XXIII
PECADOS DE PALAVRA CONTRA A VIRTUDE DA JUSTIÇA — PECADOS DOS ENCARREGADOS DE ADMINISTRAR A JUSTIÇA: POR PARTE DO JUIZ, DO ATO DO JUIZ, DO ACUSADOR, DO ACUSADO, DAS TESTEMUNHAS E DO ADVOGADO
Além dos pecados de obras, cometem-se também contra o próximo pecados de palavra?
Sim, Senhor; e dividem-se em duas categorias: uns, em que se incorre no ato de administrar justiça e outros nas ações correntes e ordinárias da vida (LXVII-LXXVI)*.
Qual é o primeiro pecado na administração da justiça ?
A do Juiz que não julga ou que decide em desacordo com a razão e a equidade natural (LXVII).
Que qualidades necessita possuir o Juiz para estar à altura do seu cargo?
Precisa ser uma como uma personificação da Justiça, encarregado pela sociedade de reconhecer e amparar, em seu nome, os direitos daqueles que, achando-se prejudicados, recorrem à sua autoridade (Ibid).
Logo, a que normas deve ater-se para cumprir dignamente o seu ofício?
Às seguintes: Não pode conhecer de causas que não sejam de sua jurisdição e incumbência; está obrigado a fundamentar a sentença nos fatos e dados que resultem juridicamente comprovados no processo e tais como as partes os expõem; não deve intervir, se ninguém se queixa, nem reclama justiça; porém, quando interpõe a sua autoridade, deve administrá-la íntegra e imparcial, sem mal entendida compaixão com os delinquentes, quaisquer que sejam as penas que haja de impor-lhes, em conformidade ao direito, quer seja divino quer humano (LXVII, 2,4).
Qual é o segundo pecado contra a Justiça no ato do Juízo?
O pecado dos que faltam à obrigação de denunciar, ou acusam injustamente (LXVIII).
Que entendeis por obrigação de denunciar?
A que tem todo cidadão que conhece algum ato prejudicial à sociedade de por o autor nas mãos do Juiz, para que aplique a devida sanção. Só a impossibilidade de provar juridicamente o fato o excusa deste dever (LXVIII, 1).
Quando dizeis que é injusta a acusação?
Quando maliciosamente se imputa a alguém um crime que não cometeu e também quando não se persegue, como a Justiça requer, o crime, quer entendendo-se fraudulentamente com a parte contrária, quer desistindo, sem motivo, da acusação (LXVIII, 3).
Qual é o terceiro pecado contra a Justiça, no ato do Juízo?
O do acusado que não conforma o seu proceder com as normas do direito (LXIX).
Quais são as normas do direito a que deve ajustar-se o acusado, sob pena de pecar contra a Justiça?
Tem obrigação de dizer a verdade quando o Juiz, no uso das suas atribuições, lhe perguntar e a de não empregar em sua defesa meios reprováveis (LXIX, 1,2).
Pode o acusado apelar da sentença condenatória?
Já que nenhum acusado tem direito de defender-se empregando meios ilícitos, não pode apelar de uma sentença justa com o fim exclusivo de ganhar tempo e retardar a execução; quando, porém, for vítima de uma injustiça manifesta e, sempre dentro dos limites que a lei lhe faculta, pode apelar da sentença condenatória (LXIX, 3).
Pode um condenado à morte resistir à execução da sentença?
Se a condenação é injusta, pode resistir, usando, se for preciso, astúcia e violência, contanto que evite o escândalo. Se a sentença é justa, tem o dever de sofrer a execução sem opor resistência. Pode, apesar disso, fugir, se achar ocasião propícia, pois ninguém é obrigado a cooperar para a sua própria morte (LXIX, 4).
Qual é o quarto pecado que pode cometer-se contra a justiça, no ato do Juízo?
O das testemunhas que faltam ao seu dever (LXX).
De quantas maneiras podem faltar as testemunhas à sua obrigação?
Abstendo-se de declarar, não só quando lhes requer a autoridade judicial a que estão obrigados a obedecer no concernente à administração da justiça, mas também quando seja necessária a sua declaração para evitar dano de terceiro e, com maior razão, quando prestam declarações falsas (LXX, 1.4).
A declaração judicial falsa é sempre pecado mortal?
Sim, Senhor; porque ainda que, pela razão da parvidade da matéria, possa ser venial em determinadas ocasiões, é sempre mortal em atenção ao perjúrio e também à injustiça quando atenta contra alguma causa justa (LXX, 4).
Que outros pecados se cometem contra a Justiça no ato do Juízo?
Os dos advogados, quando se negam a patrocinar uma causa justa e não é possível recorrer a outro; quando defendem causa injusta, especialmente em assuntos cíveis e quando exigem por seu trabalho retribuição excessiva (LXX, 1, 3, 4).
XXIV
PECADOS DE PALAVRA NOS ATOS ORDINÁRIOS DA VIDA: INJÚRIA, DIFAMAÇÃO (MALEDICÊNCIA E CALÚNIA), MURMURAÇÃO, IRRISÃO E MALDIÇÃO
Quais são as injustiças de palavra que na vida se cometem contra o próximo?
São as de injúria, difamação, murmuração, irrisão e maldição (LXXII - LXXVI).
Que entendeis por injúria?
Entendem-se por injúria, insulto, ultraje e, às vezes, por menosprezo, censura e repreensão, as palavras que se usam para qualificar excessos ou injustiças, o fato de afrontar a alguém por palavra ou obra, agravando-o tanto na honra, como no respeito e consideração que se lhe merece (LXXII, 1).
A injúria é pecado mortal?
Quando as palavras ou fatos constituem por sua natureza ultraje grave e existe intenção formal de ofender, sim, Senhor; porém, será venial, apesar do exposto, quando a honra do ofendido não fica seriamente comprometida ou falta no agressor intenção de injuriar (LXXII, 2).
Têm todos os homens obrigação estrita de justiça de tratar os outros, quaisquer que sejam, com a devida consideração e respeito?
Sim, Senhor; visto que este respeito mútuo é de grande importância para a boa harmonia nas relações sociais (LXXII, 1-3).
Em que se funda e qual é a importância desta obrigação?
Funda-se em ser a honra um dos bens que os homens têm em maior estima, e, por consequência, há obrigação de tratar com as devidas considerações até os mais humildes e pequenos, sempre em harmonia com a sua condição; afrontá-los, deprimi-los, humilhá-los com olhares, gestos e palavras é mortificá-los naquilo que mais amam (Ibid).
Logo, estamos obrigados a evitar em presença de outros, qualquer palavra ou fato que possa mortificá-los, humilhá-los ou entristecê-los?
Sim, Senhor (Ibid).
A ninguém é permitido afastar-se desta regra?
A ninguém, exceto aos superiores, com o fim exclusivo de corrigir os seus súbditos, quando realmente o mereçam, ainda que, neste caso, jamais devem fazê-lo alucinados pela paixão, nem com formas e modos arrebatados ou indiscretos (LXXII, 2 ad 2).
Como devemos portar-nos com os que nos injuriam e ofendem?
A caridade e a mesma justiça podem exigir que não deixemos impunes os atentados diretos ou indiretos contra a nossa honra ou de outras pessoas que nos estão confiadas. Porém, ao reprimir a audácia do ofensor, devemos guardar a circunspecção precisa e sobretudo o modo de não devolver novo agravo ou injustiça (LXXII, 3).
Que entendeis por difamação?
No sentido estrito, consiste em atentar por meio de palavras contra a reputação e bom nome do nosso próximo, ou em fazer-lhe perder, total ou parcialmente, e sem razão nem motivo justificado, a estima e consideração dos outros (LXXIII, 1).
É a difamação um pecado muito grave?
Sim, Senhor; porque arrebata ao próximo bens mais estimáveis que a riqueza, objeto do pecado do roubo (LXXIII, 2, 3).
Quantas classes há de difamação?
Quatro diretas: imputar ao próximo culpa ou delito que não cometeu; exagerar os seus defeitos, divulgar segredos que lhes sejam desfavoráveis e atribuir-lhe intenções e propósitos torcidos ou. ao menos, suspeitos, nas suas melhores ações (LXXIII, 1. ad 3).
Existe alguma outra maneira de difamar o próximo?
Há outra, indireta, que consiste em negar-lhe as suas boas qualidades ou silenciá-las com malícia ou diminuí-las dissimuladamente (Ibid).
Que entendeis por murmurar ou semear cizânia?
O pecado do que diretamente se propõe, por meio de frases ambíguas e pérfidas insinuações, introduzir a discórdia entre os que se acham unidos com laços de amizade e mútua confiança (LXXIV, 1).
É pecado muito grave?
É o mais grave, odioso e digno de reprovação perante Deus e os homens, de quantos de palavra se cometem contra o próximo (LXXXIV, 2).
Que entendeis por irrisão?
A irrisão, zombaria ou chacota injuriosa é um pecado da palavra contra a justiça e consiste em ridicularizar o próximo em sua presença, encontrando nele defeitos e torpezas que lhe façam perder o domínio de si mesmo, nas relações com os outros (LXXV, 1).
É um pecado grave?
Sim, Senhor; porque envolve desprezo da pessoa e o desestimar e ter em pouco a outrem é ato detestável e digno de reprovação (LXXV, 2).
Confunde-se a ironia com o pecado de irrisão e tem a mesma gravidade?
Pode a ironia ser falta venial, quando, com ela, a modo de diversão, se criticam defeitos leves, sem desdenhar, nem ofender as pessoas. Pode acontecer que não seja falta quando não passa de travessura e passatempo inocente e nem haja perigo de mortificar, nem contrariar a quem dela é alvo. De qualquer modo, é um sistema de diversão muito delicado e melindroso e convém usá-lo com extrema prudência (LXXV, 1 ad 1).
Pode ser a ironia, em alguma ocasião, ato de virtude?
Manejada com habilidade e delicadeza, é um meio de que pode utilizar-se o superior para admoestar e repreender os súditos e também pode empregar-se entre iguais, a modo de caritativa correção fraterna.
Que precauções devem tomar-se nestes casos?
Antes de tudo, deve usar-se com grande tato e discrição, porque, se bem que às vezes pode ser útil abater até limites justos, a vã opinião que de si mesmo têm os propensos à jactância, é preciso também não destruir a segurança e confiança legítima que cada um deve ter em si mesmo, sem a qual se paralisa toda iniciativa e espontaneidade, convertendo a vítima da ironia em um ser tímido e irresoluto, degradado e envilecido aos seus próprios olhos.
Que relações têm a injúria, a difamação, a murmuração e a irrisão com o hábito vicioso de mal dizer?
Tem de comum estes vícios o serem pecados de palavra contra o próximo e diferenciam-se em que os quatro primeiros consistem em proposição ou enunciados com que se imputam males ou se negam bens, e a maldição em invocar o mal para que caia sobre os nossos semelhantes.
É a maldição ou praga ato essencialmente mau?
Sim, Senhor; porque é desejar o mal pelo mal; por consequência, é sempre por sua natureza, falta grave (LXXVI, 3).
* referências aos artigos da obra original
('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)