domingo, 30 de outubro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Bendirei eternamente o vosso nome; para sempre, ó Senhor, o louvarei!(Sl 144)

 30/10/2022 - Trigésimo Primeiro Domingo do Tempo Comum

49. SOB O DOMÍNIO DA GRAÇA 


A caminho de Jerusalém, para viver a história definitiva de sua Paixão e Morte na Cruz, Jesus estava passando pela região de Jericó, quando se defronta com Zaqueu, o publicano, homem muito rico e de grandes posses. Na condição de judeu cooptado pelos romanos para desempenhar a função de lhes cobrar impostos, Zaqueu era visto como um traidor do seu povo e odiado e desprezado pelos seus conterrâneos.

Mas, ao contrário de muitos outros judeus que o odiavam, 'Zaqueu procurava ver quem era Jesus' (Lc 19,3). 'Procurar ver Jesus' possui aqui dois sentidos bastante distintos, mas essencialmente complementares. No primeiro sentido, Zaqueu foi movido pela graça dos bons propósitos e da conversão sincera. No segundo sentido, 'ver Jesus' estabelecia problemas práticos bastante óbvios, uma vez que, além da sua baixa estatura, Zaqueu encontrava dificuldades extremas em acessar a figura do Mestre, tolhido pela presença da grande multidão que O cercava, extasiada ainda pelo extraordinário milagre da cura do cego encontrado à beira do caminho (Lc 17, 36).

E o que faz este homem rico e de muitas posses? '... ele correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus, que devia passar por ali' (Lc 19, 4). Acima da murmuração e da agitação extremada do mundo, Zaqueu elevou-se da sua pequenez e colheu frutos abundantes da graça de Deus. Ali, do alto de uma figueira, paciente, confiante, perseverante, esperou. E Jesus veio ao seu encontro, como vai de encontro a toda ovelha perdida e fora do redil: 'Zaqueu, desce depressa! Hoje eu devo ficar na tua casa' (Lc 19, 5). E Zaqueu recebeu Jesus 'com alegria'.

E aqui são expostos mais uma vez as variantes e os atalhos da alma humana, essencialmente distintos, ainda que movidos pela mesma manifestação da admiração. A multidão mais admirada pelo milagre do que pelo Senhor do milagre, quedou-se à murmuração. Zaqueu, sob o domínio da graça, fez brotar da sua admiração ao Senhor sementes de arrependimento e salvação: 'Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos pobres, e se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais' (Lc 19, 8) e, como Marta, escolheu definitivamente a melhor parte: 'Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido' (Lc 19, 9-10).

sábado, 29 de outubro de 2022

ORAÇÃO AO SANTO ANJO DA GUARDA DO BRASIL

As nações e os povos, tanto como cada homem individualmente, têm os seus destinos guardados e regidos por um Anjo da Guarda. Assim nos ensina São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, bem como a Tradição da Igreja. O Brasil, portanto, é guiado, conduzido e amparado por um guardião celeste que, sustentado pelas orações e boas obras do povo brasileiro, intervém na formação e desenvolvimento dessa nação para nos fazer mais próximos dos Céus como um povo santo de uma nação santa. É fato conhecido que o Anjo da Guarda do Brasil era celebrado no dia 7 de setembro e muito honrado no período do Império. Mais ainda, embora esse anjo nunca tenha sido plenamente identificado como sendo o Arcanjo Rafael, alguns bispos consagraram o Brasil no passado a esse arcanjo, como protetor da nação brasileira.

Nestes dias tremendos em que vivemos, em que as nossas escolhas e o nosso livre arbítrio, como filhos de Deus, tendem a nos impelir a todos a um caminho de mazelas e de perdas generalizadas da autêntica catolicidade e da fé cristã, a par as nossas debilidades e deploráveis fraquezas espirituais, elevemos as nossas orações ao Santo Anjo da Guarda do Brasil para nos livrar dos males e do avanço da iniquidade sobre nossas famílias, nossos valores morais, nossa história de Terra da Santa Cruz (Terra Sancta Crucis), nossa herança sagrada de povo santo e nação santa, sempre protegida e amparada por Nossa Senhora da Conceição Aparecida.


1. Deus Eterno e Onipotente, que destinastes a cada nação o seu Anjo da Guarda, concedei que, pela intercessão e patrocínio do Anjo da Guarda do Brasil, sejamos livres de todas as adversidades. Por Jesus Cristo nosso Senhor. Amém. 

2. Ó Deus, cuja providência não conhece limites, Vós nos concedestes um anjo que vela sobre a nossa nação; nós Vos suplicamos que, com o auxílio deste divino guardião, conservemos a fé, a esperança e a caridade, vivendo na paz e na concórdia nesta terra de Santa Cruz. Por nosso Senhor Jesus Cristo Vosso Filho na unidade do Espírito Santo. Amém.

3. Santo Anjo do Brasil, vós fostes encarregado pelo Pai Eterno de guardar esta Terra de Santa Cruz e ajudá-la a crescer e desenvolver-se conforme os seus desígnios benevolentes. Nós cremos no vosso poder junto de Deus e confiamos na vossa prontidão em socorrer-nos. Sede, pois, nosso guia para que cumpramos convosco a nossa missão no mundo. Ajudai a Igreja no Brasil a anunciar Cristo com franqueza e alegria e penetrar toda a sociedade com o fermento do Evangelho. Afastai, com a força da Santa Cruz, todos os poderes inimigos que ameaçam o povo brasileiro. Unimos as nossas preces às vossas. Apresentai-as diante do Trono de Deus, para que, unidas ao sacrifício de Jesus, oferecido diariamente em nossos altares, alcancem aquelas graças que mais precisamos nesta hora de combate espiritual. E guardai-nos, sempre debaixo do manto protetor de Nossa Senhora Aparecida, nossa Mãe e Rainha, para que permaneçamos fiéis no caminho de Jesus, o único que nos conduz da terra ao Céu. Lá na assembleia de todos os povos, unidos como uma só família de Deus, louvaremos e agradeceremos convosco ao Pai Eterno, com seu Filho e o Espírito de Amor, por toda a eternidade. Amém.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

SOBRE A NEGLIGÊNCIA

A negligência é um obstáculo à perfeição, pois entrega os que têm este vício nas mãos dos inimigos. Para que não te tornes escrava deste pecado, é preciso que fujas da curiosidade, do apego aos bens terrenos e de qualquer ocupação que não convenha ao teu estado. É preciso que faças esforço para corresponder com presteza a toda a boa inspiração e a qualquer ordem de teus superiores, fazendo tudo no seu tempo, e do modo que os superiores querem.

Não demores, por pouco que seja, a obedecer. Esta falta de diligência acarretará uma segunda, logo uma terceira e outras muitas. Os sentidos se habituam à negligência e cederás então, mais facilmente que no princípio, pois já estás presa ao prazer que provaste. E assim irás habituando a começar o teu trabalho muito tarde, ou então, deixá-lo-á muitas vezes, como coisa merecida. Pouco a pouco, irá se formando o hábito de negligência, que se tornará totalmente forte de modo que, no momento da falta, reconheceremos que somos muito negligentes e sentiremos repugnância de nós mesmos, mas somente faremos o propósito de mais tarde em outra ocasião, sermos mais solícitos e diligentes.

Esta negligência atingirá toda a nossa alma. Seu veneno infeccionará não somente a vontade, fazendo-a aborrecer aquele trabalho, mas chegará a obstar a inteligência, de modo tal que ela não verá como são vãos aqueles propósitos de resistir, no futuro, diligentemente, às tentações a que agora, voluntariamente, sucumbirmos. Não basta fazer, a qualquer momento, o que devemos fazer. É preciso esperar o seu tempo, que será marcado pela hora de realizá-lo; importa fazê-lo com toda a diligência para que seja cumprido o dever com toda a perfeição possível.

Fazer um trabalho antes do tempo não é diligência, mas finíssima negligência. Fazê-lo apressadamente e sem cuidado, com os olhos fitos no descanso que poderemos desfrutar depois, também não passa de negligência. Estes atos acarretam grande mal à alma, porque não se considera o valor da boa obra, feita no seu tempo, e não se enfrenta, com ânimo resoluto, a fadiga e as dificuldades que o vício da negligência apresenta sempre aos novos soldados.

Deves lembrar-te que uma só elevação da mente a Deus e uma genuflexão em sua honra vale mais que todos os tesouros do mundo. E que, sempre que fazemos violência a nós mesmos e às nossas paixões viciosas, os anjos nos trazem do reino dos céus uma coroa de gloriosa vitória. Aos negligentes, Deus vai tirando as graças que lhes dava e, aos diligentes, as graças vão crescendo para que aquelas almas gozem um dia no Senhor.

Digo o mesmo a respeito da oração. Se ela, por exemplo, deve durar uma hora e isto parece pesado à tua negligência, começa a rezar como se fosse fazer somente durante um oitavo de hora. Passarás depois, com facilidade, ao segundo oitavo, ao terceiro e assim por diante. Mas se, no segundo ou em algum outro oitavo de hora, sentisses que a repugnância e a dificuldade eram fortes demais, deixa para depois a oração para não te cansares em demasia. Mas não te esqueças de retomar, pouco depois, o exercício.

Do mesmo modo deves proceder quanto aos trabalhos manuais, quando acontece que precises fazer muitas coisas e pareçam dificultosas demais, à tua negligência, e te causam aflição. Começa o teu trabalho corajosamente, e empreende uma das obras, como se fosse a única. Cumprirás assim, todo aquele mister que, à tua negligência, parecia de grande fadiga. Se assim não fizeres e não combateres a negligência, prevalecerá em ti este vício que, não somente a fadiga que sentires durante o exercício da virtude te assustará, mas temerás sempre as dificuldades que te advirão dos trabalhos futuros. E estarás sempre ansiosa, temerás sempre os futuros assaltos do inimigo e recearás a todo o momento, que alguém te venha impor alguma coisa desagradável. Viverás sempre inquieta.

E lembro-te, filha, de que este vício da negligência, pouco a pouco, com o seu veneno escondido, não somente ataca as primeiras e pequeninas raízes, que fariam crescer os hábitos das virtudes, mas ferem também os hábitos já adquiridos. É perfeitamente, como o cupim. O vício vai roendo insensivelmente e consumindo o âmago da vida espiritual. O demônio arma este laço contra todos os homens, especialmente contra os mais piedosos. 

Vigia, portanto, reza e pratica o bem e não te demores a tecer a fazenda para a veste nupcial, pois deves estar sempre pronta para ir ao encontro do Esposo. E lembra-te todo o dia, de que quem te dá a manhã não te promete a tarde, e quem te dá a tarde não te promete a manhã. Usa, portanto, de todos os teus segundos e minutos, de acordo com a Vontade Divina, e como se fossem os últimos momentos de tua vida. Além disto, deverás prestar conta minuciosíssima de todos os teus instantes.

Concluo, aconselhando-te a que tenhas como perdido o dia em que, mesmo se trabalhaste muito, não conseguiste muitas vitórias contra as tuas más inclinações e contra a tua vontade própria, ou não agradeceste ao Senhor dos benefícios que te concedeu, particularmente a penosa Paixão que Ele sofreu por ti, e paterno e doce castigo com que te puniu e que te fez digna do tesouro inestimável de algumas tribulações.

(Excertos da obra 'O Combate Espiritual e o Caminho do Paraíso', do Ven. Lourenço Scúpoli, 1939)

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

PALAVRAS ETERNAS (XIII)

Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum Caelorum

'Bem-aventurados os pobres de espírito
porque deles é o Reino dos Céus!' (Mt 5,3)


Era uma vez um rei que tinha duas filhas: uma delas era de singular formosura, porte esbelto, muito atraente e vivaz; a outra, muito feia e sem atrativos, de semblante pálido e trato qualquer. Esta vendo-se tão inferior à outra, foi chorar junto ao pai, lamentando-se que ninguém a tomaria por esposa. Disse-lhe então o pai: 'Aquieta-te filha, que eu tenho determinado que quem escolher a tua irmã não levará mais dote além da sua formosura e boa conversação; mas quem escolher a ti, levará por dote todo o meu reino'. 

Eis aí a sã doutrina! Este rei é Deus e as duas irmãs são a opulência e a pobreza, filhas do mesmo pai porque Deus fez o pobre e o rico: Dives et pauper obviaverunt sibi: et utriusque operator est Dominus (Pv 22, 2). A opulência é formosa aos olhos do mundo, reluz muito, veste-se muito bem, vive contente e onde quer que vá recebe vivas e agrados. Ao contrário, a pobreza é feia e triste, tende a ser repelida e vive abandonada. Quem se casa com a opulência, porém, não leva mais nada além do dote da glória e do brilho do mundo, que logo passam. E quem recebe a pobreza e com ela vive em paz, promete-lhe Deus o Reino do Céu: beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum Caelorum (Mt 5,3).

(Pe. Manuel Bernardes, em 'Sermões e Práticas').

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XLII)

Segunda Parte - O PURGATÓRIO, MISTÉRIO DE MISERICÓRDIA

Capítulo I

Temor e Confiança - A Misericórdia de Deus - Santa Lidwina e o Sacerdote Pouco Confiante - A Boa Vontade - São Claúdio de la Colombière e seu Testemunho Espiritual

Acabamos de considerar os rigores da Justiça Divina na outra vida; eles são tremendos e é impossível pensar neles sem um grande temor. A esse fogo aceso pela justiça divina e a essas dores excruciantes, comparadas com as quais todas as penitências dos santos e todos os sofrimentos dos mártires juntos não são nada, quem ousaria pensar e refletir sobre elas e não estremecer de muito medo?

Este temor é salutar e conforme ao espírito de Jesus Cristo. Nosso Divino Mestre deseja que tenhamos medo e que tenhamos medo não só do Inferno, mas também do Purgatório, que é uma espécie de inferno mitigado. É para nos inspirar este santo temor que Ele nos mostra as masmorras do Supremo Juiz, de onde não sairemos até que tenhamos pago o último centavo (Mt 5, 26). Podemos dizer do fogo do Purgatório o que se diz do fogo do Inferno: 'Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma, mas temei aquele que pode lançar no inferno tanto a alma como o corpo' (Mt 10,28). 

No entanto, não é intenção de Nosso Senhor que tenhamos um medo excessivo e estéril, um medo que nos tortura e desencoraja, um medo sombrio e sem confiança. Não; Ele deseja que nosso medo seja temperado com uma grande confiança em sua misericórdia; Ele deseja que tenhamos medo do mal para preveni-lo e evitá-lo; Ele deseja que o pensamento dessas chamas vingadoras nos estimule ao fervor ao seu serviço, e nos leve a expiar nossas faltas neste mundo e não no outro. 'Melhor é purgar nossos pecados e eliminar os nossos vícios agora' - diz o autor da Imitação - 'do que mantê-los para purificação futura' (Im 1, 24.2). Além disso, se apesar de nossos esforços para viver bem e de satisfazer nossos pecados neste mundo, temos temores bem fundamentados de que teremos que passar por um purgatório, devemos olhar para essa contingência com confiança ilimitada em Deus, que nunca deixa de consolar aqueles a quem Ele purifica pelos sofrimentos. 

Assim, no sentido de dar ao nosso medo esse caráter prático, esse contrapeso de confiança, depois de ter contemplado o Purgatório com todo o rigor de suas dores, devemos considerá-lo sob outro aspecto e de um ponto de vista diferente – o da Misericórdia de Deus, que brilha nele com não menos magnitude que a sua Justiça. Se Deus reserva castigos terríveis na outra vida para as menores faltas, Ele não os inflige sem, ao mesmo tempo, temperá-los com clemência; e nada mostra melhor a admirável harmonia da perfeição divina do que o Purgatório, porque ali se exerce a mais severa Justiça, juntamente com a mais inefável Misericórdia. Se Nosso Senhor castiga as almas que lhe são queridas, é de acordo com o seu amor, segundo as palavras: 'A quem amo, repreendo e castigo' (Ap 3,19). Com uma mão, Ele golpeia e, com a outra, Ele cura. Ele oferece misericórdia e redenção em abundância: quoniam apud Dominum misericordia, et copiosa apud eum redemptio (Sl 129). Esta infinita Misericórdia de nosso Pai Celestial deve ser o firme fundamento de nossa confiança e, a exemplo dos santos, devemos mantê-lo sempre diante dos nossos olhos. Os santos nunca a perderam de vista; e foi por isso que o temor do Purgatório nunca os privou de sua paz e alegria do Espírito Santo. 

Santa Lidwina, que tão bem conhecia a terrível severidade do sofrimento expiratório, estava animada por esse espírito de confiança e se esforçou sempre para o inspirar também aos outros. Certa vez, recebeu a visita de um padre piedoso. Enquanto ele estava sentado ao lado dela, junto com outras pessoas virtuosas, a conversa girava em torno dos sofrimentos da outra vida. Vendo nas mãos de uma mulher um vaso cheio de grãos de mostarda, o padre aproveitou para comentar que tremia ao pensar no fogo do Purgatório. 'No entanto' - acrescentou - 'eu ficaria satisfeito em ir lá por tantos anos quantos grãos de semente houver neste vaso; então, pelo menos, eu poderia ter certeza da minha salvação'. 'O que você está dizendo padre - respondeu a santa - 'por que tão pouca confiança na Misericórdia de Deus? Ah se o senhor tivesse um melhor conhecimento do Purgatório e dos terríveis tormentos que ali são suportados!' 'Seja o Purgatório o que for' - respondeu ele - 'eu mantenho o que falei'. Algum tempo depois, este sacerdote faleceu e quando as mesmas pessoas que estiveram presentes durante a conversa dele com Santa Lidwina, questionaram a santa sobre a sua condição no outro mundo, ela respondeu: 'O falecido está bem por causa de sua vida virtuosa, mas teria sido melhor para ele se ele tivesse mais confiança na Paixão de Jesus Cristo e se tivesse tido uma visão mais branda sobre os assuntos do Purgatório'.

Em que consistia essa falta de confiança que mereceu a desaprovação da santa? Na opinião deste bom sacerdote de que é quase impossível ser salvo e que só entraremos no Céu depois de ter sofrido incontáveis ​​anos de tortura. Essa ideia é completamente equivocada e contrária à confiança cristã. Nosso Salvador veio trazer paz aos homens de boa vontade, e nos impor, como condição de nossa salvação, um jugo que é suave e um fardo que não é pesado. Assim, faça valer sempre a sua boa vontade e você encontrará a paz interior e todas as dificuldades e contrariedades irão desaparecer.  Boa vontade! Isso é tudo. Seja uma pessoa de boa vontade, submeta-se à Vontade de Deus e anteponha a sua Santa Lei acima de tudo, servindo ao Senhor com todo o seu coração e Ele lhe dará uma assistência tão poderosa que você entrará no Paraíso com uma facilidade surpreendente. Eu nunca poderia acreditar - você seria levado a pensar - que era tão fácil entrar no céu! Mais uma vez, repito, para realizar em nós esta maravilha de Misericórdia, Deus pede de nossa parte apenas um coração reto e uma boa vontade.

A boa vontade consiste, propriamente falando, em submeter e conformar a nossa vontade à de Deus, que é o fundamento de toda boa vontade; e esta boa vontade atinge a sua perfeição máxima quando abraçamos a Vontade Divina como o bem soberano, mesmo quando ela nos impõe os maiores sacrifícios e os mais agudos sofrimentos. Ó estado admirável! A alma assim disposta parece perder a sensação de dor e isso porque a alma está animada com o espírito de amor; e, como diz Santo Agostinho, quando amamos não sofremos, ou, se sofremos, amamos o sofrimento - In eo quod amatur, aut non laboratur, aut ipse labor amatur.

São Cláudio de la Colombiere, da Companhia de Jesus, possuía este coração amoroso e esta vontade perfeita, e no seu Retiro Espiritual, exprime assim os seus sentimentos: 'Não devemos deixar de expiar as desordens passadas da nossa vida pela penitência; mas isso deve ser feito sem ansiedade, porque o pior que pode nos acontecer, quando nossa vontade é boa e somos submissos e obedientes, é que tenhamos que passar por muito tempo ao Purgatório, o que se pode dizer com razão não ser isso um grande mal. Eu não temo o Purgatório. Do Inferno nem falarei, pois seria ofender a Misericórdia de Deus por possuir o menor medo do Inferno, embora o tenha merecido mais do que todos os demônios juntos. Mas o Purgatório eu não temo. Gostaria de não o ter merecido, pois não o poderia viver sem ter desagradado a Deus; mas, como o teria merecido, devo aceitar e satisfazer a Justiça divina da maneira mais rigorosa que se possa imaginar, e isso até o Dia do Juízo. Eu sei que os tormentos ali suportados são terríveis, mas sei que eles honram a Deus e não podem prover mais dano às almas; que lá estaremos certos de nunca mais nos opor à Vontade de Deus; que nunca mais nos ressentiremos do rigor de seus juízos, que iremos amar a gravidade da sua justiça e esperaremos com paciência até que toda ela seja apaziguada. Por isso, dou de todo o coração as minhas satisfações às almas do Purgatório, e a elas todos os sufrágios que serão oferecidos por mim depois de minha morte, para que Deus seja glorificado no Paraíso pelas almas que mereceram ser elevadas a um grau mais alto de glória do que eu'.

Eis o que faz esse extravasamento da Caridade e onde o amor de Deus e ao próximo nos leva quando se apodera do nosso coração: transforma e transfigura o sofrimento de tal forma que toda amargura se molda em doçura: 'quando chegares a tal ponto que a tribulação te seja doce e amável por amor de Cristo' (Imit 2,12.11). Tenhamos, pois, grande amor a Deus, uma grande caridade e pouco temor do Purgatório. O Espírito Santo nos acalenta no fundo do nosso coração de que, como filhos de Deus, não precisamos temer os castigos de um Pai.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

terça-feira, 25 de outubro de 2022

ORAÇÃO: 25 DE OUTUBRO DA DIVINA INFÂNCIA


A JESUS SOLITÁRIO

Jesus quis nascer fora da cidade, numa caverna solitária, para nos ensinar a amar a solidão e o silêncio. Com efeito, se entramos nessa gruta, não achamos senão solidão e silêncio: Jesus guarda silêncio na manjedoura; Maria e José o adoram e contemplam em silêncio. Feliz da alma que se retira à solidão de Belém para aí contemplar o amor de um Deus! 

Querido Salvador meu, vós sois o Rei do céu, o Rei dos reis, o Filho de Deus; como, pois, estais nesse estábulo e desamparado de todo mundo? Junto de vós vejo somente José e vossa santa Mãe! Ah! desejo ajuntar-me a eles para vos fazer companhia; não me recuseis esta graça. E' verdade que sou indigno dela; mas sinto que me convidais com os vossos doces atrativos. Sim, a vós venho, ó Amadíssimo Menino, deixo tudo para ficar só convosco, durante toda a minha vida, ó divino Solitário, único amor da minha alma! 

Quão insensato sou! No passado vos abandonei, ó meu Jesus, deixei-vos só, fui mendigar, junto das criaturas, prazeres miseráveis e venenosos; mas agora, iluminado pela vossa graça, não tenho outro prazer que viver só convosco, que quereis viver solitário aqui. Ah! quem me dará asas como as da pomba? (Sl 54, 7). Quem me dará a força de sair deste mundo, onde tantas vezes achei a minha ruína; fugir dele e ficar sempre convosco, alegria do paraíso e amigo verdadeiro da minha alma? 

Senhor, prendei-me ao vosso coração, a fim de que não aparte mais de vós e goze a felicidade de vos fazer indefectível companhia. Pelos merecimentos da vossa solidão na gruta de Belém, concedei-me recolhimento nunca interrompido, criai na minha alma um retiro solitário, no qual a minha única ocupação seja entreter-me convosco e submeter-vos todas as minhas ações e pensamentos, consagrar-vos todos os meus afetos, para que vos ame sempre, e suspire sem cessar pelo momento de sair da prisão do meu corpo, para vos ir amar sem véu na pátria dos santos. Amo-vos, ó Bondade infinita, e espero amar-vos sempre, no tempo e na eternidade. O' Maria, onipotente Maria, pedi a Jesus que me prenda com os laços do seu amor, e não permitais que me suceda perder novamente a sua graça. 


(A Divina Infância de Jesus, celebrada a cada dia 25 do mês, por Santo Afonso Maria de Ligório)

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

GALERIA DE ARTE SACRA (XXXII)


A Praça de São Pedro, situada em frente à Basílica de São Pedro no Vaticano, foi construída entre 1656 e 1667 e tem dimensões impressionantes:  320 metros de comprimento e 240 metros de largura. Além destas dimensões singulares, a praça é ornamentada por um anfiteatro com duas colunatas compostas por 284 colunas e 88 pilastras, que circulam a praça em um pórtico de quatro filas, tendo no topo estátuas de 140 santos e santas da Igreja, executadas pelos discípulos de Bernini, com a seguinte distribuição arquitetônica:

Colunata Esquerda 71. São Boaventura, cardeal da Ordem dos Frades Menores e Doutor da Igreja 72. São Marcos, mártir 73. São Marcelino, mártir 74. São Vito, mártir 75. São Modesto, mártir 76. Santa Praxedes, mártir 77. Santa Pudentiana, mártir 78. São Fabiano, papa e mártir 79. São Sebastião, mártir 80. São Feliciano, mártir 81. São Fausto, mártir 82. Primo de Santo, mártir 83. São Feliciano, mártir 84. São Hipólito, mártir 85. São Basilides, mártir 86. São Paulo, mártir 87. São Juliano, mártir 88. São Nereu, mártir 89. São Aquiles, mártir 90. São Félix, bispo e mártir 91. São Constâncio de Perugia, bispo e mártir 92. Santo André Corsini, bispo da Ordem Carmelita 93. São Crescentius, mártir 94. Santa Pelagia, virgem e Mártir 95. São Pancrácio, Mártir 96. São Dionísio Areopagita, bispo e mártir 97. São Lourenço, diácono e mártir 98. Santo Estêvão, diácono e protomártir da Igreja 99. São Romano de Samósata, mártir 100. Santo Eusébio de Samósata, bispo e mártir 101. São Spyridion , mártir 102. Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir 103. Santo Alexandre de Alexandria, bispo 104. São Leão Magno, papa e doutor da Igreja 105. Santo Anastácio de Antioquia, bispo 106. São João Crisóstomo, bispo e padre da Igreja 107. São Ubaldo, bispo 108. São Gregório Nazianzeno, bispo e pai da Igreja 109. São Leão IV, papa 110. São Clemente Romano, papa e mártir 111.São Celestino V, papa 112. São Marcelo, papa e mártir 113. São Martinho, papa e mártir 114. São Silvestre, papa 115. São Marcelino, papa e mártir 116. Santa Gala, viúva 117. Santa Catarina de Sena, virgem de Ordem dos Pregadores 118. Santa Beatriz, virgem e mártir 119. Santa Teodora, virgem e mártir 120. São Jacinto da Polônia, sacerdote da Ordem dos Pregadores 121. São Francisco Xavier, sacerdote da Companhia de Jesus 122. São Caetano de Thiene, sacerdote e fundador da Ordem dos Clérigos Regulares 123. São Filipe Benizi, sacerdote da Ordem dos Servos de Maria 124. São Filipe Neri, sacerdote e fundador da Congregação do Oratório 125. São Carlos Borromeu, cardeal 126. Santo Antônio de Pádua, sacerdote da Ordem dos Frades Menores e doutor da Igreja 127. São Francisco de Paula, eremita e fundador da Ordem dos Mínimos 128. Santo Antônio, abade 129. São Paulo, primeiro eremita 130. São Pedro Nolasco, sacerdote e fundador da Ordem da Misericórdia 131. São José, pai adotivo de Jesus 132. São Romualdo, eremita e fundador da Ordem dos Camaldulenses 133. São João Esmoleiro, bispo 134. São Luís Bertrand, sacerdote da Ordem dos Pregadores 135. São Bruno, sacerdote e fundador da Ordem da Cartuxa 136. Santo Hilário, abade 137. São Jerônimo, sacerdote e pai da Igreja 138. São Teodoro, mártir 139. São Teobaldo, sacerdote e eremita 140. São Norberto, bispo e fundador da Ordem Premonstratense.
Colunata Direita 1. São Galicano, mártir 2. São Leonardo, eremita 3. Santa Petronilla, virgem 4. São Vital, mártir 5. Santa Tecla, virgem e mártir 6. Santo Alberto, Carmelita 7. Santa Isabel de Portugal, viúva 8. Santa Ágata, virgem e mártir 9. Santa Úrsula, virgem e mártir 10. Santa Clara, virgem e fundadora da Ordem das Irmãs Clarissas 11. Santa Olímpia, viúva 12. Santa Lúcia, virgem e mártir 13. Santa Balbina, virgem e mártir 14. Santa Apolônia, virgem e mártir 15. São Remígio, Bispo 16. Santo Inácio de Loyola, sacerdote fundador da Companhia de Jesus 17. São Bento, Abade 18. São Bernardo de Claraval, sacerdote da Ordem de Cister e doutor da Igreja 19. São Francisco de Assis, diácono e fundador da Ordem dos Frades Menores 20. São Domingos de Guzmán, sacerdote e fundador da Ordem dos Pregadores 21. Santa Macrina, a Velha 22. Santa Teodósia, virgem e mártir 23. São Efrém, diácono e doutor da Igreja 24. Santa Maria do Egito 25. São Marcos , evangelista 26. Santa Febronia, virgem e mártir 27. Santa Fabíola, viúva 28. São Nilamon, eremita 29. São Marciano, mártir 30. São Eusigno, mártir 31. São Marino, diácono 32. São Dídimo, mártir 33. São Apolônio o Apologista, mártir 34. São Cândido, mártir 35. Santa Fausta, confessor 36. Santa Bárbara, virgem e mártir 37. São Benigno, mártir 38. São Malco, mártir 39. São Mamante, mártir 0. São Columba, abade 41. São Pontiano, mártir 42. São Genésio, mártir 43. Santa Inês, virgem e mártir 44. Santa Catarina de Alexandria, virgem e mártir 45. São Justino, mártir 46. Santa Cecília, virgem e mártir 47.Santa Francisca Romana, viúva 48. São Jorge, mártir 49. Santa Maria Madalena de Pazzi, virgem da Ordem do Carmo 50. Santa Susana, mártir 51. Santa Martina, mártir 52. São Nicolau de Bari, bispo 53. São Nicolau de Tolentino, sacerdote da Ordem de Santo Agostinho 54. São Francisco de Bórgia, sacerdote da Companhia de Jesus 55. São Francisco de Sales, bispo e cofundador da Ordem da Visitação de Santa Maria 56. Santa Teresa de Jesus, virgem e fundadora da Ordem do Carmelo Descalço 57. Santa Juliana, mártir 58. São Juliano, mártir 59. São Celso, mártir 60. São Anastácio, mártir 61. São Vicente, mártir 62. São Paulo, mártir 63. São João, mártir 64 São Damião, mártir 65. São Cosme, mártir 66. São Zózimo, mártir 67. São Rufo, mártir 68. São Potrásio, mártir 69. São Gervásio, mártir 70. São Tomás de Aquino, presbítero da Ordem dos Pregadores e Doutor da Igreja


domingo, 23 de outubro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'O pobre clama a Deus e Ele escuta: o Senhor liberta a vida dos seus servos(Sl 33)

 23/10/2022 - Trigésimo Domingo do Tempo Comum

48. O VALOR DA ORAÇÃO HUMILDE 


Jesus falou muitas vezes sobre o valor da oração. Do valor da oração humilde e confiante, pautada no arrependimento sincero e na dor pelos pecados cometidos. Falou sobre a necessidade de orar sempre, com contrição e perseverança nas súplicas dirigidas à Divina Misericórdia. Mas, todas as vezes que Jesus falou sobre a oração, destacou sempre a premissa essencial do seu valor e ponderação: a humildade. A oração humilde é tangida pela Verdade porque emana da gratuidade da vida em comunhão com Deus.

No Evangelho deste domingo, outros dois personagens são trazidos à realidade das digressões humanas: um fariseu e um cobrador de impostos. Investidos de suas atribuições cotidianas, são apenas homens cumprindo metas e obrigações. Diante de Deus, duas almas, fruto de escolhas singulares da Infinita Sabedoria. Na vida de ambos, certamente o fariseu parecia ter escolhido a melhor parte, pelo menos até o dia em que ambos, vivendo vidas tão opostas, 'subiram ao Templo para rezar' (Lc 18, 10).

E ali, diante de Deus, as realidades humanas se consumiram no nada. O fariseu, eivado de orgulho e auto-suficiência, proferiu a oração despropositada e inútil: 'Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos. Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda’ (Lc 18, 11-12). No ato desonesto de louvar a si mesmo com desmedida jactância e julgar o próximo pela ótica dos valores humanos, arruinou a própria súplica. O cobrador de impostos, ao contrário, sabedor de suas fraquezas e misérias, prostrou-se em humilde recato e contrição, na sua súplica por clemência e perdão: 'Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!' (Lc 18,13).

O primeiro homem se viu em luz, e se banhou com desmedido orgulho nesta própria luz, mortiça e inútil, forjada tão somente por ações humanas. E saiu do templo com a concessão irrisória das alegrias humanas. O segundo homem, porém, apagou primeiro em si toda vaidade e interesses profanos e mergulhou, com inteira confiança e despojamento, na luz de Cristo. E, iluminado pela graça de Deus, alcançou misericórdia e experimentou a consoladora e definitiva paz daqueles que são plenamente justificados em Cristo: 'Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado' (Lc 18, 14).

sábado, 22 de outubro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: A UNIÃO ESTÁ NA CRUZ


Os sinais da afeição de Deus assumem duas formas muito distintas: ou podem ser agradáveis ​​e muito suaves ou então dolorosos e excruciantes. Deus eleva a alma e depois a rebaixa; primeiro a sublima e depois a aniquila. Mas sempre em união a Ele. Sim, apesar das aparências em contrário, mesmo nas fases de provação Deus e a alma estão unidas profundamente. E não falamos aqui apenas nas provações purificadoras da alma, prelúdio obrigatório da união, mas sobretudo naquelas dores redentoras que a alma experimenta muitas vezes quando alcança uma união transformadora e perfeita. 

Há neste caso uma comunhão real com os sofrimentos de Jesus Crucificado. E esta união é tanto mais intensa quanto maiores e mais profundas são as dores. Como explicar esse mistério? Parece que São Paulo nos dá a resposta quando afirma: 'estou crucificado com Cristo'. União no sofrimento e no amor! A alma interior está verdadeiramente pregada na Cruz com Jesus, e como que pelo próprio Deus! É que quanto mais querida uma alma é ao Coração do Pai, mais Ele quer que ela seja a imagem viva de seu Filho amado. Daí o cuidado de a manter sempre na Cruz, de modo a fazer compreender, de maneira viva, que o Amor não é amado e que a própria alma interior ainda não lhe oferece todo o amor de que seria capaz.

Mais ainda: dá a entender à alma que Ele, a suma Verdade, não é conhecido e que a própria alma interior não o contempla com a devida grandeza. Então a alma sente que o seu coração se livra da dor e se deleita de uma alegria secreta inefável. É a alegria da caridade terrena, sem dúvida imperfeita se a compararmos com a alegria do céu, mas muito superior que toda a felicidade da terra. Sim, o sofrimento que se aceita humildemente nos une a Deus. Diríamos que essa união é como uma mortalha de aço que nos envolve primeiro com toda a dureza, mas que nos acalenta e nos comprime a alma cada vez mais suavemente ao Coração de Deus. A amargura diminui continuamente; a alegria aumenta sempre e a união torna-se cada vez mais íntima com cada nova dor acolhida; se nem sempre é tão sentida, é sempre mais perfeita e profunda. É que para sofrer bem é preciso amar muito e, nessas condições e sob iguais circunstâncias, quanto mais e melhor se sofre, mais e melhor se ama. É por isso que o sofrimento constitui um sinal tão precioso da afeição de Deus.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte IV - Fecundidade Apostólica; tradução do autor do blog)

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO



'Não vos enganeis; de Deus não se zomba. Porque aquilo que o homem semear, isso também colherá. Aquele que semeia na sua carne, da carne colherá corrupção; mas o que semeia no Espírito, colherá do Espírito a vida eterna. Não nos cansemos, pois, de fazer o bem, porque a seu tempo colheremos, não desfalecendo. Logo, enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos irmãos da fé'.

(Gl 6, 7 - 10)

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XIII)

Carta Encíclica MORTALIUM ANIMOS 
 [06 de janeiro de 1928]

Papa Pio XI (1922 - 1939)

sobre a promoção da verdadeira unidade da religião 


1. Ânsia universal de paz e fraternidade

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos.

Pois, embora as nações ainda não usufruam plenamente dos benefícios da paz, antes, pelo contrário, em alguns lugares, antigas e novas discórdias vão explodindo em sedições e em conflitos civis; como não é possível, entretanto, que as muitas controvérsias sobre a tranquilidade e a prosperidade dos povos sejam resolvidas sem que exista a concórdia quanto à ação e às obras dos que governam as cidades e administram os seus negócios; compreende-se facilmente (tanto mais que já ninguém discorda da unidade do gênero humano) porque, estimulados por esta irmandade universal, também muitos desejam que os vários povos cada dia se unam mais estreitamente.

2. A fraternidade na religião - congressos ecumênicos

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dissemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor. Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual.

Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembleias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão.

3. Os católicos não podem aprovar

Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.

4. Outro erro -  A união de todos os cristãos - Argumentos falazes

Entretanto, quando se trata de promover a unidade entre todos os cristãos, alguns são enganados mais facilmente por uma disfarçada aparência do que seja reto. Acaso não é justo e de acordo com o dever – costumam repetir amiúde – que todos os que invocam o nome de Cristo se abstenham de recriminações mútuas e sejam finalmente unidos por mútua caridade?

Acaso alguém ousaria afirmar que ama a Cristo se, na medida de suas forças, não procura realizar as coisas que Ele desejou, ele que rogou ao Pai para que seus discípulos fossem 'UM' (Jo 17,21)? Acaso não quis o mesmo Cristo que seus discípulos fossem identificados por este como que sinal e fossem por ele distinguidos dos demais, a saber, se mutuamente se amassem: 'Todos conhecerão que sois meus discípulos nisto: se tiverdes amor um pelo outro?' (Jo 13,35). Oxalá todos os cristão fossem 'UM', acrescentam: eles poderiam repelir muito melhor a peste da impiedade que, cada dia mais, se alastra e se expande, e se ordena ao enfraquecimento do Evangelho.

5.Sob esses argumentos se oculta um erro gravíssimo

Os chamados 'pancristãos' espalham e insuflam estas e outras coisas da mesma espécie. E eles estão tão longe de serem poucos e raros mas, ao contrário, cresceram em fileiras compactas e uniram-se em sociedades largamente difundidas, as quais, embora sobre coisas de fé cada um esteja imbuído de uma doutrina diferente, são, as mais das vezes, dirigidas por acatólicos.

Esta iniciativa é promovida de modo tão ativo que, de muitos modos, consegue para si a adesão dos cidadãos e arrebata e alicia os espíritos, mesmo de muitos católicos, pela esperança de realizar uma união que parecia de acordo com os desejos da Santa Mãe, a Igreja, para quem, realmente, nada é tão antigo quanto o reconvocar e o reconduzir os filhos desviados para o seu grêmio. Na verdade, sob os atrativos e os afagos destas palavras, oculta-se um gravíssimo erro pelo qual são totalmente destruídos os fundamentos da fé.

6. A verdadeira norma nesta matéria

Advertidos, pois, pela consciência do dever apostólico, para que não permitamos que o rebanho do Senhor seja envolvido pela nocividade destas falácias, apelamos, veneráveis irmãos, para o vosso empenho na precaução contra este mal. Confiamos que, pelas palavras e escritos de cada um de vós, poderemos atingir mais facilmente o povo, e que os princípios e argumentos, que a seguir proporemos, sejam entendidos por ele pois, por meio deles, os católicos devem saber o que devem pensar e praticar, dado que se trata de iniciativas que dizem respeitos a eles, para unir de qualquer maneira em um só corpo os que se denominam cristãos.

7. Só uma Religião pode ser verdadeira: a revelada por Deus

Fomos criados por Deus, Criador de todas as coisas, para este fim: conhecê-lo e servi-lo. O nosso Criador possui, portanto, pleno direito de ser servido. Por certo, poderia Deus ter estabelecido apenas uma lei da natureza para o governo do homem. Ele, ao criá-lo, gravou-a em seu espírito e poderia portanto, a partir daí, governar os seus novos atos pela providência ordinária dessa mesma lei. Mas, preferiu dar preceitos aos quais nós obedecêssemos e, no decurso dos tempos, desde os começos do gênero humano até a vinda e a pregação de Jesus Cristo, Ele próprio ensinou ao homem, naturalmente dotado de razão, os deveres que dele seriam exigidos para com o Criador: 'Em muitos lugares e de muitos modos, antigamente, falou Deus aos nossos pais pelos profetas; ultimamente, nestes dias, falou-nos por seu Filho' (Hb 1,1-).

Está, portanto, claro que a religião verdadeira não pode ser outra senão a que se funda na palavra revelada de Deus; começando a ser feita desde o princípio, essa revelação prosseguiu sob a Lei Antiga e o próprio Cristo a completou sob a Nova Lei. Portanto, se Deus falou – e comprova-se pela fé histórica ter Ele realmente falado – não há quem não veja ser dever do homem acreditar, de modo absoluto, em Deus que se revela e obedecer integralmente a Deus que impera. Mas, para a glória de Deus e para a nossa salvação, em relação a uma coisa e outra, o Filho Unigênito de Deus instituiu na terra a sua Igreja.

8. A única religião revelada é a Igreja Católica

Acreditamos, pois, que os que afirmam serem cristãos, não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e uma só, foi fundada por Cristo. Mas, se se indaga, além disso, qual deva ser ela pela vontade do seu Autor, já não estão todos em consenso. Assim, por exemplo, muitíssimos destes negam a necessidade da Igreja de Cristo ser visível e perceptível, pelo menos na medida em que deva aparecer como um corpo único de fiéis, concordes em uma só e mesma doutrina, sob um só magistério e um só regime. Mas, pelo contrário, julgam que a Igreja perceptível e visível é uma federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes, cada uma delas, a doutrinas opostas entre si.

Entretanto, Cristo Senhor instituiu a sua Igreja como uma sociedade perfeita de natureza externa e perceptível pelos sentidos, a qual, nos tempos futuros, prosseguiria a obra da reparação do gênero humano pela regência de uma só cabeça (Mt 16,18-.; Lc 22,32; Jo 21,15-17), pelo magistério de uma voz viva (Mc 16,15) e pela dispensação dos sacramentos, fontes da graça celeste (Jo 3,5; 6,48-50; 20,22-.; cf. Mt 18,18; etc.). Por esse motivo, por comparações afirmou-a semelhante a um reino (Mt, 13), a uma casa (Mt 16,18), a um redil de ovelhas (Jo 10,16) e a um rebanho (Jo 21,15-17).

Esta Igreja, fundada de modo tão admirável, ao lhe serem retirados o seu Fundador e os Apóstolos que por primeiro a propagaram, em razão da morte deles, não poderia cessar de existir e ser extinta, uma vez que ela era aquela a quem, sem nenhuma discriminação quanto a lugares e a tempos, fora dado o preceito de conduzir todos os homens à salvação eterna: 'Ide, pois, ensinai a todos os povos' (Mt 28,19).

Acaso faltaria à Igreja algo quanto à virtude e eficácia no cumprimento perene desse múnus, quando o próprio Cristo solenemente prometeu estar sempre presente a ela: 'Eis que Eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos?' (Mt 28,20). Deste modo, não pode ocorrer que a Igreja de Cristo não exista hoje e em todo o tempo, e também que ela não exista como inteiramente a mesma que existiu à época dos Apóstolos. A não ser que desejemos afirmar que Cristo Senhor ou não cumpriu o que propôs ou que errou ao afirmar que as portas do inferno jamais prevaleceriam contra ela (Mt 16,18).

9. Um erro capital do movimento ecumênico na pretendida união das igrejas cristãs

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham pela união das igrejas cristãs. Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo: 'Para que todos sejam um...' e 'Haverá um só rebanho e um só Pastor' (Jo 27,21; 10,16). Fazem-no todavia de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de Cristo ainda carente do seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igrejas ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos e que, no máximo, a Igreja foi única e una da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.

Assim, dizem, é necessário colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedades de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conheçam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progressos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso. Estas são, Veneráveis Irmãos, as afirmações comuns.

Existem, contudo, os que estabelecem e concedem que o chamado Protestantismo, de modo bastante inconsiderado, deixou de lado certos capítulos da fé e alguns ritos do culto exterior, sem dúvida gratos e úteis, que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda conserva. Mas, de imediato, acrescentam que esta mesma Igreja também agiu mal, corrompendo a religião primitiva por algumas doutrinas alheias e repugnantes ao Evangelho, propondo acréscimos para serem cridos: enumeram como o principal entre estes o que versa sobre o Primado de Jurisdição atribuído a Pedro e a seus Sucessores na Sé Romana.

Entre os que assim pensam, embora não sejam muitos, estão os que indulgentemente atribuem ao Pontífice Romano um primado de honra ou uma certa jurisdição e poder que, entretanto, julgam procedente não do direito divino, mas de certo consenso dos fiéis. Chegam outros ao ponto de, por seus conselhos, que diríeis serem furta-cores, quererem presidir o próprio Pontífice.

E se é possível encontrar muitos acatólicos pregando à boca cheia a união fraterna em Jesus Cristo, entretanto não encontrareis a nenhum deles em cujos pensamentos esteja a submissão e a obediência ao Vigário de Jesus Cristo enquanto docente ou enquanto governante. Afirmam eles que tratariam de bom grado com a Igreja Romana, mas com igualdade de direitos, isto é, iguais com um igual. Mas, se pudessem fazê-lo, não parece existir dúvida de que agiriam com a intenção de que, por um pacto que talvez se ajustasse, não fossem coagidos a afastarem-se daquelas opiniões que são a causa pela qual ainda vagueiem e errem fora do único aprisco de Cristo.

10. A Igreja Católica não pode participar de semelhantes reuniões

Assim sendo, é manifestamente claro que a Santa Sé, não pode, de modo algum, participar de suas assembleias e que, aos católicos, de nenhum modo é lícito aprovar ou contribuir para estas iniciativas: se o fizerem concederão autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à única Igreja de Cristo.

11. A verdade revelada não admite transações

Acaso poderemos tolerar – o que seria bastante iníquo - que a verdade e, em especial a revelada, seja diminuída através de pactuações? No caso presente, trata-se da verdade revelada que deve ser defendida. Se Jesus Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, a todos os povos que deviam ser instruídos na fé evangélica e, para que não errassem em nada, quis que, anteriormente, lhes fosse ensinada toda a verdade pelo Espírito Santo, acaso esta doutrina dos Apóstolos faltou inteiramente ou foi alguma vez perturbada na Igreja em que o próprio Deus está presente como regente e guardião?

Se o nosso Redentor promulgou claramente o seu Evangelho não apenas para os tempos apostólicos, mas também para pertencer às futuras épocas, o objeto da fé pode tornar-se de tal modo obscuro e incerto que hoje seja necessário tolerar opiniões pelo menos contrárias entre si? Se isto fosse verdade, dever-se-ia igualmente dizer que o Espírito Santo que desceu sobre os Apóstolos, que a perpétua permanência dele na Igreja e também que a própria pregação de Cristo já perderam, desde muitos séculos, toda a eficácia e utilidade: afirmar isto é, sem dúvida, blasfemo.

12. A Igreja Católica é depositária infalível da verdade

Quando o Filho unigênito de Deus ordenou aos seus enviados que ensinassem a todos os povos, vinculou então todos os homens pelo dever de crer nas coisas que lhes fossem anunciadas pela 'testemunha pré-ordenada por Deus' (At 10,41). Entretanto, um e outro preceito de Cristo, o de ensinar e o de crer na consecução da salvação eterna, que não podem deixar de ser cumpridos, não poderiam ser entendidos a não ser que a Igreja proponha de modo íntegro e claro a doutrina evangélica e que, ao propô-la, seja imune a qualquer perigo de errar.

Afastam-se igualmente do caminho os que julgam que o depósito da verdade existe realmente na terra, mas que é necessário um trabalho difícil, que exige longos estudos e disputas para encontrá-lo e possuí-lo para que a vida dos homens seja apenas suficiente para isso; como se Deus benigníssimo tivesse falado pelos profetas e pelo seu Unigênito para que apenas uns poucos, e estes mesmos já avançados em idade, aprendessem perfeitamente as coisas que por eles revelou, e não para que preceituasse uma doutrina de fé e de costumes pela qual, em todo o decurso de sua vida mortal, o homem fosse regido.

13. Sem fé, não há verdadeira caridade

Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito? Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumava inculcar à memória dos seus o mandamento novo: 'Amai-vos uns aos outros', vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: 'Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação' (2 Jo. 10). Pelo que, como a caridade se apoia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

14. União irracional

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa federação cristã, na qual ao ingressar ou então quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros? E de que modo pedirmos que participem de um só e mesmo conselho homens que se distanciam por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição uma fonte genuína da Revelação Divina?

Como os que adoram a Cristo realmente presente na Santíssima Eucaristia, por aquela admirável conversão do pão e do vinho que se chama transubstanciação e os que afirmam que, somente pela fé ou por sinal e em virtude do sacramento, aí está presente o Corpo de Cristo? Como os que reconhecem nela a natureza do Sacrifício e a do Sacramento e os que dizem que ela não é senão a memória ou comemoração da Ceia do Senhor? Como os que creem ser bom e útil invocar súplice os santos que reinam junto de Cristo - Maria, Mãe de Deus, em primeiro lugar - e tributar veneração às suas imagens e os que contestam que não pode ser admitido semelhante culto, por ser contrário à honra de Jesus Cristo, 'único mediador de Deus e dos homens'? (1 Tm 2,5).

15. Princípio até o indiferentismo e o modernismo

Não sabemos, pois como, por essa grande divergência de opiniões, seja defendido o caminho para a realização da unidade da Igreja: ela não pode resultar senão de um só magistério, de uma só lei de crer, de uma só fé entre os cristãos. Sabemos, entretanto, gerar-se facilmente daí um degrau para a negligência com a religião ou o indiferentismo e para o denominado modernismo. Aqueles que foram miseravelmente infeccionados por ele defendem que não é absoluta mas relativa a verdade revelada, isto é, de acordo com as múltiplas necessidades dos tempos e dos lugares e com as várias inclinações dos espíritos, uma vez que ela não estaria limitada por uma revelação imutável, mas seria tal que se adaptaria à vida dos homens.

Além disso, com relação às coisas que devem ser cridas, não é lícito utilizar-se, de modo algum, daquela discriminação que houveram por bem introduzir entre o que denominam capítulos fundamentais e capítulos não fundamentais da fé, como se uns devessem ser recebidos por todos e, com relação aos outros, pudesse ser permitido o assentimento livre dos fiéis: a virtude sobrenatural da fé possui como causa formal a autoridade de Deus revelante e não pode sofrer nenhuma distinção como esta.

Por isto, todos os que são verdadeiramente de Cristo consagram, por exemplo, ao mistério da Augusta Trindade a mesma fé que possuem em relação ao dogma da Mãe de Deus concebida sem a mancha original e não possuem igualmente uma fé diferente com relação à Encarnação do Senhor e ao magistério infalível do Pontífice Romano, no sentido definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano.

Nem se pode admitir que as verdades que a Igreja, através de solenes decretos, sancionou e definiu em outras épocas, pelo menos as proximamente superiores, não sejam, por este motivo, igualmente certas e nem devam ser igualmente acreditadas: acaso não foram todas elas reveladas por Deus? Pois, o Magistério da Igreja, por decisão divina, foi constituído na terra para que as doutrinas reveladas não só permanecessem incólumes perpetuamente, mas também para que fossem levadas ao conhecimento dos homens de um modo mais fácil e seguro. E, embora seja ele diariamente exercido pelo Pontífice Romano e pelos bispos em união com ele, todavia ele se completa pela tarefa de agir, no momento oportuno, definindo algo por meio de solenes ritos e decretos, se alguma vez for necessário opor-se aos erros ou impugnações dos hereges de um modo mais eficiente ou imprimir nas mentes dos fiéis capítulos da doutrina sagrada expostos de modo mais claro e pormenorizado.

Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que, estando contidas pelo menos implicitamente no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia.

16. A única maneira de unir todos os cristãos

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.

Dizemos: a única verdadeira Igreja de Cristo - sem dúvida ela é a todos manifesta e, pela vontade de seu Autor, ela perpetuamente permanecerá tal qual Ele próprio a instituiu para a salvação de todos. Pois, a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada, como Cipriano o atesta: 'A Esposa de Cristo não pode ser adulterada: ela é incorrupta e pudica. Ela conhece uma só casa e guarda com casto pudor a santidade de um só cubículo' (De Cath. Ecclessiae unitate, 6).

E o mesmo santo mártir, com direito e com razão, grandemente se admirava de que pudesse alguém acreditar que 'esta unidade que procede da firmeza de Deus pudesse cindir-se e ser quebrada na Igreja pelo divórcio de vontades em conflito' (ibidem). Portanto, dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só (1 Cor 12,12), compacto e conexo (Ef 4,15), à semelhança do seu corpo físico, seria inépcia e estultice afirmar alguém que ele pode constar de membros desunidos e separados: quem pois não estiver unido com ele, não é membro seu, nem está unido à cabeça, que é o Cristo (cf Ef 5,30; 1,22).

17. A Obediência ao Romano Pontífice

Mas, ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece a não ser que, obedecendo, reconheça e acate o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos. Por acaso os antepassados dos enredados pelos erros de Fócio e dos reformadores não estiveram unidos ao Bispo de Roma, ao Pastor supremo das almas?

Ai! Os filhos afastaram-se da casa paterna; todavia ela não foi feita em pedaços e nem foi destruída por isso, uma vez que estava arrimada na perene proteção de Deus. Retornem, pois, eles ao Pai comum que, esquecido das injúrias antes gravadas a fogo contra a Sé Apostólica, recebê-los-á com máximo amor. Pois se, como repetem frequentemente, desejam unir-se conosco e com os nossos, por que não se apressam em entrar na Igreja, 'Mãe e Mestra de todos os fiéis de Cristo' (Conc. Later 4, c.5)?

Escutem a Lactâncio chamado amiúde: 'Só... a Igreja Católica é a que retém o verdadeiro culto. Aqui está a fonte da verdade, este é o domicílio da Fé, este é o templo de Deus: se alguém não entrar por ele ou se alguém dele sair, está fora da esperança da vida e salvação. É necessário que ninguém se afague a si mesmo com a pertinácia nas disputas, pois trata-se da vida e da salvação que, a não ser que seja provida de um modo cauteloso e diligente, estará perdida e extinta' (Divin. Inst. 4,30, 11-12).

18. Apelo às seitas dissidentes

Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que é 'raiz e matriz da Igreja Católica' (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a esperança de que 'a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade' (1 Tm 3,15) renuncie à integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu magistério e regime. Oxalá auspiciosamente ocorra para nós isto que não ocorreu ainda para tantos dos nossos muitos predecessores, a fim de que possamos abraçar com espírito fraterno os filhos que, de modo doloroso, estão separados por uma perniciosa dissensão.

Prece a Nosso Senhor e a Nossa Senhora

Oxalá Deus, Senhor nosso, que 'quer salvar todos os homens e que eles venham ao conhecimento da verdade'(1 Tm 2,4) nos ouça suplicando fortemente para que Ele se digne chamar à unidade da Igreja a todos os errantes. Nesta questão que é, sem dúvida, gravíssima, utilizamos e queremos que seja utilizada como intercessora a Bem Aventurada Virgem Maria, Mãe da graça divina, vencedora de todas as heresias e auxílio dos cristãos, para que ela peça, para o quanto antes, a chegada daquele dia tão desejado por nós, em que todos os homens escutem a voz do seu Filho divino, 'conservando a unidade de espírito em um vínculo de paz' (Ef 4,3).

19. Conclusão e Bênção Apostólica

Compreendeis, Veneráveis Irmãos, o quanto desejamos isto e queremos que o saibam os nossos filhos, não só todos os do mundo católico, mas também os que de nós se separaram. Estes, se implorarem em prece humilde as luzes do céu, por certo reconhecerão a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por fim, nela tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade. No aguardo deste fato, como auspício dos dons de Deus e como testemunho de nossa paterna benevolência, concedemos muito cordialmente a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e povo, a bênção apostólica.