sexta-feira, 21 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (VII)


Nesta sétima parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira considera se a falta de ciência pelo pregador (ou a mera repetição de conhecimento alheio em sua pregação) constitui a causa principal da perda dos frutos valiosíssimos da Santa Palavra de Deus.

VII

Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: semen suum [semente sua]. Semeou o seu e não o alheio porque o alheio e o furtado não são bons para semear, ainda que o furto seja de ciência. 

Comeu Eva o pomo da ciência e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasça em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há de deitar raízes e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto: porque pregam o alheio e não o seu: semen suum [semente sua]. O pregar é entrar em batalha com os vícios e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando Davi saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer ainda que seja Davi. As armas de Saul só servem a Saul e as de Davi a Davi; e mais aproveita um cajado e uma funda própria que a espada e a lança alheias. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.

Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, o que foi ordená-los pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: reficientes retia sua - refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos e não eram alheias. Notai: retia sua [redes suas]. Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.

As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de por na boca; mas elas foram-se por na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há de dizer o pregador, não lhe há de sair só da boca; há de lhe sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. 

Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum [apareceram repartidas umas como línguas de fogo, que repousaram sobre cada um deles (At 2,3)]. E por que cada uma sobre cada um e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. 

Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacó forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco São Lucas e São Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu São João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas [os sete trovões ressoaram com as suas vozes (Ap 10,3)]. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: voces suas [vozes suas]: 'suas e não alheias' como notou Ansberto: non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio e com o alheio nunca se fez coisa boa.

Contudo, eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Batista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou São Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae [pregando o batismo de arrependimento para remissão dos pecados, conforme está escrito no livro das palavras do profeta Isaías (Lc 3,3)]. Deixo (também como referência) o que tomou Santo Ambrósio de São Basílio, São Próspero e Beda de Santo Agostinho, Teofilato e Eutímio de São João Crisóstomo.

(Sermão da Sexagésima- Parte VII, Pe. Antônio Vieira)