Nesta quinta parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira discute a influência relativa do estilo do pregador na maior ou menor eficácia da Palavra de Deus render muitos frutos.
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado em toda a arte e em toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare [saiu, quem semeia, a semear]. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho: 'Caía o trigo nos espinhos e nascia: aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae [uma parte caiu entre os espinhos e os espinhos cresciam juntos (com o trigo)]; 'Caía o trigo nas pedras e nascia': aliud cecidit super petram, et ortum [outra parte caiu entre pedras e germinou]; 'caía o trigo na terra boa e nascia: aliud cecidit in terram bonam, et natum [outra parte caiu em terra boa e nasceu]. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir assim os tristes passos da Escritura como quem vem ao martírio: uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: cecidit [caiu]. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair: há de cair com queda, há de cair com cadência e há de cair com caso [circunstância]. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso [a circunstância] para a disposição. A queda é para as coisas porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso [a circunstância] é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetada que pareça caso [circunstância] e não estudo: cecidit, cecidit, cecidit [caiu, caiu, caiu].
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum [os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos (Sl 19,1)] diz Davi. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, as tem, diz o mesmo Davi, tem palavras e tem sermões e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum [não há línguas e nem sermões, onde suas vozes não sejam ouvidas].
E quais são estes sermões e estas palavras do céu? As palavras são as estrelas e os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: stellae manentes in ordine suo [as estrelas se mantêm na sua ordem]. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem 'desceu', da outra hão de dizer 'subiu'.
Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o nauta para a sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o navegante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas que todos vêem e que muito poucos medem.
Sim, padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Antes fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há o Lexicon para o grego e o Calepino para o latim [faz referência a dicionários clássicos para estas duas línguas], assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomaria para os nomes próprios porque os cultos têm desbatizados os santos e cada autor que alegam tem sido um enigma. Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia da África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro [personagens identificados na sequência do texto]. Há tal modo de alegar!
O Cetro Penitente dizem que é Davi, como se todos os cetros não foram penitência; o Evangelista Apeles é São Lucas; o Favo de Claraval, São Bernardo; a Águia da África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, São Jerônimo; a Boca de Ouro, São Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar [tolheria a outro de dizer] que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia da África é Cipião e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de o ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há de ser discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos se defendem pelo (lado) polido e estudado com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão e pelo (lado) escuro e duro, com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejássemos, aos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será, portanto, a causa da nossa queixa?
(Sermão da Sexagésima- Parte V, Pe. Antônio Vieira)