Nesta quarta parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira busca estabelecer a correlação entre o fato da Palavra de Deus não render muitos frutos com a natureza da pregação por palavras não estar associada com o exemplo das boas obras.
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? No pregador, podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamos examiná-las uma por uma e buscando esta causa.
Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares e hoje os pregadores são eu e outros como eu? Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não disse Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é o nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que seja? - o conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus [a pedra perfurou-lhe a testa]. As vozes da harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua [Davi tomava a harpa e a tocava com a mão (I Sm 16, 23)].
Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o mundo e o que fez? Mandou ao mundo o seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: genitum non factum [gerado, não criado]. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est [o Verbo se fez Carne].
De maneira que, até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est [veremos a Deus como Ele é]; na terra, entra-se no conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu [a fé vem pelo ouvir] e o que entra pelos ouvidos crê-se e o que entra pelos olhos, necessita. Se virem os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, o abalo e os efeitos do sermão seriam muitos outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lhe puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e que a pregaram em sua cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por cetro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Desvela-se uma cortina neste espaço e aparece a imagem do Ecce Homo [eis aqui o homem]; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que desvelou aquela cortina já tinha dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos; a representação daquela figura entra pelos olhos.
Sabem, padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam - 'Homens, fazei penitência' e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem', que é o retrato da austeridade e da penitência. As palavras do Batista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem' que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia e condenavam a soberba e a vaidade das galas e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem' vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam desapegos e retiros do mundo e a fugir das ocasiões e dos homens e o exemplo clamava: Ecce Homo: 'eis aqui o homem' que deixou as cortes e as sociedades e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como hão de se converter? Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam e daí procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de se conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e outra o que semeia, como há de se fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus, mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente contumaz e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subvertida com seus próprios olhos, havendo nela tantos mil inocentes. Contudo, este mesmo homem, com um único sermão, converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do mundo, e não de homens fiéis mas de gentios idólatras. Outra é, portanto, a causa que buscamos. Qual será?
(Sermão da Sexagésima- Parte IV, Pe. Antônio Vieira)