Avignon, cidade situada na região sul da França e cortada pelo rio Ródano, é a única cidade que recebeu oficialmente o papado fora de Roma em toda história. Disputas pelo poder envolvendo o rei francês Filipe IV, levaram o papado para a França. O período histórico de 1309 a 1377 ganhou o nome de Papado de Avignon e esta permanência dos papas na região provençal constitui um dos períodos mais conturbados da história da Igreja. Foram sete papas franceses em um período de 68 anos.
Desde o século XII, a região do sul da França era cenário do desenvolvimento intenso de um dos maiores movimentos heréticos da Idade Média, o chamado catarismo ou heresia albigense, que negava a existência de um único Deus e a presença real de Cristo na sagrada eucaristia, propagando a salvação fundamentada apaenas no conhecimento direto de Deus.
Para celebrar a vitória da Igreja contra a heresia albigense, o então rei Luís VIII fez construir a Capela de Santa Cruz, em honra ao Santíssimo Sacramento. Mais ainda, promoveu e participou ativamente de uma procissão ao Santíssimo Sacramento que percorreu várias ruas da cidade e foi encerrada na capela recém-construída, durante a Festa da Exaltação da Santa Cruz em 14 de setembro de 1226. Desde então, teve início a adoração perpétua do Santíssimo Sacramento nesta igreja e, para a salvaguarda dessa devoção, foi instituída a chamada Confraria Real dos Penitentes Cinzentos de Avignon.
Cerca de duzentos anos depois, no final de novembro de 1433, a região foi assolada por chuvas torrenciais que produziram cheias históricas do rio Ródano e a inundação completa das áreas ao seu redor. As águas subiam sem parar e os penitentes da confraria, responsáveis pela devoção eucarística na Capela de Santa Cruz, temeram fortemente pela inundação da igreja. Dois membros da confraria decidiram, então, acessar a igreja por barco e resgatar a custódia contendo o Santíssimo Sacramento antes do pior. Diante deles, entretanto, a situação era bem mais crítica, pois uma muralha de água de quase 1,8m de altura já submergia o local e a própria porta frontal do templo.
Ao adentrarem na igreja, porém, os dois religiosos foram tomados por um estupor sem tamanho: à semelhança da partição das águas do Mar Vermelho, as águas da enchente conformavam dois paredões laterais próximos às paredes internas do templo, mantendo irretocavelmente seco o espaço central da igreja situado desde a porta frontal até o altar, conservando-se intacta, assim, a custódia contendo as hóstias consagradas da ação da enchente.
Após prostarem-se em oração e jubilosos com tal milagre, recolheram o Santíssimo e o conduziram a uma outra igreja em terreno mais elevado e protegido da inundação. A notícia do milagre espalhou-se rapidamente e centenas de pessoas foram testemunhas dele. A confraria franciscana instituiu a celebração do milagre desde então na capela, todos os anos, no dia de Santo André Apóstolo, 30 de novembro. Neste dia, antes da bênção do Santíssimo Sacramento, canta-se ali o Cântico que Moisés teria composto após a travessia do Mar Vermelho (Ex 15, 1-18):
'Cantarei ao Senhor, porque ele manifestou sua glória. Precipitou no mar cavalos e cavaleiros. O Senhor é a minha força e o objeto do meu cântico; foi ele quem me salvou. Ele é o meu Deus – eu o celebrarei; o Deus de meu pai – eu o exaltarei. O Senhor é o herói dos combates, seu nome é Javé. Lançou no mar os carros do faraó e o seu exército; a elite de seus combatentes afogou-se no mar Vermelho; o abismo os cobriu; afundaram-se nas águas como pedra. A vossa (mão) direita, ó Senhor, manifestou sua força. Vossa direita aniquilou o inimigo. Por vossa soberana majestade derrotais vossos adversários; desencadeais vossa cólera, e ela os consome como palha. Ao sopro de vosso furor amontoaram-se as águas; levantaram-se as ondas como muralha, solidificaram-se as vagas no coração do mar. Dizia o inimigo: perseguirei, alcançarei, repartirei o despojo, satisfarei meu desejo de vingança, desembainharei a espada, minha mão os destruirá. Ao sopro de vosso hálito o mar os sepultou; submergiram como chumbo na vastidão das águas. Quem entre os deuses é semelhante a vós, Senhor? Quem é semelhante a vós, glorioso por vossa santidade, temível por vossos feitos dignos de louvor, e que operais prodígios? Apenas estendestes a mão, e a terra os tragou. Conduzistes com bondade esse povo, que libertastes; e com vosso poder o guiastes à vossa morada santa. Ao ouvir isso, estremeceram os povos. Um pavor imenso apoderou-se dos filisteus; os chefes de Edom ficaram aterrados; a angústia tomou conta dos valentes de Moab; tremeram de medo todos os habitantes de Canaã. Caíram sobre eles o terror e a angústia, o poder do vosso braço os petrificou, até que tivesse passado o vosso povo, Senhor, até que tivesse passado o povo que adquiristes para vós. Vós o conduzireis e o plantareis na montanha que vos pertence, no lugar que preparastes para vossa habitação, Senhor, no santuário, Senhor, que vossas mãos fundaram. O Senhor é rei para sempre, sem fim!'.