quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A BÍBLIA EXPLICADA (XXVII) - AS GENEALOGIAS BÍBLICAS


A pré-história do Gênesis narra pouquíssimos episódios anteriores a Abraão; destes, o dilúvio constitui o ponto central. Para preencher as duas lacunas existentes entre os primeiros homens e o dilúvio, e depois entre este evento e Abraão, o autor sagrado cita duas genealogias. A primeira, desde o primeiro homem (Adão) até o símbolo da humanidade renovada (Noé), conta dez nomes. A segunda, desde Sem, filho de Noé, até Abraão, tronco principal da comunidade hebraica, conta outros dez nomes (Gn 5,1-32; 11,10-32). Tudo isto tem, certamente algo de convencional e lançou os estudiosos à pesquisa de qual fosse o critério dos antigos ao tecer tais genealogias. Tais pesquisas permitem-nos chegar às seguintes conclusões:

1. A genealogia é um gênero literário que tem a finalidade de documentar a pertinência de um indivíduo a um determinado grupo familiar. Sua importância é máxima nas sociedades de estrutura patriarcal, porque é pela genealogia que o indivíduo recebe os seus direitos. Enquanto, nas sociedades mais complexas, como as atuais, o indivíduo tem determinados direitos por ser cidadão de um determinado estado, na patriarcal - como aquela dos pastores nômades — o indivíduo tem, pelo contrário, seus direitos certos enquanto filho ou descendente de um determinado trono. Daí a necessidade de um documento, oral ou escrito, que faça conhecer-lhe a genealogia.

2. Em tal documento genealógico podiam faltar elos intermediários para fins de brevidade e praticidade. Este fato é muito bem caracterizado. São Mateus (Mt 1,8), na genealogia de Jesus escreve: 'Jorão gerou Ozias'; ora, entre Jorão e Ozias acham-se omitidos os reis Ocozias, Joás e Amasias (cf Reis 9, 16; 11, 2-21; 14, 1). O tempo que os hebreus permaneceram no Egito, segundo o Êxodo (Ex 12, 40) foi de 430 anos; pois bem, na genealogia de Moisés, dada pelo mesmo livro (Ex 6,14-), entre Levi, entrado no Egito com seu pai Jacó, e Moisés, o condutor dos israelitas que saíam do Egito, há apenas dois elos intermediários: Levi, Cahat, Amram, Moisés. E assim poderiam ser citados muitos outros exemplos semelhantes a este.

3. A omissão de nomes podia provir do propósito de se obter números simbólicos - como as três séries de 14 nomes na genealogia de Jesus em Mateus (Mt 1,17) - ou números, de outro modo, capazes de se fixar de memória.

4. A palavra gerar, em genealogia, é de significado quase tão amplo quanto a palavra filho, que indica uma pertinência genealógica ainda que muito remota (como o Messias filho de Davi) e, algumas vezes, apenas de direito. Há realmente eqüivalência entre geração e transmissão de direitos. Assim, na genealogia de Jesus, São Mateus escreve: 'Salatiel gerou Zorobabel', concordando com o fato de ser Zorobabel chamado, em outro lugar da Bíblia (Ag 1,1), filho de Salatiel. Mas, na realidade, sabemos de 1 Crônicas (1 Cr 3,19) que Zorobabel é filho de Fadaías, irmão de Salatiel.

5. A genealogia pode ter sido usada para resumir um período histórico, como por exemplo, as genealogias apresentadas no início das 1 Crônicas e no Evangelho de São Mateus; mas não pode absolutamente servir para criar uma cronologia.

Considerando esclarecidos estes pontos, ao examinar as duas genealogias dos patriarcas, anterior e posterior ao dilúvio, devemos concluir que:

1. O autor evidentemente pretende demonstrar, pelas duas genealogias, que Noé é o herdeiro legítimo das promessas feitas a Adão e dos seus ditamess humanos e, pela mesma razão que Abraão, além de ser herdeiro das promessas precedentes, é herdeiro das bênçãos dadas a Sem.

Para este fim, segundo alguns intérpretes, não teria sido necessário nem conhecer as duas séries de nomes pela Revelação, nem entrar a fundo no valor objetivo de tais documentos, mas teria bastado ao autor sagrado introduzir, imutadas, as sequências genealógicas transmitidas pela tradição e, provavelmente já escritas (cf Gn 5,1: 'este é o livro das gerações de Adão...'). Isto é, tratar-se-ia de uma citação , não implícita mas, certamente, explicita, que citaria documentos então conhecidos de todos.

Que o autor não tenha pretendido assumir a responsabilidade dos números indicadores das idades dos Patriarcas ante e pós-diluvianos concluir-se-ia do fato que, enquanto nestas duas listas genealógicas considera comum o gerar em idade pluricentenária, logo depois, na história de Abraão, sublinha insistentemente (Gn 17,17; 18,1) o caráter milagroso do nascimento de Isaac de um pai centenário e de uma mãe nonagenária.

2. O número das gerações - 10 antes do dilúvio e 10 depois do dilúvio - faz pensar numa simplificação sistemática: 10 são os dedos da mão, e 10 é a base do sistema decimal: é muito conveniente pois para fixação da memória. Além disto, desde o inicio do segundo milênio, mesmo os súmeros registraram, pelo menos segundo alguns recenseamentos, os nomes de dez soberanos que precederam o dilúvio.

3. A introdução de números simbólicos em algumas genealogias faz-nos supor que mesmo os outros dados que indicam as idades dos Patriarcas das duas séries, correspondem a um cálculo não objetivo, porém artificioso ou simbólico. A idade de Enoque (365 anos como os dias de um ano solar) e de Lameque (777 anos) dão algum indicio a respeito. Assim, a soma dos anos de vida dos Patriarcas desde Sem a Lameque (Abraão está fora da série) dá 2996, o que, com a única diferença de uma unidade, é igual a (300 x 9) + (30 x 9) + (3 x 9) e que resulta 333 anos em média para cada um. Um processo como este para atingir a um total intencional encontra-se nas várias sequências babilônicas dos dez reis antidiluvianos que reinam cada um dez milhares de anos. 

Note-se, além disso, que entre os samaritanos, os números destas genealogias são diferentes dos retirados do texto hebraico comum e da versão latina de São Jerônimo e exibem sinais evidentes de uma adaptação artificiosa. Esta constatação confirma a hipótese de que, entre os hebreus, aqueles números não tivessem um valor exato mas, por outro lado, demonstra também que eles não foram fielmente transmitidos de maneira que, certamente, é impossível basear-nos sobre eles para descobrir o principio artístico ou simbólico que presidia a sua escolha Com isto não se pretende negar que aqueles antigos, em circunstâncias particularmente favoráveis, pudessem ter vida longa, porém apenas realçar que os números do texto bíblico satisfazem provavelmente a critérios que nos escapam e que, portanto, não nos é possível tirar conclusões exatas concernentes à longevidade dos Patriarcas. Pode além disso acontecer, como se disse acima, que o autor sagrado tenha incluído em seu relato as duas genealogias apenas como citações, sem se comprometer em um juízo sobre as minúcias, apenas com a intenção de preencher 1acunas no fio histórico de sua narrativa.

4. O fato de Set ter a uma determinada idade gerado Enos (Gn 5,6) pode significar simplesmente que Set, numa determinada idade, gerou um filho de quem, depois de uma linha genealógica mais ou menos longa, nasceu Enos. O mesmo se pode dizer dos outros nomes. Nesta hipótese, os 10 nomes seriam tão somente os 10 nomes mais relevantes de uam série muito longa e não necessàriamente linear.

5. Em conclusão, as duas sequências genealógicas resumem dois períodos pré-históricos, mas não nos podem servir para fixar a duração de tais períodos e tampouco, consequentemente, a antiguidade do gênero humano. Sobre a antiguidade do homem, a Bíblia não nos favorece nenhuma conclusão.

(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)