terça-feira, 5 de março de 2024

O MISTÉRIO DA QUARESMA

Podemos estar certos de que um tempo tão sagrado como este da Quaresma é rico em mistérios. A Igreja fez dela um tempo de recolhimento e de penitência, em preparação para a maior de todas as suas festas; ela quis, portanto, introduzir nela tudo o que pudesse excitar a fé dos seus filhos e encorajá-los a realizar o árduo trabalho de expiação dos seus pecados. Durante a Septuagésima, tínhamos o número 'setenta', que nos recorda os setenta anos do cativeiro na Babilônia, após os quais o povo eleito de Deus, purificado da idolatria, deveria regressar a Jerusalém e celebrar a Páscoa. É o número 'quarenta' que a Igreja nos apresenta agora: um número, como observa São Jerônimo, que denota castigo e aflição.

Recordemos os quarenta dias e quarenta noites do dilúvio enviado por Deus na sua cólera, quando se arrependeu de ter feito o homem e destruiu todo o gênero humano, com exceção de uma família. Consideremos como o povo hebreu, em castigo da sua ingratidão, vagou quarenta anos no deserto, antes de lhe ser permitido entrar na terra prometida. Ouçamos o nosso Deus ordenar ao profeta Ezequiel que se deitasse quarenta dias sobre o seu lado direito, como uma figura do cerco que devia trazer a destruição a Jerusalém.

Há duas pessoas no Antigo Testamento que representam estas duas manifestações de Deus: Moisés, que tipifica a Lei; e Elias, que é a figura dos Profetas. A ambos é permitido aproximarem-se de Deus: o primeiro no Sinai, o segundo no Horeb; mas ambos têm de se preparar para o grande favor por meio de um jejum expiatório de quarenta dias.

Com estes fatos misteriosos diante de nós, podemos compreender porque é que o Filho de Deus, tendo-se feito Homem para a nossa salvação e querendo sujeitar-se à dor do jejum, escolheu o número de quarenta dias. A instituição da Quaresma é-nos assim apresentada com tudo o que pode impressionar o espírito pelo seu caráter solene e pelo seu poder de apaziguar Deus e purificar as nossas almas. Olhemos, portanto, para além do pequeno mundo que nos rodeia, e vejamos como todo o universo cristão está, neste preciso momento, a oferecer estes quarenta dias de penitência como um sacrifício de propiciação à Majestade ofendida de Deus; e esperemos que, como no caso dos ninivitas, Ele aceite misericordiosamente a oferta deste ano da nossa expiação, e perdoe os nossos pecados.

O número dos nossos dias de Quaresma é, pois, um mistério sagrado: aprendamos agora, pela liturgia, sob que luz a Igreja vê os seus filhos durante estes quarenta dias. Ela considera-os como um imenso exército que luta dia e noite contra os seus inimigos espirituais. Lembramo-nos de como, na Quarta-Feira de Cinzas, ela chama à Quaresma uma guerra cristã. Para que possamos ter essa novidade de vida, que nos tornará dignos de cantar de novo o nosso 'Aleluia', temos de vencer os nossos três inimigos: o demônio, a carne e o mundo. Somos companheiros de luta do nosso Jesus, pois também Ele se submeteu à tríplice tentação, que lhe foi sugerida por Satanás em pessoa. Por isso, devemos vestir a nossa armadura e vigiar incessantemente. E como é da maior importância que o nosso coração seja forte e corajoso, a Igreja nos dá um cântico de guerra feito pelo próprio Céu, que pode incendiar até os covardes com a esperança da vitória e a confiança na ajuda de Deus: é o Salmo 90, inserido integralmente na missa do primeiro Domingo da Quaresma, e, em todos os outros dias, incorporando alguns dos seus versículos no ofício ferial.

Aí nos diz para confiarmos na proteção com que o nosso Pai celeste nos cobre, como com um escudo; para esperarmos ao abrigo das suas asas; para termos confiança n'Ele, pois que nos livrará do laço do caçador, que nos roubou a santa liberdade dos filhos de Deus; contar com o socorro dos santos anjos, que são nossos irmãos, a quem nosso Senhor encarregou de nos guardar em todos os nossos caminhos, e que, quando Jesus permitiu que Satanás o tentasse, foram as testemunhas adoradoras do seu combate, e se aproximaram dele, depois da sua vitória, oferecendo-lhe o seu serviço e homenagem. Absorvamos bem estes sentimentos com que a Igreja quer que nos inspiremos; e, durante as nossas seis semanas de jornada, repitamos muitas vezes este admirável cântico, que tão bem descreve o que os soldados de Cristo devem ser e sentir nesta época da grande guerra espiritual.

(Excertos da obra 'O Ano Litúrgico" de Dom Gueranger)