segunda-feira, 9 de setembro de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (X)

54. Ó minha alma, humilha-te na lembrança de que existe um Inferno, não o considerando apenas como abstração e nem mesmo como um lugar para o castigo dos pecadores em geral, mas considera-o antes como um lugar especialmente preparado para ti, e merecido por ti mais do que uma vez! Pois lá os orgulhosos serão lançados de cabeça, e eu deveria estar lá com eles neste momento, eternamente insultado e atormentado por demônios, se não tivesse sido preservado de lá pela misericórdia de Deus.

Milhões de anjos foram ali aprisionados para sempre por terem cometido um único pecado - o orgulho - e isso apenas em pensamento. Ah, minha alma, continua assim no teu orgulho e na tua falsa autoestima, guardando as tuas próprias susceptibilidades e alheia aos direitos dos outros, e serás destinada ao Inferno; esse lugar de tormento te espera e, lá neste abismo, o teu orgulho será realmente humilhado. Tu, que agora te deleitas com os teus próprios pensamentos orgulhosos, serás aí lançada nas chamas do fogo, e quem agora deseja estar acima de tudo, estará então abaixo de tudo. Pois lá embaixo terás de enfrentar um Deus que tem um ódio infinito pelos orgulhosos e está infinitamente irado com eles. 

E assim como é verdade que os humildes serão exaltados no Céu, também é verdade que os orgulhosos serão humilhados e lançados no Inferno. 'E o rico também morreu' - assim escreve São Lucas sobre um homem orgulhoso que estava 'vestido de púrpura e linho fino'. E o rico morreu - o fim de toda a humanidade e vaidade; e 'foi sepultado no inferno' [Lc 16,22]  - o fim de todo o orgulho. O túmulo é o fim do homem; o inferno é o fim dos soberbos.

55. Mas, acima de tudo, o pensamento da eternidade deve manter-nos humildes. Se eu me enganar na prática da humildade neste mundo, dando lugar aos outros, sei que o meu erro é pequeno, porque tudo o que é inferior acaba depressa; mas se me engano a mim próprio, vivendo num orgulho imprudente, o meu erro é grande, porque durará toda a eternidade. Mas mesmo que esteja a viver em humildade, devo ainda assim temer, porque nunca posso ter a certeza se essa humildade que penso possuir é verdadeira ou não; quanto mais devo temer se estiver a viver em orgulho aaim tão explícito? 

Assim seja, ó minha alma! Satisfaz todos os teus desejos orgulhosos: sê estimada, louvada e honrada por todo o mundo; possuí conhecimento, riquezas e prazeres sem adversidade, sem oposição, sem quaisquer obstáculos que te perturbem ou refreiem as tuas paixões viciosas. E depois? E depois? Rogo-te que imites o orgulhoso Nabucodonosor, que, mesmo na plenitude do seu poder, pensava 'no que viria a acontecer depois' [Dn 2,29]. Tudo o que tem fim é vaidade; e nós estamos condenados a entrar na eternidade que não tem fim; portanto, qual será o fim da vaidade e do teu orgulho? A mais ignominiosa humilhação e as mais amargas lamentações que durarão para todo o sempre.

Deste lado da sepultura todas as coisas passam; mas do outro lado o que será de mim? - Quid futurum post hæc? Não penso nisso; e, para dizer a verdade, é por isso que sou dominado pela vaidade, porque penso tão pouco na eternidade. O rei Davi era muito humilde de coração porque estava cheio de pavor da eternidade: 'E medito de noite no meu coração: Será que Deus me rejeitará para sempre?' [Sl 76,7-8]. Sempre que o mundo te oferecer honras, fama e prazeres, lembra-te, minha alma, de dizer para ti mesma: E depois? E depois? - 'Lembra-te dos que te precederam' [Eclo 41,5]. Quantos daqueles que se destacavam entre os orgulhosos deste mundo venceram o orgulho e adquiriram humildade por um único pensamento sério sobre a eternidade! As palavras do profeta sempre foram e sempre serão verdadeiras: 'Levantando-se [Deus], sacode ele a terra, olha e faz tremer as nações. Deslocam-se as montanhas eternas, desfazem-se as colinas antigas, e lhe abrem amplos caminhos!' [Hab 3,6].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)