sexta-feira, 9 de julho de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XI)

Capítulo XI

A Dor do Sentido: Tormento do Fogo e Tormento do Frio - Venerável ​​Beda e a Ressurreição de Drithelm

Se a dor da perda não nos causa senão uma fraca impressão, é muito diferente em relação à dor dos sentidos; o tormento do fogo ou a tortura de um frio cortante e intenso apavoram a nossa sensibilidade. É por isso que a Divina Misericórdia, desejando despertar um santo temor em nossas almas, fala pouco da dor da perda, mas continuamente nos é mostrado o fogo, o frio e outros tormentos, que constituem a dor dos sentidos. Isso é o que vemos no Evangelho, e em revelações particulares, pelas quais Deus se grada em manifestar aos seus servos de vez em quando os mistérios da outra vida. Vamos mencionar uma dessas revelações. Em primeiro lugar, vejamos o que o piedoso e erudito Cardeal Belarmino cita do Venerável Beda

A Inglaterra foi testemunha em nossos dias, escreve Beda, de um prodígio singular, que pode ser comparado aos milagres dos primeiros tempos da Igreja. Para estimular os vivos a temer a morte da alma, Deus permitiu que um homem, depois de ter dormido o sono da morte, voltasse à vida e revelasse o que tinha visto no outro mundo. Os detalhes terríveis e inéditos que ele relata, e sua vida de extraordinária penitência, que correspondeu às suas palavras, produziram uma impressão viva em todo o país. Vou agora retomar as principais circunstâncias desta história. 

Havia em Northumberland um homem chamado Drithelm que, com a sua família, levava uma vida cristã. Ele adoeceu em com a sua enfermidade aumentando a cada dia, entrou em estado terminal e morreu, para grande desolação e tristeza de sua esposa e filhos. Velaram toda a noite em lágrimas diante dos seus restos mortais mas, no dia seguinte, antes do seu enterro, eles o viram de repente voltar à vida, levantar-se e colocar-se em uma postura sentada. Ao ver isso, foram tomados de tanto medo que todos fugiram, com exceção da esposa, que, tremendo, ficou sozinha com o marido ressuscitado. 

Ele a tranquilizou imediatamente: 'Não tema', disse ele, 'É Deus quem me restaura a vida. Ele deseja mostrar, na minha pessoa, um homem ressuscitado dos mortos. Ainda tenho muito tempo para viver nesta terra, mas a minha nova vida será muito diferente daquela que levei até agora'. Então, ele se levantou cheio de saúde, foi direto para a capela ou a igreja do lugar, e ali permaneceu muito tempo em oração. Ele voltou para casa apenas para se despedir daqueles que lhe eram queridos na terra, aos quais declarou que viveria apenas para se preparar para a morte, e os aconselhou a fazer o mesmo. 

Em seguida, dividiu a sua propriedade em três partes, dando uma para os seus filhos, outra para a sua esposa e reservou a terceira parte para dar em esmolas. Depois de ter distribuído tudo aos pobres e ficar reduzido à indigência extrema, foi bater à porta de um mosteiro e implorou ao abade do lugar que o recebesse como religioso penitente, que ele se tornaria o servo de todos os outros. O abade reservou-lhe uma cela isolada, a qual ocupou pelo resto de sua vida. Três exercícios dividiam o seu tempo - oração, o trabalho mais difícil e penitências extraordinárias. Os jejuns mais rigorosos ele considerava como nada. No inverno, ele mergulhava em água congelada e permanecia ali por horas e horas em oração, enquanto recitava todo o Saltério de Davi.

A vida mortificada de Drithelm, seus olhos sempre abaixados e até mesmo as suas feições indicavam uma alma atingida pelo medo dos julgamentos de Deus. Ele manteve um silêncio perpétuo mas, ao ser pressionado a relatar, para a edificação dos outros, o que Deus havia manifestado a ele após sua morte, ele assim descreveu sua visão:

'Ao deixar o meu corpo, fui recebido por uma pessoa benevolente, que me acolheu. Seu rosto estava brilhante e ele parecia rodeado de luz. Ele me levou a um grande vale profundo e de imensa extensão, que tinha fogo de um lado e era todo gelo e neve do outro; de um lado braseiros e caldeirões de fogo e, de outro, o frio mais intenso e o sopro de um vento glacial. Este vale misterioso estava cheio de inúmeras almas, que, sacudidas como por uma furiosa tempestade, eram jogadas de um lado para o outro. Quando não podiam mais suportar a violência do fogo, buscavam alívio em meio ao gelo e à neve mas, encontrando ali apenas uma nova tortura, lançavam-se novamente no meio das chamas.

Eu contemplei em estupor essas vicissitudes contínuas de tormentos horríveis e, até onde a minha vista podia se estender, não vi nada além de uma multidão de almas que sofriam sem ter repouso algum. Os aspectos delas me inspiraram medo. A princípio, pensei tratar-se do inferno, mas meu guia, que caminhava diante de mim, voltou-se para mim e disse: 'Não; este não é, como você pensa, o inferno dos réprobos. Você sabe' - continuou ele - 'que lugar é este?' 'Não', respondi. 'Saiba', ele resumiu, 'que este vale, onde você vê tanto fogo e tanto gelo, é o lugar onde permanecem as almas daqueles que, durante a vida, negligenciaram confessar os seus pecados, e que adiaram a sua conversão até o fim. Graças a uma misericórdia especial de Deus, eles tiveram a felicidade de se arrepender sinceramente antes da morte, de confessar e detestar os seus pecados. É por isso que eles não estão condenados, e no grande dia do julgamento entrarão no Reino dos Céus. Vários deles, entretanto, vão alcançar a sua libertação antes desse tempo final, pelos méritos de orações, esmolas e jejuns, oferecidos em seu favor pelos vivos, e especialmente, em virtude do Santo Sacrifício da Missa oferecido para o alívio de suas almas'.

Assim foi a descrição feita por Drithelm. Quando perguntado por que ele tratou seu corpo tão rudemente e por que havia mergulhado na água congelada, ele respondeu que tinha visto tormentos e frio de outro tipo. Quando os seus irmãos expressavam surpresa por ele poder suportar tais austeridades extraordinárias, ele respondia ter visto 'penitências muito mais excruciantes'. Até o dia em que aprouve a Deus chamá-lo para si em definitivo, não cessou de afligir o seu corpo e, ainda que alquebrado pela idade, nunca aceitava nenhum tipo de alívio.

Este evento produziu uma sensação profunda na Inglaterra; um grande número de pecadores, tocados pelas palavras de Drithelm e atingidos pela austeridade de sua vida, converteram-se sinceramente. Este fato, acrescenta Belarmino, parece-me de verdade incontestável, pois, além de estar conforme às palavras da Sagrada Escritura que diz que 'os mortos passam das águas da neve ao calor do fogo abrasador' (Jó, 24, 19), o Venerável Beda relata o fato como sendo recente e evento bem conhecido. Mais do que isso, seguiu-se ao mesmo a conversão de um grande número de pecadores, sinal da obra de Deus, que costuma fazer prodígios para produzir frutos nas almas.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)