terça-feira, 30 de abril de 2024

A MANEIRA DE FALAR COM DEUS (II)

II. É fácil e agradável entreter-se com Deus

É grande erro, já o dissemos, mostrar desconfiança nas nossas relações com Deus, e aparecer sempre na sua presença como escravo tímido e vergonhoso, que treme de medo diante do seu rei; mas erro pior ainda seria imaginar que seja molesto e fastidioso conversar com o Senhor: não, nem por sombra: 'porque a sua conversação nada tem de desagradável, e a sua companhia nada de tedioso' (Sb 8,16). Interrogai as almas que o amam sinceramente, e elas vos dirão que, nas penas da vida, a sua mais doce e sólida consolação é entreter-se com Deus. 

Não se exige de vós aplicação contínua de espírito, nem que esqueçais as vossas ocupações e nem sequer as vossas recreações; o que se exige é que, sem descuidar-vos da vossa lida, procedais com Deus como procedeis para com as pessoas que vos amam e são amadas de vós. O vosso Deus está sempre perto de vós, e até dentro de vós: 'Porquanto é nele que tendes a vida, o movimento e o ser' (At 17,28). Quem deseja falar-lhe encontra sempre a porta aberta de par em par: o Senhor estima que os trateis com toda a confiança. Falai-lhe dos vossos negócios, desígnios, penas, temores, e de tudo o que vos interessa. Fazei-o sobretudo, torno a dizer, com confiança e coração aberto. 

Deus não tem costume de falar a uma alma que com Ele não fale, porque ela não está em estado de entender a sua linguagem, visto não ter hábito de tratar com Ele. Disto é que o Senhor se queixa nos Cânticos: 'Nossa irmã não passa ainda de uma criança no meu amor; como faremos para lhe falar, se ela não compreende?' (Ct 8,8). Deus quer ser tido como o Senhor mais poderoso e temível por aqueles que desprezam a sua graça; mas quer também que aqueles que o amam, o tratem como amigo o mais afetuoso; deseja que estes lhe falem muitas vezes, com familiaridade e sem temor. 

Deus deve sempre ser soberanamente respeitado, é verdade; mas quando Ele mesmo quer fazer-vos sentir a sua presença e deseja que lhe faleis como ao amigo que mais vos ama que todos os outros, abri o vosso coração com toda liberdade e confiança. Ele previne aos que desejam a sua presença, diz o sábio, 'e espontaneamente se lhes mostra' (Sb 6,14). Uma vez que aspirais ao seu amor, não espera que vades a ele, mas vem e se apresenta primeiro a vós, com as graças e remédios de que haveis necessidade. Só uma palavra espera que digais, para mostrar que está junto de vós, vos escuta e está pronto a consolar-vos: 'Os seus ouvidos estão abertos para escutar as orações dos justos' (Sl 33,16). 

Pela sua imensidade, Deus está em todos os lugares; há contudo dois que são a sua morada própria e preferida: um é o céu empíreo, onde está presente pela glória que comunica aos bem-aventurados; outro, na terra, é o coração humilde que o ama: 'Ele habita no lugar santo' - diz Isaías - 'e com a alma humilde e penitente' (Is 57,15). Assim, o nosso Deus, que reside no mais alto dos céus, não se reprime de ficar dias e noites com os seus servos fiéis, nas suas grutas ou celas; e aí, lhes dá as suas divinas consolações, das quais uma só sobrepassa todas as delícias que o mundo pode dar, consolações que só as não deseja quem não as experimenta: 'Provai, e vede quão doce é o Senhor' (Pv 33,9). 

No mundo, os amigos têm horas para conversar, e horas em que se separam, mas entre Deus e vós, se quiserdes, nunca haverá instante de separação: 'Enquanto dormirdes, o Senhor estará ao vosso lado' (Pv 3,24), e velará sem cessar junto de vós. Diz o Sábio - 'Eu repousarei na sua companhia e conversarei com Ele pelos meus pensamentos' (Sb 8,9-16). Quando repousais, Deus não se separa do vosso leito, mas fica pensando constantemente em vós, para que, se acordardes à noite, possa vos falar pelas suas inspirações, e receber de vós, algum ato de amor, oferenda e agradecimento. 

Assim quer Ele, ainda no tempo do repouso, continuar convosco os seus doces e amáveis entretenimentos. Falar-vos-á até durante o vosso sono, e vos instruirá a respeito da sua vontade, a fim de que, em acordando, a ponhais em obra (Nm 12,6). De manhã, achá-lo-eis ainda junto de vós, para ouvir algumas palavras de afeto ou confiança, e recolher os vossos primeiros pensamentos e a promessa que lhe fazeis de agir em tudo com o fim de agradar-lhe durante o dia, com o oferecimento de todas as penas que vos propondes sofrer de boa vontade pela seu amor e sua glória. Como Ele não deixa de se apresentar a vós no momento de despertardes, não deixeis também de dirigir-lhe um olhar cheio de amor; regozijai-vos por saber do vosso mesmo Deus a feliz nova de que não está longe de vós, conforme o doce preceito que Ele vos recorda a esta mesma hora: 'Tu amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração' (Dt 6,5).

(Santo Afonso Maria de Ligório)