O SERVO: Senhor, creio que ninguém sabe realmente quantos benefícios podem ser emanados da Vossa Paixão, e quão imensos são os frutos que nela se podem encontrar, desde que alguém estiver disposto a dedicar-lhe espaço e tempo.
Que caminho seguro é o da vossa paixão, que conduz o homem pelo caminho da verdade até ao cume mais alto de toda a perfeição!
Como tinhas razão, bendito Paulo, luz exaltada entre todas as estrelas do céu, quando falaste! Tu, embora arrebatado às alturas e mergulhado nos mistérios ocultos da divindade nua, a ponto de ouvires palavras misteriosas, que nenhum homem pode pronunciar (2 Cor 12,4), abraçaste acima de tudo a paixão amantíssima de Cristo com tal amor e doçura de coração que não hesitaste em dizer: 'Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado' (1 Cor 2, 2).
Bendito és tu também entre todos os doutores, doce Bernardo, cuja alma foi admiravelmente iluminada pelos raios do Verbo Eterno, pois com a doce eloquência que brotava da exuberância do teu coração, pregaste e exaltaste a paixão da humanidade de Cristo, dizendo entre outras coisas: ' Irmãos, desde o início da minha conversão e como acervo dos méritos que sabia faltar-me, procurei juntar e colocar no meu peito este pequeno feixe feito de todas as angústias e amarguras do meu Senhor. Chamei sabedoria à meditação destas coisas; nelas descobri a perfeição da justiça, a plenitude da ciência, as riquezas da salvação e o tesouro dos méritos. Delas me vem a bebida salutar da amargura e o doce bálsamo da consolação. Sustentam-me na adversidade, e na prosperidade, refreiam-me; oferecem àquele que percorre a estrada real entre a alegria e a tristeza da vida presente, um guia seguro, afastando os males que o ameaçam...'
Sabedoria Eterna, de tudo o que foi dito deduzo facilmente que quem deseja grandes recompensas, a salvação eterna, uma ciência excelente e uma sabedoria superior, e quer gozar de uma alma equilibrada na adversidade e na prosperidade e estar completamente seguro contra todo o mal, deve trazer-Vos, ó meu Senhor Crucificado, diante dos olhos da sua alma onde quer que vá.
SABEDORIA ETERNA: Não penses que compreendeste a utilidade e as recompensas que isto traz. Acredita em mim, a lembrança contínua da minha amabilíssima paixão transforma um ignorante em um médico muito sábio. E não é de admirar, porque a minha Paixão é, em si mesma, um livro de vida onde tudo se encontra. Três vezes e quatro vezes bem-aventurado aquele que a tem sempre diante dos olhos e se dedica a ela! Que sabedoria e graça, que consolação e doçura, que superação de todos os vícios e que sentido da minha presença contínua ele pode obter! Escutai um exemplo disso:
Há muitos anos, um irmão pregador, no início de sua conversão, sofria horrivelmente de uma melancolia desordenada, que às vezes o incomodava tanto que só quem a tivesse experimentado poderia compreendê-la. Uma vez, sentado na sua cela depois do jantar, estava tão oprimido por esta tentação que não tinha vontade de estudar, de rezar, de fazer nada de bom, e permanecia triste na sua cela, com as mãos cruzadas no regaço, como se quisesse ao menos manter a sua cela em louvor do seu Senhor, pois sentia-se completamente incapaz de fazer qualquer outro exercício espiritual. Neste estado, privado de qualquer consolação, parecia-lhe ouvir uma voz que lhe dizia: 'Por que estás aqui sentado? Levanta-te e lembra-te de tudo o que sofri: então esquecerás toda a tua aflição'. Levantou-se imediatamente (porque compreendeu que a voz vinha do Céu) e começou a meditar na Paixão do Senhor Jesus, e sentiu-se tão liberto do seu sofrimento que nunca mais experimentou nada de semelhante.
O SERVO: Eterna Sabedoria, Vós que conheceis todos os corações, sabeis, sem dúvida, que não há nada mais desejável para mim do que sentir a Vossa mais amarga paixão com mais veemência do que os outros homens, e de tal modo que dos meus olhos corra noite e dia uma fonte de lágrimas. E por isso me queixo amargamente a Vós, porque a Vossa Paixão não pode penetrar a cada momento profundamente na minha alma e não posso meditá-la com tanta devoção como Vós mereceis, amadíssimo Senhor. Ensinai-me como me devo comportar.
ETERNA SABEDORIA: A meditação da minha Paixão não deve ser supérflua, mas deve ser feita com amor íntimo do coração e com reflexão sincera. Caso contrário, o coração não sentirá mais devoção do que o paladar sente por um alimento doce, mas não mastigado. E se, apesar de recordares a angústia e a dor inefáveis que ela me causou, não conseguires recordar a minha paixão com os olhos umedecidos, fá-lo ao menos com um espírito alegre pelos imensos bens que dela recebes. Se também não o podes fazer, se não podes meditá-la nem com alegria nem com lágrimas, então medita-a com o coração seco em louvor de Mim, porque assim me fazes um dom mais agradável do que se te derretesses todo por causa das lágrimas e da doçura, pois assim ages por amor à virtude e não em busca de ti mesmo.
E para que a minha Paixão penetre cada vez mais profundamente no teu coração, ouve o que te vou dizer. Se um grande pecador tiver de cumprir na fornalha ardente do terrível Purgatório as penas que aqui não pagou, tudo o que tiver de pagar pode ser expiado e apagado pela memória da minha Paixão. E, na verdade, essa pobre alma poderá refugiar-se e agarrar-se de tal modo ao ilustre tesouro da minha Paixão que, mesmo que tenha de sofrer mil anos os tormentos do Purgatório, num instante ficará livre de todas as culpas e penas e, saindo do Purgatório, voará livre para o Céu.
O SERVO: Senhor, mostrai-me como isto pode ser; como eu gostaria de conquistar assim o tesouro da vossa Paixão!
SABEDORIA ETERNA: Isso deve ser feito da seguinte forma:
1. com o coração contrito, que o homem examine e pese com seriedade e frequência a gravidade e a quantidade de seus grandes pecados, pois com eles ofendeu tão irreverentemente os olhos de seu Pai celeste.
2. Em seguida, que ele considere suas obras de penitência como nada, pois elas são apenas uma gota no oceano em comparação com os seus pecados.
3. Que considere a admirável imensidão da minha Expiação, pois uma pequena gota do precioso sangue que corre abundantemente pelo meu corpo bastaria para apagar os pecados de mil mundos; embora se beneficie tanto da minha Expiação quanto se conforme a mim por compaixão.
4. Finalmente, ele deve humilde e sinceramente submergir e fixar a pequenez de sua expiação na infinitude da minha.
Em suma, nem os matemáticos, nem os sábios, nem todos os mestres juntos são capazes de enumerar a imensidão dos bens que ficam escondidos na meditação assídua da minha Paixão.
O SERVO: Assim sendo, Senhor, peço-Vos que ponhais fim a tudo o que me tem afastado de Vós e me introduzais profundamente nas riquezas ocultas da Vossa amadíssima Paixão.
(Excertos da obra 'O Livro da Sabedoria Eterna', do Beato Henrique Suso)