Carta Encíclica PROVIDENTISSIMUS DEUS
[18 de novembro de 1893]
Papa Leão XIII (1878 - 1903)
sobre o estudo da Sagrada Escritura
Veneráveis Irmãos, Saúde e a Bênção Apostólica
1. A Providência de Deus, nos seus adoráveis desígnios de amor, elevou inicialmente o gênero humano à participação da natureza divina e depois o libertou da culpa e da ruína universais, restituindo-o à sua dignidade primitiva, concedeu ao homem um esplêndido dom e salvaguarda, dando-lhe a conhecer, por meios sobrenaturais, os mistérios ocultos da sua divindade, da sua sabedoria e da sua misericórdia. Pois, embora na revelação estejam contidas algumas coisas que não estão além do alcance da razão sem assistência divina, e que são objetos de tal revelação a fim de que 'todos possam vir a conhecê-las com facilidade, certeza e segurança contra o erro, ainda assim não se pode dizer que a Revelação sobrenatural seja absolutamente necessária; ela é apenas necessária porque Deus ordenou o homem para um fim sobrenatural'. Esta revelação sobrenatural, de acordo com a crença da Igreja universal, está contida tanto na Tradição não escrita, como nos Livros Sagrados ou Canônicos, porque 'sendo escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm Deus como seu autor e como tal foram entregues à Igreja'. Esta crença tem sido perpetuamente mantida e professada pela Igreja em relação aos Livros Sagrados de ambos os Testamentos; e há documentos bem conhecidos do mais grave tipo, que nos chegam desde os tempos mais antigos, que proclamam que Deus, que falou primeiro pelos Profetas, depois pela sua própria boca, e por último pelos Apóstolos, compôs também as Escrituras Canônicas, e que estas são os seus próprios oráculos e palavras, isto é, uma Carta, escrita pelo nosso Pai celestial, transmitida pelos escritores sagrados à raça humana na sua peregrinação ainda tão longe da sua pátria celestial. Se, então, tal e tão grande é a excelência e a dignidade das Escrituras, que o próprio Deus as compôs, e que elas tratam dos maravilhosos mistérios, conselhos e obras de Deus, segue-se que o ramo da Teologia sagrada que se ocupa da defesa e elucidação desses Livros divinos deve ser excelente e útil no mais alto grau.
2. Nós, com a ajuda de Deus e não sem fruto, que temos procurado, por meio de frequentes cartas e exortações, promover outros ramos de estudo que pareciam capazes de fazer progredir a glória de Deus e contribuir para a salvação das almas, acalentamos durante muito tempo o desejo de dar um impulso à nobre ciência da Sagrada Escritura, e de dar ao estudo da Escritura uma orientação adequada às necessidades do tempo presente. A solicitude do múnus apostólico impele-nos naturalmente, e mesmo obriga-nos, não só a desejar que esta grande fonte da revelação católica seja tornada segura e abundantemente acessível ao rebanho de Jesus Cristo, mas também a não permitir qualquer tentativa de a profanar ou corromper, quer por parte daqueles que impiamente e abertamente atacam as Escrituras, quer por parte daqueles que são desviados para novidades falaciosas e imprudentes. Não ignoramos, de fato, Veneráveis Irmãos, que não são poucos os católicos, homens de talento e de saber, que se dedicam com ardor à defesa dos escritos sagrados e a torná-los mais conhecidos e compreendidos. Mas enquanto damos a estes o louvor que merecem, não podemos deixar de exortar seriamente outros também, de cuja habilidade, piedade e erudição temos o direito de esperar bons resultados, a se entregarem ao mesmo trabalho muito louvável. É nosso fervoroso desejo ver aumentar o número de defensores constantes e perseverantes na causa da Sagrada Escritura; e mais especialmente que aqueles que a graça divina chamou para as Ordens Sagradas, deveriam cotidianamente, como seu estado exige, mostrar maior diligência e empenho na sua leitura, meditação e explanação.
A Sagrada Escritura mais Proveitosa para a Doutrina e a Moral
3. Entre as razões pelas quais a Sagrada Escritura é tão digna de louvor - além de sua própria excelência e da reverência que devemos à Palavra de Deus - a principal de todas resulta dos inúmeros benefícios dos quais ela é a fonte; de acordo com o testemunho infalível do próprio Espírito Santo, que diz: 'Toda a Escritura, inspirada por Deus, é proveitosa para ensinar, para reprovar, para corrigir, para instruir na justiça, para que o homem de Deus seja perfeito, capacitado para toda boa obra'. Que tal era o objetivo de Deus ao dar a Escritura dos homens é demonstrado pelo exemplo de Cristo nosso Senhor e dos seus Apóstolos. Pois Ele mesmo, que 'obteve autoridade por milagres, mereceu a fé por autoridade, e pela fé atraiu a si a multidão', estava acostumado, no exercício da sua Divina Missão, a apelar para as Escrituras. Utiliza-as por vezes para provar que é enviado por Deus e que é o próprio Deus. Delas cita instruções para os seus discípulos e para confirmação da sua doutrina. Defende-as das calúnias dos opositores; cita-as contra os saduceus e fariseus, e delas retruca contra o próprio Satanás quando este ousa tentá-lo. No final de sua vida, suas declarações são da Sagrada Escritura, e é a Escritura que Ele expõe aos seus discípulos após a sua ressurreição, até que Ele ascenda à glória do seu Pai. Fiéis aos seus preceitos, os Apóstolos, embora Ele próprio tenha concedido que 'sinais e prodígios fossem feitos pelas suas mãos', usaram com o maior efeito, contudo, os escritos sagrados, a fim de persuadir as nações de todo o mundo da sabedoria do Cristianismo, para vencer a obstinação dos judeus e suprimir o surto de heresia. Isso é claramente visto em seus discursos, especialmente nos de São Pedro: estes eram frequentemente pouco menos que uma série de citações do Antigo Testamento apoiando da maneira mais forte a nova Lei. Encontramos a mesma coisa nos Evangelhos de São Mateus e de São João e nas Epístolas Católicas; e o mais notável de tudo nas palavras daquele que 'se gaba de ter aprendido a lei aos pés de Gamaliel, a fim de que, estando armado com armas espirituais, pudesse depois dizer com confiança: as armas da nossa guerra não são carnais, mas poderosas para Deus' [São Jerônimo].
Que todos, portanto, especialmente os mais novos das hostes eclesiásticas, entendam quão profundamente os Livros Sagrados devem ser estimados, e com que avidez e reverência eles devem se aproximar deste grande arsenal de armas celestiais. Pois aqueles que têm o dever de lidar com a doutrina católica perante os eruditos ou os iletrados não encontrarão em nenhum lugar matéria mais ampla ou exortação mais abundante, seja sobre o assunto de Deus, o sumo Bem perfeitíssimo ou sobre as obras que mostram sua Glória e seu amor. Em nenhum lugar há algo mais completo ou mais expresso sobre o assunto do Salvador do mundo do que o que se encontra em toda a extensão da Bíblia. Como diz São Jerônimo: 'Não conhecer a Escritura é não conhecer Cristo'. Nas suas páginas, a sua imagem sobressai, viva e inspiradora, difundindo por toda a parte a consolação nas tribulações, o estímulo à virtude e a atração pelo amor de Deus. E quanto à Igreja, às suas instituições, à sua natureza, ao seu ofício e aos seus dons, encontramos na Sagrada Escritura tantas referências e tantos argumentos prontos e convincentes, que, como São Jerônimo diz mais uma vez com toda a verdade: 'Um homem que está bem fundamentado nos testemunhos da Escritura é o baluarte da Igreja'. E se chegarmos à moral e à disciplina, um homem apostólico encontra nos escritos sagrados abundante e excelente assistência, preceitos de sublime santidade, exortações fortes e eficazes, exemplos esplêndidos de toda virtude e, finalmente, a promessa de recompensa eterna e a ameaça de punição eterna, proferidas em termos de solenes admoestações, em nome de Deus e nas próprias palavras de Deus.
4. E é este poder peculiar e singular da Sagrada Escritura, decorrente da inspiração do Espírito Santo, que dá autoridade ao orador sagrado, enche-o com liberdade apostólica de discurso, e comunica força e poder à sua eloquência. Pois aqueles que infundem em seus esforços o espírito e a força da Palavra de Deus, falam 'não apenas em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita plenitude'. Portanto, aqueles pregadores que são tolos e imprudentes, ao falar de religião e proclamar as coisas de Deus, não usam palavras a não ser aquelas da ciência humana e da prudência humana, confiando em seus próprios raciocínios ao invés daqueles de Deus. Os seus discursos podem ser brilhantes e belos, mas tendem a ser áridos e frios, porque não possuem o fogo da palavra de Deus e temdem a ficar muito aquém da força poderosa que a palavra de Deus possui: 'Porque a Palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes, e chega até à divisão da alma e do espírito'. Mas, de fato, todos os que têm o direito de falar concordam que há na Sagrada Escritura uma eloquência maravilhosamente rica e variada, digna de grandes temas. Isto Santo Agostinho compreendeu perfeitamente e expôs abundantemente. Isto também é confirmado pelos melhores pregadores de todas as épocas, que reconheceram com gratidão que deviam a sua reputação principalmente ao uso assíduo da Bíblia e à meditação devota das suas páginas.
5. Os Santos Padres sabiam bem tudo isso por experiência prática e nunca deixaram de exaltar a Sagrada Escritura e seus frutos. Em inúmeras passagens dos seus escritos encontramo-los a aplicar-lhe expressões como 'tesouro inesgotável da doutrina celeste', 'fonte transbordante de salvação' ou a apresentá-la como pastos férteis e belos jardins em que o rebanho do Senhor é maravilhosamente refrescado e deleitado. Ouçamos as palavras de São Jerônimo, na sua Epístola a Nepônio: 'Lê frequentemente as divinas Escrituras; sim, que a leitura sagrada esteja sempre na tua mão; estuda aquilo que tu próprio deves pregar. . Que o discurso do sacerdote seja sempre temperado com a leitura das Escrituras'. São Gregório Magno, que ninguém descreveu mais admiravelmente o ofício pastoral, escreve no mesmo sentido: 'Aqueles que são zelosos na obra da pregação nunca devem cessar o estudo da palavra escrita de Deus'. Santo Agostinho, no entanto, adverte-nos que 'em vão o pregador pronuncia a Palavra de Deus exteriormente, se não a ouvir interiormente' e São Gregório instrui os oradores sagrados a 'lerem a Palavra de Deus' e que 'primeiro encontrem na Sagrada Escritura o conhecimento de si mesmos e depois o levem aos outros, para que não se esqueçam de si mesmos ao repreenderem os outros'.
Tais admoestações, de fato, já tinham sido proferidas muito antes pela voz apostólica, que tinha aprendido a lição do próprio Cristo, que ' começou a fazer e a ensinar'. Não foi apenas a Timóteo, mas a toda a ordem do clero, que a ordem foi dirigida: 'Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina; sê diligente nelas'. Para a salvação e o aperfeiçoamento de nós mesmos e dos outros, a melhor ajuda está nas Sagradas Escrituras, como o Livro dos Salmos, por exemplo, nos adverte constantemente; mas só a encontrarão aqueles que trouxerem para esta leitura divina não apenas docilidade e atenção, mas também piedade e uma vida santa. Porque a Sagrada Escritura não é como os outros livros. Ditada pelo Espírito Santo, ela contém coisas da mais profunda importância que, em muitos casos, são muito difíceis e obscuras. Para compreender e explicar tais coisas, é sempre necessária a 'vinda' do mesmo Espírito Santo; isto é, a sua luz e a sua graça; e estas, como o salmista insiste tão frequentemente, devem ser procuradas pela oração humilde e guardadas pela santidade de vida.
O que a Bíblia deve à Igreja Católica
6. É nisto que o cuidado vigilante da Igreja brilha conspicuamente. Por meio de leis e regulamentos admiráveis, ela sempre se mostrou solícita para que 'o tesouro celestial dos Livros Sagrados, tão generosamente concedido ao homem pelo Espírito Santo, não seja negligenciado'. Ela prescreveu que uma porção considerável deles deve ser lida e piedosamente refletida por todos os seus ministros no ofício diário da salmodia sagrada. Ela ordenou que nas Igrejas Catedrais, nos mosteiros e em outros conventos em que o estudo possa ser convenientemente prosseguido, eles devem ser expostos e interpretados por homens capazes; e ela ordenou estritamente que os seus filhos devem ser alimentados com as palavras salvadoras do Evangelho, pelo menos aos domingos e festas solenes. Além disso, é devido à sabedoria e esforços da Igreja, que sempre se dedicou a isso zelosamente pelos séculos, aquele culto à Sagrada Escritura tem sido tão notável e tem dado tão grandes frutos.
7. E para mais fortalecer o nosso ensinamento e as nossas exortações, é bom recordar como, desde o início do Cristianismo, todos os que foram renomados pela santidade de vida e pela sagrada erudição deram a sua profunda e constante atenção à Sagrada Escritura. Se considerarmos os discípulos diretos dos Apóstolos - São Clemente de Roma, Santo Inácio de Antioquia, São Policarpo - ou os apologistas, como São Justino e Santo Ireneu, verificamos que, nas suas cartas e nos seus livros, quer na defesa da fé católica, quer na sua pregação, eles tiravam fé, força e unção da Palavra de Deus. Quando surgiram, em várias sés, escolas catequéticas e teológicas, das quais as mais célebres foram as de Alexandria e de Antioquia, pouco se ensinava nessas escolas senão o que estava contido na leitura, na interpretação e na defesa da palavra divina escrita. Delas saíram numerosos padres e escritores, cujos laboriosos estudos e admiráveis escritos mereceram justamente, nos três séculos seguintes, a denominação de idade de ouro da exegese bíblica. Na Igreja do Oriente, o maior nome de todos foi Orígenes - um homem notável tanto pela perspicácia do seu gênio como pelo seu trabalho perseverante, de cujas numerosas obras e da sua grande Héxapla quase todos os que vieram depois dele se inspiraram.
Outros que expandiram os limites desta ciência podem também ser nomeados, como especialmente eminentes; assim, Alexandria pode orgulhar-se de São Clemente e São Cirilo; a Palestina, de Eusébio e do outro São Cirilo; a Capadócia, de São Basílio o Grande e dos dois São Gregórios de Nazianzo e Nissa; Antioquia, de São João Crisóstomo, em quem a ciência da Escritura foi rivalizada pelo esplendor da sua eloquência. Na Igreja ocidental, havia muitos nomes tão grandes quanto: Tertuliano, São Cipriano, Santo Hilário, Santo Ambrósio, São Leão Magno, Santo Gregório Magno; os mais célebres de todos, Santo Agostinho e São Jerônimo, dos quais o primeiro foi tão maravilhosamente perspicaz no domínio do sentido da Palavra de Deus e tão fértil no uso que dela fez para a promoção da verdade católica, e o segundo que recebeu da Igreja, devido ao seu conhecimento preeminente da Escritura e aos seus trabalhos na propagação dos seus escritos, o nome de 'grande Doutor'.
Deste período até o século XI, embora os estudos bíblicos não tenham florescido com o mesmo vigor e a mesma fecundidade de antes, desenvolveram principalmente pela instrumentalidade do clero. Foi o seu cuidado e solicitude que selecionou as coisas melhores e mais úteis que os antigos tinham deixado, organizou-as em ordem e publicou-as com adições próprias - como fizeram Santo Isidoro de Sevilha, o Venerável Beda e Alcuíno, entre os mais proeminentes; foram eles que ilustraram as páginas sagradas com glosas ou comentários curtos, como vemos em Valafridio e Santo Anselmo de Laon ou despenderam novos argumentos para assegurar a sua integridade, como fizeram São Pedro Damião e o Beato Lanfranco. No século XII, muitos retomaram com grande sucesso a exposição alegórica das Escrituras. Neste gênero, São Bernardo é preeminente; e os seus escritos, pode dizer-se, são a Escritura por inteiro. Com a era dos escolásticos, veio um novo e bem-vindo progresso no estudo da Bíblia.
Que os escolásticos estavam preocupados com a genuinidade da versão latina é evidente pela Correção Bíblica, ou listas de emendas, que eles deixaram. Mas eles gastaram seus trabalhos e dedicação principalmente na sua interpretação e explicação. A eles devemos a distinção precisa e clara, como não havia sido dada antes, dos vários sentidos das palavras sagradas; a atribuição do valor de cada sentido na teologia; a divisão dos livros em partes, e os resumos das várias partes; a investigação dos objetos dos escritores; a demonstração da conexão de frase com frase, cláusula com cláusula; tudo isso contribuiu em larga escala para lançar luz sobre as passagens mais obscuras dos volumes sagrados. O valioso trabalho dos escolásticos na Sagrada Escritura é visto em seus tratados teológicos e em seus comentários das Escrituras; e, neste aspecto, o maior nome entre todos eles é o de São Tomás de Aquino.
8. Quando o nosso predecessor, Clemente V., estabeleceu cátedras de literatura oriental no Colégio Romano e nas principais Universidades da Europa, os católicos começaram a fazer uma investigação mais rigorosa sobre o texto original da Bíblia, bem como sobre a versão latina. O renascimento entre nós da aprendizagem do grego e, muito mais, a feliz invenção da arte da impressão, deram um forte impulso aos estudos bíblicos. Num breve espaço de tempo, inúmeras edições, especialmente da Vulgata, saíram da imprensa e foram difundidas por todo o mundo católico; tão honrada e amada era a Sagrada Escritura durante esse mesmo período, ao mesmo tempo em que era perseguida com calúnias pelos inimigos da Igreja. Também não devemos esquecer quantos homens eruditos havia, principalmente entre as ordens religiosas, que fizeram um excelente trabalho para a Bíblia entre o Concílio de Viena e de Trento; homens que, pelo emprego de meios e equipamentos modernos, e pelo tributo de seu próprio gênio e erudição, não apenas acrescentaram às ricas reservas dos tempos antigos, mas prepararam o caminho para o século seguinte, o século que se seguiu ao Concílio de Trento, quando quase pareceu que a grande era dos Padres havia retornado.
Pois é bem conhecido, e nós recordamo-lo com prazer, que os Nossos predecessores, de Pio IV a Clemente VIII, mandaram preparar as célebres edições da Vulgata e da Septuaginta que, tendo sido publicadas por ordem e autoridade de Sisto V e do mesmo Clemente, estão agora em uso comum. Nesta época, além disso, foram cuidadosamente publicadas várias outras versões antigas da Bíblia, e as versões dos Poliglotas de Antuérpia e de Paris, muito importantes para a investigação do verdadeiro significado do texto; não há nenhum livro de qualquer dos Testamentos que não tenha encontrado mais de um expositor, nem nenhuma questão grave que não tenha exercido proveitosamente a capacidade de muitos inquiridores, entre os quais não há poucos - mais especialmente daqueles que fizeram mais uso dos Padres - que adquiriram grande reputação. Desde então, o trabalho e a solicitude dos católicos nunca faltaram; pois, com o passar do tempo, eminentes eruditos levaram adiante o estudo bíblico com sucesso, e defenderam a Sagrada Escritura contra o racionalismo com as mesmas armas da filologia e ciências afins com as quais ela havia sido atacada. A consideração calma e justa do que foi dito mostrará claramente que a Igreja nunca falhou em tomar as devidas medidas para trazer as Escrituras ao alcance de seus filhos, e que ela sempre se manteve firme e exerceu proveitosamente a tutela conferida a ela pelo Deus Todo-Poderoso para a proteção e glória da sua Santa Palavra; de modo que ela nunca precisou, nem precisa agora, de qualquer estímulo de fora.
Como Estudar a Sagrada Escritura
9. Devemos agora, Veneráveis Irmãos, como o nosso propósito exige, transmitir-vos os conselhos que parecem mais adequados para levar a bom termo o estudo da ciência bíblica.
10. Mas, primeiro, deve ser claramente entendido contra quem nós temos que nos opor e lutar contra e quais são suas táticas e suas armas. Em tempos anteriores a disputa era principalmente com aqueles que, confiando no julgamento privado e repudiando as tradições divinas e o ofício de ensino da Igreja, sustentavam que as Escrituras eram a única fonte de revelação e o apelo final em questões de Fé. Agora, temos que enfrentar os Racionalistas, verdadeiros filhos e herdeiros dos hereges mais antigos que, confiando por sua vez em seu próprio modo de pensar, rejeitaram até mesmo os restos e resquícios da crença cristã que lhes foram transmitidos. Eles negam que exista qualquer coisa como revelação ou inspiração, ou a Sagrada Escritura; eles vêem, em vez disso, apenas as falsificações e as falsidades dos homens; eles estabelecem as narrativas das Escrituras como fábulas estúpidas e histórias mentirosas; as profecias e os oráculos de Deus são para eles ou predições feitas depois do evento ou previsões formadas pela luz da natureza; os milagres e as maravilhas do poder de Deus não são o que dizem ser, mas os efeitos surpreendentes da lei natural, ou então meros truques e mitos; e os Evangelhos e escritos Apostólicos não são de forma alguma o trabalho dos Apóstolos.
Esses erros detestáveis, pelos quais eles pensam que destroem a verdade dos Livros divinos, são impingidos ao mundo como os pronunciamentos peremptórios de uma certa 'ciência livre', recém-inventada; uma ciência, entretanto, que está tão longe de ser definitiva que eles estão perpetuamente modificando-a e complementando-a. E há alguns deles que, apesar de suas opiniões e declarações ímpias sobre Deus, e Cristo, os Evangelhos e o resto da Sagrada Escritura, são tidos ainda como teólogos cristãos e homens do Evangelho, e que tentam disfarçar com nomes tão honrosos sua imprudência e seu orgulho. A eles devemos acrescentar não poucos doutores de outras ciências que aprovam seus pontos de vista e lhes dão assistência, e são incitados a atacar a Bíblia por uma intolerância semelhante à revelação. E é deplorável ver que esses ataques se tornam cada dia mais numerosos e mais severos. Às vezes são homens de saber e juízo que são atacados; mas estes têm pouca dificuldade em defender-se das más consequências. Os esforços e as artes do inimigo são dirigidos principalmente contra as massas mais ignorantes do povo. Eles difundem seu veneno mortal por meio de livros, panfletos e jornais; eles o espalham por meio de discursos e conversas; eles são encontrados em todos os lugares; e eles estão de posse de numerosas escolas, tiradas pela violência da Igreja, nas quais, pelo ridículo e brincadeiras escabrosas, eles pervertem as mentes crédulas e não formadas dos jovens para o desprezo da Sagrada Escritura. Não deveriam estas coisas, Veneráveis Irmãos, agitar e incendiar o coração de cada pastor, para que a esta 'ciência, assim falsamente chamada' se oponha a antiga e verdadeira ciência que a Igreja, por meio dos Apóstolos, recebeu de Cristo, e para que a Sagrada Escritura possa encontrar os guerreiros que se impõem tão necessários em tal tormentosa batalha?
11. Que seja o nosso primeiro cuidado, então, o de ver que nos Seminários e Instituições Acadêmicas o estudo da Sagrada Escritura ser colocado numa base tal quanto a sua própria relevância e as circunstâncias do tempo exigem. Com esta visão, a primeira coisa que requer atenção é a escolha sábia dos professores. Os professores da Sagrada Escritura não devem ser nomeados ao acaso, um entre muitos; mas devem ser homens cujo caráter e aptidão sejam provados pelo seu amor e pela sua longa familiaridade com a Bíblia, e por uma aprendizagem e estudo adequados.
12. É uma questão de igual importância providenciar a tempo uma sucessão contínua de tais professores; e será bom, onde quer que isso possa ser feito, selecionar jovens de boa promessa que tenham completado com sucesso seu curso teológico, e separá-los exclusivamente para a Sagrada Escritura, proporcionando-lhes facilidades para estudos os mais completos possíves. Os professores assim escolhidos e assim preparados podem entrar com confiança na tarefa que lhes é designada; e para que possam levar a cabo o seu trabalho bem e proveitosamente, que prestem atenção às instruções que agora passamos a dar.
13. No início de um curso da Sagrada Escritura, que o professor se esforce seriamente para formar o julgamento dos jovens iniciantes, de modo a treiná-los igualmente para defender os escritos sagrados e apreender o seu significado. Este é o objetivo do tratado que é chamado 'Introdução'. Aqui o estudante é ensinado como provar a integridade e autoridade da Bíblia, como investigar e verificar seu verdadeiro sentido, e como encontrar e refutar objeções. É desnecessário insistir na importância de fazer esses estudos preliminares de forma ordenada e completa, com o acompanhamento e assistência da Teologia; pois todo o curso subsequente deve se apoiar no fundamento assim estabelecido e fazer uso da luz assim adquirida. Em seguida, o professor voltará a sua atenção sincera para aquela divisão mais frutífera da ciência das Escrituras que tem a ver com a Interpretação; onde é transmitido o método de usar a palavra de Deus para a vantagem da religião e da piedade. Reconhecemos sem hesitação que nem a extensão do assunto nem o tempo à disposição permitem que cada livro da Bíblia seja analisado separadamente. Mas o ensino deve resultar num método definido e determinado de interpretação - e, portanto, o professor deve igualmente evitar o erro de dar uma mera amostra de cada Livro, e de se deter demasiado numa determinada parte de um Livro.
Se a maioria das escolas não pode fazer o que é feito nas grandes instituições - isto é, levar os alunos a uma análise detalhada de um ou dois Livros de forma contínua e com um certo desenvolvimento - no entanto, pelo menos as partes que são seleccionadas devem ser tratadas com a plenitude adequada; de tal forma que os alunos possam aprender com a amostra que é assim colocada perante eles a amar e usar o resto do Livro sagrado durante toda a sua vida. O professor, seguindo a tradição da antiguidade, usará a Vulgata como o seu texto; pois o Concílio de Trento decretou que 'em palestras públicas, disputas, pregação e exposição', a Vulgata é a versão autêntica a ser adotada e este é o costume existente da Igreja. Ao mesmo tempo, as outras versões que a antiguidade cristã aprovou não devem ser negligenciadas, mais especialmente os tratados mais antigos. Pois, embora o significado do hebraico e do grego seja substancialmente traduzido pela Vulgata, no entanto, onde quer que possa haver ambiguidade ou falta de clareza, o 'exame de línguas mais antigas', para citar Santo Agostinho, será útil e vantajoso.
Mas, neste assunto, não precisamos dizer que é necessária a maior prudência, pois o 'ofício de um comentarista"' - como diz São Jerônimo - 'é expor não o que ele mesmo preferiria, mas o que o autor diz'. Tendo a questão das leituras sido, quando necessário, cuidadosamente discutida, a próxima coisa é investigar e expor o significado. E o primeiro conselho a ser dado é este: quanto mais nossos adversários argumentam em contrário, tanto mais solicitamente devemos aderir aos cânones de interpretação recebidos e aprovados. Assim, enquanto pesamos os significados das palavras, a conexão das idéias, o paralelismo das passagens e coisas semelhantes, devemos, por todos os meios, fazer uso de tais ilustrações que podem ser extraídas da erudição apropriada de um tipo externo; mas isso deve ser feito com cautela, de modo a não conceder a questões desse tipo mais trabalho e tempo do que são gastos nos próprios Livros Sagrados, e não sobrecarregar as mentes dos estudantes com uma massa de informações que será mais um obstáculo do que propriamente uma ajuda.
Sagrada Escritura e Teologia - Interpretação pelos Padres da Igreja
14. O professor pode agora passar com segurança para o uso das Escrituras em assuntos de Teologia. Sobre este assunto, deve ser observado que, além das razões usuais que tornam os escritos antigos mais ou menos difíceis de entender, há algumas passagens que são peculiares à Bíblia. Pois a linguagem da Bíblia é empregada para expressar, sob a inspiração do Espírito Santo, muitas coisas que estão além do poder e do alcance da razão do homem - isto é, os mistérios divinos e tudo o que está relacionado a eles. Há às vezes em tais passagens uma plenitude e uma profundidade oculta de significado que a letra dificilmente expressa e que as leis de interpretação dificilmente justificam. Além disso, o próprio sentido literal admite frequentemente outros sentidos, adaptados para ilustrar o dogma ou para confirmar a moral. Por isso, deve-se reconhecer que os escritos sagrados estão envoltos numa certa obscuridade religiosa, e que ninguém pode entrar no seu interior sem um guia; Deus assim dispõe, como os Santos Padres comumente ensinam, para que os homens possam investigá-los com maior ardor e seriedade, e para que o que é alcançado com dificuldade possa atuar mais profundamente na mente e no coração; e, acima de tudo, para que possam compreender que Deus entregou as Sagradas Escrituras à Igreja, e que, ao ler e fazer uso da sua Palavra, eles devem seguir a Igreja como seu guia e magistério.
Santo Ireneu há muito tempo estabeleceu que onde estavam os carismas de Deus, ali se aprendia a verdade, e que a Sagrada Escritura era interpretada com segurança por aqueles que tinham a sucessão apostólica. O seu ensinamento e o de outros Santos Padres são retomados pelo Concílio do Vaticano, que, ao renovar o decreto de Trento, declara que a sua premissa é a seguinte: 'Nas coisas de fé e de moral, pertencentes à construção da doutrina cristã, deve ser considerado o verdadeiro sentido da Sagrada Escritura, que foi e é mantido pela nossa Santa Mãe, a Igreja, a quem compete julgar o verdadeiro sentido e a interpretação das Escrituras; e, portanto, que não é permitido a ninguém interpretar a Sagrada Escritura contra tal sentido ou também contra o acordo unânime dos Padres'. Por este decreto muito sábio, a Igreja de modo algum impede ou restringe a busca da ciência bíblica, mas antes a protege do erro, e fomenta amplamente o seu estudo contínuo.
Um vasto campo é ainda deixado aberto ao estudante particular, no qual sua habilidade hermenêutica pode mostrar-se bastante adequada e com grande proveito para a Igreja. Por um lado, naquelas passagens da Sagrada Escritura que ainda não receberam uma interpretação certa e definitiva, tais trabalhos podem, na benigna providência de Deus, preparar e trazer à maturidade o julgamento da Igreja; por outro lado, em passagens já definidas, o estudante particular pode fazer um trabalho igualmente valioso, seja apresentando-as mais claramente ao rebanho e mais habilmente aos estudiosos, seja defendendo-as mais poderosamente de ataques hostis. Por isso, o primeiro e mais caro objetivo do pregador católico deve ser interpretar as passagens que receberam uma interpretação autêntica, quer dos próprios escritores sagrados, sob a inspiração do Espírito Santo (como em muitas passagens do Novo Testamento), quer da Igreja, sob a assistência do mesmo Espírito Santo, quer pelo seu julgamento solene, quer pelo seu magistério ordinário e universal - interpretar estas passagens naquele sentido idêntico, e provar, com todos os recursos da ciência, que as leis hermenêuticas sólidas não admitem outra interpretação.
Nas outras passagens, deve seguir-se a analogia da fé, e a doutrina católica, tal como é proposta com autoridade pela Igreja, deve ser considerada como a lei suprema; pois, visto que o mesmo Deus é o autor tanto dos Livros Sagrados como da doutrina confiada à Igreja, é claramente impossível que qualquer ensinamento possa ser extraído por meios legítimos dos primeiros, caso esteja em qualquer aspecto em desacordo com os segundos. Daí se segue que deve-se considerar como inepta ou falsa toda interpretação que promova argumentações contraditórias entre os escritores sagrados ou que tendam a se opor à doutrina da Igreja. O professor de Sagrada Escritura, portanto, entre outras recomendações, deve estar bem familiarizado com todo o domínio da Teologia e ter-se dedicado profundamente à leitura dos comentários dos Santos Padres e Doutores, e outros intérpretes inspirados. Isto é recomendado por São Jerônimo, e ainda mais assertivamente por Santo Agostinho, que assim justamente se queixa: 'Se não há ramo de ensino, por mais humilde e fácil que seja de aprender, que não necessite de um mestre, que maior sinal de temeridade e orgulho pode haver do que recusar estudar os Livros dos mistérios divinos com a ajuda daqueles que os interpretaram?'
Os outros Padres da Igreja disseram o mesmo e confirmaram-no com o seu exemplo, porque 'procuraram adquirir a compreensão das Sagradas Escrituras não com as suas próprias luzes e ideias, mas com os escritos e a autoridade dos antigos, que, por sua vez, como sabemos, receberam a regra de interpretação em linha direta dos Apóstolos'. Os Santos Padres 'a quem, depois dos Apóstolos, a Igreja deve o seu crescimento - pois a plantaram, regaram, edificaram, governaram e a acalentaram' - os Santos Padres, dizemos, são de suprema autoridade, sempre que todos eles interpretam de uma e a mesma maneira qualquer texto da Bíblia, no que diz respeito à doutrina da fé ou da moral; pois a sua unanimidade evidencia claramente que tal interpretação foi transmitida pelos Apóstolos como uma questão de fé católica. A opinião dos Padres é também de muito valor quando eles tratam destes assuntos na sua capacidade de doutores, não oficialmente; não só porque eles se destacam no seu conhecimento da doutrina revelada e no seu conhecimento de muitas coisas que são úteis para compreender os Livros apostólicos, mas porque eles são homens de santidade eminente e de zelo ardente pela verdade, a quem Deus concedeu uma medida mais ampla da sua luz. Portanto, o pregador deve ter sempre o dever de seguir os passos deles com toda a reverência, e usar seus trabalhos com rígida observância.
15. Mas ele não deve por isso considerar que é proibido, quando existe justa causa, levar a interpretação e a exposição além do que os Padres fizeram; contanto que se observe cuidadosamente a regra tão sabiamente estabelecida por Santo Agostinho - não se afastar do sentido literal e óbvio, exceto apenas quando a razão o torna insustentável ou a necessidade o requer; uma regra à qual é mais necessário aderir estritamente nestes tempos, quando a sede de novidade e a liberdade desenfreada de pensamento tornam o perigo de erro mais real e próximo. Também não devem ser negligenciadas as passagens que os Padres entenderam num sentido alegórico ou figurativo, mais especialmente quando tal interpretação é justificada pelo literal, e quando ela se apoia na autoridade de muitos. Pois este método de interpretação foi recebido pela Igreja desde os Apóstolos, e foi aprovado pela sua própria prática, como a santa Liturgia atesta; embora seja verdade que os santos Padres não pretendiam assim demonstrar diretamente dogmas de fé, mas usavam-no como um meio de promover a virtude e a piedade, tal como, pela sua própria experiência, eles sabiam ser isso mais valioso.
A autoridade de outros intérpretes católicos é de menor sustentação, mas o estudo da Escritura sempre continuou a avançar na Igreja, e, portanto, esses comentários também têm seu próprio valor e são úteis de muitas maneiras para a refutação de ataques e para a superação de dificuldades. Mas é muito impróprio passar ao largo, por ignorância ou desprezo, o excelente trabalho que os católicos deixaram em abundância, e recorrer às obras de não-católicos - e procurar nelas, em detrimento da sã doutrina e muitas vezes para o perigo da fé, a explicação de passagens sobre as quais os católicos há muito tempo empregaram com sucesso o seu talento e o seu trabalho. Pois, embora os estudos dos não-católicos, usados com prudência, possam às vezes ser úteis ao estudante católico, ele deve, no entanto, ter bem em mente - como os Padres também ensinam em numerosas passagens - que o sentido da Sagrada Escritura não pode ser encontrado incorrupto fora da Igreja, e não se pode esperar que seja encontrado em escritores que, estando sem a verdadeira fé, apenas roçam a epiderme da Sagrada Escritura, sem nunca alcançar a sua medula.
16. O mais desejável é, e o mais essencial, que todo o ensino da Teologia deveria ser permeado e animado pelo uso da divina Palavra de Deus. Isto foi o que os Padres e os maiores teólogos de todos os tempos desejaram e aplicaram na prática. Foi principalmente a partir dos Escritos Sagrados que eles se esforçaram para proclamar e estabelecer os Artigos de Fé e as verdades com eles conectadas, e foi com eles, e juntamente com a Tradição divina, que encontraram a justa refutação do erro herético, e a razoabilidade, o verdadeiro significado, e a relação mútua das verdades do Catolicismo. Nem se admirará disto quem considerar que os Livros Sagrados ocupam uma posição tão eminente entre as fontes da revelação que, sem o seu estudo e uso assíduo, a Teologia não pode ser colocada no seu verdadeiro patamar, ou tratada como a sua dignidade exige.
Pois embora seja louvável e apropriado que os estudantes em seminários e academias devam ser exercitados principalmente na aquisição de um conhecimento científico do dogma, por meio do raciocínio dos Artigos de Fé e de suas derivações, de acordo com as regras da filosofia experimentada e consolidada - o teólogo conscinte instruído não deverá de forma alguma negligenciar aquele método de demonstração doutrinária que extrai sua prova da própria autoridade da Bíblia; 'pois (a Teologia) não recebe seus primeiros princípios de qualquer outra ciência, mas imediatamente do próprio Deus por revelação; e, portanto, não recebe nada de outras ciências como de um grau superior, mas apenas as utiliza como inferências secundárias'. É esta visão do ensino doutrinário que é estabelecida e recomendada pelo príncipe dos teólogos, São Tomás de Aquino que, além disso, nos mostra - sendo este o caráter essencial da Teologia Cristã - como ela pode defender seus próprios princípios quando confrontados. 'Se o adversário' - diz ele - 'admite concessão a alguns princípios da revelação divina, temos um argumento direto contra ele: podemos nos prover de um artigo de fé para contestar os que negam um outro; mas se o nosso adversário rejeita tudo que a revelação ensina, não podemos argumentar com ele utilizando a razão para provar artigos de fé, mas apenas fazer uso da razão para refutar argumentos que confrontam esta mesma fé'.
Deve-se, portanto, tomar cuidado para que os iniciantes se aproximem do estudo da Bíblia bem preparados e munidos; caso contrário, as justas esperanças serão frustradas ou, talvez, o que é pior, tornem-se incautos prontos a recair nos perigos do erro, como presas fáceis dos sofismas e da erudição laboriosa dos racionalistas. A melhor preparação será uma aplicação conscienciosa à filosofia e à teologia, sob a orientação de São Tomás de Aquino, e a uma formação minuciosa dos seus princípios - como nós próprios já indicamos e orientamos a fazer em outro lugar. Por este meio, tanto nos estudos bíblicos como na parte da teologia chamada positiva, eles seguirão o caminho certo e com progressos satisfatórios.
A Autoridade da Sagrada Escritura - Crítica Moderna e Ciência Física
17. Provar, expor e ilustrar a Doutrina Católica pela legítima e hábil interpretação da Bíblia, é muito; mas há uma segunda parte do assunto de igual importância e igual dificuldade - a manutenção da forma melhor possível de sua plena autoridade. Isso não pode ser feito completa ou satisfatoriamente a não ser por meio do magistério vivo e próprio da Igreja. A Igreja, 'em razão da sua maravilhosa propagação, da sua distinta santidade e inesgotável fecundidade no bem, da sua unidade católica e da sua inabalável estabilidade, constitui um grande e perpétuo motivo de credibilidade e um testemunho inatacável da sua própria missão divina'. Mas como o magistério divino e infalível da Igreja repousa também sobre a autoridade da Sagrada Escritura, a primeira coisa a fazer é reivindicar a fiabilidade dos registos sagrados, pelo menos como documentos humanos, a partir dos quais se pode provar claramente, como a partir de testemunhos primitivos e autênticos, a divindade e a missão de Cristo nosso Senhor, a instituição de uma Igreja hierárquica e o primado de Pedro e dos seus sucessores.
É, portanto, muito desejável que haja numerosos membros do clero bem preparados para participar de uma competição desta natureza, e para repelir ataques hostis, confiando principalmente naquela armadura de Deus recomendada pelo Apóstolo, mas também não desacostumados aos métodos modernos de embate espiritual. A isto alude maravilhosamente São João Crisóstomo, ao descrever os deveres dos sacerdotes: 'e não é só para um tipo de combate que devemos estar preparados, porque a luta é multifacetada e o inimigo é de toda a espécie; e nem todos usam as mesmas armas, nem atacam da mesma maneira. Portanto, é necessário que o homem que tem que lutar contra todos esteja familiarizado com os ofícios e estrategemas de todos - que ele deve ser ao mesmo tempo arqueiro e atirador, comandante e oficial, general e soldado, infante e cavaleiro, hábil na luta marítima e no cerco; pois a menos que ele conheça todos os truques e reviravoltas da guerra, o diabo é bem capaz, se for deixada aberta uma única porta, de entrar em seus bandos ferozes e arrebatar as ovelhas'.
Já abordamos os sofismas do inimigo e as suas múltiplas estratégias de ataque. Vamos agora dar uma palavra de conselho sobre os meios de defesa. O primeiro meio é o estudo das línguas orientais e da arte da crítica. Estas duas aquisições são nos dias de hoje tomadas com elevada estima, e portanto o clero, fazendo-se mais ou menos completamente familiarizado com elas conforme o tempo e o lugar possam exigir, será mais capaz de desempenhar o seu ofício com crédito digno; pois eles devem fazer-se 'todos para todos', sempre 'prontos a satisfazer todo aquele que lhes pede uma razão para a esperança que manifesta'. Por isso, é muito conveniente que os professores de Sagrada Escritura e os teólogos dominem as línguas em que os Livros Sagrados foram originalmente escritos; e seria bom que também os estudantes da Igreja as cultivassem, mais especialmente aqueles que aspiram a graus acadêmicos. E devem ser feitos esforços para estabelecer em todas as instituições acadêmicas - como já foi louvavelmente aplicado em muitas delas - disciplinas referentes a outras línguas antigas, especialmente a semítica, e de assuntos relacionados com elas, para o benefício principalmente daqueles que se destinam a professar o magistério da literatura sagrada.
Estes últimos, com um objetivo semelhante em vista, deveriam familiarizar-se bem e completamente com a arte da verdadeira crítica. Surgiu, para grande prejuízo da religião, um método inepto, dignificado pelo nome de 'crítica superior', que pretende julgar a origem, integridade e autoridade de cada Livro apenas a partir de indicações internas. É claro, por outro lado, que em questões históricas, como a origem e a transmissão de escritos, o testemunho da história é de importância primordial, e que a investigação histórica deve ser feita com o máximo cuidado; e que, nesta questão, a evidência interna raramente é de grande valor, exceto como confirmação. Olhar para isso sob qualquer outra luz será abrir a porta para muitas consequências ruins. Isso fará com que os inimigos da religião sejam muito mais ousados e confiantes em atacar e adulterar os Livros Sagrados; e essa alardeada 'crítica superior' resolver-se-á no reflexo da parcialidade e do preconceito dos críticos. Não lançará sobre a Escritura a luz que se procura, nem provará ser de qualquer vantagem para a doutrina; apenas dará origem a desacordos e dissensão, aquelas notas seguras de erro, que os críticos em questão tão abundantemente exibem em suas próprias pessoas; e vendo que a maioria deles está contaminada com falsa filosofia e racionalismo, tal condição deve levar à eliminação dos escritos sagrados de toda profecia e milagre e de tudo o mais que estivesse fora da ordem natural.
18. Em segundo lugar, temos de lutar contra aqueles que, fazendo um mau uso da ciência física, examinam minuciosamente o Livro Sagrado, a fim de detectar os escritores num erro, e aproveitar a ocasião para difamar o seu conteúdo. Ataques desse tipo, que se referem a questões de experiência sensível, são particularmente perigosos para as massas, e também para os jovens que estão iniciando seus estudos literários; pois os jovens, se perderem sua reverência pela Sagrada Escritura em um ou mais pontos, são facilmente levados a desistir completamente de acreditar no todo. Não é necessário salientar como a natureza da ciência, assim como é tão admiravelmente adaptada para mostrar a glória do Grande Criador, desde que seja ensinada como deve ser, assim, se for perversamente transmitida à inteligência jovem, pode revelar-se muito fatal na destruição dos princípios da verdadeira filosofia e na corrupção da moralidade. Por isso, para o professor da Sagrada Escritura, um conhecimento da ciência natural será de grande ajuda para detectar tais ataques aos Livros Sagrados e refutá-los.
De fato, nunca poderá haver uma discrepância real entre o teólogo e o físico, desde que cada um se limite às suas próprias linhas, e ambos tenham o cuidado, como Santo Agostinho nos adverte, 'de não fazer afirmações precipitadas ou de afirmar o que não é conhecido como conhecido'. Se a discórdia surgir entre eles, aqui está a regra também estabelecida por Santo Agostinho, para o teólogo: 'O que quer que eles possam realmente demonstrar como verdadeiro da natureza física, nós devemos mostrar que é capaz de reconciliação com nossas Escrituras; e o que quer que eles afirmem em seus tratados que é contrário a essas nossas Escrituras, isto é, à fé católica, nós devemos demonstrar tão bem quanto pudermos que é inteiramente falso, ou em todo caso nós devemos, sem a menor hesitação, acreditar que é assim'. Para entender quão justa é a regra aqui formulada, devemos lembrar, em primeiro lugar, que os escritores sagrados, ou para falar mais precisamente, o Espírito Santo 'que falou por eles, não pretendia ensinar aos homens estas coisas (isto é, a natureza essencial das coisas do universo visível), coisas de modo algum proveitosas para a salvação'. Portanto, eles não procuraram penetrar nos segredos da natureza, mas descreveram e trataram das coisas em linguagem mais ou menos figurada, ou em termos que eram comumente usados na época, e que em muitos casos estão em uso diário nos dias de hoje, mesmo pelos mais eminentes homens de ciência. A linguagem comum descreve, em primeiro lugar e com propriedade, o que está sob o domínio dos sentidos; e um pouco do mesmo modo os escritores sagrados - como também nos lembra o Doutor Angélico - 'foram aplicados no que sensivelmente lhes parecia' ou o que Deus lhes significava, numa forma de abordagem que os homens podiam entender e à qual estavam acostumados.
19. A defesa intransigente da Sagrada Escritura, no entanto, não exige que devamos sustentar igualmente todas as opiniões que cada um dos Padres ou os intérpretes mais recentes apresentaram ao explicá-la; pois pode ser que, ao comentar passagens onde ocorrem questões físicas, eles tenham algumas vezes expressado as ideias do seu próprio tempo e, assim, feito afirmações que em nossos dias foram abandonadas como incorretas. Por isso, em suas interpretações, devemos observar cuidadosamente o que eles estabelecem como pertencente à fé, ou como intimamente ligado à fé - no que são unânimes. Pois 'nas coisas que não estão sob a obrigação da fé, os santos tinham a liberdade de ter opiniões divergentes, assim como nós mesmos temos', de acordo com o ditado de São Tomás. E em outro lugar, ele afirma de forma admirável: 'Quando os filósofos estão de acordo sobre um ponto, e este não é contrário à nossa fé, é mais seguro, na minha opinião, nem estabelecer tal ponto como um dogma de fé, mesmo que talvez seja assim apresentado pelos filósofos, nem rejeitá-lo como contrário à fé, para que não demos assim aos sábios deste mundo uma ocasião de desprezar a nossa fé'. O intérprete católico, embora deva mostrar que os fatos da ciência natural, que os investigadores afirmam ser agora certos, não são contrários à Escritura corretamente explicada, deve, no entanto, ter sempre presente que muito do que foi tido e provado como certo foi depois confrontado e até mesmo rejeitado. E se os doutores das ciências físicas saírem dos limites do domínio do seu conhecimento e levarem o seu ensino errôneo para o domínio da filosofia, que sejam encarregados aos próprios filósofos o dever e os meios de refutá-los.
Inspiração Incompatível com o Erro
20. Os princípios aqui estabelecidos aplicar-se-ão às ciências cognatas, e especialmente à História. É um fato lamentável que haja muitos que, com grande esforço, realizam e publicam investigações sobre os monumentos da antiguidade, os modos e instituições das nações e outros assuntos correlatos, e cujo principal objetivo em tudo isto é, muito frequentemente, encontrar erros nos escritos sagrados e assim abalar e enfraquecer a sua autoridade. Alguns desses escritores demonstram não apenas extrema hostilidade, mas a maior injustiça; aos seus olhos, um livro profano ou documento antigo é aceito sem hesitação, enquanto a Escritura, se eles apenas encontrarem nela uma suspeita de erro, é descartada sem a menor discussão, como totalmente não confiável. É verdade, sem dúvida, que os copistas cometeram erros no texto da Bíblia; esta questão, quando se coloca, deve ser cuidadosamente considerada pelos seus méritos, e o fato não deve ser admitido com demasiada facilidade, mas apenas nas passagens em que esta prova é clara.
Pode também acontecer que o sentido de uma dada passagem permaneça ambíguo e, neste caso, bons métodos hermenêuticos ajudarão muito a esclarecer a obscuridade. Mas é absolutamente errado e proibido, ou restringir a inspiração a certas partes apenas da Sagrada Escritura, ou admitir que o escritor sagrado errou. Pois o sistema daqueles que, para se livrarem dessas dificuldades, não hesitam em admitir que a inspiração divina diz respeito às coisas da fé e da moral, e nada além disso, porque (como eles erroneamente pensam) em uma questão de verdade ou falsidade de uma passagem, nós devemos considerar não tanto o que Deus disse quanto a razão e o propósito que Ele tinha em mente ao dizê-lo - esse sistema não pode ser tolerado. Pois todos os livros que a Igreja recebe como sagrados e canônicos são escritos total e inteiramente, com todas as suas partes, sob o ditado do Espírito Santo; e tão longe está de ser possível que qualquer erro possa coexistir com a inspiração; que a inspiração não só é essencialmente incompatível com o erro, mas o exclui e o rejeita tão absoluta e necessariamente como é impossível que o próprio Deus, a Verdade suprema, possa proferir o que não é verdade.
Esta é a antiga e imutável fé da Igreja, solenemente definida nos Concílios de Florença e de Trento, e finalmente confirmada e mais expressamente formulada pelo Concílio do Vaticano. Estas são as palavras do último: 'Os livros do Antigo e do Novo Testamento, inteiros e completos, com todas as suas partes, tal como estão enumerados no decreto do mesmo Concílio (Trento) e na antiga Vulgata Latina, devem ser recebidos como sagrados e canônicos. E a Igreja considera-os sagrados e canônicos, não porque, tendo sido compostos por origem humana, foram depois aprovados pela sua autoridade; nem apenas porque contêm revelação sem erro; mas porque, tendo sido escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm Deus por seu próprio autor'. Portanto, porque o Espírito Santo empregou homens como seus instrumentos, não podemos dizer que foram estes instrumentos inspirados que, por acaso, caíram em erro, e não o autor primário. Pois, pelo poder sobrenatural, Ele os moveu e impeliu de tal forma a escrever - Ele estava tão presente quanto eles - que as coisas que Ele ordenou fossem primeiro entendidas corretamente e depois fielmente escritas, expressando tudo com palavras adequadas e com verdade infalível. Caso contrário, não se poderia dizer que Deus fosse o Autor de toda a Escritura. Tal foi sempre a profissão de fé dos Padres da Igreja. 'Portanto' - diz Santo Agostinho - 'uma vez que eles escreveram as coisas que Ele lhes mostrou e proferiu, não se pode pretender que Ele não seja o escritor; pois os seus membros executaram o que a sua Cabeça ditou'. E São Gregório Magno assim se pronuncia: 'É muito supérfluo perguntar quem escreveu estas coisas - nós acreditamos fielmente que o Espírito Santo é o Autor do livro. Ele o escreveu; Ele o ditou para ser escrito; Ele inspirou a sua inteira realização'.
21. Segue-se que aqueles que sustentam que um erro é possível em qualquer passagem genuína dos escritos sagrados, ou pervertem a noção católica de inspiração, ou fazem de Deus o autor de tal erro. E tão enfaticamente estavam todos os Padres e Doutores de acordo que os escritos divinos, como deixados pelos hagiógrafos, estão livres de todo erro, que eles trabalharam arduamente, com não menos habilidade do que reverência, para reconciliar uns com os outros aquelas numerosas passagens que parecem em desacordo - as mesmas passagens que em grande parte foram tomadas pela 'crítica superior', pois todos eram unânimes em estabelecer que esses escritos, em sua totalidade e em todas as suas partes, eram divinamente inspirados e que Deus, falando pelos escritores sagrados, não poderia estabelecer nada além do que era verdadeiro. As palavras de Santo Agostinho a São Jerônimo podem resumir o que eles ensinaram: 'Pela minha parte, confesso à vossa caridade que aprendi a prestar somente honra e reverência máxima aos Livros da Escritura que agora são chamados de canônicos e que acredito firmemente que nenhum dos seus escritores caiu em qualquer erro. E se nesses livros eu encontrar qualquer coisa que pareça contrária à verdade, não hesitarei em concluir ou que o texto está equivocado, ou o tradutor não expressou devidamente o significado da passagem ou que eu mesmo não a entendi corretamente'.
22. Mas empreender completa e perfeitamente, e com todas as salvaguardas da melhor ciência, a defesa da Bíblia Sagrada é muito mais do que se pode esperar dos esforços de comentaristas e teólogos apenas. É um empreendimento no qual temos o direito de esperar a cooperação de todos os católicos que adquiriram reputação em qualquer ramo da ciência. Como no passado, assim no presente momento, a Igreja nunca está sem o apoio precioso dos seus filhos de reconhecida competência especializada; que seus serviços à Fé cresçam e prosperem! Pois não há nada que acreditemos ser mais necessário do que a verdade encontrar defensores mais poderosos e mais numerosos do que os inimigos que ela tem de enfrentar; nem há nada que seja mais bem calculado para impressionar as massas com respeito pela verdade do que vê-la corajosamente proclamada por homens eruditos e distintos. Além disso, as línguas amargas dos detratores serão silenciadas ou pelo menos amortecidas na insistência desavergonhada de a fé é inimiga da ciência, quando virem que os homens científicos de eminência especializada mostram para com a fé a honra e o respeito mais marcantes.
Vendo, pois, que tanto podem fazer em benefício da religião aqueles a quem a bondade de Deus Todo-Poderoso concedeu, juntamente com a graça da fé, grande talento natural, que tais homens, neste amargo conflito de que a Sagrada Escritura é objeto, escolham cada um deles o domínio de estudo mais adequado às suas circunstâncias, e se esforcem por se distinguir nele, e assim estejam preparados para repelir com crédito e distinção os ataques à Palavra de Deus. E é nosso agradável dever louvar merecidamente a obra que alguns católicos empreenderam para subsidiar a formação de associações, inclusive com com consideráveis recursos financeiros, com o propósito de fornecer aos homens sábios e eruditos toda a espécie de ajuda e assistência na realização de estudos especializados. Uma excelente forma de investimento financeiro bem adaptada às circunstâncias da época em que vivemos! Quanto menor for a perspectiva de patrocínio público para o estudo católico, tanto mais pronta e abundante deve ser a liberalidade das ações particulares - por aqueles a quem Deus deu riquezas, fazendo assim de bom grado uso dos seus meios para salvaguardar o tesouro da sã doutrina revelada.
Resumo
23. A fim de que todos esses esforços e exortações possam realmente ser proveitosos para a causa da Bíblia, que os estudiosos mantenham firmemente os princípios que nós estabelecemos nesta Carta. Que eles sustentem fielmente que Deus, o Criador e Provedor de todas as coisas, é também o Autor das Escrituras - e que, portanto, nada pode ser provado nem pela ciência física nem pela arqueologia que possa realmente contradizer as Escrituras. Se, então, uma contradição aparente for encontrada, todos os esforços devem ser feitos para refutá-la. Teólogos e estudiosos especializados devem ser consultados sobre qual é o significado verdadeiro ou mais provável da passagem em discussão, e os argumentos hostis devem ser cuidadosamente ponderados. Mesmo que a dificuldade não seja afinal esclarecida e a discrepância pareça permanecer, a disputa não deve ser abandonada; a verdade não pode contradizer a verdade, e podemos estar certos de que algum erro foi cometido ou na interpretação das palavras sagradas, ou na própria discussão polêmica; e se tal erro não puder ser detectado, devemos então suspender o julgamento por enquanto.
Houve inúmeras objeções perseverantemente dirigidas contra a Escritura por muitos anos que foram provadas como fúteis e agora nunca mais são ouvidas; e não raro interpretações foram colocadas em certas passagens da Escritura (não pertencentes à regra de fé ou moral) que foram retificadas por investigações mais cuidadosas. Com o passar do tempo, as opiniões equivocadas morrem e desaparecem; mas 'a verdade permanece e se fortalece para todo o sempre'. Portanto, assim como ninguém deve ser tão presunçoso a ponto de pensar que entende toda a Escritura, na qual o próprio Santo Agostinho confessou que havia mais coisas que ele não sabia do que sabia, assim, se alguém se deparar com qualquer coisa que pareça incapaz de solução, deve levar a sério a regra cautelosa do mesmo santo Doutor: 'É melhor ser oprimido por sinais desconhecidos, mas úteis, do que interpretá-los inutilmente e, assim, livrar-se do jugo da submissão para ser apanhado na armadilha do erro'.
24. Tais são, Veneráveis Irmãos, as exortações e as instruções que, com a ajuda de Deus, julgamos oportuno, no momento presente, oferecer-vos sobre o estudo da Sagrada Escritura. Será agora da vossa competência fazer com que o que dissemos seja observado e posto em prática com toda a reverência e exatidão; para que assim possamos provar a nossa gratidão a Deus pela comunicação ao homem das palavras da sua sabedoria, e para que se realizem todos os bons resultados tão desejados, especialmente no que diz respeito à formação dos aspirantes ao sacerdócio, que é a nossa grande solicitude e a esperança da Igreja. Esforçai-vos com vontade e dedicação, e usai a vossa autoridade e a vossa persuasão, para que estes estudos sejam tidos em justa conta e possam florescer, nos seminários e nas instituições de ensino que estejam sob a vossa jurisdição. Que floresçam em plenitude e com feliz êxito, sob a direção da Igreja, segundo o salutar ensinamento e exemplo dos Santos Padres e as louváveis tradições da antiguidade; e que, com o passar do tempo, se alarguem e estendam como o exijam o interesse e a glória da verdade, o interesse daquela Verdade católica que vem do alto, fonte inesgotável da salvação do homem.
Finalmente, com paternal amor, aconselhamos todos os aspirantes e ministros da Igreja a aproximarem-se sempre dos Escritos Sagrados com reverência e piedade; porque é impossível chegar à sua proveitosa compreensão, a não ser que se ponha de lado a arrogância da ciência terrena e se excite no coração o santo desejo daquela sabedoria 'que vem do alto'. Desta forma, a inteligência que é uma vez admitida a estes estudos sagrados, e assim iluminada e fortalecida, adquirirá uma facilidade maravilhosa em detectar e evitar as falácias da ciência humana, e em reunir e usar para a salvação eterna tudo o que é valioso e precioso; enquanto ao mesmo tempo o coração se aquecerá, e se esforçará, com ardente desejo, de avançar na virtude e no amor divino: 'bem-aventurados aqueles que se dedicam aos testemunhos de Deus e os buscam de todo o coração' (Sl 18,2).
25. E agora, cheios de esperança na assistência divina, e confiando na vossa solicitude pastoral - como penhor da graça celeste e sinal da nossa especial boa vontade - concedemos amorosamente, em nome de Nosso Senhor, a Bênção Apostólica a todos vós, ao clero e a todo o rebanho que vos foi confiado.