sábado, 29 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (X)


Na décima e última parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira conclui o seu sermão, com a seguinte recomendação final: a pregação que dá fruto à Santa Palavra de Deus é aquela que descontenta e traz inquietação aos ouvintes e não aquela que os tornam confortáveis e passivos às palavras do pregador e do sermão.

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem e o que já tenho experimentado que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes e não gostam de ouvir. Ó boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar e, por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais é mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: venit diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! [vem o demônio e lhes tira a palavra do coração! (Lc 8,12)]. 

Pois por que não comeu o diabo o trigo que caiu entre os espinhos ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho, conculcatum est ab hominibus - pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a que o diabo mais teme. De outros conceitos, de outros pensamentos, de outras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que parece comum: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trivial: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trilhada: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que nos põe no caminho e na via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do mundo e, por isso mesmo, essa é a que deviam pregar os pregadores e a que deviam buscar os ouvintes. 

Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam [por meio da boa e da má fama (II Cor 6,8)], dizia São Paulo: o pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo.

Pois gostem ou não gostem os ouvintes! Ó que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum [são aqueles que com alegria recebem a palavra]. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)] conclui Cristo. 

De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte, a cada palavra do pregador, treme; quando cada palavra do pregador é um torcicolo para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem conhecer parte de si, então esta é a preparação que convém e então se pode esperar que dê fruto: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)].

Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de ouvir, acabo com um exemplo do nosso reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se, entre alguns doutores da universidade, qual dos dois fosse maior pregador e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: 'entre dois sujeitos tão grandes, não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim'.

Com isto concluo. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saísseis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, que se descontentem embora de nós. 

Si hominibus placerem, Christus servus non essem [se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo (Gl 1,10)], dizia o maior de todos os pregadores, São Paulo: se eu contentasse os homens, não seria servo de Deus. Ó contentemos a Deus e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus [fomos entregues em espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens (cf I Cor 4,9)]. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: não me disseram isso. E o pregador? Vae mihi, quia tacui [ai de mim, estou perdido (Is 6,5)]: ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que se tem ainda na terra quem se põe da sua parte e saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: et fecit fructum centuplum [e deu fruto cem por um].

(Sermão da Sexagésima - Parte X, Pe. Antônio Vieira)