quinta-feira, 11 de junho de 2015

DA IMPENITÊNCIA FINAL (I)

INTRODUÇÃO

Como toda nossa vida na eternidade depende do estado da alma no momento da morte, urge falar da impenitência final, que se opõe à boa morte e, por contraste, falaremos também das conversões in extremis. A impenitência de um pecador traduz-se na ausência ou privação da penitência que devia destruir nele as consequências morais do pecado ou da revolta contra Deus. Estas consequências do pecado traduzem-se na ofensa feita a Deus, na corrupção da alma revoltada e desorientada e nos justos castigos que mereceu.

Destroem-se as consequências do pecado através da reparação satisfatória, isto é, pela dor de ter ofendido a Deus e mediante a compensação expiatória. Como diz Santo Tomás1, requerem-se estes atos da virtude da penitência para a salvação do pecador; exige-nos a justiça e a caridade para com Deus e também a caridade para nós mesmos. A impenitência traduz-se na ausência de contrição e satisfação; pode ser temporal, se se considera no decurso da vida presente, e final, se se refere ao momento da morte. Convém ler o sermão de Bossuet sobre o endurecimento, que é o castigo dos pecados precedentes2.

O QUE É QUE NOS PREDISPÕE PARA A IMPENITÊNCIA FINAL

A impenitência temporal predispõe-nos para a impenitência final. Ela pode revestir-se de duas formas muito diferentes: impenitência de fato, isto é, a simples ausência de arrependimento; e impenitência da vontade, resolução positiva de não se arrepender dos pecados cometidos. Neste último caso, há pecado especial de impenitência que, no seu grau mais elevado, é um pecado de malícia, que se comete, por exemplo, ao assinar um contrato de enterro civil.

A diferença entre estas duas formas é considerável sem dúvida. Se a alma se vê surpreendida pela morte no simples estado de impenitência de fato, dá-se a impenitência final, sem que se tenha preparado diretamente para um pecado especial de endurecimento. A impenitência temporal da vontade conduz diretamente à impenitência final, embora Deus, por um ato de misericórdia especial, muitas vezes possa preservar desta. Por este caminho de perdição, pode chegar-se a querer permanecer no pecado, deliberada e friamente, repelindo a penitência que dele nos livraria. Como dizem Santo Agostinho e Santo Tomás3, esta espécie de impenitência constitui, nessa altura, não só um pecado de malícia, mas também um pecado contra o Espírito Santo, isto é, um pecado que vai diretamente contra o que poderia salvar o pecador.

Este deve, pois, fazer penitência no tempo próprio, por exemplo, no tempo da comunhão pascal, de outro modo passará da impenitência de fato para a impenitência da vontade, ao menos por omissão deliberada. Santo Tomás diz que tanto mais necessário voltarmos a Deus, quanto é certo que não podemos permanecer muito tempo no pecado mortal sem cometermos novos pecados, os quais apressam a queda4.

Portanto, não devemos esperar pela morte para nos arrependermos. A Escritura impele-nos a fazê-lo sem demora: 'Não espere pela morte para cumprires' (Ecl 18, 21). São João Batista, na sua pregação, não cessava de falar na urgente necessidade do arrependimento (Lc 3, 31). Jesus repete-o igualmente desde o começo de seu ministério: 'Fazei penitência e crede no Evangelho' (Mc 1, 15). Mais tarde ainda: 'Se não fizerdes penitência, todos perecereis do mesmo modo' (Lc 13, 5). São Paulo escreve aos Romanos (2, 5): 'Com a tua dureza e coração impenitente acumulas para ti um tesouro de ira no dia da ira e justo juízo de Deus que há de dar a cada um segundo suas obras'.

No Apocalipse (2, 16) diz-se ao anjo da Igreja de Pérgamo: 'Faze igualmente penitência; de contrário, virei a ti livremente'. Anuncia-se assim a visita da justiça divina, para a hipótese de não termos em conta a visita da misericórdia. A impenitência temporal voluntária registra numerosos graus5.

Partindo dos menos graves que, todavia, já são muito perigosos, encontramos o grau dos endurecidos por ignorância culposa, que se fixam no pecado mortal e na cegueira que certamente os leva a preferirem os bens temporais aos bens da eternidade. Bebem da iniquidade como se fosse água, com uma consciência adormecida ou sonolenta porque sempre descuraram gravemente do conhecimento dos deveres indispensáveis à salvação. Há muitas pessoas nesta condição. 

Deparamos depois com os endurecidos por covardia, os quais, mais esclarecidos e mais culpados que os anteriores, não tem energia para quebrar os laços da luxúria, da avareza, do orgulho e da ambição que criaram para si mesmos. Não pedem, na oração, a energia que lhes falta. Vêm por último, os endurecidos por malícia, designadamente aqueles que nunca rezam e se revoltam contra a Providência, após alguma infelicidade, ou ainda os escarnecedores envolvidos nas suas desordens, blasfemadores descontentes por tudo e por nada; materialistas que, se mencionam Deus, é para o injuriarem; e, finalmente, os sectários, que manifestam ódio constante contra a religião cristã e não cessam de atacá-la nos seus escritos.

Entre uns e outros há muita diferença, evidentemente. Todavia, não se pode afirmar que, para chegar à impenitência final, seja preciso um endurecimento por malícia ou, ao menos, um endurecimento por covardia ou por ignorância voluntária. Não podemos afirmar que Deus use de misericórdia para com todos os outros pecadores menos culpados. Também não podemos dizer que serão condenados todos os endurecidos por malícia, porque a misericórdia divina converteu, por vezes, grandes sectários que pareciam obstinados no caminho da perdição6.

Os Padres da Igreja, porém, e depois deles os melhores pregadores, ameaçaram muitas vezes com a impenitência final aqueles que se recusam a converter-se ou adiam a sua conversão sempre para mais tarde7. Depois de terem abusado tanto das graças de Deus, terão eles socorro eficaz, necessário à conversão? Levantam-se muitas dúvidas.

A CONVERSÃO É DIFÍCIL, MAS REALMENTE POSSÍVEL

O endurecimento que a cegueira pressupõe, a perversão do discernimento e uma tal predisposição da vontade para o mal que o bem já quase não atrai, tornam a conversão bastante difícil. Já não se tira proveito dos bons conselhos ou dos sermões, já não se lê o Evangelho nem se frequenta a Igreja; resiste-se mesmo às advertências salutares de pessoas de bem. O coração torna-se duro como uma pedra. Isaías tem também algumas palavras para os que se encontram neste estado (5, 20-21): 'Infelizes daqueles que chamam bem ao mal e mal ao bem, que fazem das trevas luz e da luz, trevas; que tornam amargo o que é doce e doce o que é amargo! Infelizes daqueles que são sábios aos seus próprios olhos e inteligentes em sua própria opinião'.

Tudo isso se deve a pecados reiterados, hábitos viciosos, a ligações criminosas, a leituras nas quais se bebe claramente o erro, fechando os olhos à verdade. Depois de tantos abusos da graça, sucede que o Senhor recusa ao pecador não somente o socorro eficaz de que fica privado todo pecador habitual no momento em que cai, mas também a graça proximamente suficiente, que tornaria possível a observância dos mandamentos.

E, no entanto, ainda se pode dar a conversão. O pecador endurecido recebe ainda graças suficientes remotas; por exemplo, durante uma missão ou por meio de uma provação. Mercê desta graça suficiente remota, não pode ainda cumprir os preceitos mas já pode começar efetivamente a rezar. As coisas passam-se deste modo, porque a salvação ainda lhe é possível e, contrariamente à heresia pelagiana, só é possível pela graça; se o pecador não resistir a este apelo, será levado de graça em graça até à conversão. 

Deus, com efeito, disse: 'Não quero a morte do ímpio, mas que se desvie de seu caminho e viva' (Ez 33, 14-16). E São Paulo tem estas palavras: 'Deus quer que todos os homens se salvem e atinjam o conhecimento da verdade' (Tim 2, 4). Dizer, como Calvino, que Deus, por um decreto positivo predestina certos homens para a condenação eterna, recusando-lhe qualquer graça constitui outra heresia contrária à anterior. O Concílio de Trento manda-nos dizer o que dizia Santo Agostinho (Denz. 804): 'Deus não manda o impossível, mas, ao dar-nos os seus preceitos, aconselha-nos a fazer o que podemos e a pedir-lhe a graça para cumprir o que não podemos'. Ora, o pecador endurecido tem ainda, enquanto viver na terra, a obrigação grave de fazer penitência, impossível de cumprir sem a graça. Urge, pois, concluir que recebe de tempos em tempos as graças suficientes para começar a rezar.

Porém, se o pecador resiste a essas graças, começa a atolar-se, como quem se aventura na areia movediça. Quanto mais tenta desembaraçar-se mais os seus pés se afundam. A graça suficiente passa ainda, de tempos em tempos, como uma brisa, para lhe renovar as forças, mas se ele continua a resistir, ver-se-á privado da graça eficaz que acompanha a graça suficiente, como o fruto acompanha a flor. E depois, obterá ele mais tarde este socorro eficaz que toca o coração e converte verdadeiramente? As dificuldades aumentam, as forças da vontade declinam e as graças diminuem. A impenitência temporal voluntária predispõe-nos manifestamente para a impenitência final, embora a misericórdia divina, às vezes, preserve desta, in extremis, muitos pecadores endurecidos.

Notas:
1 – III, q. 84, a. 5 e 85.
2 – Avent de Saint Germain et Défense de la Tradition, I. XI, c. IV, V, VI, VII, VIII.
3 – II, II, 1. 14.
4 – I, II, q. 109, a. 8.
5 – Cfr. Santo Tomás, I, II, q. 76-78; II, II, q. 15, a. 1; Dic. Teol. Catol., art. Impenitencia. c.1283.
6 – Na vida de São João Bosco, vemo-lo aproximar-se do leito de um moribundo, maçon inveterado. Este lhe diz: 'Não me venha falar de religião; senão, eis um revólver com uma bala para ti e outra para mim'. 'Nessa altura' – diz Dom Bosco – 'falamos de outra coisa'. E passou a falar-lhe da vida de Voltaire. Já quase no fim, diz: 'Há quem afirme que Voltaire não se arrependeu e teve uma morte má. Eu não digo nada porque não sei'. Então o maçon inquiriu: 'Até Voltaire pôde arrepender-se?' – 'Sim' – 'Nesse caso, também eu poderia arrepender-me ainda?' E aquele homem, que estava desesperado, parece ter tido uma boa morte. – Cita-se o caso de um capelão de prisão, santo sacerdote, que, ao assistir a um criminoso que não queria confessar-se antes de morrer, acabou por lhe dizer: 'Bem! Se queres perder, perde-te'. Tratou-se da beatificação deste capelão, mas não pôde ser beatificado por ter dito aquilo. Devia, até ao último momento, ter falado da misericórdia e da possibilidade da conversão a Deus.
7 – Cfr Santo Ambrósio, De Penitentia, c. X-XII; São Jerônimo, Epist. 147 ad Sabinianum; Santo Agostinho, Sermões, 351 – 352, Da utilidade de fazer penitência; São João Crisóstomo, 9 Homilias sobre a penitência, P. G. t. XLIX, col. 277 e segs.; São Bernardo, De conversione ad clericos; Bossuet, Sermão para o primeiro domingo do Advento.

(Excertos da obra 'L'éternelle vie et la profondeur de l’ame', do Pe. Garrigou-Lagrange, tradução de R. Horta)