terça-feira, 11 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (III)


Nesta terceira parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira demonstra que quando a Palavra de Deus não dá fruto não é por causa de Deus e nem por culpa dos ouvintes.

III

Fazer dar pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. 

Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro de si e se ver a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender o que falta? Por parte do ouvinte, por parte do pregador ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino; e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos ou porque falta ou sobeja a chuva ou porque falta ou sobeja o sol. 

Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus nunca é por falta do Céu; sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquecer e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos [pois faz nascer o sol para os bons e para os maus e chover sobre os justos e os ímpios]. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? [o que tive de fazer por minha vinha e não fiz? (Is 5,4)] disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fosse por parte dos ouvintes, não daria a palavra de Deus muito grande fruto; mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o vemos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud [cresceram juntos os espinhos e a sufocaram (a semente de trigo)]. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit [e ao nascer, secou]. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum [e nasceu e produziu fruto cem por um]. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. 

Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus são as pedras e os espinhos. E por quê? - os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes porque vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos e, às vezes, também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas [outra parte caiu entre espinhos]: o trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. 

Mas os de vontades endurecidas ainda são piores porque um entendimento agudo pode ser ferido pelos mesmos fios e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Ó Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae - Induratum est cor Pharaonis [batendo a vara na pedra duas vezes, irromperam águas em abundância (Nm 20, 11) - endureceu-se o coração do Faraó (Ex 7,13)]. E mesmo os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas sendo os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos e, apesar da dureza, nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho porque não cortar os espinhos e não arrancar as pedras antes de semear, mas por princípio deixou no campo as pedras e os espinhos para que se visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra que, sem cortar nem aparar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra que, sem arrancar nem deslocar as pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos; corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar hoje por entre os arbítrios dos homens e nem nascer nos corações, não é por culpa e nem por indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não ficam nem por parte de Deus nem por parte dos ouvintes segue-se, por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.

(Sermão da Sexagésima- Parte III, Pe. Antônio Vieira)