quinta-feira, 14 de março de 2024

SOBRE A FIDELIDADE

A atitude fundamental da fidelidade é, pois, pressuposto de toda a auto-educação. Só o homem fiel consegue digerir interiormente as impressões contraditórias, extraindo o bem de cada uma delas, aprendendo e crescendo com as mais variadas situações da vida, porque permanece nele estável e viva a craveira dos valores autênticos. Em contrapartida, o homem volúvel cede, ora a uma, ora a outra impressão, e, sem mais, 'cai'; tudo nele passa mais ou menos sem deixar rasto.

Só o homem fiel, por outro lado, prefere o mais relevante ao menos relevante, o valioso ao que o é menos; o volúvel, esse, no melhor dos casos, mede pela mesma rasoura todas as realidades valiosas, mesmo que assim pereça algum valor mais alto. Ora, para o crescimento moral e, de modo geral, para a vida moral da pessoa, nada é mais importante do que a consideração da hierarquia objetiva dos valores, a capacidade de preferir constantemente os valores mais altos.

A atitude fundamental da fidelidade é também pressuposto de toda a confiança, de toda acredibilidade. Como há de alguém manter uma promessa ou merecer crédito na luta das idéias, se vive apenas no momento que passa, sem formar uma unidade de sentido com passado, presente e futuro? Quem poderá contar com ele? Só o homem fiel torna possível aquela confiança que constitui o fundamento de qualquer comunidade; só ele possui aquele elevado valor moral que reside na firmeza, na lealdade; na confiabilidade.

A fidelidade é, além disso, pressuposto da própria capacidade de confiar, da fé heróica. O volúvel, além de que não merece nenhuma confiança, jamais consegue crer com fé firme, inabalável: nem nos outros homens, nem em verdades, nem em Deus. É que lhe falta o vigor necessário para viver do valor que uma vez contemplou, se o rodeia a noite e a escuridão, ou se outras impressões fortes arremetem contra ele. Não é por acaso que, nas línguas latinas, a palavra fides significa simultaneamente fidelidade e fé. Com efeito, a fidelidade é parte constitutiva e essencial do vigor da fé e, portanto, de toda a religião.

Muito especialmente nítido é o significado transcendente da fidelidade no campo das relações humanas. O que é o amor sem fidelidade? No fundo, uma mentira. Porque o sentido mais profundo de todo o amor, o 'sim' interior que se pronuncia no amor, é uma íntima dedicação e entrega de si mesmo, que sobrevive sem prazo algum, inabalável através de todas as mudanças na correnteza da vida. Um homem que, por exemplo, diga: 'Amo-te agora, mas por quanto tempo não sei', nem amou realmente, nem faz idéia nenhuma da essência do amor. A fidelidade é tão essencial ao amor que qualquer um tem de considerar perene a sua dedicação. Isto vale para todos os amores: para o amor aos pais, para o amor aos filhos, aos amigos, para o amor conjugal. Quanto mais profundo é o amor, tanto mais o penetra a fidelidade.

É precisamente nesta fidelidade que repousa o especial brilho moral do amor, a sua casta beleza... A fidelidade imperturbável do amor de mãe, a fidelidade inconcussa de um amigo, possuem uma especial beleza moral que toca o coração de quem se abre aos valores. A fidelidade é, assim, o núcleo de qualquer amor grande e profundo.

O que é que há, em contrapartida, de mais moralmente baixo e disforme do que a infidelidade manifesta, a antítese radical da fidelidade, que ultrapassa largamente a inconstância? Que mácula moral se pode comparar com a do traidor que, por assim dizer, apunhala o coração que se lhe ofereceu cheio de confiança e indefeso? Quem for falto de fidelidade na sua atitude fundamental é um Judas perante todo o mundo dos valores éticos.

Sem dúvida, há homens para quem a fidelidade não passa de simples virtude burguesa, de mera correção ou probidade. O homem livre, grande, genial - assim pensam eles - não precisa de fidelidade. Néscio mal-entendido! Talvez haja, efetivamente, uma espécie de fidelidade inócua e complacente. Mas o certo é que a autêntica fidelidade é parte indispensável, constitutiva de toda a grandeza moral, de toda a verdadeira força e profundeza de uma personalidade.A autêntica fidelidade de que aqui tratamos é o contrário da mera probidade burguesa ou da simples atitude de quem se aferra aos seus costumes. Não deriva também de um temperamento apático, como a inconstância não deriva de um temperamento vivo e impulsivo.

A fidelidade é uma resposta livre e cheia de sentido ao mundo da verdade e dos valores, à sua significação imutável e autônoma, às suas exigências próprias. Sem a atitude fundamental da fidelidade, não há nenhuma cultura, nenhum progresso no conhecimento, nenhuma comunidade; mas, sobretudo, nenhuma personalidade moral, nenhum amadurecimento moral, nenhuma vida interior una e consistente, e nenhum amor verdadeiro. Todo o esforço de educação tem que ter em conta este significado fundamental da fidelidade em sentido amplo, se não quiser condenar-se de antemão ao malogro.

(Excertos da obra 'Atitudes Éticas Fundamentais', de Dietricht Von Hildebrand)