assim como a Mãe de Deus o proclama no seu Cântico: E a sua misericórdia repousa sobre aqueles que o temem... Eu vos cito todos estes textos da Escritura, alma devota, a fim de que se alguma vez fordes tentada com inquietações a respeito da própria salvação, da vossa predestinação, vos tranquilizeis, vendo nas promessas do Senhor quanto Ele deseja vos salvar, contanto que estejais resolvida a amá-lo e servi-lo como Ele assim o quer. 

3. Nas alegrias 

Quando receberdes alguma notícia satisfatória, não façais como costumam fazer certas almas infiéis e ingratas, que recorrem a Deus no tempo da tribulação, mas na prosperidade o esquecem e o abandonam. Procedei para com Deus com a mesma fidelidade que usais com um amigo sincero que estimaria como sua a vossa felicidade; ide comunicar-lhe a vossa alegria: louvai-o e dai-lhe graças, reconhecendo que deveis tudo à sua bondade; julgai-vos feliz por lhe serdes devedora desta graça; ponde, enfim, toda a vossa alegria e consolação no Senhor: 'Eu me regozijarei em Deus meu Salvador' (Hb 3,18), e ainda, 'Cantarei os louvores do Senhor de quem me vêm estes bens' (Sl 12,10). 

Dizei-lhe: 'Meu Jesus, eu vos bendigo e bendirei sempre por todas as graças que me prodigalizais, a mim pecador, que mereceria, não favores, mas castigos'. Dizei-lhe como a esposa sagrada: 'Todos os frutos, novos e velhos, conservo para vós, ó meu bem-amado' (Ct7,13). Senhor, eu vos dou graças; conservo a lembrança de todos os vossos benefícios, passados e presentes, para vos tributar por eles honra e glória por toda a eternidade. Mas, se amais com verdade o vosso Deus, regozijar-vos-eis ainda mais com a dEle do que com a vossa felicidade. Não raro tem a gente mais satisfação com o bem da pessoa a quem muito ama do que com o seu próprio. Sede, pois, feliz, por saberdes que o vosso Deus é infinitamente feliz, dizei-lhe muitas vezes: 'Meu amadíssimo Senhor, regozijo-me mais com a vossa imensa felicidade do que com a minha, porque Vos amo mais que a mim mesmo'. 

4. Depois de uma falta 

Se após cada falta em que cairdes, não vos envergonhardes de ir lançar-vos aos pés do vosso amantíssimo Deus e pedir-lhe perdão, dar-lhe eis um sinal de confiança que lhe é singularmente agradável. Sabei-o, Deus é tão inclinado a perdoar, que geme pela perdição das almas que se separam dEle e vivem privadas da vida da graça. Ele as convida com ternura: 'Por que correr para a morte, filhos de Israel? Voltai-vos para mim e vivereis' (Ez 18,31). À alma que o abandonou Ele promete acolher logo que torne para os seus braços: 'Voltai-vos para mim e eu me voltarei para vós' (Zc 1,3). Ó se os pecadores soubessem com que bondade o Senhor os espera, para lhes perdoar! 'O Senhor' - diz Isaías - 'espera e deseja fazer misericórdia' (Is 30,18). Ó se eles pudessem compreender a que ponto, longe de querer puni-los, Ele deseja que, por uma sincera conversão, lhe permitam abraçá-los e apertá-los sobre o seu coração! 

Não é isto o que Ele afirma? 'Eu juro por mim mesmo' - diz o Senhor Deus - 'não quero a morte do ímpio, mas sim que deixe o seu mau caminho e viva' (Ez 33,11). Chega a dizer: Pecadores, arrependei-vos de me ter ofendido, depois vinde a mim; se não vos perdoar, acusai-me de mentira e infidelidade; mas não, longe de faltar à minha promessa, se vierdes, 'ainda que as vossas consciências sejam escarlates ou enegrecidas pelos vossos pecados, torná-las-ei pela minha graça brancas como a neve' (Is 1,18). Enfim, é declaração formal do Senhor; que lançará no esquecimento todos os pecados da alma que se arrepender de o ter ofendido (Ez 18,22). 

Assim, depois de uma queda erguei logo os olhos para o Senhor com um ato de amor, reconhecei humildemente a vossa falta, e, esperando com segurança o perdão, dizei-lhe: 'Senhor! Este coração que amais está enfermo' (Jo 11,3), coberto todo de chagas: 'curai-me porque pequei contra vós' (Sl 40,5). Ides atrás dos pecadores arrependidos; eis que um vem a vós, ei-lo aos vossos pés: o mal está feito, que partido tomarei? Não quereis que eu perca a confiança; ainda depois deste pecado, vós me quereis bem, e eu também vos amo ainda; sim, Deus meu, amo-vos de todo o meu coração; pesa-me de vos ter desagradado, resolvido estou a não fazê-lo mais; sois o Deus 'cheio de doçura e misericórdia' (Sl 85,5), perdoai-me, pois, dizei como à Madalena: 'os teus pecados te são perdoados' (Lc 7,48) e concedei-me a força de vos ser fiel para o futuro. 

A fim de não vos desanimardes, lançai, então principalmente, um olhar sobre Jesus Crucificado; oferecei os seus méritos ao Pai Eterno, e esperai obter assim o vosso perdão, pois que, para vos perdoar, Deus não poupou seu próprio Filho (Rm 8,32). Dizei-lhe com confiança: 'Meu Deus, olhai para a face de vosso Cristo' (Sl 83,10), vede o vosso Filho, morto por mim e, por amor deste Filho, perdoai-me. Prestai a mais séria atenção, ó alma devota, a este conselho que dão comumente os mestres da vida espiritual, de recorrer a Deus logo depois de cada infidelidade; ainda que vos aconteça a infelicidade de cair nela cem vezes ao dia, ponde-vos em paz cada vez e sem demora, voltando-vos para o Senhor; porque, se ficais desanimada e perturbada pela falta cometida, havereis de fugir do trato com Deus, a vossa confiança se diminuirá, o vosso desejo de amá-lo se esfriará, e não podereis mais progredir no caminho do Senhor. 

Ao contrário, se recorrerdes logo a Deus para lhe pedir perdão e prometer corrigir-vos, as mesmas quedas contribuirão para vos adiantar no amor divino. Quando, entre pessoas que se amam deveras, uma delas desagrada a outra, mas não tarda em desagravá-la com humilde satisfação, a amizade, em vez de acabar, não raro se estreita mais do que antes. Seja o mesmo entre Deus e vós; procedei de modo que as vossas mesmas faltas sirvam para aproximar cada vez mais os laços de amor que vos unem a Ele. 

5. Nas dúvidas

Nas dúvidas, quer vos sejam pessoais, quer alheias, fazei como os amigos fiéis, que consultam entre, si todos os seus negócios; nunca deixeis de dar a Deus esta prova de confiança: consultai-o, pedi-lhe que vos esclareça, a fim de tomardes a resolução que lhe seja mais agradável: 'Ponde a palavra nos meus lábios e aumentai a sabedoria na minha alma' (Jt 9,18); dizei-me vós mesmo, Senhor, o que quereis que eu faça ou responda; eu vos obedecerei: 'Falai, Senhor, porque o vosso servo escuta' (I Sm 3,9). 

6. Para o próximo

 Recomendai a Deus com confiança, não só as vossas próprias necessidades, mas também as dos outros. Quanto agradaríeis a Deus, se soubésseis vos esquecer algumas vezes dos vossos interesses pessoais, para lhe falar dos interesses da sua glória, das misérias do próximo e lhe recomendar em particular os infelizes que gemem sob o peso das tribulações, as almas do purgatório e os pobres pecadores que vivem na privação da sua graça. 

Em favor destes últimos podereis pedir-lhe assim: 'Senhor, todo amável sois, amor infinito mereceis; como pois sofreis que haja no mundo tantas almas que, cumuladas dos vossos benefícios, não vos querem conhecer nem amar, e até vos ofendem e desprezam? Ó meu Deus infinitamente amável, fazei que vos conheçam, fazei que vos amem. Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino; sim, oxalá seja o vosso nome adorado e amado por de todos os homens; oxalá o Vosso amor reine em todos os corações. Ah! não me despeçais de vós sem que me tenhais concedido alguma graça para essas pobres almas em cujo favor vos intercedo'. 

7. Desejo do Céu

Há no purgatório, segundo se pensa, uma pena particular, chamada languidez, à qual são condenadas as almas que, nesta vida, pouco desejaram o Paraíso. Esta opinião é fundada em razão, porque não desejar vivamente um bem tão grande, um reino eterno que nosso Redentor nos adquiriu a preço do seu sangue, é fazer muito pouco caso dele. Lembrai-vos, pois, alma devota, de suspirar frequentemente por essa morada celeste; dizei ao vosso Deus que, por causa do desejo em que ardeis de ir amá-lo contemplando-o sem véu, o vosso exílio parece de mil anos. Ansiai por deixar esta terra de pecados onde correis continuamente o risco de perder a divina graça, a fim de entrardes na pátria de amor onde amareis o Senhor com todo o vosso poder. 

Repeti-lhe muitas vezes: 'Senhor, enquanto eu aqui viver, estarei sempre em perigo de vos abandonar e renunciar ao vosso amor; quando então me será dado deixar esta terra em que vos ofendo todos os dias, ir amar-vos de todo o meu coração e unir-me a vós, sem temor de vos perder nunca mais!' Tais eram os suspiros contínuos de Santa Teresa; ela se regozijava quando ouvia o relógio dar as horas, pensando que era mais uma que se passava, uma hora de perigo de perder a Deus que havia passado; os seus desejos de morrer para ver a Deus eram tão ardentes que, de algum modo, a matavam, e tal é o assunto de sua amorosa elegia: 'Eu morro de pesar de não poder morrer'.

(Santo Afonso Maria de Ligório)