quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXII)

Capítulo LXXII

Alívio às Santas Almas pelo Ato Heroico da Caridade - A Caridade para com os Falecidos pelo Padre Munford - O Ato Heroico da Caridade de Santa Gertrudes

Até agora, falamos dos diferentes tipos de boas obras que podemos oferecer a Deus como sufrágios pelos mortos. Resta-nos dar a conhecer um ato que engloba todas as obras e meios, pelo qual podemos ajudar mais eficazmente as pobres almas; é o voto heroico ou, como outros lhe chamam, o ato heroico de caridade para com as almas do Purgatório.

Este ato consiste em ceder-lhes todas as nossas obras de satisfação, isto é, o valor satisfatório de todas as obras da nossa vida e de todos os sufrágios que nos serão dados depois da nossa morte, sem reservar nada para saldar as nossas próprias dívidas. Depositamo-los nas mãos da Santíssima Virgem, para que ela os distribua, segundo a sua vontade, às almas que deseja livrar do Purgatório.

É uma doação absoluta em favor das almas de tudo o que podemos lhes dar; oferecemos a Deus em seu favor todo o bem que fazemos, de qualquer espécie que seja, seja em pensamentos, palavras ou obras, tudo o que sofremos meritoriamente durante esta vida, sem excetuar nada do que podemos lhes dar razoavelmente e acrescentando mesmo aqueles sufrágios que podemos receber para nós mesmos após a morte. Compreenda-se bem que o objeto desta santa doação é o valor satisfatório das nossas obras e de modo algum o mérito que tem um grau de glória correspondente no Céu; porque o mérito é estritamente pessoal e não pode ser transferido para outro.

Eis a fórmula deste Ato Heroico: 'Ó Santíssima e Adorável Trindade, desejando cooperar na libertação das almas do Purgatório, e para testemunhar a minha devoção à Santíssima Virgem Maria, eu cedo e renuncio em favor dessas santas almas toda a parte satisfatória das minhas obras, e todos os sufrágios que me possam ser dados depois da minha morte, entregando-os inteiramente nas mãos da Santíssima Virgem, para que ela os aplique segundo a sua boa vontade às almas dos fiéis defuntos que ela deseja libertar dos seus sofrimentos. Dignai-vos, ó meu Deus, aceitar e abençoar esta oferenda que Vos faço neste momento. Amém'.

Os Soberanos Pontífices, Bento XIII, Pio VI e Pio IX, aprovaram este ato heroico e enriqueceram-no com indulgências e privilégios, dos quais os principais são os seguintes:

(i) aos sacerdotes que realizarem este ato, o indulto de um altar privilegiado todos os dias do ano;
(ii)  os simples fiéis podem obter uma indulgência plenária, aplicável apenas às almas do Purgatório, cada vez que comungarem, desde que em visita a uma igreja ou oratório público e aí rezem por intenção do sumo pontífice;
(iii) podem aplicar às almas santas todas as indulgências que não se apliquem de outro modo em virtude de concessão, e que tenham sido concedidas até ao presente ou que venham a ser concedidas no futuro (Pio IX, 30 de setembro de 1852).

'Aconselho todos os verdadeiros cristãos' - diz o Padre Munford na sua obra 'Caridade para com os Falecidos' - a cederem com santo desinteresse aos fiéis defuntos todo o fruto das suas boas obras que estão a nossa disposição. Não creio que possam fazer melhor uso deles, pois os tornam mais meritórios e mais eficazes, tanto para obter a graça de Deus como para expiar os seus próprios pecados e encurtar o próprio tempo do seu Purgatório, ou mesmo para adquirir uma isenção de passagem pelo mesmo'.

Estas palavras exprimem as preciosas vantagens do Ato Heroico e, para dissipar todo o receio posterior que possa surgir no espírito, acrescentamos três observações:

1. Este ato nos dá a perfeita liberdade para rezar pelas almas pelas quais estamos mais interessados; a aplicação destas orações está sujeita à disposição da adorável vontade de Deus, que é sempre infinitamente perfeita e infinitamente amorosa.

2. Não obriga sob pena de pecado mortal e pode ser revogada em qualquer altura. Pode ser feito sem usar nenhuma fórmula particular; basta ter a intenção e fazê-lo de coração. No entanto, é útil recitar a fórmula de oferecimento de vez em quando, para estimular o nosso zelo pelo alívio das santas almas por meio da oração, da penitência e das boas obras.

3. O Ato Heroico não nos sujeita às terríveis consequências de termos de passar nós próprios por um longo Purgatório; pelo contrário, permite-nos confiar com mais segurança na misericórdia de Deus a nosso respeito, como nos mostra o exemplo de Santa Gertrudes.

O Venerável Denis, o Cartuxo, conta que a Virgem Santa Gertrudes tinha feito uma doação completa de todas as suas obras de satisfação em favor dos fiéis defuntos, sem reservar nada para saldar as dívidas que ela mesma poderia ter contraído diante de Deus. Estando à beira da morte e, como todos os santos, considerando com muita tristeza o grande número dos seus pecados, por um lado e, por outro, lembrando-se de que havia empregado todas as suas obras de satisfação para a expiação dos pecados dos outros, afligiu-se, para que, tendo dado tudo aos outros e não reservado nada para si, sua alma, ao partir deste mundo, não fosse condenada a horríveis sofrimentos. 

Em meio aos seus receios, Nosso Senhor apareceu-lhe e a consolou, dizendo: 'Tranquiliza-te, minha filha, a tua caridade para com os defuntos não te prejudicará. Saiba que a generosa doação que fizeste de todas as tuas obras às santas almas me foi singularmente agradável e, para te dar uma prova disso, declaro-te que todas as dores que terias de suportar na outra vida estão agora remidas; além disso, em recompensa da tua generosa caridade, aumentarei de tal forma o valor dos méritos das tuas obras que te darei um grande aumento de glória no Céu'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.