sábado, 8 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (I)


O 'Sermão da Sexagésima' é o mais famoso dos sermões do Pe. Antônio Vieira (1608 - 1697) e refere-se à pregação correspondente ao chamado 'Domingo da Sexagésima', antiga referência litúrgica ao domingo imediatamente anterior ao Carnaval. O sermão original, dividido em dez partes, foi proferido provavelmente em 31 de janeiro de 1655, na então Capela Real da Coroa Portuguesa. 

I

Deus queira que este tão ilustre e tão numeroso auditório não saia hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é o caso que me levou e me trouxe de tão longe.

Ecce exiit qui seminat, seminare [eis que saiu o semeador a semear]. Diz Cristo que 'saiu o pregador evangélico a semear' a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: exiit [sair], porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: exiit seminare [saiu a semear].

Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que retornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que retornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: 'uma vez que iam, não retornavam'. As rédeas pelas quais se governavam eram o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, mas não tinha regresso para os trazer; porque sair para retornar, é melhor não sair. 

Assim arguís com muita razão e eu também assim o digo. Mas pergunto: e se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos: o que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura: 'uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos': aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras e secou-se nas pedras por falta de umidade: aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. 'Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves': aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud

Ora vede como todas as criaturas do mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no mundo se reduzem a quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est ab hominibus [foi pisado pelos homens].

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: 'Ide, e pregai a toda a criatura'. Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz São Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem  [seco nas pedras por falta de umidade]; trigo afogado: exortae spinae suffocaverunt illud [afogado pelos espinhos]; trigo comido: volucres caeli comederunt illud [comido pelas aves]; trigo pisado: conculcutum est [pisado (pelos homens)]. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos até aqui.

Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede bem como lhes calham o Natum aruit, quia non habebant humorem! [seco nas pedras por falta de umidade!]. E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: conculcatum est! [pisado (pelos homens)]. Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.

Agora torna a minha pergunta: e o que faria neste caso ou o que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que limpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, 'quando iam não tornavam': nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que 'aqueles animais retornavam à semelhança de um raio ou corisco': ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e retornavam à semelhança de um raio, como diz o texto, por que quando iam não retornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não retorna. Ir e voltar como raio, não é retornar, é ir adiante. 

Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou adiante no semear e o fez com tanta felicidade que, nesta quarta e última parte do trigo, se restauraram com vantagem as perdas das demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara um cento: Et fecit fructum centuplum [e deu fruto cem por um].

Ó que grandes esperanças me dá esta sementeira! Ó que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? 

Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que se aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo. Será bem que o mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar e aos mais que ouvirdes nesta Quaresma.

(Sermão da Sexagésima- Parte I, Pe. Antônio Vieira)