sábado, 27 de janeiro de 2024

AS DORES DE MARIA

A beleza de Jesus é inexaurível. Como a Visão de Deus no céu, ela é sempre diversa, embora sempre a mesma; sempre apreciada como um contentamento antigo e familiar, embora sempre surpreendente e estimulante por ser, na verdade, perpetuamente nova. Ele é sempre belo, belo em todo lugar, tanto na desfiguração da Paixão, quanto no esplendor da Ressurreição, tanto nos horrores da Flagelação, quanto nos indizíveis encantos de Belém. Mas acima de todas as coisas, Nosso Senhor é belo em sua Mãe. Se o amamos, devemos amá-la. Devemos conhecê-la, para conhecê-lo. Da mesma forma que não há verdadeira devoção à sua Sagrada Humanidade, que não seja consciente de sua Divindade, também não há amor adequado ao Filho que o  separe de sua Mãe, e a coloque de lado, como um mero instrumento, a quem Deus escolheu como se escolhesse uma coisa inanimada, 'sem consideração por sua santidade e retidão moral'. Mas é nosso dever diário amar Jesus cada vez mais. 

Um ano acaba e outro começa; o antigo curso das festas se repete; as conhecidas divisões do ano cristão nos abarcam, deixam em nós a sua marca, e se sucedem. Sudecem-se os Natais, Semanas Santas, Pentecostes, e algo há em cada um deles que os fazem residir como datas em nossa mente! Passamos alguns deles sob certas circunstâncias, e outros, sob outras. Alguns, graças a Deus, se distinguem por excepcionais aberturas de coração em nossa vida interior, de tal forma a alterar ou intensificar nossa devoção e materialmente influenciar nossas secretas relações com Deus. As fundações de muitas construções, que não se levantaram sobre a terra senão depois de muito tempo, foram lançadas quase inconscientemente nesses períodos. Todavia, quaisquer que tenham sido as alterações que essas festas trouxeram, elas sempre nos encontraram ocupados com uma única e mesma tarefa: estávamos tentando amar Jesus cada vez mais. 

E por meio de todas essas mudanças, e em toda a perseverança de nossa tarefa única, a experiência infalível nos tem dito que nunca avançamos mais rapidamente no amor do Filho do que quando viajamos com sua Mãe, e que o que construímos mais solidamente em Jesus, foi construído com Maria. Não há tempo perdido em sua busca, se recorremos de imediato a Maria; pois Ele está sempre lá, sempre em casa. A obscuridade de seus mistérios torna-se luz quando os colocamos sob sua luz, que é sua luz também. Ela é o caminho mais curto a Ele. Ela tem a 'via grandiosa' a Ele. Ela é sua Ester, e rápidas e integrais são as resposta a petições que suas mãos apresentam.

Mas Maria é um mundo, que não podemos perceber totalmente de uma só vez. Devemos nos devotar a mistérios particulares. Devemos separar certas regiões desse mundo de graça, e nelas nos concentrar. Devemos explorá-las e mapeá-las com precisão, antes de passarmos a outras regiões, e então aprenderemos muito do que uma visão geral nos teria omitido, e provisionaremos nossas almas com riquezas espirituais, riquezas de conhecimento e amor, que nos levarão perpetuamente à comunhão com nosso amado Senhor. Enquanto a graça de Deus ainda insiste em nos manter vivos, e por seus próprios propósitos graciosos, nos detêm nessa gélida fadiga e nessa depressiva possibilidade do pecado, determinemo-nos pelo menos em nos ocupar apenas com Deus; pois há muito aprendemos que não há verdadeiramente outra ocupação que nos valha a pena. 

Ele tem ainda milhares de Edens, mesmo na lúgubre superfície dessa salgada estepe do mundo, onde devemos trabalhar ao som de cursos d’água, não sem colóquios com Ele nos períodos calmos do dia; podemos andar de Éden a Éden, na medida em que a força ou a fraqueza de nosso amor nos impele. No momento, tranquemo-nos no jardim das dores de Maria. É um dos Edens preferidos de Deus, e não podemos trabalhar lá senão sob a sombra de sua presença, não sem o amor a Jesus tomando maravilhosamente posse de nossas almas. Pois o amor de Jesus está no próprio ar invisível do lugar, no aroma do solo revolvido, na fragrância das flores, no farfalhar das folhas, nos cantos dos pássaros, no brilho do sol, na murmuração suave das águas que escorrem pelas pedras do lugar. Lá, por um tempo, por nosso amor a Jesus, nós nos recolheremos como num claustro, e deixemos o mundo – no qual não temos muita importância, e que é ainda menos importante para nós do que somos para ele – sem sentir nossa falta por um período.

A lei da Encarnação é a lei do sofrimento. Nosso Senhor foi o homem das dores e, pelo sofrimento, Ele redimiu o mundo. Sua Paixão não foi um mistério separado do resto de sua vida, mas apenas seu fim adequado e congruente. O Calvário não é diferente de Belém e Nazaré. Ele os excede em grau; mas não difere deles em gênero. Todos os trinta e três anos foram passados em consistente sofrimento, embora distinto em vários gêneros, e não de intensidade uniforme. Essa mesma lei do sofrimento, que pertence a Jesus, toca a todos que se lhe aproximam, e em proporção de sua santidade; envolve-os e os reclama inteiramente para si. Os Santos Inocentes foram, nos desígnios de Deus, contemporâneos de Nosso Senhor, e isto já é afinidade suficiente para lançá-los num mar de sofrimentos que levaram suas carnes a sangrarem nos braços de suas mães transtornadas, para em seguida desfrutarem eternamente de coroas e palmas: uma troca feliz e enorme fortuna, construída rapidamente e assim tão maravilhosamente assegurada! 

A mesma lei envolveu cada um dos apóstolos, sobre quem caíra a indescritível e bem-aventurada escolha do Verbo Encarnado. Foi a cruz para Pedro e seu irmão, a espada para Paulo, as pedras para Tiago, o esfolamento para Bartolomeu, e o óleo fervente e longos anos de fatigante demora para João. Mas, qualquer forma que tome exteriormente, internamente ela foi sempre sofrimento. Acompanhou-lhes em todas as terras. Pairou sobre eles em todas as vicissitudes. Andou com eles nas estradas de Roma, como se fossem seus anjos da guarda; cavalgou ao lado de suas desconfortáveis galés nas águas tempestuosas do Mediterrâneo. Eles eram apóstolos. Deviam ser como seu Senhor. Deviam entrar na nuvem, e a escuridão do eclipse devia recair sobre eles no alto de algum Calvário, de Roma à Báctria, da Espanha ao Hindustão. 

A mesma lei envolveu os mártires de todas as eras. Suas paixões foram sombras vivas da grande Paixão, e o sangue que derramaram mesclou seu fluxo com o Precioso Sangue de seu Redentor, o Rei dos Mártires. Da mesma forma, com os santos. Tenham sido eles bispos ou doutores, virgens ou senhoras, seculares ou religiosos, amor incomum e graças incomuns sempre lhes alcançavam na forma de uma provação incomum e de um sofrimento incomum. Eles também devem ser levados para o interior da nuvem, e daí emergirão com suas faces resplandecentes, porque terão visto, e visto de perto, a Face do Crucificado. É assim, em sua medida, com todos os eleitos. Eles devem pelo menos manter-se dentro das bordas da nuvem escura, ou ela deve sombreá-los em seu trânsito, talvez mais de uma vez, a fim de assegurar a salvação de suas almas, dando-lhes pelo menos uma semelhança adequada de seu Senhor. O que, então, pensar de sua Mãe, que esteve, de todos, o mais próximo d’Ele?

Não deve ser surpresa que ela sofra mais do que qualquer um, exceto Ele mesmo. A imensidade de suas dores não será nem uma aflição nem uma surpresa para nós, mas, ao contrário, a óbvia conclusão de tudo que sabemos do grandioso mistério da Encarnação. O montante de seus sofrimentos será o índice da magnificência do seu amor por ela. A profundidade de suas dores é, de todos, o melhor modo de se sondar o abismo de seu amor por Ele. Seu imenso mar de dores medirá a grandeza de sua santidade. A excelsitude de sua divina Maternidade elevará suas dores para próximo de sua graciosa Paixão. Sua impecabilidade parecerá quase circundá-la com a mesma lei de expiação vivificante. Sua união com Ele transformará sua Compaixão inseparável de Sua Paixão, mesmo que, por milhares de razões, esta seja tão manifestamente distinta daquela. 

A Mulher vestida de Sol será envolvida por muitas voltas da brilhante escuridão daquele mesmo terrível destino, que Ele concedeu, a princípio, designar e, então, aceitar como a grande lei de sua Encarnação. Devemos estar preparados a encontrar as dores de Maria além do alcance de nossa imaginação, acima da possibilidade de nossa descrição. Podemos apenas contemplá-las com instrumentos que a fé e o amor fornecem, e perceber a beleza e a estranheza de muitos fenômenos que podemos somente imperfeitamente compreender. Assim podemos, especialmente, aumentar nossa devoção à Paixão, cujas muitas e desconhecidas regiões nos são momentaneamente iluminadas pelo contato com suas dores, tal como na ocultação de Júpiter, o luminoso e manchado planeta, quando toca a porção escura da lua, ele dispersa momentaneamente uma linha de luz ao longo da borda invisível, como uma revelação, e então, ao desaparecer prova a realidade daquilo que não conseguimos ver.

Mas, antes de invocarmos a São João Evangelista para sustentar a nossa mão e descer conosco às profundezas daquele coração partido, que ele, o santo do Sagrado Coração, conhecia melhor que os todos, devemos ter uma visão geral das dores de Nossa Senhora, tal como nos familiarizamos com o esboço geral da geografia de um país antes de tentarmos dominar seus detalhes. Há sete pontos, dos quais é necessário que tenhamos informações, antes que possamos estudar os mistérios individuais de seu incomparável sofrimento. Devemos conhecer, tanto quanto está em nosso poder, a imensidade de suas dores, porque Deus as permitiu, quais foram suas origens, quais suas características, como ela pôde regozijar-se nelas, de que modo a Igreja as coloca diante de nós e qual deve ser o espírito de nossa devoção a elas. Estas são questões que precisam de respostas; e estas, ainda que imperfeitas, servirão como um tipo de introdução ao nosso assunto.

(Excertos da obra 'Aos Pés da Cruz - As Dores de Maria", do Pe. Frederick Faber)