'No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica. Na eternidade, o Céu!'
(Manuscrito da Irmã Lúcia, excertos da obra 'Um caminho sob o olhar de Maria',
publicado pelo Carmelo de Coimbra, 2013)
Você, amigo de longa data, lamentava a pouco o fato de já não ser tão moço e que as tarefas do dia-a-dia lhe pareciam cada vez mais demoradas e mais cansativas... eis o preço que o tempo nos cobre sob a ótica puramente humana: menor vigor físico, maiores limitações para tudo. O avanço do tempo que não pára está diante de todos: as árvores perdem seus frutos e folhas, o sol se põe a cada dia, a morte de um parente ou de um velho conhecido, o limo que cobre as paredes assim como o matagal envolve por completo a velha casa em ruínas... E, ainda na nossa pobre ótica humana, lamentamos a sua passagem como símbolo da nossa própria morte que se aproxima, da perda dos bens e da juventude quase esquecida... Mas o tempo é o caminho que nos leva às eternas latitudes de Deus, às moradas sem fim das bem aventuranças, ao derradeiro aconchego da casa paterna. Como cristãos no mundo, os dias que se vão não são frutos perdidos e nem aves de arribação: são as contas do rosário que Deus perpassa à espera de cada um de nós; os dias que se passaram não são mato seco para ser queimado, mas pedras preciosas que pavimentam caminhos para a eternidade. Os dias que morrem, na verdade não morrem nunca: são simplesmente a certeza definitiva de que ainda somos peregrinos a caminho de casa.
Deus quer para si servidores de primeira hora, cristãos por inteiro. Não católicos pela metade, não servidores de hora marcada. Muitas vezes, queremos ser católicos do Domingo da Ressurreição, mas não católicos da Sexta-feira Santa. Queremos a glória da Ascensão do Senhor, mas nos esquivamos de subir o Calvário. Somos sedentos da luz de Cristo, mas nos assombramos diante da Cruz de Cristo. Temos o maior empenho em louvar as chuvas de bênçãos de pentecostes, mas nos esmaga, no passo adiante, o peso do apostolado. Somos vitoriosos no dia em que o Senhor fez para nós, mas nos aturdimos e nos desfalecemos com as tormentas dos dias de provações. Somos passageiros da barca quando Jesus está à proa, mas nos refugiamos nos abismos do escondimento quando nos sentimos sós. Somos herdeiros do Céu quando estamos confortáveis, mas nos tornamos sal insosso e trevas quando perdemos o porto das convicções.
Tens nestes momentos a meta de começar novos propósitos? Recomendo um, muito simples, muito fácil. Começa a praticar a caridade como lavar as mãos. Sem planejar, sem perceber. A caridade é a mais bela das virtudes porque exige de nós, pura e simplesmente, morrer para nós mesmos e para os frágeis anelos de nossas tantas vaidades. Pratica a caridade com a paciência diante das limitações alheias; pratica a caridade pela renúncia a ter sempre a última palavra; pratica a caridade pelo silêncio e pela oração; pratica a caridade evitando ser peso ou constrangimento para o próximo; pratica a caridade esvaziando-se do eu que desfaz em ruínas todas as tuas conquistas; pratica a caridade colocando-se a serviço e não se servindo dos outros; pratica a caridade com gestos concretos que não sejam mensurados como perdas ou concessões difíceis; pratica a caridade fazendo o bem sem ansiar por gestos de gratidão ou de reconhecimento. E aprenderás algo muito especial, em muito pouco tempo sobre tudo isso, quando a tua alma realmente se abrir para o teu próximo: a caridade é tão simples e tão fácil que só precisa começar...
Eis que o mundo enfrenta agora período de extraordinária turbação. E tombas então diante da provação, vencido pelo isolamento e pela sensação de fragilidade extrema? Mas foi preciso o mundo parar para que soubesses disso? Somos apenas fragilidades e miudezas cercadas e tangidas pela misericórdia de Deus, mas valemos mais, muito mais, que milhares de estrelas ou de grãos de areia reunidos. Que o teu isolamento seja oração. Que o teu silêncio seja oração. Que a tua enorme percepção de fragilidade seja oração. Não apenas pelos milhares que sofrem e que morrem sem ar em hospitais que se assemelham a acampamentos de guerra, mas pelos que não se vergam pelo jugo suave da fé e não respiram as infinitas graças que Deus nos distribui cotidianamente. Que o teu isolamento físico seja dor, sofrimento e recolhimento para a maior glória de Deus. E que seja principalmente oração, suave e perseverante, pela tua família e pela cura definitiva de tantos dos teus irmãos que, isolados espiritualmente, vivem desprotegidos da fé num mundo sem Deus.
Não faças nada neste mundo que não comece pelo Sinal da Cruz. Do ato mais cotidiano e simplório até os acontecimentos mais importantes de tua vida. Faça o Sinal da Cruz o tempo todo e em tudo: ao se levantar e ao deitar-se, ao entrar e ao sair de casa, antes e após as refeições, no trabalho, no descanso e no lazer, nas horas mais atarefadas e mais calmas, na alegria e na tristeza, sentado ou andando, antes ou depois de um encontro, uma reunião, uma visita ou uma consulta, no carro ou no ônibus, no silêncio do quarto ou no vozerio da multidão, em tudo e sempre. Faça o Sinal da Cruz sobre a fronte, sobre a boca, sobre os olhos, sobre o peito, sobre um órgão ou um membro em especial: mente pura, boca pura, olhos puros, coração puro. O Sinal da Cruz é a tua marca registrada de cristão e de Filho de Deus e armadura e escudo espirituais contra todas as tentações, ciladas do demônio e contra todos os males.
Sentimo-nos tranquilos quando sabemos que somos tangidos pela infinita misericórdia do Pai; assola-nos o santo temor de Deus quando sabemos que a sua justiça é também infinita. Como, então, viver uma autêntica vida cristã, moldada entre os limites infinitos da misericórdia e da justiça divinas? Vivendo cada dia como se cada dia fosse ser medido pela justiça infinita de Deus; morrendo a cada dia, como se cada dia fosse o último dia de nossas vidas, na esperança de cada dia ser medido pela infinita misericórdia do Pai.
Perguntas, filho, como é possível compreender que um Deus, de glória e realeza infinitas, possa ter compadecido de tal forma da humanidade a ponto de ter assumido, para salvá-la, a miserável condição humana? Eu te respondo com outras perguntas: Que Deus é esse que aceita ficar escondido num pedaço de Pão? Abandonado e isolado em tantos sacrários tão isolados e tão abandonados? Que Deus é esse que espera, com ternura e paciência infinitas, o nosso sim, o nosso amor, a nossa vontade prescrita pela Santa Vontade? Em vez de buscar respostas impossíveis, melhor que fazer perguntas é se perguntar: Como eu posso viver distante de um Deus assim, como uma flecha sem alvo, nauta sem rumo, alma sem destino, criatura sem Criador? Meu Deus, meu Deus, Deus Verdadeiro de Deus Verdadeiro, incriado e eterno, o que seria de mim se eu não fosse obra de Vossas mãos e se eu não for fruto de Vossa graça?
O peso das ansiedades, aflições e perturbações tem sido devastador? Fostes ao chão, meu filho? Tens sido pisado, esmagado, passado a limpo no cadinho de angústias e sofrimentos? Tenha sempre coragem, confiança, perseverança no cumprimento integral da Santa Vontade de Deus. Lembra-te das palavras da Virgem de Guadalupe a Juan Diego, no alto do monte Tepeyac: 'Querido filho, não tenhas medo e não te aflijas. Não se perturbe o teu coração e não te preocupes com esta ou com qualquer outra doença. Não estou aqui, eu que sou sua mãe? Não estás sob a minha proteção? Não sou a fonte da tua alegria? Não estás presente na minha túnica, na cruz dos meus braços? O que mais queres? Nada te deve afligir nem perturbar'.
Sabes cultivar o silêncio na presença de Deus? Que a tua oração não seja um mosaico de palavras sem fim que tenha o fim de fazer Deus nos ouvir em silêncio. Pelo contrário, que, em tua oração, Deus seja a voz a ser ouvida diante de tua contemplação silenciosa. A oração perfeita é aquela que emana do nosso silêncio absoluto para que a voz suave de Deus possa ser ouvida. Lembre-se que Deus se manifesta na nossa alma como o murmúrio de uma brisa ligeira e não com estrondo e a fúria do fogo*. Ele fala e se faz ouvir nos nossos corações pela oração do silêncio!
Queres encontrar a Deus no torvelinho de suas atividades humanas, em meio ao redemoinho de suas emoções e no escarcéu do mundo? Crês que Deus se deixa realmente transparecer no meio de névoas, sombras, gritos, estertores, buzinas e aceleradores? Ele quer que o busques no silêncio, no comedimento, na ausência do mundo, para que o tesouro da graça seja verdadeiramente perfeição e santificação. A graça que te há de ser concedida é por inteira, sem sublimação ou atenuação alguma, pois Deus somente nos regala com frutos de infinita doçura e eterna concessão. Se a tua pobre alma não consegue se recolher dentro de tuas talhas vazias, como Deus poderá fazer transbordar nelas o vinho das graças? Foge do mundo enquanto podes fugir para ficar diante de Deus, pois serás mais cobrado pelas graças que desperdiçastes do que pelos percalços e limitações inerentes aos homens deste mundo, tão cheios de talhas vazias...
Deus criou o céu e a terra, os oceanos e os ares, a imensidão das florestas e as mais imponentes montanhas. Criou toda sorte de animais sobre a terra, sob as águas, nos ares e nas regiões polares. Deus criou os dias e as noites, as estações, as plantas e as flores, o calor e o frio, a luz e a escuridão. Deus criou o sol e a lua, os planetas, as nebulosas, o quase infinito de Si mesmo, o Universo. Deus criou os anjos e todas as suas potestades. Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança, Deus criou o primeiro Adão e a primeira Eva e os fez senhores de todas as suas criações sobre a terra. Mas Deus precisava ainda fazer a obra prima da Sua criação. E Deus criou Nossa Senhora!
Pela sua vida, morte, Paixão e Ressurreição, Jesus Cristo não nos elevou das vertigens do mundo aos patamares da glória divina, tornando-nos dispenseiros de suas graças e meritórios das heranças eternas? Com uma condição: sermos apóstolos e peregrinos da fé neste mundo, levando a sua mensagem a todos os homens, até os confins da terra. Com a cruz às costas e como apóstolos de Cristo, nós nos tornamos capazes de remover montanhas, lançar fogo sobre a terra, salgar o mundo. Em que medida somos realmente luz para os outros? Ou somos integrantes mornos daquela legião de tíbios e insensatos que se dizem cristãos mas que vivem apenas como lamparinas apagadas refletindo languidamente a luz do sol?