sexta-feira, 23 de julho de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XII)


Capítulo XII

Dores do Purgatório - Santa Cristina, a Admirável

O erudito e piedoso cardeal [Cardeal Belarmino, citado no capítulo anterior] passa então a relatar a história de Santa Cristina, a Admirável, que viveu na Bélgica no final do século XII e cujo corpo se conserva hoje em Sint-Truiden, na igreja dos Padres Redentoristas. A vida desta ilustre virgem foi, diz ele, escrita por Thomas de Cantimpré, religioso da Ordem de São Domingos, autor digno de crédito e contemporâneo da santa. O cardeal James de Vitry, no prefácio da Vida de Maria d'Ognies, fala de um grande número de mulheres santas e virgens ilustres; mas quem ele admira acima de todas as demais é Santa Cristina, de quem relata os feitos mais maravilhosos.

Esta serva de Deus, tendo passado os primeiros anos de sua vida em humildade e paciência, morreu com a idade de trinta e dois anos. Quando estava para ser enterrada, e o corpo já se encontrava na igreja repousando em caixão aberto, segundo o costume da época, ela se levantou cheia de vigor, deixando estupefata toda a cidade de Sint-Truiden, que tinha testemunhado essa maravilha. O espanto aumentou quando souberam, pela sua própria boca, o que lhe acontecera depois de sua morte. Vamos ouvir o seu próprio relato disso.

'Assim que a minha alma foi separada do meu corpo, ela foi recebida pelos anjos, que a conduziram a um lugar muito sombrio, inteiramente cheio de almas. Os tormentos que elas suportavam pareceram-me tão excessivos, que me é impossível dar qualquer ideia do seu rigor. Vi entre elas muitos de meus conhecidos e, profundamente tocada pela sua triste condição, perguntei que lugar era aquele, pois acreditava que fosse o Inferno. Meu guia me respondeu que era o Purgatório, onde eram punidos os pecadores que, antes da morte, se arrependeram de suas faltas, mas não haviam dado satisfação digna a Deus. Dali eu fui conduzida ao Inferno e lá também reconheci, entre os réprobos, alguns que eu havia conhecido anteriormente.

Os anjos então me transportaram para o Céu, até o trono da Divina Majestade. O Senhor me olhou com bons olhos e eu experimentei uma alegria extrema, porque pensei em obter a graça de morar eternamente com Ele. Mas meu Pai Celestial, vendo o que se passava em meu coração, disse-me estas palavras: 'Certamente, minha querida filha, um dia você estará comigo. Agora, porém, permito que você escolha, ou permanecer comigo daqui em diante ou retornar à Terra para cumprir uma missão de caridade e sofrimento. De modo a libertar das chamas do Purgatório aquelas almas que inspiraram tanto a sua compaixão, você deve sofrer por elas na terra; você deverá suportar grandes tormentos sem, no entanto, morrer pelos seus efeitos. E você não só aliviará os que partiram, mas o exemplo que dará aos vivos, e sua vida de sofrimento contínuo, levará pecadores a se converterem e a expiarem os seus crimes. Depois de ter terminado esta nova vida, você deverá retornar a mim sobrecarregada de méritos'. 

A estas palavras, vendo as grandes vantagens que me eram oferecidas pelas almas, respondi, sem hesitar, que voltaria à vida, e levantei-me no mesmo instante. É com este único objetivo, o alívio dos que partiram e a conversão dos pecadores, que voltei a este mundo. Portanto, não se espantem com as penitências que praticarei, nem com a vida que levarei daqui em diante, pois será tão extraordinária que nada parecido jamais foi visto'. 

Tudo isso foi relatado pela própria santa; vejamos agora o que o biógrafo acrescenta nos diversos capítulos de sua vida. 'Cristina começou imediatamente a obra para a qual fôra enviada por Deus. Renunciando a todos os confortos da vida, e reduzida à miséria extrema, viveu sem casa nem fogo, mais miserável que as aves do céu, que têm um ninho para as abrigar. Não satisfeita com essas privações, ela buscou avidamente tudo o que poderia causar sofrimento. Ela se jogou em fornos em chamas, e ali, sofrendo tão grande tortura que não pôde mais suportar, soltou os gritos mais terríveis. Ela permaneceu por um longo tempo no fogo, e ainda assim, ao sair, nenhum sinal de queimaduras foi encontrado em seu corpo. No inverno, quando o Meuse [rio que nasce na França e atravessa a Bélgica e a Holanda] estava congelado, ela mergulhava nele, permanecendo naquele rio congelado não apenas por horas e dias, mas por semanas inteiras, o tempo todo orando a Deus e implorando a sua misericórdia. Às vezes, enquanto rezava nas águas geladas, ela se deixava levar pela corrente até um moinho, cuja roda girava de uma maneira terrível de se ver, mas sem quebrar ou deslocar nenhum dos seus ossos. Em outras ocasiões, seguida por cães, que mordiam e rasgavam a sua carne, ela corria, atraindo-os para as moitas e entre os espinhos, até ficar coberta de sangue; no entanto, ao retornar, nenhuma ferida ou cicatriz era vista. 

Tais são as obras de admirável penitência descritas pelo autor da Vida de Santa Cristina. Este escritor era um bispo subordinado ao arcebispo de Cambray. 'E nós temos', diz Belarmino, 'motivos para crer em seu testemunho, pois ele tem por garantia outro grande autor, Tiago de Vitry, bispo e cardeal, e porque relata o que aconteceu em seu próprio tempo, e mesmo na província onde viveu. Além disso, os sofrimentos desta admirável virgem não foram ocultados. Todos puderam ver que ela estava no meio das chamas sem ser consumida e coberta de feridas, todas as quais desapareceram apenas momentos depois. Mas, mais do que isso, foi a vida maravilhosa que ela levou por quarenta e dois anos, depois que ela foi ressuscitada dos mortos, com Deus mostrando claramente que as maravilhas operadas nela foram pelas virtudes do Alto.

'Assim', argumenta Belarmino, 'Deus quis silenciar aqueles libertinos que fazem profissão aberta de não acreditar em nada, e que têm a audácia de perguntar com desprezo: 'Quem voltou do outro mundo? Quem já viu os tormentos do Inferno ou do Purgatório?' Eis aqui duas testemunhas confiáveis [Santa Cristina e Drithelm - ver capítulo anterior], que nos asseguram tê-los visto e que são terríveis. O que se segue, então, senão que os incrédulos são indesculpáveis, mas que aqueles que acreditam e, no entanto, negligenciam fazer penitência, não merecem ainda mais ser condenados?'

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)