segunda-feira, 18 de março de 2024

SOBRE A PAZ INTERIOR

 


1. Primeiro conserva-te em paz, e depois poderás pacificar os outros. O homem apaixonado, até o bem converte em mal e facilmente acredita no mal; o homem bom e pacífico, pelo contrário, faz com que tudo se converta em bem. Quem está em boa paz de ninguém desconfia; o descontente e perturbado, porém, é combatido de várias suspeitas e não sossega, nem deixa os outros sossegarem. Diz muitas vezes o que não devia dizer, e deixa de fazer o que mais lhe conviria. Atende às obrigações alheias, e descuida-se das próprias. Tem, pois, principalmente zelo de ti, e depois o terás, com direito, do teu próximo.

2. Bem sabes desculpar e cobrir tuas faltas, e não queres aceitar as desculpas dos outros! Mais justo fora que te acusasses a ti e escusasses o teu irmão. Suporta os outros, se queres que te suportem a ti. Nota quão longe estás ainda da verdadeira caridade e humildade, que não sabe irar-se ou indignar-se senão contra si própria. Não é grande coisa conviver com homens bons e mansos, porque isso, naturalmente, agrada a todos; e cada um gosta de viver em paz e ama os que são de seu parecer. Viver, porém, em paz com pessoas ásperas, perversas e mal educadas que nos contrariam, é grande graça e ação louvável e varonil.

3. Uns há que têm paz consigo e com os mais; outros que não têm paz nem a deixam aos demais; são insuportáveis aos outros, e ainda mais o são a si mesmos. E há outros que têm paz consigo e procuram-na para os demais. Toda a nossa paz, porém, nesta vida miserável, consiste mais na humilde resignação, que em não sentir as contrariedades. Quem melhor sabe sofrer maior paz terá. Esse é vencedor de si mesmo e senhor do mundo, amigo de Cristo e herdeiro do céu.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

domingo, 17 de março de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Criai em mim um coração que seja puro!' (Sl 50)

Primeira Leitura (Jr 31,31-34) - Segunda Leitura (Hb 5,7-9)  -  Evangelho (Jo 12,20-33)

 17/03/2024 - Quinto Domingo da Quaresma

16. A GLORIFICAÇÃO DE JESUS


Aproxima-se a consumação do sacrifício de Jesus na Paixão e Morte de Cruz. E, neste cenário de antecipação do cumprimento integral de sua missão salvífica, o evangelho de hoje prenuncia que o triunfo messiânico de Jesus perpassa pela conversão dos gentios. O sinal da natureza universal deste triunfo e da aproximação da hora final de sua missão na terra estava dado, pela presença de alguns gregos (símbolo de todos os gentios) que queriam 'ver Jesus' (Jo 12, 21), no sentido de não apenas conhecer, mas também de aceitar e viver em plenitude a doutrina cristã.

Eis definida, então, num episódio aparentemente pouco relevante da subida daqueles gregos até Jerusalém, a revelação contundente da proximidade do calvário e, com ela, da manifestação da glorificação do Filho do Homem, ratificada prontamente pelo Mestre: 'Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado' (Jo 12, 23). A morte próxima de Jesus é prenunciada neste momento como um triunfo da glória de Deus, como expressa claramente logo na sequência: 'quando for elevado da terra, atrairei todos a mim. Jesus falava assim para indicar de que morte iria morrer' (Jo 12, 32 - 33).

A correlação direta entre sacrifício e glorificação é ensinada por Jesus pelo exemplo da semente que deve morrer para produzir muitos frutos: 'Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas, se morre, então produz muito fruto' (Jo 12, 24). A glória perpassa pelo sacrifício, a vida humana nada mais é que uma estreita via de sofrimentos e tribulações rumo à pátria celeste; morrer para o mundo traduz a percepção cristã da debilidade da semente que morre, não apenas para não sucumbir às paixões humanas, mas para produzir frutos de salvação: 'Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna' (Jo 12, 25).

Jesus, diante a proximidade de sua hora final na terra, contempla, à luz da ciência divina, a vitória final da Cruz sobre as forças do mal ('julgamento do mundo'), na proclamação universal da sua Palavra e da conversão futura dos gentios. E, como a glória de Cristo é a glória do Pai, Jesus assim o manifesta: 'Pai, glorifica o teu nome!' (Jo 12, 28) e, de imediato, assim o faz também o Pai: 'Então veio uma voz do céu: Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!' (Jo 12, 28). Assim, pela terceira vez, Deus Pai glorifica o seu Filho (a primeira tinha sido no batismo de Jesus e a segunda, na transfiguração do Senhor); desta vez, como manifestação dirigida a todos os homens, povos, raças, nações e gentios, como revelação antecipada dos frutos da Paixão e do Triunfo e Glória do Verbo Encarnado.

sábado, 16 de março de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXVII)

 

Capítulo LXXVII

Razões para o Socorro às Santas Almas - Socorro às Almas dos Nossos Parentes Falecidos - Cimon de Atenas e o seu Pai na Prisão - São João de Deus e o Socorro aos Doentes de um Incêndio

Se somos obrigados a socorrer as santas almas pela extrema necessidade em que se encontram, quanto maior não se torna este motivo quando nos lembramos de que estas almas estão unidas a nós pelos laços mais sagrados, os laços de sangue, pelo Sangue de Jesus Cristo, e pelos laços da carne e do sangue humanos, de onde fomos gerados segundo a carne?

Sim, há no Purgatório almas unidas a nós pelos mais íntimos laços de família. Pode ser um pai ou uma mãe que, padecendo aqueles horríveis tormentos, estendem os braços em súplica para mim. O que não faríamos pelo nosso pai ou pela nossa mãe, se soubéssemos que estão a penar em algum calabouço tremendo? Um antigo ateniense, o célebre Cimon, teve o desgosto de ver o seu pai preso por credores sem coração, que ele não podia satisfazer. O pior é que não conseguiu reunir uma soma suficiente para efetuar o resgate do seu pai e o seu velho pai morreu na prisão. Cimon apressou-se a ir à prisão e pediu que lhe dessem, pelo menos, o corpo do seu pai para que o pudesse enterrar. Isso também lhe foi recusado, sob o pretexto de que, não tendo com que pagar as suas dívidas, não podia tê-lo libertado. 'Permitam-me primeiro enterrar meu pai' - gritou Cimon - ''e depois voltarei e tomarei o seu lugar na prisão'.

Admiramos este ato de piedade filial, mas não temos também o dever de o imitar? Não temos também, porventura, um pai ou uma mãe no Purgatório? Não somos obrigados a libertá-los à custa dos maiores sacrifícios? Mais afortunados do que Cimon, temos com que pagar as suas dívidas; não precisamos de tomar o seu lugar; pelo contrário, libertá-los é lutar pelo nosso próprio resgate.

Admiremos também a caridade de São João de Deus, que enfrentou a fúria das chamas para salvar os pobres doentes durante uma conflagração. Este grande servo de Deus morreu em Granada, no ano de 1550, ajoelhado diante de uma imagem de Jesus Crucificado, que ele abraçou e continuou a manter apertada nos seus braços, mesmo depois de ter entregado a sua alma a Deus. Filho de pais muito pobres e obrigado a sustentar-se com o pastoreio de rebanhos, era rico em fé e confiança em Deus. Tinha grande prazer na oração e na escuta da Palavra de Deus; este foi o fundamento da grande santidade que depois alcançou.

Um sermão do Venerável Padre João d'Ávila, Apóstolo da Andaluzia, impressionou-o de tal modo que resolveu consagrar toda a sua vida ao serviço dos pobres doentes. Sem outro recurso que não fosse a caridade e a confiança em Deus, conseguiu comprar uma casa, na qual reuniu todos os doentes pobres e abandonados, para lhes dar alimento para a alma e para o corpo. Este asilo depressa se transformou no Hospital Real de Granada, um estabelecimento imenso, cheio de uma multidão de idosos e doentes. Um dia, tendo deflagrado um incêndio no hospital, muitos dos doentes correram o risco de morrer de uma morte horrível. Estavam rodeados de chamas por todos os lados, de tal modo que era impossível alguém tentar salvá-los. Proferiam os gritos mais angustiantes, chamando o Céu e a Terra em seu auxílio. 

João, diante disso, inflama-se de caridade, precipita-se no fogo, luta através das chamas e do fumo até chegar aos leitos dos doentes; depois, erguendo-os sobre os ombros, carrega essas infelizes criaturas, uma após outra, para um lugar seguro. Obrigado a atravessar essa imensa fornalha, trabalhando no calor do fogo durante meia hora inteira, o santo não sofreu o menor ferimento; as chamas respeitaram sua pessoa, suas roupas e até mesmo o menor fio de cabelo de sua cabeça. Deus proveu tal milagre mostrando quanto era agradável a Ele a caridade do seu servo. E aqueles que salvam, não o corpo, mas as almas das chamas do Purgatório, a sua obra é menos agradável a Deus? As necessidades, os gritos e os gemidos dessas almas são menos tocantes para um coração de fé? Será mais difícil socorrê-las? Será necessário lançarmos por entre as chamas para as salvar?

Certamente, temos todas as facilidades ao nosso alcance para socorrê-las e Deus não exige para isso grandes esforços de nossa parte. No entanto, a caridade das almas fervorosas leva-as, por vezes, a fazer os sacrifícios mais heróicos e até mesmo a compartilhar os tormentos dos seus irmãos do Purgatório.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 15 de março de 2024

QUANDO O INFERNO É AQUI...


Na sexta-feira passada desta Quaresma, dia 08/03 e dia internacional da mulher, a França passou a incorporar um dispositivo legal que determina a possibilidade da interrupção voluntária da gravidez como um direito previsto na Constituição. Com isso, o país tornou-se o único do mundo a garantir a interrupção voluntária da gravidez na própria Constituição.

Na França, as mulheres já tinham o direito ao aborto garantido por lei desde 1975, permitindo que as mulheres abortassem até a 14ª semana de gestação. Mas agora, como direito constitucional, é praticamente cerceado qualquer potencial tentativa de impedimento para uma interrupção voluntária de uma gravidez na França. A aprovação do projeto foi esmagadora nas casas legislativas e teve grande apoio popular. O passo seguinte do governo francês é a promoção desta legislação constitucional do aborto para todos os demais países da União Europeia.

Que rumos da história puderam levar a França a esse abismo de fé e de confrontação a Deus? A França sempre foi conhecida como a 'filha primogênita da Igreja', porque os francos foram o primeiro dos povos bárbaros a serem convertidos ao catolicismo, no evendo do batismo do Rei Clóvis por São Remígio (em 25 de dezembro do ano 496). Desde então, a França passou a ter um papel singular na história da Igreja e da Civilização Cristã, berço de um portentoso número de santos e santas (São Bernardo de Claraval, Santa Joana d'Arc, São Vicente de Paulo, São Luís Grignion de Montfort, Santa Teresa de Lisieux, Santa Margarida Maria Alacoque, São João Maria Vianney...) e de manifestações da própria Mãe de Deus. Nossa Senhora manifestou-se em território francês por três vezes: em 1830 como Nossa Senhora das Graças da Medalha Milagrosa, em 1846 como Nossa Senhora de La Salette e, em 1858, como Nossa Senhora da Imaculada Conceição em Lourdes. Nenhum outro país foi agraciado com tantas aparições.

Quando se voou tão alto e se perde as asas, a queda tende a ser tenebrosa. Por certo seria uma temeridade imaginar o destino de qualquer nação, cristã ou não, que desconsidera o direito à vida dos seus filhos mais vulneráveis, que legaliza na própria constituição a matança destes inocentes. Mas o que pensar do futuro se tal nação é a 'filha primogênita da Igreja' e, por isso, contemplada com tantos privilégios do Céu? Que nação da terra pode ser capaz de confrontar na época atual com a França a partir de agora, em termos do abandono das graças da Providência Divina e de sublimar à exaustão os limites da ira santa de Deus?

quinta-feira, 14 de março de 2024

SOBRE A FIDELIDADE

A atitude fundamental da fidelidade é, pois, pressuposto de toda a auto-educação. Só o homem fiel consegue digerir interiormente as impressões contraditórias, extraindo o bem de cada uma delas, aprendendo e crescendo com as mais variadas situações da vida, porque permanece nele estável e viva a craveira dos valores autênticos. Em contrapartida, o homem volúvel cede, ora a uma, ora a outra impressão, e, sem mais, 'cai'; tudo nele passa mais ou menos sem deixar rasto.

Só o homem fiel, por outro lado, prefere o mais relevante ao menos relevante, o valioso ao que o é menos; o volúvel, esse, no melhor dos casos, mede pela mesma rasoura todas as realidades valiosas, mesmo que assim pereça algum valor mais alto. Ora, para o crescimento moral e, de modo geral, para a vida moral da pessoa, nada é mais importante do que a consideração da hierarquia objetiva dos valores, a capacidade de preferir constantemente os valores mais altos.

A atitude fundamental da fidelidade é também pressuposto de toda a confiança, de toda acredibilidade. Como há de alguém manter uma promessa ou merecer crédito na luta das idéias, se vive apenas no momento que passa, sem formar uma unidade de sentido com passado, presente e futuro? Quem poderá contar com ele? Só o homem fiel torna possível aquela confiança que constitui o fundamento de qualquer comunidade; só ele possui aquele elevado valor moral que reside na firmeza, na lealdade; na confiabilidade.

A fidelidade é, além disso, pressuposto da própria capacidade de confiar, da fé heróica. O volúvel, além de que não merece nenhuma confiança, jamais consegue crer com fé firme, inabalável: nem nos outros homens, nem em verdades, nem em Deus. É que lhe falta o vigor necessário para viver do valor que uma vez contemplou, se o rodeia a noite e a escuridão, ou se outras impressões fortes arremetem contra ele. Não é por acaso que, nas línguas latinas, a palavra fides significa simultaneamente fidelidade e fé. Com efeito, a fidelidade é parte constitutiva e essencial do vigor da fé e, portanto, de toda a religião.

Muito especialmente nítido é o significado transcendente da fidelidade no campo das relações humanas. O que é o amor sem fidelidade? No fundo, uma mentira. Porque o sentido mais profundo de todo o amor, o 'sim' interior que se pronuncia no amor, é uma íntima dedicação e entrega de si mesmo, que sobrevive sem prazo algum, inabalável através de todas as mudanças na correnteza da vida. Um homem que, por exemplo, diga: 'Amo-te agora, mas por quanto tempo não sei', nem amou realmente, nem faz idéia nenhuma da essência do amor. A fidelidade é tão essencial ao amor que qualquer um tem de considerar perene a sua dedicação. Isto vale para todos os amores: para o amor aos pais, para o amor aos filhos, aos amigos, para o amor conjugal. Quanto mais profundo é o amor, tanto mais o penetra a fidelidade.

É precisamente nesta fidelidade que repousa o especial brilho moral do amor, a sua casta beleza... A fidelidade imperturbável do amor de mãe, a fidelidade inconcussa de um amigo, possuem uma especial beleza moral que toca o coração de quem se abre aos valores. A fidelidade é, assim, o núcleo de qualquer amor grande e profundo.

O que é que há, em contrapartida, de mais moralmente baixo e disforme do que a infidelidade manifesta, a antítese radical da fidelidade, que ultrapassa largamente a inconstância? Que mácula moral se pode comparar com a do traidor que, por assim dizer, apunhala o coração que se lhe ofereceu cheio de confiança e indefeso? Quem for falto de fidelidade na sua atitude fundamental é um Judas perante todo o mundo dos valores éticos.

Sem dúvida, há homens para quem a fidelidade não passa de simples virtude burguesa, de mera correção ou probidade. O homem livre, grande, genial - assim pensam eles - não precisa de fidelidade. Néscio mal-entendido! Talvez haja, efetivamente, uma espécie de fidelidade inócua e complacente. Mas o certo é que a autêntica fidelidade é parte indispensável, constitutiva de toda a grandeza moral, de toda a verdadeira força e profundeza de uma personalidade.A autêntica fidelidade de que aqui tratamos é o contrário da mera probidade burguesa ou da simples atitude de quem se aferra aos seus costumes. Não deriva também de um temperamento apático, como a inconstância não deriva de um temperamento vivo e impulsivo.

A fidelidade é uma resposta livre e cheia de sentido ao mundo da verdade e dos valores, à sua significação imutável e autônoma, às suas exigências próprias. Sem a atitude fundamental da fidelidade, não há nenhuma cultura, nenhum progresso no conhecimento, nenhuma comunidade; mas, sobretudo, nenhuma personalidade moral, nenhum amadurecimento moral, nenhuma vida interior una e consistente, e nenhum amor verdadeiro. Todo o esforço de educação tem que ter em conta este significado fundamental da fidelidade em sentido amplo, se não quiser condenar-se de antemão ao malogro.

(Excertos da obra 'Atitudes Éticas Fundamentais', de Dietricht Von Hildebrand)

quarta-feira, 13 de março de 2024

AS CINCO PRÁTICAS DA QUARESMA


'Voltai para mim de todo o coração, fazendo jejuns, chorando e batendo no peito! Rasgai vossos corações, não as roupas!' (Jl 2, 12 -13)

Assim diz o Senhor, pela boca do profeta Joel: 'Voltai para mim de todo o coração'... com apelos de conversão e penitência! A Quaresma é para ser vivida no coração, mas não no nosso coração cotidiano, emotivo, superficial e vazio, submerso nas preocupações da vida e nas tribulações diárias de nossa rotina. Não, o nosso coração para Deus neste tempo de graças extremadas deve ser um coração quebrado, partido, rasgado, desfigurado... 'Rasgai os vossos corações'... somente assim, em corações rasgados para o mundo, flagelados pela contrição sincera, machucados pela dor do arrependimento, o Senhor pode entrar e habitar com alegria, porque são estes corações que se mais se assemelham ao Sagrado Coração de Jesus no Calvário.

'Voltai para mim de todo o coração'... neste tempo  de Quaresma, é esse o apaixonado apelo do Senhor: afastai-vos do mundo e dai-Me os vossos corações partidos, sofridos, amargurados e Eu farei habitar neles a minha Santa Alegria. Entregar nossos corações feridos e quebrados significa experimentarmos plenamente os frutos da mortificação, da contrição e da conversão sincera. E para isso, temos cinco práticas ou preceitos tradicionalmente vividos no tempo quaresmal: jejum e abstinência, esmola, silêncio, vigília e aumento do tempo dedicado à leitura orante da Bíblia (lectio divina). Estes são os meios que a Tradição da Igreja nos revela como experimentados e verdadeiramente eficazes para se entregar o coração - de todo o coração - à graça de Deus.

1. Jejum e Abstinência 

O jejum (a privação da alimentação) e a abstinência (não fazer uso de certos alimentos) constituem a primeira pancada para quebrar a crosta endurecida do nosso coração. Não implicam golpes de aríete (jejuns extraordinários, proezas desmedidas), mas tão somente uma série de pequenos impactos, contínuos e duradouros (condizente com o estado de saúde de cada um), que estimulem a nossa vulnerabilidade e fraqueza diante da fome, da sede ou da insaciedade, limitações e vazios que somente Deus nos pode prover. Ambos têm uma conotação essencialmente eucarística: 'Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede' (Jo 6, 35).

2. Esmola 

A esmola é a dádiva ao outro sem a imposição de recursos de favor ou gratidão. O fruto da esmola é a alegria espiritual, que rasga o nosso coração por dentro para abrir o coração do outro. E, assim, abrimos o coração a Cristo. A esmola rompe o escândalo do instinto do acúmulo, que nos leva a guardar para ninguém o que aos outros pertence. O supérfluo que entulha nossos armários e casas rouba que outro possa ter o necessário e é uma afronta à Providência Divina, pois o Senhor enche de bens os famintos e manda embora os ricos de mãos vazias (Lc 1, 53).

3. Silêncio 

O silêncio é a arma predileta de Deus para romper os corações mais endurecidos. Fique em silêncio, viva o silêncio no tempo quaresmal. O silêncio evita o pecado. Mais ainda, diante do teu silêncio, a Palavra de Deus vai romper as muralhas e chegar às masmorras mais escondidas do teu pobre coração porque 'a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração' (Hb 4, 12).

4. Vigília

A vigília é o seu tempo sozinho com Deus. O sacrifício do nosso tempo para Deus é uma oferta de todo o coração, que nos libera da escravidão de tanto tempo perdido em coisas sem sentido e fúteis. A vigília implode o nosso coração eivado de preocupações cotidianas e submerso na posse de um tempo que está sempre aquém do que precisamos. Somos possessivos do nosso tempo e, ainda assim, perdemos tempo o tempo todo. Uma vez livres da sofreguidão do nosso tempo e na presença de Deus, experimentamos na vigília ao Senhor, mais do que apenas um pouco de tempo, a doação da nossa própria vida.

5. Leitura Orante da Bíblia

É a prática que complementa todas as outras e, sem a qual, as outras não podem dar frutos. Sem a leitura orante da Bíblia, o jejum perde o sentido, a esmola fica sempre para depois, o silêncio nos inquieta e a vigília tende a ser pesada e desconfortável. A lectio divina é o fundamento de todas as outras formas de oração. Com ela, podemos percorrer com maior proveito o caminho da Cruz, adorar com santa alegria o Senhor no Santíssimo Sacramento e invocar Nossa Senhora como advogada e medianeira na nossa entrega a Deus de todo o coração. 

(postagem publicada originalmente no blog em 17/02/2018)

terça-feira, 12 de março de 2024

VERSUS: A CASA E A VOLTA PARA CASA


'Só pode ser na casa. Na casa de família. Na casa que se fecha, não para isolar-se da cidade, mas para abrigar da chuva e do vento a boa sementeira da amizade... Disse que a casa é um segredo. De fato o é. Ou deve ser. Deve ser uma interioridade. Uma intimidade. Uma intimidade de afeições e uma intimidade de aflições. Um mundo de recato. Uma história escondida. Mas dentro desse segredo que abriga uma família há um outro segredo que se esconde da família. Naquela gruta de pedra há uma concha fechada e dentro dessa concha um segredo maior, escondido na intimidade e no segredo da casa. Os esposos se escondem. Escondem-se da casa, dentro da casa. Fecham-se dentro do que já é fechado. Abrigam-se no interior do que já é abrigado. E assim é que, nesse último reduto, nesse último porto, nesse abrigo, nessa concha, preparam não só o amor e a justiça, mas também o fruto dessa justiça e desse amor'.


'Preparar, pelo trabalho, a volta para casa, entre todas as coisas do mundo, é a que tem mais densidade de ventura. Pode o mundo moderno aviltar o trabalho, fazendo do homem uma pura máquina para o serviço de uma babilônia; pode semear obstáculos sem fim entre a mesa do funcionário e aquela soleira de porta onde ele tira do bolso uma chave encantada e toma posse de um reino; podem os pregadores anunciar um regime ideal, em que a casa é um prolongamento da repartição, uma máquina de morar cujos objetos pertencem a todos (o que equivale a dizer que não pertencem a ninguém), e onde o próprio gato receberá um nome oficial; podem socializar, burocratizar, centralizar; e minar os alicerces da família; e arrebatar as crianças para as chocadeiras técnicas onde se ensina que foi um dentista ou um bacharel que fizeram o mundo; debalde farão tudo isso com o auxílio de todos os demônios: o homem não esquece o paraíso que perdeu. Não esquece que seu primeiro pai foi um rico proprietário rural, que dava ele mesmo os nomes aos bichos e usava fartamente, e sem pena, os frutos de sua terra'.

(textos de Gustavo Corção)