sexta-feira, 26 de abril de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (I)


PARTE I

No Paraíso há muitos santos que nunca deram esmolas na terra: a sua pobreza por si só os justificava. Há muitos santos que nunca mortificaram o seu corpo com jejuns, nem usaram cilícios: as suas enfermidades corporais os desculpavam. Há também muitos santos que não eram virgens: a sua vocação era outra. Mas no Paraíso não há nenhum santo que não tenha sido humilde.

1. Deus expulsou os Anjos do Paraíso por causa da sua soberba; portanto, como podemos pretender entrar nele, se não nos mantivermos num estado de humildade? Sem humildade, diz São Pedro Damião [Sermão 45], nem a própria Virgem Maria, com a sua incomparável virgindade, poderia ter entrado na glória de Cristo; e nós devemos convencer-nos desta verdade: embora destituídos de algumas das outras virtudes, podemos ser salvos, mas nunca sem humildade. Há pessoas que se lisonjeiam de ter feito muito conservando a castidade imaculada, e realmente a castidade é um belo adorno; mas como diz o angélico São Tomás: 'Falando absolutamente, a humildade excede a virgindade' [4 dist. qu. xxxiii, art. 3 ad 6; et 22, qu. clxi, art. 5]

Muitas vezes estudamos diligentemente para nos precavermos e corrigirmos dos vícios da concupiscência que pertencem a uma natureza sensual e animal, e este conflito interior que o corpo trava adversus carnem [Gl 5,17] é verdadeiramente um espetáculo digno de Deus e dos seus Anjos. Mas, infelizmente, quão raramente usamos esta diligência e cautela para vencer os vícios espirituais, dos quais o orgulho é o primeiro e o maior de todos e que, por si só, bastou para transformar um Anjo num demônio!

2. Jesus Cristo chama-nos a todos à sua escola para aprendermos, não a fazer milagres nem a maravilhar o mundo com empreendimentos maravilhosos, mas a sermos humildes de coração. 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração'. Ele não chamou todos para serem doutores, pregadores ou sacerdotes, nem concedeu a todos o dom de restituir a vista aos cegos, curar os doentes, ressuscitar os mortos ou expulsar os demônios, mas a todos disse: 'Aprendei de Mim a ser humildes de coração' e a todos Ele deu o poder de aprender a humildade dEle. Inúmeras coisas são dignas de serem imitadas no Filho de Deus encarnado, mas Ele só nos pede que imitemos a sua humildade. E então? Devemos supor que todos os tesouros da Sabedoria Divina que estavam em Cristo devem ser reduzidos à virtude da humildade? 'É certamente assim' - responde Santo Agostinho. A humildade contém todas as coisas, porque nessa virtude está a verdade; portanto, Deus também deve habitar nela, pois Ele é a verdade.

O Salvador poderia ter dito: 'Aprendei de mim a ser castos, humildes, prudentes, justos, sábios, abstêmios...'. Mas Ele só disse: 'Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração' e só na humildade Ele inclui todas as coisas, porque, como diz Santo Tomás, 'a humildade adquirida é, em certo sentido, o maior bem'. Por isso, quem possui esta virtude pode dizer-se que possui todas as virtudes, no que diz respeito à sua disposição próxima, e quem carece dela, carece de todas.

3. Lendo as obras de Santo Agostinho, encontramos em todas elas que sua única idéia era a exaltação de Deus acima da criatura, tanto quanto possível, e tanto quanto possível a humilde sujeição da criatura a Deus. O reconhecimento desta verdade deveria encontrar lugar em cada espírito cristão, estabelecendo-se - segundo a agudeza e a penetração da nossa inteligência - uma conceção sublime de Deus e uma conceção humilde e vil da criatura. Mas isso só se consegue com humildade.

A humildade é, na realidade, uma confissão da grandeza de Deus, que, depois de seu auto-aniquilamento voluntário, foi exaltado e glorificado; por isso, a Sagrada Escritura diz: 'porque só a Deus pertence a onipotência, e é somente pelos humildes que ele é verdadeiramente honrado' [Eclo 3, 21]. 

Foi por esta razão que Deus se comprometeu a exaltar os humildes, e continuamente derrama novas graças sobre eles em troca da glória que Ele constantemente recebe deles. Por isso, a palavra inspirada nos lembra novamente: 'Sê humilde, e perante Deus acharás misericórdia' [Eclo 3, 20]. O homem mais humilde honra mais a Deus por sua humildade, e tem a recompensa de ser mais glorificado por Deus, que disse: 'Quem me honrar, Eu glorificá-lo-ei' [Eclo 3,20]. Ah se pudéssemos ver quão grande é a glória dos humildes no Céu!

4. A humildade é uma virtude que pertence essencialmente a Cristo, não apenas como homem, mas mais especialmente como Deus, porque para Deus ser bom, santo e misericordioso não é virtude, mas natureza, e a humildade é apenas uma virtude. Deus não pode exaltar-se acima do que é, no seu altíssimo Ser, nem pode aumentar a sua vasta e infinita grandeza; mas pode humilhar-se, como de fato se humilhou e rebaixou. 'Humilhou-se e esvaziou-se a si mesmo' [Fp 2,7-8], revelando-se-nos, pela sua humildade, como o Senhor de todas as virtudes, o vencedor do mundo, da morte, do inferno e do pecado.

Nenhum exemplo maior de humildade pode ser dado do que o do Filho Único de Deus quando 'o Verbo se fez Carne'. Nada pode ser mais sublime do que as palavras do Evangelho de São João: 'No princípio era o Verbo'. E nenhuma humilhação pode ser mais profunda do que a que se segue: 'E o Verbo se fez carne'. Por esta união do Criador com a criatura, o mais alto foi unido ao mais baixo. Jesus Cristo resumiu toda a sua doutrina celeste na humildade e, antes de a ensinar, quis praticá-la perfeitamente. Como diz Santo Agostinho: 'Ele não estava disposto a ensinar o que Ele mesmo não era, Ele não estava disposto a ordenar o que Ele mesmo não praticava' [Lib. de sancta virginit. c. xxxvi].

Mas com que objetivo fez Ele tudo isto, senão para que todos os seus seguidores aprendessem a humildade através de um exemplo prático? Ele é o nosso Mestre, e nós somos os seus discípulos; mas que proveito retiramos dos seus ensinamentos, que são práticos e não teóricos? Que vergonha seria para alguém, depois de ter estudado durante muitos anos numa escola de arte ou de ciência, sob o ensino de excelentes mestres, se continuasse a ser absolutamente ignorante! A minha vergonha é realmente grande, porque vivi tantos anos na escola de Jesus Cristo e, no entanto, não aprendi nada daquela santa humildade que Ele procurou tão ardentemente ensinar-me. 'Tende piedade de mim segundo a vossa Palavra. Vós sois bom, e na vossa bondade ensinai-me as vossas justificações. Dai-me entendimento, e aprenderei os vossos mandamentos' [Sl 118, 58. 68.73].

5. Há uma espécie de humildade que é de conselho e de perfeição, como aquela que deseja e procura o desprezo dos outros; mas há também uma humildade que é de necessidade e de preceito, sem a qual, diz Cristo, não podemos entrar no reino dos Céus: 'Não entrarás no reino dos Céus'. E esta consiste em não nos estimarmos e em não querermos ser estimados pelos outros acima do que realmente somos. Ninguém pode negar esta verdade, que a humildade é essencial para todos aqueles que desejam ser salvos: 'Ninguém chega ao reino dos Céus senão pela humildade' - diz Santo Agostinho [Lib. de Salut. cap. xxxii].

Mas, pergunto eu, que humildade é essa que é tão necessária? Quando nos é dito que a fé e a esperança são necessárias, também nos é explicado o que devemos crer e esperar. Do mesmo modo, quando se diz que a humildade é necessária, em que deve consistir a sua prática, senão na mais baixa opinião de nós mesmos? É neste sentido moral que a humildade do coração foi explicada pelos pais da Igreja. Mas posso dizer com verdade que possuo essa humildade que reconheço como necessária e obrigatória? Que cuidado ou solicitude demonstro para a adquirir? Quando uma virtude é de preceito, também o é a sua prática, como ensina Santo Tomás. E, portanto, como há uma humildade que é de preceito, 'ela tem a sua regra na mente, isto é, que não se deve estimar a si mesmo como estando acima daquilo que realmente se é' [22, quo xvi, 2, art. 6].

Como e quando pratico os seus atos, reconhecendo e confessando a minha indignidade diante de Deus? A oração frequente de Santo Agostinho era a seguinte: Noscam te, noscam me - 'Que eu Te conheça, que eu me conheça a mim mesmo!' E com esta oração ele pedia a humildade, que não é outra coisa senão um verdadeiro conhecimento de Deus e de si mesmo. Confessar que Deus é o que é, o Onipotente: 'Grande é o Senhor e muito digno de ser louvado' [Sl 47,2] e declarar que não passamos do nada perante Ele: 'A minha substância é como nada diante de Vós' [Sl 38,6] - isto é ser humilde.

6. Não há desculpa válida para não ser humilde, porque temos sempre, dentro e fora de nós, razões abundantes para a humildade: 'E a tua humilhação estará no meio de ti' [Mq 6,14]. É o Espírito Santo que nos envia esta advertência pela boca do seu profeta Miqueias. Quando consideramos bem o que somos no corpo e o que somos na alma, parece-me muito fácil humilharmo-nos, e mesmo muito difícil sermos orgulhosos. Para ser humilde, basta que eu alimente dentro de mim aquele sentimento correto que pertence a todo o homem que é honrado aos olhos do mundo, de se contentar com o que é seu sem privar injustamente o nosso próximo do que é dele. Portanto, como não tenho nada de meu a não ser o meu nada, é suficiente para a humildade que eu me contente com esse nada. Mas se sou orgulhoso, torno-me como um ladrão, apropriando-me do que não é meu, mas de Deus. E, sem dúvida, é maior pecado roubar a Deus o que lhe pertence do que roubar ao homem o que é do homem.

Para sermos humildes, ouçamos a revelação do Espírito Santo, que é infalíve: 'Eis que tu não és nada, e a tua obra é do que não tem existência'. Mas quem está realmente convencido do seu próprio nada? É por esta razão que na Sagrada Escritura é dito: 'Todo homem é um mentiroso'. Pois não há homem que, de tempos a tempos, não alimente uma incrível autoestima e forme uma falsa opinião sobre o seu ser, ou ter, ou alcançar algo mais do que é possível ao seu próprio nada.

Para sabermos o que é, na realidade, o nosso corpo, basta-nos olhar para o túmulo, porque, pelo que lá vemos, temos de concluir inevitavelmente que, tal como acontece com esses corpos decaídos, assim será em breve conosco. E, com essa reflexão, devo dizer a mim mesmo:  'Por que é que a terra e as cinzas são orgulhosas?' Eis a glória do homem, porque a sua glória é esterco e vermes; hoje é elevado, e amanhã não será encontrado, porque voltou à sua terra, e o seu pensamento é reduzido a nada [1 Mc 2, 62 - 63]. Ó minha alma, sem ir mais longe para procurar a verdade, entra em pensamento no coração da tua morada que é o teu corpo! 'Entra e fecha-te no meio da tua casa'. Entra e olha bem ao teu redor, e não encontrarás nada além de corrupção. 'Vai ao barro e pisa-o'. Para onde quer que te voltes, não verás nada além de putrefação acontecendo.

7. Para sabermos o que realmente somos, examinemos a nossa própria consciência. E, encontrando nela apenas a nossa própria malícia e a capacidade de cometer toda a espécie de iniquidade, não diremos todos a nós mesmos: 'Por que te glorias na malícia, tu que és poderoso na iniquidade?' Que tens tu, alma minha, para te glorificares? Tu, que és um vaso de iniquidade e um poço de pecado e vício? Não é toda essa autoglorificação - quer seja pelos teus dons corporais ou espirituais, quer seja pelo que buscas construir para ti uma reputação - senão vaidade e engano?

Ó como é verdade que todo homem é um mentiroso, pois é preciso ter apenas um pouco de orgulho para ser um mentiroso, e não há ninguém que não tenha herdado, por meio de nossos primeiros pais, algo desse orgulho que eles aprenderam ao ouvir a promessa enganosa da serpente: 'E sereis como deuses' [Gn 3,5]. Também se pode dizer que todo o homem é mentiroso neste sentido - que não raro preza mais a Terra do que o Céu, mais o corpo do que a alma, mais as coisas temporais do que as eternas, mais a criatura do que o Criador - e é por isso que Davi exclama: 'Ó filhos dos homens, porque amais a vaidade e procurais a mentira?' [Sl 4,3] e 'Os homens não passam de um sopro, e de uma mentira os filhos dos homens' [Sl 61,10].

Mas, na realidade, a mentira reside essencialmente no orgulho que nos faz estimarmo-nos acima do que somos. Quem se considera mais do que o nada está cheio de orgulho e é um mentiroso. É a afirmação de São Paulo: 'Se alguém se julga alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo' [Gl 6,3]. Sempre que me estimo a mim mesmo, preferindo-me aos outros, engano-me com esta auto-adulação e cometo um erro contra a verdade.

8. Basta que uma virgem tenha caído uma unica vez para que perca a virgindade; e basta que uma esposa tenha sido infiel apenas uma vez para que seja perpetuamente desonrada; mesmo que depois ela possa realizar muitas obras nobres, ainda assim sua desonra nunca poderá ser apagada, e o aguilhão e a dolorosa lembrança de sua vergonha e culpa devem permanecer para sempre em sua consciência.

E assim, mesmo que em todo o curso da minha vida eu tenha cometido apenas um pecado, o fato permanecerá sempre que eu pequei e cometi a pior e mais ignominiosa ação. E mesmo que eu viva uma vida de penitência contínua, e esteja certo do perdão de Deus, e que o pecado já não exista na minha consciência, ainda assim terei sempre motivo de vergonha e humilhação pelo fato de ter pecado: 'O meu pecado está sempre diante de mim; pequei e fiz o que era mau aos vossos olhos' [Sl 50, 5-6].

9. Que diríamos se víssemos o carrasco público a andar pelas ruas e a pretender ser estimado, respeitado e honrado? Consideraríamos sua desfaçatez tão insuportável quanto sua vocação é infame. E tu, minha alma, cada vez que pecaste mortalmente, foste como um carrasco, pregando na Cruz o Filho de Deus! Assim, São Paulo descreve os pecadores como 'crucificando novamente para si mesmos o Filho de Deus' [Hb 6,6].

E com este caráter de infâmia que trazes dentro de ti, ainda te atreves a exigir honra e estima? Ainda terás a coragem de dizer: 'Insisto em ser honrado e respeitado, não serei menosprezado'? Por mais que o orgulho me tente a vangloriar-me e a procurar estima, tenho motivos de sobra para corar de vergonha quando ouço a voz da consciência a reprovar-me pela minha ignomínia e pelos meus pecados, e a reprovar-me por ser um pérfido e ingrato rebelde contra Deus, um traidor e um carrasco que cooperou na Paixão e Morte de Jesus Cristo: 'Continuamente estou envergonhado, a confusão cobre-me a face, por causa dos insultos e ultrajes de um inimigo cheio de rancor.' [Sl 43, 16-17].

10. Temos de reconhecer que uma das cinco razões pelas quais não vivemos nesta humildade necessária é o fato de não temermos a justiça de Deus. Vede um criminoso, como ele se apresenta humildemente diante do juiz, com os olhos baixos, o rosto pálido e a cabeça inclinada: ele sabe que foi condenado por crimes atrozes; sabe que, com isso, mereceu a pena capital e pode, com justiça, ser condenado à forca, e por isso teme, e seu temor o mantém humilde, expulsando de seu cérebro todo pensamento de ambição e vanglória. Assim, a alma, consciente dos numerosos pecados que cometeu, consciente de que mereceu de fato o Inferno, e que de um momento para o outro pode ser condenada ao Inferno pela justiça Divina, teme a ira de Deus, e este temor faz com que a alma permaneça humilde perante Ele; e se não sente esta humildade, só pode ser porque falta o temor de Deus: 'Não há temor de Deus diante de seus olhos' [Sl 35,2]. Assim clamai a Deus de coração: 'estremeço pois vossos decretos inspiram-me temor' [Sl 118,120].

E esse santo temor, que é o princípio da sabedoria, será também o princípio da verdadeira humildade; pois, como diz a Palavra inspirada, a humildade e a sabedoria são companheiras inseparáveis: 'Onde está a humildade, aí também está a sabedoria' [Pv 11,2].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

BUSCAR CONSOLAÇÃO SOMENTE EM DEUS

 

Para que queres ver o que não te é lícito possuir? Passa o mundo e a sua concupiscência. A inclinação sensual convida a passeios; passada, porém, àquela hora, que nos fica senão consciência pesada e coração distraído? À saída alegre, muitas vezes sucede um regresso triste, e à véspera deleitosa uma triste manhã. Assim, todo gosto carnal entra suavemente; no fim, porém, remorde e mata. Que poderás ver alhures que aqui não vejas? Eis: aqui tens o céu, a terra e todos os elementos; e deles são feitas todas as coisas.

Que poderás ver, em parte alguma, estável debaixo do sol por muito tempo? Pensas talvez te satisfazer completamente? Pois não o conseguirás. Se visses diante de ti todas as coisas, que seria senão vã fantasia? Levanta os olhos a Deus nas alturas e pede perdão de teus pecados e negligências. Deixa as vaidades para os fúteis; tu, porém, atende ao que Deus te manda. Fecha atrás de ti a porta e chama a teu Jesus amado. Fica-te com ele em tua cela, porque tanta paz em outra parte não acharás. Se não tivesses saído, e escutado os rumores do mundo, melhor terias conservado a santa paz; enquanto folgares de ouvir novidades, terás que sofrer desassossego do coração.

...

Quando o homem chega ao ponto de não buscar sua consolação em nenhuma criatura, só então começa a gostar perfeitamente de Deus, e anda contente, aconteça o que acontecer. Então não se alegra pela abundância, nem se entristece pela penúria, mas confia inteira e fielmente em Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada perece nem morre, mas por quem vivem todas as coisas e a cujo aceno, com prontidão, obedecem.

Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta. Sem empenho e diligência, jamais alcançarás as virtudes. Se começares a ser tíbio, logo te inquietarás. Se, porém, procurares afervorar-te, acharás grande paz e sentirás mais leve o trabalho com a graça de Deus e o amor da virtude. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos vícios e às paixões que afadigar-se em trabalhos corporais. Quem não evita os pequenos defeitos pouco a pouco cai nos grandes. Alegrar-te-ás sempre à noite, se tiveres empregado bem o dia. Vigia sobre ti, anima-te e admoesta-te e, vivam os outros como vivem, não te descuides de ti mesmo. Tanto mais aproveitarás, quanto maior for a violência que te fizeres. Amém.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

TESOURO DE EXEMPLOS (321/325)

 

321. UMA SÓ BOCA

Zenão, estando em companhia de um jovem que falava demais, disse-lhe: 'Fica sabendo que temos dois ouvidos e uma só boca, para escutarmos duas vezes mais do que falamos'.

322. GUARDANDO SILÊNCIO

Alguém perguntou a Pitágoras como poderia chegar a ser seu discípulo. O filósofo respondeu: 'Guardando silêncio até que seja necessário falar; não dizendo senão o que sabeis bem; fazendo o maior bem possível e falando pouco, porque o silêncio é sinal de prudência e a tagarelice é sinal de tolice. Não vos apresseis a responder, e deixai que aquele que pergunta acabe de falar. Não faleis mal de ninguém'. Costumava condenar seus discípulos a cinco anos de silêncio.

323. ADULAÇÃO EXAGERADA

Alexandre Magno atravessava um grande rio numa barca em companhia de Aristóbulo. Este, durante a travessia, pôs-se a ler em alta voz a história do conquistador, mesclada com elogios de uma adulação exagerada. Alexandre tomou o livro e atirou-o ao rio, dizendo que o autor merecia a mesma sorte, por ser mais culpado que os seus escritos.

324. NÃO RESPONDEREI

Um dia estava Metelo a falar mal de Tácito, que, ouvindo-o, disse-lhe: 'Podes falar como te aprouver, porque eu não responderei. Se aprendeste a falar mal, eu aprendi a desprezar a maledicência'.

325. DIANTE DE UM QUIOSQUE

Regressava Dom Bosco ao oratório numa tarde de 1851. Ao passar diante de um quiosque, parou para olhar os livros. O vendedor então lhe disse:
➖ Esses livros não servem para o senhor porque são todos protestantes.
➖ Estou vendo - disse-lhe o santo - mas, na hora da morte, estará o senhor tranquilo, depois de haver vendido tais livros e haver propagado o erro?

Ditas estas palavras, saudou-o e retirou-se. O vendedor perguntou quem era aquele sacerdote e, ao saber que era Dom Bosco, tratou de conversar com ele. Em seguida, levou-lhe todos os livros para serem queimados e, dali em diante, seguiu sempre o bom caminho.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

terça-feira, 23 de abril de 2024

FRASES DE SENDARIUM (XXVIII)

'Para Deus, vale mais uma hora de paciência que o jejum de um dia inteiro' 
(Dom Bosco)

'Portanto, como eleitos de Deus, santos e queridos, revesti-vos de entra­nhada misericórdia, de bondade, humildade, doçura e paciência' (Cl 3,12)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

SOBRE A VIRTUDE CRISTÃ DA ESPERANÇA

Rezo para que, nesta Páscoa, o Senhor repita aos seus amigos: 'Por que estás tão deprimido, tão desanimado e por que está o teu coração perturbado?' Pois digo então a vós: Regozijai-vos porque há trevas e perseguição no mundo. Alegrai-vos porque há trevas e perseguições no mundo. Não disse o Mestre que, como o perseguiram, assim perseguiriam os seus seguidores? Teremos perdido a virtude cristã da esperança? Por que razão a nossa conduta deveria ser diferente daquela dos cristãos do primeiro século da nossa era? Também eles olhavam o mundo com desconfiança, esperando o seu fim a qualquer momento, precedido da vinda de Jesus Cristo e do julgamento. Mas aguardavam-no com coragem; procuravam as coisas mais altas com fé na Ressurreição.

Hoje, pelo contrário, há uma maioria de pessoas que procuram mais a segurança do que a felicidade na Ressurreição. Eles são, ou nós somos, como aqueles que, numa viagem marítima, se preocupam mais com o colete salva-vidas do que com a beleza do mar ou que, numa viagem aérea, se interessam mais pelo pára-quedas do que pela beleza do céu de Deus... Mas digamos com São Paulo: 'Se Cristo não ressuscitou, somos os mais miseráveis do mundo'. Como podemos acreditar que Deus reserva aos seus inimigos todas as satisfações e alegrias, e aos seus filhos todas as dores e sofrimentos? 

Estamos condenados a dependurar os braços nos salgueiros chorosos, a cantar apenas lamentações tristes, enquanto os filhos de Satanás riem e triunfam? Não! Vamos até Deus e o chamemos de 'Pai', como seus filhos por adoção, o que não é o mesmo que por escravidão. Não tenhamos medo! Estejamos plenamente convencidos de que Aquele que entrou no túmulo era a própria Verdade e que a Verdade, pisoteada, ressuscitará irresistivelmente... Que aqueles que acreditam na Ressurreição não percam o ânimo! Lembrem-se de que a Igreja, tal como Jesus, não só tem uma vida contínua, como também sobreviveu a milhares de crucificações e a outras tantas ressurreições... 

Não desanimeis! Lembrai-vos de que o vosso Rei, embora pareça ausente por vezes ao conceder ao mal as suas horas, vence sempre a competição. Dizei então como São Paulo: 'A tribulação ou a angústia? A fome, a nudez, os perigos, a perseguição, a espada? Estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer criatura nos poderá separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor'.

(Venerável Fulton Sheen)

domingo, 21 de abril de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se agora a pedra angular' (Sl 117)

Primeira Leitura (At 4, 8-12) - Segunda Leitura (1Jo 3,1-2) -  Evangelho (Jo 10,11-18)

  21/04/2024 - QUARTO DOMINGO DA PÁSCOA

21. O BOM PASTOR


No Quarto Domingo da Páscoa, Jesus se apresenta como o Bom Pastor: 'Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas' (Jo 10, 11). Jesus acabara de curar um cego de nascença e os fariseus o condenavam por ter praticado um milagre tão extraordinário num sábado. Mas o cego, superando a obstinação, a hipocrisia e as ameaças daqueles homens, não apenas viera reencontrar Jesus mas, como ovelha do Bom Pastor, prostrou-se diante dele e o adorou. Diante da multidão perplexa por estes fatos, Jesus projeta no cego curado as ovelhas do seu rebanho, e se apresenta como o Bom Pastor que acolhe as suas ovelhas com doçura extrema e infinita misericórdia, e que é capaz de dar a sua vida por elas.

Jesus, o Bom Pastor, conhece e ama, com profunda misericórdia, cada uma de suas ovelhas desde toda a eternidade: 'Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas' (Jo 10, 14 - 15). Nada, nem coisa, nem homem, nem demônio algum, poderá nos apartar do amor de Deus. Porque este amor, sendo infinito, extrapola a nossa condição humana e assume dimensões imensuráveis. Ainda que todos os homens perecessem e a humanidade inteira ficasse reduzida a um único homem, Deus não poderia amá-lo mais do que já o ama agora, porque todos nós fomos criados, por um ato sublime e extraordinariamente particular da Sua Santa Vontade, como herdeiros dos céus e para a glória de Deus: 'Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória por toda a eternidade!' (Rm 11, 36).

A missão do Bom Pastor é universal, porque o rebanho é universal e só um verdadeiramente é o Bom Pastor, que não abandona nunca as suas ovelhas: 'Haverá um só rebanho e um só pastor' (Jo 10, 16). Todos aqueles que ainda não se encontram no redil do Bom Pastor, a Santa Igreja, devem ser buscados como ovelhas desgarradas, para que se unam ao único rebanho e que, sob a voz do Bom Pastor, sejam conduzidas com segurança às fontes da água da vida (Ap 7, 17): 'Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância' (Jo 1, 10). Jesus nos convoca, assim, à missão de um apostolado universal, delegando a todos nós, os batizados, a enorme tarefa da evangelização para que se faça, no redil da terra, um só rebanho e um só Pastor.

Reconhecer-nos como ovelhas do rebanho do Bom Pastor é manifestar em plenitude a nossa fé e esperança em Jesus Cristo, Deus Único e Verdadeiro: 'Dai graças ao Senhor, porque ele é bom! Eterna é a sua misericórdia!' (Sl 117). Como ovelhas do Bom Pastor, a pedra angular (At 4, 11) que nunca nos será tirada, não nos basta ouvir somente a voz da salvação; é preciso segui-lo em meio às provações da nossa humanidade corrompida, confiantes e perseverantes na fé, pois 'desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como Ele é' (1 Jo 3, 2).

sábado, 20 de abril de 2024

'FICA NA BARCA E CLAMA POR DEUS!'

Por todas as coisas que fez, o Senhor nos ensina como viver aqui na terra. Não há ninguém neste mundo que não seja viajante, ainda que nem todos desejem regressar à pátria. Nós sofremos com as ondas e as tempestades que decorrem da travessia, mas, mesmo assim, fiquemos no navio. Com efeito, se dentro do navio corremos perigo, fora dele a morte é inevitável! Aquele que nada em alto mar pode ter muita força em seus braços, mas será, cedo ou tarde, vencido pela imensidão do oceano, é devorado por ele e desaparece.

Portanto, é necessário estarmos no navio, ou seja, sermos transportados pela madeira de um lenho, para poder atravessar o mar. O madeiro que carrega a nossa fraqueza é a cruz de nosso Senhor, da qual trazemos o sinal em nossa fronte, e que nos impede de ser engolidos pelo mundo. Sofremos as agitações das ondas, mas é o Senhor que nos transporta.

A barca que transporta os discípulos, isto é, a Igreja, navega, e a tempestade das provações a tomam de assalto. O vento contrário, ou seja, o demônio que faz oposição à Igreja, não se acalma, esforçando-se por impedi-la de chegar ao repouso do porto. Grande é, porém, aquele que intercede por nós. Com efeito, durante a tumultuosa navegação em que nos debatemos, ele nos inspira confiança, vem a nós e nos reconforta, a fim de que, sacudidos pela barca, não nos deixemos abater e não nos lancemos ao mar.

Porque, mesmo se a barca é sacudida pelas ondas, é apesar de tudo uma barca, e somente esta barca transporta os discípulos e acolhe Cristo. Ela corre um grande risco no mar mas, fora dela, imediatamente perecemos.

Conserva-te, pois, na barca e clama por Deus. Todos os conselhos podem falhar, o leme pode tornar-se insuficiente, as velas abertas mais perigosas que úteis – quando todos os socorros humanos falharem, só resta aos marinheiros rezar e elevar a Deus seus corações. Aquele que concede aos navegantes a graça de chegar ao porto, iria acaso abandonar a sua Igreja, em vez de reconduzi-la ao repouso?

(Santo Agostinho)