Por que a culpa dos protoparentes torna-se culpa de todos? O antigo israelita que sentia fortemente a solidariedade, mesmo moral, entre os ligados por vínculo sanguíneo, não era atormentado por este problema, demonstrando assim intuir uma realidade que nosso individualismo pode discutir mas não destruir: a saber, a estreitíssima interdependência dos indivíduos em seu ser físico e psíquico. Nossa personalidade é o ponto de encontro de infinitos raios de influência, que começam na vontade de nossos progenitores e chegam até as radiações cósmicas; então é pelo resultado incalculável de inumeráveis causas que somos o que somos, mesmo na inconfundível e irrepetível unidade da pessoa humana.
Entre estas causas, diz-nos a Bíblia, há também o pecado de nosso mais antigo antepassado. Deus poderia ter-nos feito como mônadas absolutamente fechadas a qualquer influxo estranho. Mas então não seríamos homens, seríamos seres de outra estrutura. Nossa estrutura é, ao contrário, a dos seres que são centros de interferências, personalizados por uma alma imortal.
O conceito católico de Igreja poderá melhor esclarecer-nos sobre os desígnios de Deus relativamente a cada homem. Deus colocou à disposição do homem a elevação ao estado sobrenatural, isto é, o dom da graça santificante que culminará na glória. Ora, são os homens individualmente que atingem êste estado e, no entanto, o dom aparece concedido de modo coletivo. Isto é, cada um alcança a Graça somente pelo fato de se achar inserido, pelo menos virtualmente num organismo suprapessoal, a Igreja, a quem pertence a Graça como coisa própria. Os cristãos não formam uma Igreja pelo fato de estarem unidos ao Cristo, mas, estão unidos a Cristo pelo fato de formarem uma Igreja.
Os Sacramentos e a Liturgia, enquanto vínculos sociais, enquanto ações exteriores que compõem a concatenação da Igreja são, por isso mesmo, os veículos da Graça. A contribuição da vontade pessoal é sem dúvida indispensável, desde o momento em que se torna possível (idade da razão), mas não é essencial, como se infere do batismo das crianças. Entrar a fazer parte da Igreja bem como o próprio subsistir da Igreja, é a resultante de um conjunto de ações interiores e exteriores, das quais o Cristo faz depender seu influxo redentor e vivificante sôbre cada alma. Se, na ordem das causas, o Cristo está em primeiro lugar, todos os outros, desde a hierarquia até os simples fiéis, têm sua responsabilidade e, falhando sua cooperação, a Igreja deixaria de ser como deveria, e muitas almas permaneceriam excluídas.
Este conferir da Graça como dom coletivo à humanidade redimida pelo Cristo é em tudo análogo ao conferir da Graça (e dos privilégios) como dom coletivo a toda humanidade, nos seus primórdios, na pessoa dos progenitores. Aqueles receberam estes dons, não a título de prêmio pessoal, mas a título do bem coletivo de toda a natureza. Bastaria nascer de Adão para, por isso mesmo, ter o dom da Graça, como agora basta estar inserido na Igreja pelo batismo para receber a Graça Cristã. O vínculo que teria ligado toda humanidade, a geração, viria a ser no correr do tempo o canal, a causa da Graça, o vínculo que teria unido cada indivíduo, não apenas aos seus semelhantes, mas também a Deus como fim sobrenatural.
Mas, para que tudo isto não adviesse como algo de fatal, de automático, era conveniente que os primeiros depositários deste dom cooperassem livremente para sua transmissão, bem como, a seu tempo, cada herdeiro deste dom ratificasse livremente — com a fé e as obras — a fortuna que herdou. A culpa pessoal dos progenitores implica a destruição do dom atribuído por Deus como bem coletivo da humanidade, destruição realizada livremente pelos homens que tinham a responsabilidade de transmiti-lo. Assim é que os vínculos da geração não são mais canais da Graça, e a humanidade não é mais, como devia ser, uma única grande Igreja. Deste modo, compreende-se porque o estado de decadência da humanidade seja ingênito em cada um como 'pecado'. Estado de pecado (pecado habitual) é o estado de uma criatura estranha à intimidade com Deus (privação da Graça), por força de uma falta cometida por meio de um ato livre da vontade (ato de pecado).
A grande família humana vai, no seu conjunto, gerando-se em estado de pecado (peccatum naturae), no sentido de que nasce privada da Graça, e esta privação não é apenas um defeito moral, mas subsiste por força do pecado pessoal do progenitor. A minha alma isoladamente, isenta de qualquer responsabilidade individual começou a existir então (e não antes) como parte de um complexo somático e psíquico ligado, por sua vez, sem solução de continuidade, ao resto da família humana. Bem longe de romper esta continuidade biológica e étnica, a alma assumiu-lhe a fisionomia concreta e, com esta, a privação da graça e dos privilégios, e uma tal privação, como encontrada na coletividade dos filhos de Adão, é efeito de uma culpa e, portanto, culpável.
Ela (a alma) ficou assim ligada a um estado de culpabilidade preexistente, assim como, mais tarde, sendo inserida na Igreja, entrou em comunicação com um estado de Graça preexistente na própria Igreja, por força do Cristo Redentor. Desse modo, pelo pecado original, transmite-se a cada um não apenas uma consequência , ou uma pena pela culpa, mas a própria culpabilidade que recai sobre a natureza globalmente. E, entretanto, a cada um não cabe uma responsabilidade individual, o que seria um disparate. 'Pecado' é o termo que melhor se adapta para exprimir esta realidade inerente a cada homem, pelo próprio fato de sua procedência do primeiro homem e, entretanto, é um termo analógico que não coincide perfeitamente com o sentido dele quando aplicado a um ato pessoal de culpa.
Restaria ainda uma pergunta: por que Deus escolheu um meio coletivo, tanto no caso da elevação da natureza em Adão como no da santificação da Igreja em Cristo, para conferir aos homens estes dons de santificação? Não teria com isso escolhido um meio menos favorável para o indivíduo, que vem assim a depender da responsabilidade dos outros? Respondemos que, sem negar a possibilidade de outras ordens de providência, aquele meio escolhido por Deus parece mais adequado à natureza dos homens.
Uma personalidade, ainda que excepcional, não pode esgotar todas as possibilidades de aperfeiçoamento da natureza humana. O que não é realizado por um é realizado por outro; e, se duas pessoas se acham unidas por uma comunhão de amor, o bem de uma torna-se também o bem da outra. O individualismo, como transposição do indivíduo ao resto da humanidade é também um empobrecimento: o indivíduo afastaria de si todas as riquezas que, por sua natureza, ele não pode possuir inteiramente. Assim como o indivíduo não pode vir à existência sem o concurso de outros, não pode também, muito menos, aperfeiçoar-se por si só. Esta concepção, longe de diminuir a responsabilidade individual, diluindo-a no complexo social, aumenta-a grandemente, tornando cada um responsável também pelos outros.
Se este plano escolhido por Deus teve uma consequência dolorosa no pecado original, não foi contudo impedido o acesso da humanidade ao seu fim último. Este se realiza através de uma via menos aprazível mas não menos gloriosa. A narrativa bíblica deixa uma brecha de esperança — não é definitivo o triunfo alcançado pela serpente — 'Esta (descendente da mulher) te esmagará a cabeça' (Gn 3,15). E esta brecha continuará sempre, alargando-se mais e aclarando-se em sucessivas revelações ('messianismo'), até chegar aquele que dirá: 'Eu sou a ressurreição e a vida' (Jo 11,25), e provocar o clamor da alegria cristã: 'Onde está, ó morte, a tua vitória?' (1Cor 15,35).
(Excertos adaptados da obra 'Páginas Difíceis da Bíblia - Antigo Testamento', de E. Galbiati e A. Piazza)