segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXIII)

Capítulo LXXIII

Alívio às Santas Almas - Orações por Todos os Fieis Defuntos - Santo Andre Avellino e sua Percepção pelo Destino Eterno das Almas - Exortação de São Francisco de Sales

Vimos os recursos e os numerosos meios que a Misericórdia Divina colocou nas nossas mãos para aliviar as almas do Purgatório; mas que almas estão nessas chamas expiatórias e a que almas devemos dar a nossa ajuda? Por quais almas devemos rezar e oferecer os nossos sufrágios a Deus? A estas perguntas devemos responder que devemos rezar pelas almas de todos os fiéis defuntos - omnium fidelium defunctorum -  de acordo com a expressão própria da Igreja. Embora a piedade filial nos imponha deveres especiais em relação aos nossos pais e parentes, a caridade cristã nos manda rezar pelos fiéis defuntos em geral, porque todos eles são nossos irmãos em Jesus Cristo, todos são nossos próximos, a quem devemos amar como a nós mesmos.

Por estas palavras, fiéis defuntos, a Igreja entende todos os que estão efetivamente no Purgatório, isto é, aqueles que não estão no inferno, mas que ainda não são dignos de serem admitidos na glória do Paraíso. Mas quem são essas almas? Podemos conhecê-las? Deus reservou esse conhecimento para si mesmo e, a não ser que Ele queira nos mostrar, devemos permanecer em total ignorância sobre o estado das almas na outra vida. Desta forma, Deus raramente dá a conhecer que uma dada alma está no Purgatório ou na glória do Céu e, mais raramente ainda, revela a condenação de uma alma. Nesta incerteza, devemos rezar em geral como faz a Igreja, por todos os defuntos, sem prejuízo das almas que queremos ajudar em particular.

Podemos evidentemente limitar a nossa intenção àqueles que, de entre os mortos, ainda precisam da nossa ajuda, se Deus nos conceder o privilégio que concedeu, por exemplo, a Santo André Avellino, de conhecer a condição das almas na outra vida. Quando este santo religioso da Ordem dos Teatinos, segundo o seu piedoso costume, rezava com angélico fervor pelos defuntos, acontecia-lhe por vezes sentir dentro de si uma espécie de resistência, um sentimento de invencível repulsa; outras vezes, pelo contrário, era uma sensação de grande consolação e particular atração. Logo compreendeu o significado dessas diferentes impressões: a primeira significava que sua oração era inútil, pois a alma que desejava socorrer era indigna de misericórdia e estava condenada ao fogo eterno; a outra, no entanto, indicava que sua oração era eficaz para o alívio da alma no Purgatório. O mesmo acontecia quando desejava oferecer o Santo Sacrifício por um defunto. Sentia-se, ao sair da sacristia, como que retido por uma mão invisível e compreendia que aquela alma estava no inferno; mas, quando se encontrava inebriado de alegria, de luz e de devoção, tinha a certeza de estar contribuindo para a libertação de uma alma. Este santo caridoso rezava, pois, com o maior fervor pelos defuntos que sabia estarem a sofrer, e não cessava de aplicar os seus sufrágios enquanto as almas não lhe viessem agradecer, dando-lhe a certeza da sua libertação. 

Quanto a nós, que não temos estas luzes sobrenaturais, devemos rezar por todos os defuntos, mesmo pelos maiores pecadores e pelo cristão mais virtuoso. Santo Agostinho conhecia a grande virtude de sua mãe, Santa Mônica; no entanto, não contente em oferecer a Deus os seus próprios sufrágios por ela, pedia aos seus leitores que não deixassem de recomendar a sua alma à Misericórdia Divina. Quanto aos grandes pecadores, que morrem sem se reconciliarem exteriormente com Deus, não podemos excluí-los dos nossos sufrágios, porque não temos a certeza da sua impenitência interior. A fé nos ensina que todos os homens que morrem em estado de pecado mortal incorrem na condenação eterna; mas quem são aqueles que na realidade morrem nesse estado? Só Deus, que reserva para si o julgamento dos vivos e dos mortos, sabe disso. Quanto a nós, só podemos tirar uma conclusão conjectural das circunstâncias exteriores, e mesmo disso devemos abster-nos. Mas é preciso confessar que há tudo a temer para aqueles que morrem despreparados para a morte, e toda a esperança parece desaparecer para aqueles que se recusam a receber os sacramentos. 

Estes últimos deixam esta vida com sinais exteriores de condenação. No entanto, devemos deixar o julgamento para Deus, de acordo com as palavras, Dei judicium est - A Deus pertence o julgamento (Dt, 1,17). Há mais a esperar para aqueles que não são positivamente hostis à religião, que são benevolentes para com os pobres, que conservam alguma prática de piedade cristã ou que pelo menos aprovam e favorecem a piedade; há mais, digo ainda, a esperar para tais pessoas quando acontece que elas morrem subitamente, sem terem tido tempo de receber os últimos sacramentos da Igreja.

São Francisco de Sales não quer que desesperemos da conversão dos pecadores até ao seu último suspiro e, mesmo depois da sua morte, proíbe-nos de julgar mal aqueles que levaram uma vida má. Com exceção dos pecadores, cuja reprovação é claramente manifestada pelas Sagradas Escrituras, não podemos, diz ele, concluir que uma pessoa está condenada, mas devemos respeitar os desígnios de Deus. A sua principal razão é que, como a primeira graça é gratuita, assim também é a última, que é a perseverança final ou uma boa morte. É por isso que devemos ter esperança na salvação dos fieis defuntos, por mais triste que tenha sido a sua morte, porque as nossas conjecturas baseiam-se apenas em constatações exteriores que podem ser, portanto, completamente equivocadas.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.