segunda-feira, 24 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (VIII)


Nesta oitava parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira constata que a voz, seja mais suave ou mais incisiva, não é também a causa do pouco fruto que hoje faz a Santa Palavra de Deus.

VIII

Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo, ao acabar a parábola, diz o Evangelho, começou a bradar: Haec dicens clamabat [(Jesus) disse elevando a voz (Lc 8,8)]. Bradou o Senhor e não arrazoou sobre a parábola porque era tal o auditório que fiou mais dos brados que da razão.

Perguntaram ao Batista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto [Eu sou a voz que clama no deserto (Jo 1,23)] - Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Batista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Batista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Batista pregava. 

Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto - nenhuma causa eu acho neste homem (Lc 23, 14). Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: at illi magis clamabant, crucifigatur [porém, clamavam cada vez mais: sede crucificado! (Mt 27, 23)]. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores de 'nuvens': Qui sunt isti, qui ut nubes volant? [quem são estes que voam como as nuvens? (Is 60,8)]. A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o mundo.

Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum [derrame-se como chuva a minha doutrina, espalhe-se como orvalho a minha palavra (Dt 32,1)] - desça minha doutrina como chuva do céu e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: non clamabit neque audietur vox ejus foris? [não grita e nunca eleva a voz aos outros (Is 42,2)] - não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. 

Em conclusão: a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores da palavra de Deus não é a circunstância da pessoa: qui seminat [quem semeia]; nem a do estilo: seminare [semear]; nem a da matéria: semen [semente]; nem a da ciência: suum [sua (semente)]; nem a da voz: clamabat [que brada]. Moisés tinha voz fraca (Ex 4,10); Amós tinha estilo grosseiro (Am 1,1); Salomão multiplicava e variava os assuntos (Ecl 1); Balaão não tinha exemplo de vida e o seu animal não tinha ciência (Nm 22) e, contudo, todos estes falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos e nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?

(Sermão da Sexagésima- Parte VIII, Pe. Antônio Vieira)